Acessibilidade / Reportar erro

Sobrediagnóstico do impacto femoroacetabular: correlação entre a clínica e a tomografia computadorizada em pacientes sintomáticos Trabalho desenvolvido no Imperial Hospital de Caridade, Florianópolis, SC, Brasil.

Resumos

OBJETIVO:

Correlacionar, por tomografia computadorizada (TC), os ângulos entre o acetábulo e o fêmur proximal em pacientes sintomáticos com impacto femoroacetabular (IFA).

MÉTODOS:

Avaliamos, retrospectivamente, 103 quadris (103 pacientes) e medimos por TC multislice os ângulos de cobertura acetabular, de versão acetabular (em sua porção supraequatorial e no seu terço médio), de versão do colo femoral, cervicodiafisário, alfa e de profundidade acetabular. Para análise estatística, usamos o coeficiente de correlação de Pearson.

RESULTADOS:

Houve correlação inversa entre os ângulos: 1) cobertura acetabular versus ângulo alfa (p = 0,019); 2) versão acetabular (supraequatorial) versus ângulo alfa (p = 0,049). Para pacientes com anteversão femoral menor do que 15°: 1) versão acetabular (supraequatorial) versus ângulo alfa (p = 0,026); 2) versão acetabular (terço médio) versus ângulo alfa (p = 0,02). Para pacientes com versão acetabular (supraequatorial) menor do que 10°: 1) versão acetabular (supraequatorial) versus ângulo alfa (p = 0,004); 2) versão acetabular (terço médio) versus ângulo alfa (p = 0,009).

CONCLUSÃO:

Há correlação inversa estatisticamente significativa entre os ângulos de versão acetabular e o ângulo alfa (quanto menor o ângulo de anteversão acetabular, maior o ângulo alfa femoral) em pacientes sintomáticos. Isso reforça a hipótese de que o IFA ocorre quando há simultaneamente os achados de cam e pincer por retroversão acetabular e que esse não causa o IFA isoladamente, o que leva a sobrediagnóstico nesses casos.

Quadril; Impacto femoroacetabular; Tomografia computadorizada por raios X


OBJECTIVE:

To correlate the angles between the acetabulum and the proximal femur in symptomatic patients with femoroacetabular impingement (FAI), using computed tomography (CT).

METHODS:

We retrospectively evaluated 103 hips from 103 patients, using multislice CT to measure the acetabular age, acetabular version (in its supraequatorial portion and in its middle third), femoral neck version, cervical-diaphyseal and alpha angles and the acetabular depth. For the statistical analysis, we used the Pearson correlation coefficient.

RESULTS:

There were inverse correlations between the following angles: (1) acetabular coverage versus alpha angle (p = 0.019); (2) acetabular version (supraequatorial) versus alpha angle (p = 0.049). For patients with femoral anteversion lower than 15 degrees: (1) acetabular version (supraequatorial) versus alpha angle (p = 0.026); (2) acetabular version (middle third) versus alpha angle (p = 0.02). For patients with acetabular version (supraequatorial) lower than 10 degrees: (1) acetabular version (supraequatorial) versus alpha angle (p = 0.004); (2) acetabular version (middle third) versus alpha angle (p = 0.009).

CONCLUSION:

There was a statistically significant inverse correlation between the acetabular version and alpha angles (the smaller the acetabular anteversion angle was, the larger the alpha angle was) in symptomatic patients, thus supporting the hypothesis that FAI occurs when cam and pincer findings due to acetabular retroversion are seen simultaneously, and that the latter alone does not cause FAI, which leads to overdiagnosis in these cases.

Hip; Femoroacetabular impingement; X-ray computed tomography


Introdução

Os recentes avanços no entendimento da anatomia e da biomecânica da articulação coxofemoral mostraram que alterações da morfologia do quadril ou atividades com amplitude de movimento excessiva que levam a um contato repetitivo do colo femoral com o rebordo acetabular podem levar a um processo degenerativo progressivo e à osteoartrose precoce do quadril.11. Crawford JR, Villar RN. Current concepts in the management of femoroacetabular impingement. J Bone Joint Surg Br. 2005;87(11):1459-62.

Reinhold Ganz22. Ganz R, Leunig M, Leunig-Ganz K, Harris WH. The etiology of osteoarthritis of the hip: an integrated mechanical concept. Clin Orthop Relat Res. 2008;466(2):264-72.and33. Ganz R, Parvizi J, Beck M, Leunig M, Nötzli H, Siebenrock KA. Femoroacetabular impingement: a cause for osteoarthritis of the hip. Clin Orthop Relat Res. 2003;417:112-20. foi o principal responsável por descrever o impacto femoroacetabular (IFA) e seus dois subtipos: cam e pincer. O impacto tipo cam é causado por uma proeminência óssea na junção cervicocapital, que leva à perda da esfericidade normal da cabeça femoral. O impacto tipo pincer é causado por cobertura excessiva ou por retroversão acetabular. Segundo Beck et al., 44. Beck M, Kalhor M, Leunig M, Ganz R. Hip morphology influences the pattern of damage to the acetabular cartilage: femoroacetabular impingement as a cause of early osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Br. 2005;87(7):1012-8. em 86% dos pacientes diagnosticados com IFA estão presentes os dois subtipos.

Pouco ainda se sabe sobre a causa e a história natural dessas alterações anatômicas.55. Haviv B, Burg A, Velkes S, Salai M, Dudkiewicz I. Trends in femoroacetabular impingement research over 11 years. Orthopedics. 2011;34(5):353. Entende-se que há uma interação dinâmica entre o fêmur proximal e o acetábulo,66. Beaupre GS, Orr TE, Carter DR. An approach for time- dependent bone modeling and remodeling: theoretical development. J Orthop Res. 1990;8(5):651-61.and77. McKibbin B. Anatomical factors in the stability of the hip joint in the newborn. J Bone Joint Surg Br. 1970;52(1):148-59. que se inicia no estágio embrionário88. Carter DR, Orr TE, Fyhrie DP, Schurman DJ. Influences of mechanical stress on prenatal and postnatal skeletal development. Clin Orthop Relat Res. 1987;(219):237-50. por ossificação endocondral, regulada pela pressão intrauterina e segue até a vida adulta; o remodelamento articular dependeria do estresse mecânico ao qual é exposto o quadril.99. Carter DR. Mechanical loading history and skeletal biology. J Biochem. 1987;20(11-12):1095-109. Então, variações de angulação acetabular1010. Dora C, Zurbach J, Hersche O, Ganz R. Pathomorphologic characteristics of posttraumatic acetabular dysplasia. J Orthop Trauma. 2000;14(7):483-9.and1111. Reynolds D, Lucas J, Klaue K. Retroversion of the acetabulum: a cause of hip pain. J Bone Joint Surg Br. 1999;81(2):281-8. e/ou do fêmur proximal1212. Leunig M, Casillas MM, Hamlet M, Hersche O, Nötzli H, Slongo T, et al. Slipped capital femoral epiphysis: early mechanical damage to the acetabular cartilage by a prominent femoral metaphysis. Acta Orthop Scand. 2000;71(4):370-5.and1313. Ito K, Minka MA, Leunig M, Werlen S, Ganz R. Femoroacetabular impingement and the cam-effect: a MRI-based quantitative anatomical study of the femoral head- neck offset. J Bone Joint Surg Br. 2001;83(2):171-6. levariam ao dano articular precoce.

Porém, recentemente se tem sugerido que há um excessivo diagnóstico do IFA tipo pincer. 1414. Cobb J, Logishetty K, Davda K, Iranpour F. Cams and pincer impingement are distinct, not mixed: the acetabular pathomorphology of femoroacetabular impingement. Clin Orthop Relat Res. 2010;468(8):2143-51.and1515. Buller LT, Rosneck J, Monaco FM, Butler R, Smith T, Barsoum WK. Relationship between proximal femoral and acetabular alignment in normal hip joints using 3-dimensional computed tomography. Am J Sports Med. 2012;40(2):367-75. Em artigo que correlaciona a relação angular entre o acetábulo e o fêmur proximal em pacientes assintomáticos, a presença da angulação posterior do acetábulo estaria presente por compensação da anatomia femoral durante o desenvolvimento do quadril.1515. Buller LT, Rosneck J, Monaco FM, Butler R, Smith T, Barsoum WK. Relationship between proximal femoral and acetabular alignment in normal hip joints using 3-dimensional computed tomography. Am J Sports Med. 2012;40(2):367-75. Na análise de quadris com cam e pincer, observou-se que não há diferença significativa quanto à versão acetabular em relação a quadris normais. Isso sugere que a retroversão acetabular não seria causa isolada de IFA. 1414. Cobb J, Logishetty K, Davda K, Iranpour F. Cams and pincer impingement are distinct, not mixed: the acetabular pathomorphology of femoroacetabular impingement. Clin Orthop Relat Res. 2010;468(8):2143-51.

Nossa pesquisa tem o objetivo de correlacionar, por tomografia computadorizada (TC) multislice, os ângulos entre o acetábulo e o fêmur proximal em pacientes sintomáticos com IFA.

Métodos

Nosso estudo foi analisado e aprovado pelo comitê de ética em pesquisa de nossa instituição. Foram selecionados 103 pacientes submetidos, entre março e dezembro de 2010, a TC multislice do quadril devido à suspeita clínica de impacto femoroacetabular. Todos os pacientes referiam dor na articulação do quadril e apresentavam o teste positivo para o impacto anterior nas manobras de exame físico em flexão de 90 graus, adução e rotação interna associados.

Foram colhidos os dados dos ângulos acetabulares e femorais desses pacientes e submetidos à análise estatística. Não foram usados critérios de exclusão. A idade média dos pacientes foi de 37 anos (16 a 68); 21 eram homens e 82 eram mulheres.

A técnica consistiu na feitura de bloco de cortes tomográficos da crista ilíaca até a linha articular dos joelhos em um tomógrafo multislice (GE Signa Excite) com 0,6 mm de espessura. Os pacientes foram submetidos então a punção do quadril guiada por TC multislice e foram injetados 18 ml de soro fisiológico com 0,4 ml de ácido gadotérico. Após a punção, foi também feita a ressonância magnética (RM) em aparelho da marca GE Infinity. Foram feitas: sequências T1 com saturação de gordura axial no eixo do colo femoral, sagital e coronal com espessura de 0,3 cm, coronal STIR com 0,5 cm de espessura e axial densidade de próton com saturação de gordura. Foram medidos os seguintes ângulos: ângulo de cobertura acetabular pelo método de Chen (fig. 1), ângulo de versão do acetábulo em sua porção cranial ou supraequatorial (fig. 2) e no seu terço médio (fig. 3), ângulo alfa da junção cervicocapital do fêmur (fig. 4), ângulo cervicodiafisário (fig. 5), profundidade acetabular (fig. 6) e ângulo de versão do colo do fêmur (fig. 7).

Figura 1
- Medida tomográfica do ângulo de cobertura acetabular pelo método de Chen.

Figura 2
- Medida tomográfica do ângulo de versão do acetábulo em sua porção cranial ou supraequatorial.

Figura 3
- Medida tomográfica do ângulo de versão do acetábulo no seu terço médio.

Figura 4
- Medida tomográfica do ângulo alfa da junção cervicocapital do fêmur.

Figura 5
- Medida tomográfica do ângulo cervicodiafisário.

Figura 6
- Medida tomográfica da profundidade acetabular.

Figura 7
- Reconstrução tridimensional do fêmur, com subtração do restante das estruturas ósseas para aferição da versão do colo do fêmur.

As medidas foram tomadas nas imagens de tomografia multislice em uma workstation ADW 4.3. A avaliação do ângulo alfa da junção cervicocapital do fêmur foi feita por meio de um plano axial oblíquo que cruzou o centro do colo femoral com o uso como referência a reformatação coronal. Foram então feitas as medições do ângulo alfa e da versão do acetábulo em seu terço médio na imagem obtida, conforme o trabalho de Kamath et al. 1616. Kamath S, Narayanaswamy S. Computed tomography assessment of hip joints in asymptomatic individuals in relation to femoroacetabular impingement. Am J Sports Med. 2010;38(8):NP1. Entretanto, incluímos também a medição do ângulo de versão da porção cranial do acetábulo, devido à importância desse local na gênese do impacto e para a diferenciação da retroversão global do acetábulo da retroversão de sua porção cranial apenas.

Para a medição da anteversão acetabular, foram usadas as imagens no plano axial, com correção de eventuais básculas da bacia, e traçadas linhas que tangenciaram as margens anterior e posterior do acetábulo no nível do centro da cabeça femoral e do topo da cabeça femoral e foi medido o ângulo dessas linhas com o plano sagital.

Para a medição do ângulo de cobertura acetabular, foi usada a técnica descrita por Chen et al.,1717. Chen L, Boonthathip M, Cardoso F, Clopton P, Resnick D. Acetabulum protrusio and center edge angle: new MR- imaging measurement criteria - a correlative study with measurement derived from conventional radiography. Skeletal Radiol. 2009;38(2):123-9. com o uso de uma imagem no plano coronal, que cruzou os acetábulos, nos quais o fundo acetabular assume o aspecto de "gota de lágrima". Nessa imagem, são traçadas duas linhas que se encontram no centro da cabeça femoral, uma se origina na margem do acetábulo e outra paralela ao eixo axial da pelve.

O ângulo de versão do colo femoral foi medido por meio da reconstrução em 3 D do fêmur: sob uma visão superior, foi traçada uma linha que cruzou o centro do colo femoral e outra que tangenciou a porção posterior dos côndilos femorais. Na reconstrução em 3 D em uma vista anterior, foi mensurado o ângulo cervicodiafisário, similar ao sistema usado na medição nas radiografias, traçou-se uma linha no eixo da diáfise femoral e outra no eixo do colo femoral e se mediu o ângulo entre elas.

Para a análise dos dados obtidos, por estatística descritiva, usamos o coeficiente de correlação de Pearson, considerando p < 0,05 como significativo

Resultados

A tabela 1 apresenta a análise de todos os pacientes estudados, na qual se observou uma correlação estatisticamente inversa (p < 0,05) ao se cruzarem os valores do ângulo de cobertura acetabular versus ângulo alfa e ângulo de versão do acetábulo em sua porção cranial ou supraequatorial versus ângulo alfa. Nenhuma correlação estatística foi observada ao se cruzarem os demais valores.

Tabela 1
- Análise estatística dos 103 pacientes, na qual N = número de pacientes analisados e p< 0,05 sugere significância estatística

Na tabela 2, selecionaram-se apenas os pacientes com anteversão femoral menor do que 15 graus. Novamente se observou uma correlação inversa estatisticamente significativa (p < 0,05) ao se cruzarem os valores do ângulo de versão do acetábulo em sua porção cranial ou supraequatorial versus ângulo alfa. Nessa avaliação, o cruzamento entre ângulo de versão do acetábulo em seu terço médio versus ângulo alfa também mostrou correlação inversa. Os demais números avaliados não apresentaram valor estatístico.

Tabela 2
- Análise estatística com seleção dos pacientes com anteversão femoral menor do que 15 graus

Na tabela 3, selecionaram-se apenas os pacientes com versão acetabular em sua porção cranial ou supraequatorial menor do que 10 graus. Em relação à tabela 2, observamos uma correlação estatisticamente inversa mais forte (p < 0,005) ao se cruzarem os valores do ângulo de versão do acetábulo em sua porção cranial ou supraequatorial versus ângulo alfa e ângulo de versão do acetábulo em seu terço médio versus ângulo alfa. Os demais números avaliados não apresentaram valor estatístico.

Tabela 3
- Análise estatística com seleção dos pacientes com versão acetabular em sua porção cranial ou supraequatorial menor do que 10 graus

A figura 8 demonstra, de forma gráfica, a correlação inversa, estatisticamente significativa, entre versão acetabular supraequatorial versus ângulo alfa nos pacientes selecionados da tabela 3. Ou seja, quanto menor o ângulo de anteversão acetabular, maior o ângulo alfa femoral em pacientes sintomáticos.

Figura 8
- Correlação entre versão acetabular supraequatorial versus ângulo alfa nos pacientes selecionados da tabela 3.

Discussão

Moynihan et al.1818. Moynihan R, Doust J, Henry D. Preventing overdiagnosis: how to stop harming the healthy. Br Med J. 2012;344:19-23. alertaram sobre o potencial de sobrediagnóstico de diversas doenças e suas potenciais consequências deletérias (físicas e psicológicas) para os pacientes assintomáticos que seriam submetidos a tratamentos desnecessários ou exagerados.

Um objetivo primordial é discriminar melhor "anormalidades" benignas daquelas que irão progredir e causar danos. Assim como na coluna, existe uma alta prevalência de "anormalidades" na região do quadril e a RM pode mostrar alterações que não seriam clinicamente importantes, o que leva também ao sobrediagnóstico.1919. Pollard TC. A perspective on femoroacetabular impingement. Skeletal Radiol. 2011;40(7):815-8.

A maioria dos casos de impacto femoroacetabular (IFA) é considerada primária, ou seja, de causa desconhecida. O quadril com IFA sintomático difere do quadril "normal" por uma combinação de fatores como morfologia, vulnerabilidade do labrum e da cartilagem e das demandas a que é submetido, em relação ao nível de atividade e amplitude de movimento. 1919. Pollard TC. A perspective on femoroacetabular impingement. Skeletal Radiol. 2011;40(7):815-8.

O IFA tipo cam é reconhecido como um fator causador da osteoartrose precoce do quadril, por meio da lesão da cartilagem articular e do labrum, que leva a uma incapacidade funcional em pacientes adultos jovens com estilo de vida ativo. 2020. Byrd JW, Jones KS. Arthroscopic femoroplasty in the management of cam-type femoroacetabular impingement. Clin Orthop Relat Res. 2008;467(3):739-46.

As anormalidades na junção cabeça-colo nos indivíduos esqueleticamente maduros têm sido associadas à osteoartrose do quadril, o que foi demonstrado em casos de escorregamento epifisário proximal do fêmur e nos casos de fratura do colo do fêmur com consolidação em discreta deformidade em rotação.1212. Leunig M, Casillas MM, Hamlet M, Hersche O, Nötzli H, Slongo T, et al. Slipped capital femoral epiphysis: early mechanical damage to the acetabular cartilage by a prominent femoral metaphysis. Acta Orthop Scand. 2000;71(4):370-5.and2121. Hogervorst T, Bouma H, de Boer SF, de Vos J. Human hip impingement morphology: an evolutionary explanation. J Bone Joint Surg Br. 2011;93(6):769-76. Ainda se desconhece a origem dessas alterações morfológicas,1919. Pollard TC. A perspective on femoroacetabular impingement. Skeletal Radiol. 2011;40(7):815-8. mas estudos1515. Buller LT, Rosneck J, Monaco FM, Butler R, Smith T, Barsoum WK. Relationship between proximal femoral and acetabular alignment in normal hip joints using 3-dimensional computed tomography. Am J Sports Med. 2012;40(2):367-75.and2222. Tönnis D, Heinecke A. Acetabular and femoral anteversion. Relationship with osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Am. 1999;81(12):1747-70. sugerem que elas podem ocorrer ainda no período intrauterino, de modo que o acetábulo adequaria seu formato e versão de acordo com o contato com o fêmur proximal e de acordo com o posicionamento dos membros fetais. Hogervorst2121. Hogervorst T, Bouma H, de Boer SF, de Vos J. Human hip impingement morphology: an evolutionary explanation. J Bone Joint Surg Br. 2011;93(6):769-76. sugere que essas alterações ocorrem no fim do crescimento.

A tomografia computadorizada é útil na avaliação do impacto femoroacetabular por permitir a medição de ângulos com claros referenciais anatômicos e reduzir as discrepâncias interobservadores. A aferição da versão femoral é feita de maneira mais fácil e precisa pela tomografia do que pela radiografia convencional. A tomografia também permite a correção de erros de posicionamento no pós-processamento. Outra vantagem da tomografia são as reconstruções em 3 D, que oferecem modelos detalhados muito úteis no planejamento pré-operatório. O principal problema da avaliação pela tomografia é o fato de que o paciente é avaliado em decúbito e pode haver alteração do tilt pélvico em relação à posição ortostática. 2323. Konishi N. The three-dimensional acetabular coverage and its positional change due to change of pelvic tilt. Hip Joint. 1993;19:423-7.and2424. Siebenrock KA, Schoeniger R, Ganz R. Anterior femoro- acetabular impingement due to acetabular retroversion: treatment with periacetabular osteotomy. J Bone Joint Surg Am. 2003;85(2):278-86.

Em nosso estudo, reproduzimos nossa prática diária quanto à investigação do IFA. A TC é solicitada e são, rotineiramente, mensurados: ângulo de cobertura acetabular pelo método de Chen, ângulo de versão do acetábulo em sua porção cranial ou supraequatorial e no seu terço médio, ângulo alfa da junção cervicocapital do fêmur, ângulo cervicodiafisário, profundidade acetabular e ângulo de versão do colo do fêmur.

Buller et al.1515. Buller LT, Rosneck J, Monaco FM, Butler R, Smith T, Barsoum WK. Relationship between proximal femoral and acetabular alignment in normal hip joints using 3-dimensional computed tomography. Am J Sports Med. 2012;40(2):367-75. avaliaram 230 quadris de 115 pacientes assintomáticos por meio de software de reconstrução tridimensional. Foram medidos os ângulos de versão do colo femoral, cervicodiafisário, versão e inclinação acetabular e centro-borda; demonstrou-se uma correlação positiva entre os ângulos de versão femoral e acetabular e conclui-se que há uma compensação entre o fêmur e o acetábulo durante a formação articular. Esse estudo sugere que em alguns pacientes em que se acreditava que haveria retroversão patológica do acetábulo (pincer) essa seria compensada pelo fêmur proximal e esses pacientes estariam erroneamente sendo diagnosticados com IFA. A diferença entre o estudo publicado por Buller e o nosso é que avaliamos uma população sintomática, ou seja, todos os pacientes fizeram o exame por suspeita clínica de IFA.

Tönnis e Heinecke2222. Tönnis D, Heinecke A. Acetabular and femoral anteversion. Relationship with osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Am. 1999;81(12):1747-70. demonstraram a relação entre a versão acetabular e femoral e a amplitude de movimento do quadril, de modo que o aumento da anteversão leva a um aumento da amplitude de movimento, assim como a diminuição da anteversão fisiológica determina uma diminuição da amplitude de movimento, devido ao impacto do fêmur proximal sobre a parede anterior do acetábulo. Além disso, notaram que a anteversão femoral normal ou aumentada era geralmente compensada pela diminuição da versão acetabular e vice-versa.

Nepple et al.2525. Nepple JJ, Lehmann CL, Ross JR, Schoenecker PL, Clohisy JC. Coxa profunda is not a useful radiographic parameter for diagnosing pincer-type femoroacetabular impingement. J Bone Joint Surg Am. 2013;95(5):417-23. observaram prevalência geral de 55% de coxa profunda em quadris de quatro grupos (displásicos, com deformidades residuais de doença de Legg-Calvé-Perthes, com IFA e assintomáticos) e concluíram que a coxa profunda é um achado radiológico inespecífico e que poderia ser considerado achado normal, ao menos em mulheres.

Ganz et al.,22. Ganz R, Leunig M, Leunig-Ganz K, Harris WH. The etiology of osteoarthritis of the hip: an integrated mechanical concept. Clin Orthop Relat Res. 2008;466(2):264-72. em 2008, questionaram se todos os pacientes com anormalidades morfológicas indicativas de IFA desenvolveriam artrose e contraindicaram o tratamento em pacientes assintomáticos. Estudo de Hartofilakidis et al.2626. Hartofilakidis G, Bardakos NV, Babis GC, Georgiades G. An examination of the association between different morphotypes of femoroacetabular impingement in asymptomatic subjects and the development of osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Br. 2011;93(5):580-6. indicou que a maioria (82,3%) dos pacientes com evidência radiológica de IFA permaneceu assintomática e livre de osteoartrose em uma média de 18,5 anos e que o único preditor significativo de osteoartrose (OA) foi a presença de OA idiopática no quadril contralateral. Isso sugere que fatores patológicos sistêmicos teriam maior influência do que alterações morfológicas mínimas e contraindicariam o tratamento cirúrgico em pacientes assintomáticos com evidência radiográfica de IFA.

O tratamento do impacto tipo cam por via artroscópica tem mostrado bons resultados, especialmente em pacientes de alta demanda. Javed e O'Donnell 2727. Javed A, O'Donnell JM. Arthroscopic femoral osteochondroplasty for cam femoroacetabular impingement in patients over 60 years of age. J Bone Joint Surg Br. 2011;93:326-31. avaliaram os resultados do tratamento do IFA tipo cam por meio da osteocondroplastia femoral por artroscopia em pacientes com mais de 60 anos e mostraram um alto índice de satisfação (75%), sem qualquer caso de complicação e com evolução para artroplastia total do quadril em 17% dos casos.

Na literatura ortopédica há diversos tratamentos para o IFA tipo pincer, incluindo a osteotomia periacetabular 11. Crawford JR, Villar RN. Current concepts in the management of femoroacetabular impingement. J Bone Joint Surg Br. 2005;87(11):1459-62.and22. Ganz R, Leunig M, Leunig-Ganz K, Harris WH. The etiology of osteoarthritis of the hip: an integrated mechanical concept. Clin Orthop Relat Res. 2008;466(2):264-72. e o rim trimming com reparo labral. 2828. Philippon MJ, Schenker ML. A new method for acetabular rim trimming and labral repair. Clin Sports Med. 2006;25(2):293-7. Porém, não há publicações prospectivas e randomizadas com aferição de dados objetivos sobre o resultado, por exemplo, do tratamento fisioterápico de pacientes com pincer isoladamente. Os componentes cam e pincer raramente ocorrem isolados, 11. Crawford JR, Villar RN. Current concepts in the management of femoroacetabular impingement. J Bone Joint Surg Br. 2005;87(11):1459-62.and44. Beck M, Kalhor M, Leunig M, Ganz R. Hip morphology influences the pattern of damage to the acetabular cartilage: femoroacetabular impingement as a cause of early osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Br. 2005;87(7):1012-8. mas ainda não foi investigado se é necessário abordar as deformidades cam e pincer no mesmo quadril ou apenas um lado da articulação. 1919. Pollard TC. A perspective on femoroacetabular impingement. Skeletal Radiol. 2011;40(7):815-8.

Siebenrock et al.2424. Siebenrock KA, Schoeniger R, Ganz R. Anterior femoro- acetabular impingement due to acetabular retroversion: treatment with periacetabular osteotomy. J Bone Joint Surg Am. 2003;85(2):278-86. alertaram para o fato de que, em quadris com coxa profunda ou protrusão acetabular submetidos a reorientação por meio de osteotomia periacetabular, o aumento da cobertura posterior pode levar a impacto posteroinferior. Palmer sugeriu que a melhoria em curto prazo percebida após a reconstrução acetabular para o tratamento do IFA pode, na verdade, ser resultado da abordagem concomitante de lesões labrais ou condrais.2929. Palmer WE. Femoroacetabular impingement: caution is warranted in making imaging-based assumptions and diagnoses. Radiology. 2010;257(1):4-7.

O tratamento artroscópico para o componente femoral do IFA (cam), com feitura da a osteocondroplastia femoral com consequente correção do ângulo alfa, seguida de reparo das lesões condrais e labrais, tem demonstrado excelentes resultados clínicos. 2020. Byrd JW, Jones KS. Arthroscopic femoroplasty in the management of cam-type femoroacetabular impingement. Clin Orthop Relat Res. 2008;467(3):739-46. Acreditamos que essa técnica, sem maior agressão para a cobertura acetabular, seja indicada para a imensa maioria dos pacientes com real indicação de tratamento cirúrgico ortopédico.

Conclusão

Nossos achados, apoiados na presença da correlação inversa estatisticamente significativa entre os ângulos de versão acetabular e o ângulo alfa em pacientes sintomáticos, reforçam a hipótese de que o pincer por retroversão acetabular não causa o impacto femoroacetabular isoladamente, pois se em indivíduos assintomáticos há uma retroversão acetabular que é compensada pelo fêmur, nos pacientes sintomáticos essa correlação é inversa, ou seja, quanto menor a anteversão acetabular, maior é o ângulo alfa do fêmur.

Isso pode auxiliar aos ortopedistas na tomada de decisões terapêuticas para as diversas apresentações clínicas do impacto femoroacetabular e também alertá-los para a existência do sobrediagnóstico.

References

  • 1
    Crawford JR, Villar RN. Current concepts in the management of femoroacetabular impingement. J Bone Joint Surg Br. 2005;87(11):1459-62.
  • 2
    Ganz R, Leunig M, Leunig-Ganz K, Harris WH. The etiology of osteoarthritis of the hip: an integrated mechanical concept. Clin Orthop Relat Res. 2008;466(2):264-72.
  • 3
    Ganz R, Parvizi J, Beck M, Leunig M, Nötzli H, Siebenrock KA. Femoroacetabular impingement: a cause for osteoarthritis of the hip. Clin Orthop Relat Res. 2003;417:112-20.
  • 4
    Beck M, Kalhor M, Leunig M, Ganz R. Hip morphology influences the pattern of damage to the acetabular cartilage: femoroacetabular impingement as a cause of early osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Br. 2005;87(7):1012-8.
  • 5
    Haviv B, Burg A, Velkes S, Salai M, Dudkiewicz I. Trends in femoroacetabular impingement research over 11 years. Orthopedics. 2011;34(5):353.
  • 6
    Beaupre GS, Orr TE, Carter DR. An approach for time- dependent bone modeling and remodeling: theoretical development. J Orthop Res. 1990;8(5):651-61.
  • 7
    McKibbin B. Anatomical factors in the stability of the hip joint in the newborn. J Bone Joint Surg Br. 1970;52(1):148-59.
  • 8
    Carter DR, Orr TE, Fyhrie DP, Schurman DJ. Influences of mechanical stress on prenatal and postnatal skeletal development. Clin Orthop Relat Res. 1987;(219):237-50.
  • 9
    Carter DR. Mechanical loading history and skeletal biology. J Biochem. 1987;20(11-12):1095-109.
  • 10
    Dora C, Zurbach J, Hersche O, Ganz R. Pathomorphologic characteristics of posttraumatic acetabular dysplasia. J Orthop Trauma. 2000;14(7):483-9.
  • 11
    Reynolds D, Lucas J, Klaue K. Retroversion of the acetabulum: a cause of hip pain. J Bone Joint Surg Br. 1999;81(2):281-8.
  • 12
    Leunig M, Casillas MM, Hamlet M, Hersche O, Nötzli H, Slongo T, et al. Slipped capital femoral epiphysis: early mechanical damage to the acetabular cartilage by a prominent femoral metaphysis. Acta Orthop Scand. 2000;71(4):370-5.
  • 13
    Ito K, Minka MA, Leunig M, Werlen S, Ganz R. Femoroacetabular impingement and the cam-effect: a MRI-based quantitative anatomical study of the femoral head- neck offset. J Bone Joint Surg Br. 2001;83(2):171-6.
  • 14
    Cobb J, Logishetty K, Davda K, Iranpour F. Cams and pincer impingement are distinct, not mixed: the acetabular pathomorphology of femoroacetabular impingement. Clin Orthop Relat Res. 2010;468(8):2143-51.
  • 15
    Buller LT, Rosneck J, Monaco FM, Butler R, Smith T, Barsoum WK. Relationship between proximal femoral and acetabular alignment in normal hip joints using 3-dimensional computed tomography. Am J Sports Med. 2012;40(2):367-75.
  • 16
    Kamath S, Narayanaswamy S. Computed tomography assessment of hip joints in asymptomatic individuals in relation to femoroacetabular impingement. Am J Sports Med. 2010;38(8):NP1.
  • 17
    Chen L, Boonthathip M, Cardoso F, Clopton P, Resnick D. Acetabulum protrusio and center edge angle: new MR- imaging measurement criteria - a correlative study with measurement derived from conventional radiography. Skeletal Radiol. 2009;38(2):123-9.
  • 18
    Moynihan R, Doust J, Henry D. Preventing overdiagnosis: how to stop harming the healthy. Br Med J. 2012;344:19-23.
  • 19
    Pollard TC. A perspective on femoroacetabular impingement. Skeletal Radiol. 2011;40(7):815-8.
  • 20
    Byrd JW, Jones KS. Arthroscopic femoroplasty in the management of cam-type femoroacetabular impingement. Clin Orthop Relat Res. 2008;467(3):739-46.
  • 21
    Hogervorst T, Bouma H, de Boer SF, de Vos J. Human hip impingement morphology: an evolutionary explanation. J Bone Joint Surg Br. 2011;93(6):769-76.
  • 22
    Tönnis D, Heinecke A. Acetabular and femoral anteversion. Relationship with osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Am. 1999;81(12):1747-70.
  • 23
    Konishi N. The three-dimensional acetabular coverage and its positional change due to change of pelvic tilt. Hip Joint. 1993;19:423-7.
  • 24
    Siebenrock KA, Schoeniger R, Ganz R. Anterior femoro- acetabular impingement due to acetabular retroversion: treatment with periacetabular osteotomy. J Bone Joint Surg Am. 2003;85(2):278-86.
  • 25
    Nepple JJ, Lehmann CL, Ross JR, Schoenecker PL, Clohisy JC. Coxa profunda is not a useful radiographic parameter for diagnosing pincer-type femoroacetabular impingement. J Bone Joint Surg Am. 2013;95(5):417-23.
  • 26
    Hartofilakidis G, Bardakos NV, Babis GC, Georgiades G. An examination of the association between different morphotypes of femoroacetabular impingement in asymptomatic subjects and the development of osteoarthritis of the hip. J Bone Joint Surg Br. 2011;93(5):580-6.
  • 27
    Javed A, O'Donnell JM. Arthroscopic femoral osteochondroplasty for cam femoroacetabular impingement in patients over 60 years of age. J Bone Joint Surg Br. 2011;93:326-31.
  • 28
    Philippon MJ, Schenker ML. A new method for acetabular rim trimming and labral repair. Clin Sports Med. 2006;25(2):293-7.
  • 29
    Palmer WE. Femoroacetabular impingement: caution is warranted in making imaging-based assumptions and diagnoses. Radiology. 2010;257(1):4-7.
  • Trabalho desenvolvido no Imperial Hospital de Caridade, Florianópolis, SC, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2015
  • Aceito
    12 Maio 2015
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br