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Luxação congênita da patela - Caso clínico Trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar São João, Porto, Portugal.

RESUMO

A luxação congênita da patela é uma patologia rara, em que a patela se encontra permanentemente luxada e manualmente irredutível. A patela desenvolve-se normalmente como um osso sesamoide do fêmur. A luxação congênita da patela resulta da falência da rotação interna do miótomo que forma o fêmur, músculo quadricípite e o aparelho extensor. Usualmente manifesta-se imediatamente após o nascimento, embora em alguns casos raros o diagnóstico possa ser adiado até a adolescência/idade adulta. O diagnóstico precoce é importante, permite a correção cirúrgica, evita as sequelas tardias, notadamente alterações degenerativas precoces do joelho. É apresentado um caso de luxação permanente da patela, numa criança de sexo feminino, com sete anos.

Palavras chave:
Luxação patelar/cirurgia; Luxação patelar/congênito; Articulação do joelho/cirurgia; Amplitude de movimento articular; Procedimentos ortopédicos/métodos

ABSTRACT

Congenital patellar dislocation is a rare condition in which the patella is permanently dislocated and cannot be reduced manually. The patella develops normally as a sesamoid bone of the femur. This congenital dislocation results from failure of the internal rotation of the myotome that forms the femur, quadriceps muscle and extensor apparatus. It usually manifests immediately after birth, although in some rare cases, the diagnosis may be delayed until adolescence or adulthood. Early diagnosis is important, thereby allowing surgical correction and avoiding late sequelae, including early degenerative changes in the knee. A case of permanent dislocation of the patella is presented here, in a female child aged seven years.

Keywords:
Patellar dislocation/surgery; Patellar dislocation/congenital; Knee joint/surgery; Range of joint motion; Orthopedic procedures/methods

Introdução

A luxação congênita da patela apresenta-se como uma luxação lateral permanente da rótula. É impossível a sua redução por manobras manuais. Essa patologia pode surgir de forma isolada, associada a malformações dos membros inferiores, ou ainda num contexto de uma síndrome polimalformativa.11. Walmsley R. The development of the patella. J Anat. 1939;74:360-9.

Geralmente é diagnosticada ao nascimento, verifica-se no recém-nascido umgenu valgum, bem como contratura em flexão do joelho, associado a uma rotação externa da tíbia. Quando essas deformidades não estão presentes, o diagnóstico dessa patologia pode ser adiado até a idade adulta.22. Johnson EW Jr, Milicic M. Congenital dislocation of the patella. Arch Surg. 1972;105(1):110-2.

Os exames radiológicos, notadamente o raios X (RX), a tomografia computorizada (TC) e a ressonância magnética (RM), são essenciais para identificar e caracterizar lesões associadas à luxação permanente da rótula (displasia tróclea, lesão condral). Contudo, o diagnóstico dessa patologia é essencialmente clínico.33. Wada A, Fujii T, Takamura K, Yanagida H, Surijamorn P. Congenital dislocation of the patella. J Child Orthop. 2008;2(2):119-23.

Essa patologia só é corrigida por procedimento cirúrgico. Existem várias opções. É importante uma correção precoce para evitar sequelas.44. Eilert RE. Congenital dislocation of the patella. Clin Orthop Relat Res. 2001;(389):22-9.

Relato do caso

Criança com sete anos, sexo feminino, branca, sem antecedentes de relevo, observada em consulta externa de ortopedia infantil por deformidade do joelho esquerdo. Sem história prévia de traumatismo. Pais negam episódio inicial de luxação da rótula.

Ao exame objetivo apresenta luxação lateral da rótula esquerda, irredutível. Verifica-se, durante os movimentos ativos/passivos, extensão/flexão sem déficits de amplitude, não dolorosa. Apresenta déficit de força (Grau IV) durante a extensão do membro inferior esquerdo.

Fez RX em carga dos joelhos (fig. 1), no qual se verificou luxação lateral da patela, observou-se a sua ausência no RX de perfil do joelho esquerdo (fig. 2). O RX axial da patela esquerda demonstra novamente luxação lateral da patela, associada a displasia troclear (fig. 3) A RMN do joelho esquerdo (fig. 4) confirma que, para além da luxação lateral rótula esquerda, existe displasia da tróclea, sem outras lesões associadas. A paciente foi referenciada à consulta de pediatria para exclusão de síndrome polimalformativa.

Figura 1
RX em carga de ambos os joelhos.

Figura 2
RX do joelho esquerdo (incidência de perfil).

Figura 3
RX axial da patela esquerda.

Figura 4
RM do joelho esquerdo.

Foi feita a correção cirúrgica da luxação, com a técnica descrita por Stanisavljevic, decorreu sem intercorrências, foi usada uma imobilização gessada cruro-podálica durante seis semanas.

Atualmente a paciente encontra-se em vigilância na consulta externa de ortopedia infantil, verifica-se rótula centrada, sem episódios de luxação até a data e com recuperação da força (Grau V) do membro inferior esquerdo, que apresenta 140° de flexão e um déficit de extensão de 5°.

Discussão

As anomalias congênitas da patela incluem a sua ausência, hipoplasia e luxação permanente.

A luxação congênita permanente é uma patologia em que a patela se encontra constantemente luxada, mesmo em extensão, permanece fixada no aspecto lateral do côndilo femoral. A luxação é irredutível, sem recurso a técnicas cirúrgicas. É uma patologia rara, de incidência desconhecida,55. Wirth T. Congenital dislocation of the patella. Stuttgart: Department of Orthopaedics Olgahospital; 2011. que geralmente é detectada na primeira década de vida. Geralmente apresenta atingimento bilateral, encontra-se a maioria dos casos associada a síndromes polimalformativas, como a síndrome de unha-patela, a síndrome Rubinstein-Taybi e a síndrome William-Beuren.66. Ceynowa M, Mazurek T. Congenital patella dislocation in a child with Rubinstein-Taybi syndrome. J Pediatr Orthop B. 2009;18(1):47-50.

Entre a oitava e a 10ª semana do desenvolvimento embrionário, ocorre a rotação interna do miótomo responsável pela formação/orientação do aparelho extensor do membro inferior. A não feitura dessa rotação presume-se como causa da luxação congênita da patela.77. Stanisavljevic S, Zemenick G, Miller D. Congenital, irreducible, permanent lateral dislocation of the patella. Clin Orthop Relat Res. 1976;(116):190-9.

Essa entidade patológica pode-se manifestar com um espectro variado de apresentações clínicas. Quando não diagnosticada ao nascimento, ao exame objetivo constata-se uma contratura em flexão, um valgo mais acentuado no membro inferior afetado associado a um déficit de extensão. Verifica-se também que a chanfradura intercondiliana se encontra vazia, com a rótula palpável na face lateral do joelho.55. Wirth T. Congenital dislocation of the patella. Stuttgart: Department of Orthopaedics Olgahospital; 2011. Pode-se também verificar um aparente desequilíbrio da marcha, provocado por incompetência do aparelho extensor.88. Ghanem I, Wattincourt L, Seringe R. Congenital dislocation of the patella. Part II. Orthopaedic management. J Pediatr Orthop. 2000;20(6):817-22.

Geralmente, o diagnóstico da luxação congênita da rótula é feito por meio de RX,77. Stanisavljevic S, Zemenick G, Miller D. Congenital, irreducible, permanent lateral dislocation of the patella. Clin Orthop Relat Res. 1976;(116):190-9. se a criança tiver idade superior a 3-5 anos, a partir da qual se inicia a ossificação da patela.99. Jones RD, Fisher RL, Curtis BH. Congenital dislocation of the patella. Clin Orthop Relat Res. 1976;(119):177-83. A incidência anteroposterior do joelho permite visualizar o tamanho e a posição da patela, bem como outras alterações associadas a essa patologia, como a hipoplasia do côndilo femoral lateral, a diminuição de interlinha articular (casos mais tardios) e a posição relativa da tíbia em relação ao fémur. A incidência axial da patela também permite avaliar a posição, o tamanho e a forma da patela, bem como o sulco intercondiliano.77. Stanisavljevic S, Zemenick G, Miller D. Congenital, irreducible, permanent lateral dislocation of the patella. Clin Orthop Relat Res. 1976;(116):190-9.

A ecografia é importante, sobretudo em crianças menores, em que a ossificação da patela ainda não ocorreu. Essa permite visualizar a parte cartilagínea da rótula, bem como do fémur/tíbia e suas relações. Permite ainda visualizar as inserções ligamentares do joelho e pode ser usada como um exame dinâmico, permite demonstrar a posição da patela em relação ao fêmur nos diferentes graus de flexão.1010. Vaara P, Marttinen E, Peltonen J. Ultrasonography of the patellofemoral joint in diastrophic dysplasia. J Pediatr Orthop. 1997;17(4):512-5.,1111. Walker J, Rang M, Daneman A. Ultrasonography of the unossified patella in young children. J Pediatr Orthop. 1991;11(1):100-2.and1212. Nietosvaara AY, Aalto KA. Ultrasonographic evaluation of patellar tracking in children. Clin Orthop Relat Res. 1993;(297):62-4. A TC fornece informação detalhada dos componentes ósseos do joelho, mas devido ao uso de radiação ionizante não está recomendado o seu uso para a avaliação do joelho em crianças.1313. Muhle C, Brossmann J, Heller M. Kinematic CT and MR imaging of the patellofemoral joint. Eur Radiol. 1999;9(3):508-18. A RM tem a capacidade de discriminar a cartilagem das estruturas articulares adjacentes eficazmente,1414. Recht M, Bobic V, Burstein D, Disler D, Gold G, Gray M, et al. Magnetic resonance imaging of articular cartilage. Clin Orthop Relat Res. 2001;391 Suppl.:S379-96. o que a torna imprescindível no estudo pré-operatório. A técnica adequada inclui a feitura de cortes finos para evitar um falso diagnóstico de agnesia patelar, a identificação do tamanho e a posição do músculo quadricípite, bem como da inserção óssea do tendão quadricipital e rotuliano para o planeamento cirúrgico.1515. Nakanishi K, Inoue M, Harada K, Ikezoe J, Murakami T, Nakamura H, et al. Subluxation of the patella: evaluation of patellar articular cartilage with MR imaging. Br J Radiol. 1992;65(776):662-7.

A história natural da luxação congênita da rótula não diagnosticada/tratada cursa com várias alterações do joelho, que incluem o achatamento do côndilo femoral lateral, com agravamento da deformidade em valgo e da rotação externa da tíbia. A patela luxada permanece hipoplásica e, devido à desigual distribuição de carga verifica-se uma diminuição precoce da interlinha articular lateral do joelho e aparecimento de quisto subcondrais. Como tal, é importante o reconhecimento e tratamento cirúrgico durante a infância.1616. Thabit G 3rd, Micheli LJ. Patellofemoral pain in the pediatric patient. Orthop Clin North Am. 1992;23(4):567-85.

O tratamento cirúrgico da luxação congênita da patela tem como objetivo realinhar o aparelho extensor. Existem vários procedimentos cirúrgicos. O procedimento de Stanisavljevic é um dos mais populares atualmente.66. Ceynowa M, Mazurek T. Congenital patella dislocation in a child with Rubinstein-Taybi syndrome. J Pediatr Orthop B. 2009;18(1):47-50. Nesse procedimento, a incisão inicia-se 5 cm abaixo do grande trocânter, estende-se distalmente, faz uma curvatura na base da patela e termina medialmente abaixo do côndilo medial da tíbia. A patela é deslocada e um flap de fáscia lata é excisado e conservado em solução salina. A cápsula articular é aberta lateralmente e o quadricípite é libertado e colocado na sua posição anatômica. O tendão rotuliano é dividido longitudinalmente e a sua porção lateral é suturada o mais medialmente possível. O gap na porção lateral da coxa é encerrado com oflap de fáscia previamente excisado. 77. Stanisavljevic S, Zemenick G, Miller D. Congenital, irreducible, permanent lateral dislocation of the patella. Clin Orthop Relat Res. 1976;(116):190-9.

A luxação congênita da patela é uma patologia rara, geralmente presente ao nascimento. É da maior importância o seu diagnóstico e sua correção cirúrgica precoce para evitar sequelas.

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  • Trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar São João, Porto, Portugal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    jan-feb 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2015
  • Aceito
    13 Fev 2015
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