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Conceito de cura da luxação recidivante do ombro

Resumos

O presente trabalho analisa as principais técnicas cirúrgicas empregadas no tratamento da luxação recidivante do ombro (LRO), com o objetivo de obter a normalidade da amplitude dos movimentos articulares e associar diferentes tempos cirúrgicos num único procedimento para obter uma capacidade funcional completa, sem comprometer a normalidade dos movimentos, por causa das suturas tensas usadas nas cirurgias de Putti-Platt, Bankart, Latarjet, Dickson-O'Dell e outras.

Após cuidadosa revisão desses métodos em uso, chegamos à conclusão de que a LRO pode ser considerada resolvida quanto à porcentagem de cura (97%). Permanecem, no entanto, limitações dos movimentos na grande maioria dos casos, aceitas até como necessárias para evitar recidivas.

O nosso objetivo cirúrgico visa à obtenção de uma recuperação funcional completa, atuar simultaneamente sobre as várias lesões anatomopatológicas e abandonar a ideia das chamadas "lesões essenciais".

A imobilização do ombro operado será feita somente durante a cicatrização das partes moles em rotação neutra. Com o uso de um enxerto ósseo pediculado dispensa-se qualquer tipo de imobilização prolongada, por causa da estabilidade obtida pela osteossíntese da coracoide no rebordo da glenoide, como na técnica de Latarjet.

Essa nossa conduta, empregada desde 1959, consiste, portanto, na associação das várias técnicas com as quais se obtêm a cura sem limitação dos movimentos, por causa da redução da tensão nas suturas da cápsula e dos músculos subescapular e coracobraquial empregadas nas técnicas acima.

Luxação do ombro/cirurgia; Articulação do ombro/cirurgia; Instabilidade articular


This paper presents the main surgical techniques applied in the treatment of anterior recurrent shoulder dislocation, aiming the achievement of the normality of articulate movements. This was obtained by combining distinct surgical procedures, which allowed the recovery of a complete functional capacity of the shoulder, without jeopardizing the normality of movement, something that has not been recorded in the case of the tense sutures of the surgical procedures of Putti-Platt, Bankart, Latarjet, Dickson-O'Dell and others.

The careful review of the methods applied supports the conclusion that recurrent shoulder dislocation can be cured, since cure has been obtained in 97% of the treated cases. However, some degree of limitation in the shoulder movement has been observed in most of the treated cases.

Our main goal was to achieve a complete shoulder functional recovery, by treating simultaneously all of the anatomical–pathological lesions, without considering the so-called essential lesions.

The period of post-operatory immobilization only last for the healing of soft parts; this takes place in a position of neutral shoulder rotation, since the use of vascular bone graft eliminates the need for long time immobilization, due to the shoulder stabilization provided by rigid fixation of the coracoid at the glenoid edge, as in the Latarjet's technique.

Our procedure, used since 1959, comprises the association of several techniques, which has permitted shoulder healing without movement limitation. That was because of the tension reduction in the sutures of the subescapularis, capsule, and coracobraquialis muscles.

Shoulder dislocation/surgery; Shoulder joint/surgery; Joint instability


Introdução

Pelo título dado ao trabalho, pretendemos demonstrar o nosso pensamento sobre o conceito de cura da luxação recidivante do ombro (LRO), à luz dos conhecimentos atuais e da experiência pessoal, mais do que a simples descrição de um método de tratamento e a análise dos seus resultados. Objetivamos também uma explicação para a tendência geral de admitir como cura da LRO a cessação das recidivas, mesmo que para isso seja necessário comprometer parcialmente a função da articulação. A nossa posição é definir como conceito de cura da LRO aquele que resulta não só na cessação das recidivas, mas também na restituição da função normal da articulação operada.

Evolução do tratamento cirúrgico

O tratamento cirúrgico da LRO sofreu uma evolução que podemos dividir em quatro períodos mais ou menos elásticos.

O primeiro, de 1870 a 1910, é o período no qual surgiram as primeiras tentativas de uma solução cirúrgica e demonstrou um conhecimento confuso sobre a patologia da enfermidade baseado em premissas erradas. As atenções dos cirurgiões se dirigiam sobre a cápsula e interpretavam a sua frouxidão como a causa única da instabilidade. Surgiram então as capsulorrafias e com elas os seus insucessos.

O segundo período, de 1910 a 1940, foi o da descrição das técnicas que marcariam época no caminho para a cura definitiva da enfermidade, as quais pareciam chegar a um mesmo objetivo: a criação de uma cicatriz inelástica na face anterior do ombro. Assim, surgiram as operações de Hibbinette,11. Hybbinette S. De la transplantation de un fragment osseux pour remédier aux luxations recidivantes de le paule: constatations et resultats operatoires. Acta Chir Scand. 1932;71:411–45. Eden,22. Eden R. Zur Operation der Habituellen Schulterluxation unter Mitteilung Eines Neuen Verfahrens bei Abriss am Inneren Pfannenrande. Dtsch Z Chir. 1918;144:269–80.Oudard,33. Oudard P. La luxation récidivante de l'épaule (variété antéro-interne) procede operatoire. J Chir. 1924;23:13. Putti-Platt,44. Osmond-Clarke H. Habitual dislocation of the shoulder; the Putti-Platt operation. J Bone Joint Surg Br. 1948;30(1):19–25. Gallie,55. Gallie WE, Le Mesurier AB. Recurring dislocation of the shoulder. J Bone Joint Surg Br. 1948;30(1):9–18. Bankart,66. Bankart AS. The pathology and treatment of recurrent dislocation of the shoulder-joint. Br J Surg. 1938;26: 23–9. Nicola,77. Nicola T. Recurrent anterior dislocation of the shoulder: a new operation. J Bone Joint Surg Am. 1929;11(1):128–32. Magnuson88. Magnuson PB. Treatment of recurrent dislocation of the shoulder. Surg Clin N Am. 1945;25:14–20. etc.

O terceiro período foi entre 1940 e 1950, quando a experiência mundial pôde coletar para julgamento e análise, o que viria a confirmar o sucesso dessas técnicas citadas, distribuídas as preferências por zonas geográficas de influência de línguas, escolas ou ascendências.

A partir de 1950, iniciou-se o período no qual se busca a simplificação da cirurgia, conceito aceitável como um princípio geral no progresso em qualquer área, que resolve as dificuldades de ordem técnica, que melhores resultados apresenta e torna o ato cirúrgico mais simples.

O correr do tempo assistiu a um lento, porém sequente, desenvolvimento dos estudos sobre a LRO. Pesquisas se fizeram e conclusões se equacionaram, até que se chegasse a um somatório de conhecimentos devidamente fundamentados. Formou-se, então, uma base definida da qual partem novas tentativas de procedimentos que se identificam como contribuições válidas para o aperfeiçoamento, quer da interpretação dos fatos já constatados, quer, principalmente, dos detalhes capazes de melhorar os resultados funcionais do tratamento.

A nossa participação no assunto em questão vem desde o início das nossas atividades dentro da especialidade e foi marcada pelo contato com a técnica de Nicola,77. Nicola T. Recurrent anterior dislocation of the shoulder: a new operation. J Bone Joint Surg Am. 1929;11(1):128–32. na época recebida com grande entusiasmo, pois parecia atender a um anseio comum dos especialistas. Esse anseio, quer nos pare-cer, definia-se na procura de uma simplicidade, em contraste com as de Bankart66. Bankart AS. The pathology and treatment of recurrent dislocation of the shoulder-joint. Br J Surg. 1938;26: 23–9. e de Putti-Platt,44. Osmond-Clarke H. Habitual dislocation of the shoulder; the Putti-Platt operation. J Bone Joint Surg Br. 1948;30(1):19–25. também eficientes, mas a exigirem um adestramento maior dos cirurgiões, dada a complexidade de procedimentos delas decorrentes, além de demandarem um tempo cirúrgico prolongado, com repercussão nos riscos de uma anestesia geral prolongada.

Durante a nossa permanência como bolsista no Instituto Rizzoli, de Bologna, em 1948 e 1949, tivemos a satisfação de auxiliar o professor Delitala99. Delitala F. Il fondamento anatomo patologico e la cura della lussazione abituale di spalla. Chir Organi Mov. 1947;31(6):299–307. em cerca de uma dezena de vezes e praticar a sua técnica, que, pelos detalhes conhecidos, viria também em busca de uma simplificação da técnica de Bankart,66. Bankart AS. The pathology and treatment of recurrent dislocation of the shoulder-joint. Br J Surg. 1938;26: 23–9.que é a fixação da cápsula no rebordo glenóideo.

De volta do Instituto Rizzoli, a intenção que tínhamos era a de pôr em prática a nossa experiência, adquirida com a técnica de Delitala,66. Bankart AS. The pathology and treatment of recurrent dislocation of the shoulder-joint. Br J Surg. 1938;26: 23–9. embora tivéssemos a sensação permanente da sua complexidade, já minorada então, mas que não atendia ainda àquilo que desejávamos.

É claro que, entre 1952 e 1958, aprofundamo-nos obrigatoriamente no estudo do tema e, à medida que revíamos toda a literatura existente, desenvolvemos uma nova ideia, que, com base nos conhecimentos da anatomia patológica da LRO, levava-nos a constatar não a existência de uma única lesão essencial, mas a coexistência de várias lesões.

Sendo assim, a técnica a ser empregada no tratamento de um ombro que se luxa repetidas vezes deveria ser aquela que reconstituísse o quanto possível as principais lesões constatadas, o que, teoricamente, deveria impedir que a luxação se repetisse.

Admitindo-se, com base nos conhecimentos atuais, a existência concomitante de lesões capsuloligamentares, de lesões ósseas do rebordo glenóideo e de lesões musculares traduzidas principalmente pela atrofia e distensão do subescapular, a técnica que poderíamos chamar de ideal seria aquela que visasse à tentativa de correção de todos os elementos lesados.

Como a maioria dos autores se fundamenta na existência de uma única lesão essencial e por isso propõe diferentes técnicas dirigidas para o tratamento dessas lesões, a ideia que acabamos de expor nos levou, obrigatoriamente, a associar essas diferentes condutas num único procedimento e a criar uma operação combinada, para o tratamento de quase todas as lesões. Ele difere das poucas técnicas combinadas já propostas, que se limitam à associação de apenas uma conduta, além da principal.

Baseamos nossa argumentação em duas razões principais:
  1. No conhecimento das lesões anatomopatológicas e, portanto, da fisiopatologia das recidivas, que permite conceber o seu tratamento com vistas a um verdadeiro "restitutivo anatômico", consequentemente funcional.

  2. No emprego de alguns detalhes de técnica e na adoção de alguns princípios ortopédicos gerais, que podem concorrer de forma importante para essa recuperação funcional completa.

A respeito da primeira razão: a evolução histórica do conhecimento da anatomia patológica e da fisiopatologia da LRO coincidiu com o aparecimento de uma série de técnicas que se tornaram as principais entre as 200 e tantas conhecidas. Essas técnicas se firmaram e se consagraram através de anos de experiência em todo o mundo, com o fato interessante de que cada uma delas baseou o tratamento em uma das lesões anatomopatológicas, considerada pelo seu autor como "lesão essencial" para explicar a recidiva das luxações.

O termo "lesão essencial" surgiu com Bankart,66. Bankart AS. The pathology and treatment of recurrent dislocation of the shoulder-joint. Br J Surg. 1938;26: 23–9. que a descreveu como sendo a desinserção do labrum do rebordo ósseo glenóideo, que formava uma fenda por onde a cabeça umeral passava ao luxar novamente. Esse termo se generalizou depois que o autor pensou ter esclarecido toda a complexidade do problema.

As lesões capsulares já tinham sido descritas, tanto que as capsulorrafias foram as primeiras técnicas a se divulgarem no tratamento da LRO.

As lesões ósseas do rebordo glenóideo foram igualmente descritas, daí o surgimento dos enxertos ósseos pré-glenoideanos, como as técnicas de Eden22. Eden R. Zur Operation der Habituellen Schulterluxation unter Mitteilung Eines Neuen Verfahrens bei Abriss am Inneren Pfannenrande. Dtsch Z Chir. 1918;144:269–80. e Hybinette.11. Hybbinette S. De la transplantation de un fragment osseux pour remédier aux luxations recidivantes de le paule: constatations et resultats operatoires. Acta Chir Scand. 1932;71:411–45.

Depois, as lesões musculares, principalmente a do músculo subescapular, segundo Magnuson,88. Magnuson PB. Treatment of recurrent dislocation of the shoulder. Surg Clin N Am. 1945;25:14–20. cuja técnica ainda é empregada.

A depressão posteroexterna da cabeça umeral, presente em quase todos os casos da LRO, também mereceu, por parte de Palmer e Widen,1010. Palmer I, Widen A. The bone block method for recurrent dislocation of the shoulder joint. J Bone Joint Surg Br. 1948;30(1):53–8. a denominação da lesão principal, baseada no encaixe dessa depressão no rebordo anterior da glenoide.

Até mesmo os estudos filogenéticos e ontogenéticos levaram Dickson e O'Dell1111. Dickson JA, O'Dell HW. A phylogenetic study of recurrent anterior dislocation of the shoulder joint. Surg Gynecol Obstet. 1952;95(3):357–65. a propor o tratamento da LRO pela restituição da função de rotador interno do pequeno peitoral, perdida pela evolução da espécie e que, consequentemente, desequilibrou a articulação em favor dos rotadores externos.

Em resumo do que acabamos de expor, teremos as seguintes lesões essenciais ou principais, de acordo com seus descobridores, que para cada uma delas propuseram uma técnica própria de tratamento:
  1. Lesão capsuloligamentar com lesão do labrum

  2. Lesão do rebordo ósseo glenóideo.

  3. Lesão-impacção da parte posteroexterna da cabeça umeral.

  4. Lesão do músculo subescapular.

  5. Fatores predisponentes da instabilidade articular, de ordem filo e ontogenética, por conta do pequeno peitoral.

Entretanto, o conhecimento atual sobre a anatomia patológica da LRO reconhece a multiplicidade das lesões e para cada uma delas foi proposta uma solução, aceita e consolidada por meio de longa experiência.

A adoção de um método de tratamento que pretende corrigir somente uma das múltiplas lesões existente exigirá desse método a responsabilidade de suprir os demais fatores de recidiva, provavelmente à custa da redução da mobilidade articular. Essa limitação se transforma numa espécie de "fator estabilizador", que evita a luxação por impedir que se desencadeie a série de déficit funcional, consequência das múltiplas lesões anatomopatológicas.

Baseamos essas deduções na alta percentagem das limitações dos movimentos do ombro encontradas nas estatísticas detalhadas dos métodos mais empregados.

Alguns autores (como Magnusson,88. Magnuson PB. Treatment of recurrent dislocation of the shoulder. Surg Clin N Am. 1945;25:14–20.DePalma,1212. DePalma AF. Factors influencing the choice of a modified Magnuson procedure for recurrent anterior dislocation of the shoulder: with a note on technique. Surg Clin N Am. 1963;43:1647–9. Watson-Jones1313. Watson-Jones R. Note on recurrent dislocation of the shoulder joint; superior approach causing the only failure in 52 operations for repair of the labrum and capsule. J Bone Joint Surg Br. 1948;30(1):49–52. e tantos outros) confessaram a necessidade dessas limitações como benéficas para a cura. Outros confessaram a decisão de não computar na análise de seus casos as limitações de menos 20°, quando essas não são reclamadas pelos pacientes. Firmou-se, por assim dizer, um conceito de cura à custa da perda parcial da mobilidade articular.

Se considerarmos a faixa etária jovem e a alta percentagem entre os atletas, a limitação mais ou menos acentuada da redução dos movimentos de rotação externa e de abdução afastará definitivamente o atleta de suas atividades esportivas.

A respeito da segunda razão, estamos convencidos de que a adoção de uma técnica de tratamento que atue sobre todas as lesões anatomopatológicas, direta ou indiretamente, criará por si só uma série de fatores estabilizantes para a melhoria da recuperação funcional da articulação e procurará identificar os fatores que comprovadamente possam ser a causa das limitações da mobilidade em cada uma das técnicas. Com a adoção de algumas medidas operatórias e pós-operatórias capazes de concorrer de forma indiscutível para facilitar a volta dos movimentos normais da articulação operada evita-se sutura sob tensão excessiva ou encurtamento de elementos anatômicos. Essa técnica reconstrutora reúne métodos conhecidos e escolhidos dentre aqueles que favorecem uma recuperação da forma mais precoce possível, como, por exemplo, a dispensa de uma imobilização prolongada. Além disso, acreditamos que medidas pós-operatórias relacionadas ao tipo, à posição e ao tempo de imobilização possam influir para um melhor resultado.

Analisemos mais objetivamente os detalhes importantes da argumentação apresentada. A maioria das técnicas cirúrgicas usadas para o tratamento da LRO se baseia na correção de uma das múltiplas lesões anatomopatológicas que compõe o conjunto de causas das recidivas. Ao lado dos resultados favoráveis que essas técnicas apresentaram em relação às recidivas, a recuperação total dos movimentos da articulação apresentava-se incompleta num significativo número de casos, em todas as estatísticas, a ponto de se tornar uma preocupação geral. Desde 1960, nossa preferência se voltou para o uso de uma técnica que procurasse corrigir no mesmo ato cirúrgico as múltiplas lesões anatomopatológicas e agir simultaneamente sobre as lesões capsulares, musculares e ósseas. A esses pormenores no ato cirúrgico associamos outros que permitissem menor tempo possível de imobilização em posição funcional, semelhantemente às que se adotam para outras articulações em geral, e facilitassem, assim, a recuperação dos movimentos, sem comprometer a ação estabilizadora desejada. Partimos do princípio de que cada estrutura tratada permitirá uma rotação externa próxima ao ponto intermediário entre as duas rotações, para que assim seja imobilizado, a fim de que a fase de recuperação imediatamente após a retirada do gesso se inicie já com a metade da sua excursão rotatória ganha.

Examinemos os elementos anatômicos lesados, as formas de sua restauração e a identificação do fator limitante da função.

As lesões do subescapular, músculo importante na estabilização da articulação, que se manifesta principalmente na posição de rotação externa e de abdução, transformam-no, quando esse músculo se coloca sob tensão, num bloqueio dinâmico à passagem da cabeça umeral. Entretanto, a cicatrização das lesões de suas fibras em tecido fibroso vai provocar gradativamente a perda da elasticidade e da capacidade contrátil, o que resulta em atrofia e, consequentemente, na perda do papel de contensão dinâmica. A técnica que visa à recuperação dessa função se consegue pela reimplantação da sua inserção umeral, com o redirecionamento da sua posição oblíqua para horizontal, detalhe esse que resulta no aumento de função estabilizadora. A nosso ver, essa transferência da inserção do subescapular de dentro para fora da corrediça bicipital não só direciona com vantagem as suas fibras, como também aumenta o seu ângulo de inserção no colo umeral, o que, por sua vez, aumenta o poder de rotação interna desse músculo. Esse fato beneficia a dinâmica do ombro, pois o aumento da força de rotação interna reequilibra em parte o confronto com as forças rotatórias externas, anatomicamente favorecidas pelos ângulos de inserção maiores de seus músculos. Esse papel funcional, a nosso ver importante, até então não havia sido atribuído ao subescapular na sua nova inserção. O importante é nunca interromper cirurgicamente a continuidade de suas fibras e transferir esse músculo, alongado pela criação de um retalho fibroperióstico, ao dissecá-lo desde a sua inserção na pequena tuberosidade. A totalidade das técnicas conhecidas que se baseiam exclusivamente na transferência da inserção do subescapular externamente à corrediça bicipital objetiva deliberadamente diminuir de 20° a 50° da rotação externa do ombro (Magnusson-Stack,88. Magnuson PB. Treatment of recurrent dislocation of the shoulder. Surg Clin N Am. 1945;25:14–20.DePalma,1212. DePalma AF. Factors influencing the choice of a modified Magnuson procedure for recurrent anterior dislocation of the shoulder: with a note on technique. Surg Clin N Am. 1963;43:1647–9. Palumbo e Quirin,1414. Palumbo LT, Quirin LD. Recurrent dislocation of the shoulder repaired by the Magnuson-Stack operation. Arch Surg. 1950;60(6):1140–50. McLaughlin e Cavallaro1515. McLaughlin HL, Cavallaro WU. Primary anterior dislocation of the shoulder. Am J Surg. 1950;80(6):615–21.).

A ruptura da cápsula ou o arrancamento da sua inserção glenóidea produz uma retração, de modo que a sua sutura coloca-a sob tensão. Putti-Platt,44. Osmond-Clarke H. Habitual dislocation of the shoulder; the Putti-Platt operation. J Bone Joint Surg Br. 1948;30(1):19–25. Brav1616. Brav EA. An evaluation of the Putti-Platt reconstruction procedure for recurrent dislocation of the shoulder. J Bone Joint Surg Am. 1955;37(4):731–41. e Matti,1717. Matti H. Zur Operative behandlung der habituellen luxation des Schultergelenks. Zentralbl F Chir. 1936;63:3011–9. ao lado dos bons resultados, acusam uma limitação da rotação externa permanente. Colonna e Ralston1818. Colonna PC, Ralston EL. Stabilization of the shoulder by a modified Putti-Platt procedure. Surg Clin N Am. 1957;37(6):1711–7. constatam que sempre restam 15° de redução da rotação externa do ombro e pensam que os bons resultados poderiam resultar desse bloqueio parcial dos movimentos, pois evitariam o escorregamento da cabeça deformada por sobre a margem glenóidea, o que provoca a luxação.

Mackinnon,1919. Mackinnon AI. Recurrent dislocation of the shoulder-joint. Med Herald. 1904;23:566. Available at: http://www.archive.org/stream/medicalheraldvo02unkngoog/medicalheraldvo02unkngoog_djvu.txt
http://www.archive.org/stream/medicalher...
em 49 casos, teve 45 com limitação de 15° ou mais nos movimentos de rotação externa e os únicos três casos nos quais houve recuperação total dos movimentos foram os que recidivaram. Merle D'Aubigné et al.,2020. Merle D'Aubigne R, Cauchoix J, Alkalay E. Treatment of recurring dislocation of the shoulder. Rev Chir Orthop Reparatrice Appar Mot. 1951;37(2):119–24. em 36 casos, tiveram oito com uma limitação de mais de 30°. Sandow e Jannes2121. Sandow Jr TL, Janes JM. Operative treatment of recurrent anterior dislocation of the shoulder by the Bankart and the Putti-Platt procedures. Proc Staff Meet Mayo Clin. 1963;38:1–10. encontraram 100% de limitação externa em 90 casos operados. Pela análise das estatísticas publicadas da técnica de Putti-Platt,44. Osmond-Clarke H. Habitual dislocation of the shoulder; the Putti-Platt operation. J Bone Joint Surg Br. 1948;30(1):19–25. pelo menos 15° dos movimentos da rotação externa ficam limitados definitivamente.

As técnicas que abrem a cápsula ou atuam sobre ela o fazem no sentido paralelo ao bordo anterior da glenoide. Sabe-se que o tempo cirúrgico para suturar a cápsula no rebordo glenóideo pode ser a causa das limitações dos movimentos, principalmente o de rotação externa.

Preferimos abrir e suturar a cápsula no sentido horizontal e corrigir a sua frouxidão sem encurtar as suas fibras longitudinais, o que mantém a sua elasticidade na abdução e na rotação externa. A sutura da cápsula numa incisão horizontal permite o seu fechamento no sentido craneocaudal, o que corrige a sua frouxidão sem encurtá-la.

As técnicas que atuam sobre as lesões ósseas se baseiam no uso de enxerto ósseo para corrigir o desgaste do rebordo ósseo anterior da glenoide, a fim de impedir o encaixe da depressão posteroexterna pela ampliação da largura da cavidade glenoide. As técnicas que usaram o enxerto ósseo livre comprometiam a função articular pela demora da sua consolidação. O surgimento do enxerto ósseo pediculado de Latarjet,2222. Latarjet M. Treatment of recurrent dislocation of the shoulder. Lyon Chir. 1954;49(8):994–7. fixado por osteossíntese, propiciou a possibilidade de uma consolidação rápida e a dispensa da imobilização da articulação, pois, além de aumentar a área da cavidade glenóidea, impede o encaixe da depressão posteroexterna.

Achamos de extrema importância à reconstrução do rebordo ósseo glenóideo, o que representa um papel indiscutível na instabilidade do ombro. Na presença do enxerto ósseo pediculado, além de ter os requisitos mecânicos para o papel que lhe é destinado, os problemas de ordem biológica deixam de existir totalmente, graças a um robusto pedículo, altamente vascularizado pelo músculo coracobraquial, o que proporciona uma consolidação garantida e rápida. A fixação desse enxerto, preparado e fixado por um parafuso esponjoso, dispensa imobilização e permite o início da recuperação funcional precocemente.

Ao contrário de Latarjet,2222. Latarjet M. Treatment of recurrent dislocation of the shoulder. Lyon Chir. 1954;49(8):994–7. adotamos a prática de cruentar não só a superfície óssea da glenoide, como também a face do enxerto com o qual vai ficar em contato, além da osteossíntese por meio de parafuso esponjoso que engloba as duas corticais do colo da omoplata, para garantir a sua rigidez e dispensar o uso de imobilização externa.

Quanto à imobilização pós-operatória, adotamos uma posição intermediária entre a rotação interna e externa e obedecemos a um princípio usado para toda articulação, a fim de facilitar a sua recuperação e evitar, desse modo, as retrações capsulares e cicatriciais, assim como as musculares. O ombro imobilizado em posição de Velpeau significa mantê-lo em rotação interna, o que vai se transformar num fator de limitação da rotação externa e exigir a perda de um tempo importante da fase de recuperação. A posição intermediária entre os dois extremos do movimento de rotação é testada no ato cirúrgico antes de se iniciar o fechamento da ferida. O paciente é imobilizado num aparelho toracobraquial por um tempo curto, apenas com o objetivo de proteger as suturas das partes moles no período de sua cicatrização, o que varia de 12 a 14 dias, quando já está diminuída a sensibilidade dolorosa e os movimentos podem ser retomados imediatamente após a retirada do gesso.

Como procuramos obter um enxerto ósseo o maior possível, osteotomisamos a apófise coracoide na sua base, o que implicaria a perda da inserção do pequeno peitoral e o seu abandono nos planos profundos da ferida operatória. Nesse caso preferimos aproveitá-lo e restituir a sua função primitiva. O tendão do pequeno peitoral é dissecado da face superior da apófise coracoide e conserva a sua expansão fibroperióstica, que se estende até a sua borda lateral. Ela é aproveitada para proporcionar um alongamento desse músculo, facilitar a sua inserção na grande tuberosidade do úmero e, com isso, evitar uma eventual limitação da rotação externa. Usamos esse tempo cirúrgico proposto por Dickson e O'Dell1111. Dickson JA, O'Dell HW. A phylogenetic study of recurrent anterior dislocation of the shoulder joint. Surg Gynecol Obstet. 1952;95(3):357–65. para acrescentar mais uma força rotatória interna, o que protege a articulação contra a tendência a luxar e restitui em parte o equilíbrio de forças perdido no processo evolutivo que sofre o ombro, segundo os estudos conhecidos da filogenética e da ontogenética (fig. 1).

Figura 1
Técnica original de Dickson-O'Dell (transferência do peitoral menor do processo coracoide para a grande tuberosidade).

Por vezes essa transferência do pequeno peitoral mostra uma maior tensão do músculo transferido, constatada quando se procura testar a colocação do membro em rotação neutra para a imobilização. Nesse caso, procedemos a um alongamento da aponeurose do referido músculo, pela secção somente das partes fibrosas inelásticas superficiais, e poupamos a integridade das fibras musculares elásticas, que cedem sem romper.

Conclusões

  1. enxerto ósseo pediculado, usado para melhorar a estabilidade articular, amplia a superfície da glenoide, segundo a técnica de Latarjet, e cria ao mesmo tempo um obstáculo ao deslizamento da cabeça umeral, pois reconstitui o rebordo ósseo glenóideo lesado e amplia a área da cavidade glenoide deficiente anatomicamente ou em consequência do trauma repetido das luxações.

  2. A técnica de Bristow, tida pelos anglo-saxões como semelhante à de Latarjet, difere, a nosso ver, num detalhe que julgamos importante, que é a transfixação do músculo subescapular pela coracoide, o que causa bloqueio ao deslizamento amplo desse músculo e impede uma rotação externa completa, fato que não acontece na técnica de Latarjet.2222. Latarjet M. Treatment of recurrent dislocation of the shoulder. Lyon Chir. 1954;49(8):994–7.

  3. uso de enxerto da coracoide é superior às capsulorrafias, em termos de recuperação da mobilidade e da recidiva, e apresenta 2,5% de recidivas, contra 11,5% pela operação de Bankart, segundo Walch et al. 2323. Walch G, Dejour H, Trillat AG. Recurrent anterior luxation of the shoulder occurring after the age of 40. Rev Chir Orthop Reparatrice Appar Mot. 1987;73(8):609–16.

  4. A técnica de Latarjet apresentou uma taxa de recidiva na série de Gazielly2424. Gazielly D. Results of anterior coracoid abutments performed in 1995: apropos of 89 cases. Rev Chir Orthop Reparatrice Appar Mot. 2000;86 Suppl. 1:103–6. de 3% em 89 casos e não foi encontrada correlação estatisticamente significativa entre a artrose pós-operatória e a idade, assim como o tipo de esporte praticado.

  5. Numa série revista de 2001 com mais de 15 anos, Hovelius et al. 2525. Hovelius LK, Sandström BC, Rösmark DL, Saebö M, Sundgren KH, Malmqvist BG. Long-term results with the Bankart and Bristow–Latarjet procedures: recurrent shoulder instability and arthropathy. J Shoulder Elb Surg. 2001;10(5):445–52. confirmam que a presença do enxerto ósseo não causa mais artrose do que a cirurgia de Bankart.

  6. Em 1957, Dickson e O'Dell,1111. Dickson JA, O'Dell HW. A phylogenetic study of recurrent anterior dislocation of the shoulder joint. Surg Gynecol Obstet. 1952;95(3):357–65.baseados em conceitos embriológicos e filogenéticos, publicaram uma técnica com a transferência do pequeno peitoral da sua inserção coracóidea para a grande tuberosidade do úmero, o que passamos a associar também aos nossos casos.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2014
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