Acessibilidade / Reportar erro

Transformação maligna na osteomielite crônica Trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal.

RESUMO

INTRODUÇÃO:

Degeneração carcinomatosa é uma complicação rara e tardia que se desenvolve décadas após o diagnóstico de osteomielite crônica.

OBJETIVOS:

Apresentar os resultados de um estudo retrospectivo de seis casos de carcinoma espino-celular em um contexto de osteomielite crônica.

MÉTODOS:

Identificamos seis casos de carcinoma espino-celular relacionados à osteomielite crônica. A causa e as características da osteomielite foram analisadas, bem como o tempo decorrido até transformação maligna, os sinais de suspeita de malignização, a localização e o tipo histológico do câncer e o tipo e os resultados do tratamento.

RESULTADOS:

O tempo médio entre a causa da osteomielite e o diagnóstico da transformação maligna foi de 49,17 anos (intervalo: 32 a 65). O câncer teve origem em osteomielites da tíbia em cinco casos e em uma osteomielite do fêmur em um caso. A análise histológica demonstrou carcinoma espinocelular cutâneo em todos os casos. Todos os pacientes foram estadiados como N0M0, com exceção de um que apresentava atingimento dos gânglios linfáticos lomboaórticos. O tratamento foi a amputação proximal ao tumor em todos os pacientes. Nenhum dos pacientes apresentou sinais de recidiva local e apenas um desenvolveu metastização do carcinoma espinocelular.

CONCLUSÃO:

O diagnóstico precoce e a amputação proximal ao tumor são fundamentais para o prognóstico e os resultados finais na transformação maligna secundária a osteomielite crônica.

Palavras-chave:
Osteomielite; Tumores malignos; Carcinoma de células escamosas; Transformação celular neoplásica

ABSTRACT

INTRODUCTION:

Carcinomatous degeneration is a rare and late complication developing decades after the diagnosis of chronic osteomyelitis.

OBJECTIVES:

To present the results from a retrospective study of six cases of squamous cell carcinoma arising from chronic osteomyelitis.

METHODS:

Six cases of chronic osteomyelitis related to cutaneous squamous cell carcinoma were identified. The cause and characteristics of the osteomyelitis were analyzed, as well as time up to malignancy, the suspicion signs for malignancy, the localization and histological type of the cancer, and the type and result of the treatment.

RESULTS:

The mean time between osteomyelitis onset and the diagnosis of malignant degeneration was 49.17 years (range: 32-65). The carcinoma resulted from tibia osteomyelitis in five cases and from femur osteomyelitis in one. The pathological examination indicated cutaneous squamous cell carcinoma in all cases. All the patients were staged as N0M0, except for one, whose lomboaortic lymph nodes were affected. The treatment consisted of amputation proximal to the tumor in all patients. No patient presented signs of local recurrence and only one had carcinoma metastasis.

CONCLUSION:

Early diagnosis and proximal amputation are essential for prognosis and final results in carcinomatous degeneration secondary to chronic osteomyelitis.

Keywords:
Osteomyelitis; Malignant tumors; Squamous cell carcinoma; Neoplasic cell transformation

Introdução

A osteomielite crônica é uma infeção óssea duradoura e persistente provocada por complexas colônias de microrganismos envolvidos numa matriz de proteínas e polissacarídeos, o biofilme, que as protege tanto do sistema imunitário do organismo como da ação dos antibióticos.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;22. Forsberg JA, Potter BK, Cierny G 3rd, Webb L. Diagnosis and management of chronic infection. J Am Acad Orthop Surg . 2011;19 Suppl. 1:S8-19. A osteomielite pode ter origem hematogênica, por contiguidade de um foco de infeção ou por inoculação direta.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94. Ao contrário da osteomielite hematogênica, a incidência da osteomielite por contiguidade de um foco de infeção com origem em traumatismo, cirurgia ou implantes tem aumentado.33. Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet. 2004;364(9431):369-79.

O não tratamento ou insucesso no tratamento da osteomielite aguda, associado a fatores como lesões importantes dos tecidos moles envolventes, pobre vascularização óssea, compromisso sistémico e microrganismos múltiplos e resistentes, conduz a um estado de infeção óssea crônica e refratária, cuja atividade inflamatória constante tem como consequências a destruição óssea e pode favorecer o desenvolvimento de neoplasias.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;33. Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet. 2004;364(9431):369-79. A incidência de transformação maligna em osteomielites crônicas é muito reduzida nos países desenvolvidos, no entanto permanece um problema importante nos países com cuidados de saúde mais precários.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.

As infeções por parasitas e o seu efeito na sinalização das células estaminais são uma das teorias mais antigas da origem do cancro.44. Sell S. Infection, stem cells, and cancer signals. Curr Pharm Biotechnol. 2011;12(2):182-8.;55. Samaras V, Rafailidis PI, Mourtzoukou EG, Peppas G, Falagas ME. Chronic bacterial and parasitic infections and cancer: a review. J Infect Dev Ctries. 2010;4(5):267-81. Aceita-se atualmente que podemos estar a subestimar a associação entre infeção crônica e o desenvolvimento de neoplasias malignas.55. Samaras V, Rafailidis PI, Mourtzoukou EG, Peppas G, Falagas ME. Chronic bacterial and parasitic infections and cancer: a review. J Infect Dev Ctries. 2010;4(5):267-81. Alguns autores admitem que mais de 25% das neoplasias malignas podem ter origem na inflamação crônica e em agentes infeciosos, há evidência elevada de algumas dessas associações, tais como entre Salmonella Typhi e o carcinoma hepatobiliar; Opisthorchis viverrini e Clonorchis sinensis e o colangiocarcinoma; Schistosoma hematobium e o cancro da bexiga; a hidradenite supurativa e carcinoma cutâneo espinocelular, entre outros. 55. Samaras V, Rafailidis PI, Mourtzoukou EG, Peppas G, Falagas ME. Chronic bacterial and parasitic infections and cancer: a review. J Infect Dev Ctries. 2010;4(5):267-81.;66. Multhoff G, Molls M, Radons J. Chronic inflammation in cancer development. Front Immunol. 2012;2:98.

O mecanismo exato de transformação maligna permanece desconhecido. Admite-se que, de forma multifatorial, o estado inflamatório crônico comporta-se como um agente promotor no complexo processo da carcinogênese.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;66. Multhoff G, Molls M, Radons J. Chronic inflammation in cancer development. Front Immunol. 2012;2:98. A transformação maligna inicia-se na pele ou no epitélio da fístula e infiltra os tecidos adjacentes, incluindo o osso.77. Alami M, Mahfoud M, El Bardouni A, Berrada MS, El Yaacoubi M. Squamous cell carcinoma arising from chronic osteomyelitis. Acta Orthop Traumatol Turc. 2011;45(3): 144-8.;88. Wolf H, Platzer P, Vécsei V. Verrucous carcinoma of the tibia arising after chronic osteomyelitis: a case report. Wien Klin Wochenschr. 2009;121(1-2):53-6. A prevalência de transformação maligna na osteomielite crónica varia entre 1,6 e 23%, os ossos mais atingidos são a tíbia e o fêmur. A transformação maligna mais frequentemente encontrada é o carcinoma espinocelular da pele.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;55. Samaras V, Rafailidis PI, Mourtzoukou EG, Peppas G, Falagas ME. Chronic bacterial and parasitic infections and cancer: a review. J Infect Dev Ctries. 2010;4(5):267-81.;99. McGrory JE, Pritchard DJ, Unni KK, Ilstrup D, Rowland CM. Malignant lesions arising in chronic osteomyelitis. Clin Orthop Relat Res. 1999;(362):181-9.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.O aumento da drenagem fistulosa, a persistência, o crescimento ou exofitose de uma úlcera ou massa podem ser sinais de alerta de transformação maligna.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;1111. Trent JT, Kirsner RS. Wounds and malignancy. Adv Skin Wound Care. 2003;16(1):31-4. Todos os pacientes com úlceras e fístulas associadas a osteomielite crónica devem ter seguimento frequente e atento e qualquer alteração característica numa ferida crônica deve levantar a suspeita de transformação maligna.88. Wolf H, Platzer P, Vécsei V. Verrucous carcinoma of the tibia arising after chronic osteomyelitis: a case report. Wien Klin Wochenschr. 2009;121(1-2):53-6.;1212. Ogawa B, Chen M, Margolis J, Schiller FJ, Schnall SB. Marjolin's ulcer arising at the elbow: a case report and literature review. Hand (NY). 2006;1(2):89-93.O diagnóstico é confirmado com base em biópsias, devem essas ser efetuadas precocemente em múltiplos locais e profundidades, incluindo úlcera, fístula e osso, de modo a aumentar a precisão diagnóstica e reduzir o número de falso-negativos.1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.;1212. Ogawa B, Chen M, Margolis J, Schiller FJ, Schnall SB. Marjolin's ulcer arising at the elbow: a case report and literature review. Hand (NY). 2006;1(2):89-93.;1313. Pandey M, Kumar P, Khanna AK. Marjolin's ulcer associated with chronic osteomyelitis. J Wound Care. 2009;18(12): 504-6. Após diagnóstico de transformação maligna é fundamental estadiar a doença neoplásica e avaliar a presença de metástases a distância, por meio de estudos por tomografia computorizada, ressonância magnética nuclear e tomografia de emissão de positrões.1210. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.

O tratamento cirúrgico definitivo e o mais frequentemente usado nessas situações, na medida em que a maior parte dos pacientes têm doença avançada, é a amputação proximal à neoplasia.77. Alami M, Mahfoud M, El Bardouni A, Berrada MS, El Yaacoubi M. Squamous cell carcinoma arising from chronic osteomyelitis. Acta Orthop Traumatol Turc. 2011;45(3): 144-8.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.Está indicada quimiorradioterapia adjuvante na doença metastática e em tumores de alto grau.1414. Puri A, Parasnis AS, Udupa KV, Duggal A, Agarwal MG. Fibroblastic osteosarcoma arising in chronic osteomyelitis. Clin Radiol. 2003;58(2):170-2. Em pacientes selecionados sem doença metastática pode-se optar por excisão tumoral alargada com conservação do membro.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.

O principal fator prognóstico é o estadiamento da doença neoplásica.88. Wolf H, Platzer P, Vécsei V. Verrucous carcinoma of the tibia arising after chronic osteomyelitis: a case report. Wien Klin Wochenschr. 2009;121(1-2):53-6.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9. Na maioria dos casos, os carcinomas espinocelulares em osteomielite crônica são agressivos, têm altos níveis de recidiva local e de metastização. A metastização é precoce, ocorre a maioria nos primeiros 18 meses após transformação maligna e localiza-se principalmente nos gânglios linfáticos.1515. Rauh MA, Duquin TR, McGrath BE, Mindell ER. Spread of squamous cell carcinoma from the thumb to the small finger via the flexor tendon sheaths. J Hand Surg Am. 2009;34(9):1709-13. No entanto, se o paciente não apresentar doença metastática durante os primeiros três anos e a lesão tumoral tiver sido corretamente excisada, o prognóstico é favorável.1515. Rauh MA, Duquin TR, McGrath BE, Mindell ER. Spread of squamous cell carcinoma from the thumb to the small finger via the flexor tendon sheaths. J Hand Surg Am. 2009;34(9):1709-13. O diagnóstico precoce e o tratamento agressivo das transformações malignas das osteomielites crônicas são fundamentais para o prognóstico e os resultados finais.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94. O método mais eficaz de prevenção do aparecimento dessas lesões malignas é o tratamento adequado e definitivo da osteomielite crônica, a limpeza cirúrgica e a antibioticoterapia.

Material e métodos

Foi efetuada uma análise retrospectiva dos pacientes diagnosticados com transformação maligna em contexto de osteomielite crônica. A avaliação foi feita com base em consulta de processos clínicos e consistiu na análise da etiologia da osteomielite crônica e das suas características, tempo decorrido até diagnóstico da transformação maligna e motivos que conduziram ao seu diagnóstico, localização e tipo histológico do cancro, tratamento cirúrgico efetuado e seus resultados.

Resultados

Apresenta-se uma série de seis pacientes diagnosticados com transformação maligna de osteomielite crônica tabela 1. Todos os pacientes são do sexo masculino. Verifica-se que em dois terços da amostra a osteomielite crónica teve origem em traumatismos ocorridos numa idade precoce, enquanto o outro terço esteve associado a origem hematogênica decorrente de infeções não especificadas ocorridas na infância. Todas as causas traumáticas das osteomielites corresponderam a fraturas expostas do membro inferior, com exceção de um paciente cujo traumatismo não foi possível apurar as suas características. A perna foi o segmento anatômico atingido em todos os pacientes e a tíbia corresponde ao osso mais atingido. Em um dos pacientes, apesar de a osteomielite atingir os ossos da perna, essa teve origem numa fratura exposta do fêmur, desenvolveu tardiamente uma úlcera crônica na perna que viria a malignizar. Em 83,33% dos pacientes a origem da osteomielite ocorreu na infância, enquanto um paciente teve o traumatismo inicial aos 39 anos. Em todos os pacientes foram necessárias décadas de evolução da osteomielite até a malignização, com valor médio de 49,17 anos (mínimo de 32 e máximo de 65).

Tabela 1-
Série de pacientes

A presença persistente de uma úlcera crónica foi o sinal de alarme presente em todos os pacientes dessa série. Foram também identificados outros sinais de suspeita de transformação maligna: em um dos pacientes verificou-se também o aumento da intensidade da drenagem purulenta fistulosa e em outro o aumento recente das dimensões da úlcera Figura 1; Figura 2, Figura 3 ; Figura 4). O Stafilococos aureus foi detectado em todas as análises microbiológicas, a Pseudomonas aeruginosa esteve presente em dois pacientes e o Proteus mirabilis em um paciente. Em dois pacientes verificou-se também fratura patológica da tíbia, que é também uma das complicações da osteomielite crônica (fig. 4).

Figura 1-
Paciente LMM A, radiografia com sinais de osteomielite crônica da tíbia; B, transformação maligna da úlcera em carcinoma espinho-celular.

Figura 2-
Paciente JLF A, radiografia com sinais de osteomielite crônica da tíbia; B, transformação maligna da úlcera em carcinoma espinho-celular.

Figura 3-
Paciente AJS A, radiografia com sinais de osteomielite crônica da tíbia e sinais de resquícios de chumbo de bala causadora do esfacelo inicial; B, transformação maligna da úlcera em carcinoma espinho-celular.

Figura 4-
Paciente AVS Radiografia com sinais de osteomielite crônica da tíbia, fratura patológica (A) e não consolidação após seis semanas (B). Transformação maligna da úlcera em carcinoma espinho-celular (C).

O tipo de neoplasia encontrado foi o carcinoma espinocelular cutâneo, que se verificou em todos os pacientes da amostra. Em 83,33% dos pacientes não foram detectados sinais de metastização, enquanto um paciente apresentava dados imagiológicos que sugeriam atingimento dos gânglios linfáticos lomboaórticos. Apesar de o estadiamento inicial corresponder a N0M0, foi detectada após cinco meses em um dos pacientes uma lesão lítica na porção proximal do fémur contralateral, que veio a se confirmar tratar-se de uma metástase com origem no carcinoma espinocelular.

A escolha terapêutica em todos os pacientes foi a cirurgia mutiladora, notadamente a amputação pelo terço distal da coxa. No paciente com osteomielite crônica do fêmur e invasão dos gânglios linfáticos lomboaórticos, a desarticulação da anca e a linfadenectomia necessárias obrigariam a uma hemipelvectomia. No entanto, devido aos riscos inerentes a essa cirurgia e à dificuldade de cobertura cutânea, optou-se por não a fazer e procedeu-se a uma amputação paliativa pelo terço distal da coxa. Nenhum dos pacientes desenvolveu recidiva local.

À exceção de um, todos os pacientes da amostra não estão vivos. No entanto, só em um único paciente é que a causa de morte esteve relacionada com a malignização da osteomielite, enquanto em todos os outros a morte foi provocada por outras doenças associadas. O tempo de vida após diagnóstico de neoplasia foi de 3,8 anos, com um valor mínimo de seis meses e valor máximo de oito anos. O paciente que apresentava osteomielite crónica concomitante do fêmur teve como complicação a infeção do coto de amputação, com necessidade de limpeza cirúrgica do fêmur (fig. 5).

Figura 5-
A, radiografia do paciente JMB aos seis anos de pós-operatório da amputação da coxa, com sinais radiográficos de osteomielite do fêmur; B, fistulografia que demonstra trajeto fistuloso de orientação posterior e ascendente, numa extensão de cerca de 6,5 cm, em comunicação com o canal medular do fêmur.

Discussão

Os estudos na literatura anglo-saxônica sobre transformação maligna em osteomielite crónica são escassos, consistem sobretudo em casos clínicos isolados.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94. Apenas dois artigos apresentam séries, um deles com seis casos e outro com sete casos.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;77. Alami M, Mahfoud M, El Bardouni A, Berrada MS, El Yaacoubi M. Squamous cell carcinoma arising from chronic osteomyelitis. Acta Orthop Traumatol Turc. 2011;45(3): 144-8.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9. Este artigo representa, portanto, uma das primeiras análises de uma série de pacientes diagnosticados com transformação maligna em contexto de osteomielite crônica.

O atingimento predominante do sexo masculino está de acordo com a literatura.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94. Na nossa série, a maioria das osteomielites crônicas teve origem num traumatismo. O traumatismo continua a ser a causa mais frequente de osteomielite, as fraturas expostas dos ossos longos estão associadas a índices de infeção de 4 a 64% e taxa de recidiva da infeção entre 20 e 30%.99. McGrory JE, Pritchard DJ, Unni KK, Ilstrup D, Rowland CM. Malignant lesions arising in chronic osteomyelitis. Clin Orthop Relat Res. 1999;(362):181-9.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.;1616. Lazzarini L, Mader JT, Calhoun JH. Osteomyelitis in long bones. J Bone Joint Surg Am. 2004;86(10):2305-18.;1717. Kerr- Valentic MA, Samimi K, Rohlen BH, Agarwal JP, Rockwell WB. Marjolin's ulcer: modern analysis of an ancient problem. Plast Reconstr Surg. 2009;123(1):184-91. A tíbia é o osso mais atingido, segue-se o fêmur, o que está de acordo com o relatado nas outras séries.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;55. Samaras V, Rafailidis PI, Mourtzoukou EG, Peppas G, Falagas ME. Chronic bacterial and parasitic infections and cancer: a review. J Infect Dev Ctries. 2010;4(5):267-81.;99. McGrory JE, Pritchard DJ, Unni KK, Ilstrup D, Rowland CM. Malignant lesions arising in chronic osteomyelitis. Clin Orthop Relat Res. 1999;(362):181-9.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.

Os estudos nessa área demonstram que a presença de osteomielite crónica com anos ou décadas de evolução é o fator mais importante para a sua malignização, varia entre 18 e 72 anos desde o diagnóstico da osteomielite até ao diagnóstico de malignização.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.;1212. Ogawa B, Chen M, Margolis J, Schiller FJ, Schnall SB. Marjolin's ulcer arising at the elbow: a case report and literature review. Hand (NY). 2006;1(2):89-93. Em todos os pacientes desta amostra verifica-se que foram necessárias décadas de evolução da osteomielite até se diagnosticar a osteomielite. O principal sinal de suspeita de transformação maligna encontrado foi a persistência de uma úlcera átona, que não responde ao tratamento, seguido do aumento recente das dimensões da úlcera e aumento da drenagem. Os sintomas mais frequentes de suspeita de transformação maligna são a drenagem acentuada, a não melhoria da lesão após três meses de tratamento, seguem-se lesão aumentada ou exofítica, eritema, hemorragia, linfadenopatia e, menos frequentemente, hipercaliemia, perda de peso, anorexia e hiperpigmentação da pele circundante.11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94. O Stafilococos aureus, tal como em outros trabalhos, foi o microorganismo mais frequentemente detectado. 11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94. A transformação maligna mais frequente na osteomielite crônica é o carcinoma espinocelular cutâneo, que corresponde ao único tipo histológico neoplásico encontrado na série em estudo. 11. Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.;55. Samaras V, Rafailidis PI, Mourtzoukou EG, Peppas G, Falagas ME. Chronic bacterial and parasitic infections and cancer: a review. J Infect Dev Ctries. 2010;4(5):267-81.;99. McGrory JE, Pritchard DJ, Unni KK, Ilstrup D, Rowland CM. Malignant lesions arising in chronic osteomyelitis. Clin Orthop Relat Res. 1999;(362):181-9.;1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.

Na maioria dos casos, como referido na introdução, os carcinomas espinocelulares em contexto de osteomielite crônica são agressivos e têm altos níveis de recidiva local e de metastização precoce.1515. Rauh MA, Duquin TR, McGrath BE, Mindell ER. Spread of squamous cell carcinoma from the thumb to the small finger via the flexor tendon sheaths. J Hand Surg Am. 2009;34(9):1709-13. Apesar desses dados, no estudo atual verificou-se que as neoplasias não apresentavam quando do seu diagnóstico sinais de doença metastática em 83,3% (n = 5) dos casos. Alami et al.7 identificaram também estádios N0M0 em todos os seis pacientes do seu trabalho, enquanto Altay et al. 1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9. verificaram na sua série de sete pacientes que três apresentavam estádio N0M0, dois apresentavam estádio N1M0, um apresentava estádio N1M1 e o outro faleceu sem ter feito estadiamento. Um dos pacientes dessa série, estadiado como N0M0, veio a desenvolver metástases ósseas em cinco meses. Esses dados apontam para uma necessidade de vigilância e monitoração assídua destes casos, incluindo os estadiados como N0M0, o que se deve à precocidade e rapidez da disseminação metastática.

A amputação proximal à lesão é um tratamento cirúrgico que permite resolver não só a lesão neoplásica como também a osteomielite crônica, é o tratamento padrão-ouro nas transformações malignas das osteomielites. Em todos os pacientes desta amostra foi efetuada uma amputação pelo terço distal da coxa e em nenhum dos casos se desenvolveu recidiva local. A média de tempo de sobrevivência após diagnóstico da neoplasia foi de apenas 3, 8 anos. Isso pode-se explicar por o falecimento de quatro dos cinco pacientes ter sido devido a outras doenças associadas, e não devido à malignização da osteomielite ou ao procedimento cirúrgico efetuado tabela 1). Curiosamente, o paciente com valor máximo de sobrevivência (oito anos) foi aquele em que se procedeu à amputação paliativa pela coxa e que apresentava osteomielite crônica concomitante do fémur e suspeita de atingimento dos gânglios linfáticos lomboaórticos. A questão da necessidade de linfadenectomia regional permanece controversa, na medida em que muitas vezes o aumento das dimensões ganglionares é apenas reativo à inflamação.1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9. No entanto, admite-se atualmente que se os sinais de linfadenopatia persistirem seis a 12 semanas após a amputação, é necessária a sua excisão cirúrgica.1010. Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.;1111. Trent JT, Kirsner RS. Wounds and malignancy. Adv Skin Wound Care. 2003;16(1):31-4. No caso anterior, provavelmente as adenopatias lomboaórticas seriam reativas, e não por doença metastática, o que permitiu ao paciente sobreviver por oito anos após o diagnóstico do carcinoma espinocelular.

Conclusão

A transformação maligna é uma complicação rara e tardia da osteomielite crónica, cujos sinais clínicos de suspeita são necessários reconhecer precocemente. O diagnóstico precoce por meio de biópsias e o tratamento agressivo dessas lesões são fundamentais para o prognóstico e os resultados finais.

References

  • 1
    Panteli M, Puttaswamaiah R, Lowenberg DW, Giannoudis PV. Malignant transformation in chronic osteomyelitis: recognition and principles of management. J Am Acad Orthop Surg. 2014;22(9):586-94.
  • 2
    Forsberg JA, Potter BK, Cierny G 3rd, Webb L. Diagnosis and management of chronic infection. J Am Acad Orthop Surg . 2011;19 Suppl. 1:S8-19.
  • 3
    Lew DP, Waldvogel FA. Osteomyelitis. Lancet. 2004;364(9431):369-79.
  • 4
    Sell S. Infection, stem cells, and cancer signals. Curr Pharm Biotechnol. 2011;12(2):182-8.
  • 5
    Samaras V, Rafailidis PI, Mourtzoukou EG, Peppas G, Falagas ME. Chronic bacterial and parasitic infections and cancer: a review. J Infect Dev Ctries. 2010;4(5):267-81.
  • 6
    Multhoff G, Molls M, Radons J. Chronic inflammation in cancer development. Front Immunol. 2012;2:98.
  • 7
    Alami M, Mahfoud M, El Bardouni A, Berrada MS, El Yaacoubi M. Squamous cell carcinoma arising from chronic osteomyelitis. Acta Orthop Traumatol Turc. 2011;45(3): 144-8.
  • 8
    Wolf H, Platzer P, Vécsei V. Verrucous carcinoma of the tibia arising after chronic osteomyelitis: a case report. Wien Klin Wochenschr. 2009;121(1-2):53-6.
  • 9
    McGrory JE, Pritchard DJ, Unni KK, Ilstrup D, Rowland CM. Malignant lesions arising in chronic osteomyelitis. Clin Orthop Relat Res. 1999;(362):181-9.
  • 10
    Altay M, Arikan M, Yildiz Y, Saglik Y. Squamous cell carcinoma arising in chronic osteomyelitis in foot and ankle. Foot Ankle Int. 2004;25(11):805-9.
  • 11
    Trent JT, Kirsner RS. Wounds and malignancy. Adv Skin Wound Care. 2003;16(1):31-4.
  • 12
    Ogawa B, Chen M, Margolis J, Schiller FJ, Schnall SB. Marjolin's ulcer arising at the elbow: a case report and literature review. Hand (NY). 2006;1(2):89-93.
  • 13
    Pandey M, Kumar P, Khanna AK. Marjolin's ulcer associated with chronic osteomyelitis. J Wound Care. 2009;18(12): 504-6.
  • 14
    Puri A, Parasnis AS, Udupa KV, Duggal A, Agarwal MG. Fibroblastic osteosarcoma arising in chronic osteomyelitis. Clin Radiol. 2003;58(2):170-2.
  • 15
    Rauh MA, Duquin TR, McGrath BE, Mindell ER. Spread of squamous cell carcinoma from the thumb to the small finger via the flexor tendon sheaths. J Hand Surg Am. 2009;34(9):1709-13.
  • 16
    Lazzarini L, Mader JT, Calhoun JH. Osteomyelitis in long bones. J Bone Joint Surg Am. 2004;86(10):2305-18.
  • 17
    Kerr- Valentic MA, Samimi K, Rohlen BH, Agarwal JP, Rockwell WB. Marjolin's ulcer: modern analysis of an ancient problem. Plast Reconstr Surg. 2009;123(1):184-91.
  • Trabalho desenvolvido no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2016
  • Aceito
    06 Abr 2016
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br