Acessibilidade / Reportar erro

Reconstrução da superfície articular da cabeça umeral com enxerto homólogo no tratamento da osteonecrose Trabalho desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Grupo de Cirurgia de Ombro e Cotovelo, São Paulo, SP, Brasil.

RESUMO

Os autores descrevem a técnica cirúrgica de reconstrução biológica da cabeça umeral com enxerto ósseo homólogo congelado usada no tratamento da osteonecrose segmentar da cabeça umeral em pacientes jovens e destacam a abordagem como uma possibilidade opcional e talvez definitiva à hemiartroplastia ou artroplastia total do ombro. Resumidamente, a técnica consiste em reconstruir a falha encontrada na região necrótica da cabeça umeral com o uso de enxerto ósseo congelado com cartilagem para refazer a superfície articular comprometida. No total, cinco pacientes com menos de 50 anos foram tratados com essa técnica, conseguiram-se resultados muito satisfatórios em três deles, uma perda de seguimento e um resultado negativo, convertido para hemiartroplastia. O estudo descreve a técnica usada com detalhes, bem como os três casos com maior tempo de seguimento.

Palavras-chave:
Osteonecrose/cirurgia; Transplante ósseo; Sobrevivência de enxerto

ABSTRACT

The authors describe a surgical biological reconstruction of the humeral head with frozen autogenous allograft technique for the treatment of young patients with focal osteonecrosis of the humeral head. This represents a possible alternative, maybe even definitive for some patients, when compared to hemiarthroplasty or total shoulder arthroplasty. The technique consists of the fixation of a frozen autogenous allograft with previously-molded articular cartilage from the humeral head, after cleansing the osteonecrotic focus. Five patients under 50 years of age were treated, with three very satisfactory results, one patient was lost to follow-up, and one patient had an unsatisfactory result (converted to hemiarthroplasty). The study describes the technique in detail and the three cases with a longer follow-up time.

Keywords:
Osteonecrosis/surgery; Bone transplantation; Graft survival

Introdução

A osteonecrose segmentar da cabeça do úmero é alvo de poucas publicações científicas, embora seja classicamente uma complicação esperada em algumas fraturas e/ou fraturas-luxações do ombro e é o segundo local mais comum das osteonecroses não traumáticas.11 Hasan SS, Romeo AA. Nontraumatic osteonecrosis of the humeral head. J Shoulder Elbow Surg. 2002;11(3):281-98.

Inicialmente descrita por Heimann e Freiberger,22 Heimann WG, Freiberger RH. Avascular necrosis of the femoral and humeral heads after high-dosage corticosteroid therapy. N Engl J Med. 1960;263:672-5. a osteonecrose da cabeça umeral conta com diversas formas de tratamento. O tratamento conservador clássico na fase pré-colapso consiste na limitação do uso da articulação.33 Cruess RL. Experience with steroid-induced avascular necrosis of the shoulder and etiologic considerations regarding osteonecrosis of the hip. Clin Orthop Relat Res. 1978;(130):86-93. Na falha desse, ou em casos de doença mais avançada, o tratamento de eleição é a artroplastia parcial ou total.22 Heimann WG, Freiberger RH. Avascular necrosis of the femoral and humeral heads after high-dosage corticosteroid therapy. N Engl J Med. 1960;263:672-5. Dessa forma, pacientes jovens, com menos de 50 anos submetidos à artroplastia do ombro, por causas diversas, evoluem com um grande número de revisões.44 Bartelt R, Sperling JW, Schleck CD, Cofield RH. Shoulder arthroplasty in patients aged fifty-five years or younger with osteoarthritis. J Shoulder Elbow Surg. 2011;20(1):123-30.,55 Johnson MH, Paxton ES, Green A. Shoulder arthroplasty options in young (<50 years old) patients: review of current concepts. J Shoulder Elbow Surg. 2015;24(2):317-25. Bartelt et al.44 Bartelt R, Sperling JW, Schleck CD, Cofield RH. Shoulder arthroplasty in patients aged fifty-five years or younger with osteoarthritis. J Shoulder Elbow Surg. 2011;20(1):123-30. reavaliaram uma série de casos de 63 artroplastias totais e parciais feitas em pacientes abaixo de 55 anos e verificaram uma vida útil de 72% das artroplastias parciais e 92% das artroplastias totais em um seguimento mínimo de dez anos. Johnson et al.55 Johnson MH, Paxton ES, Green A. Shoulder arthroplasty options in young (<50 years old) patients: review of current concepts. J Shoulder Elbow Surg. 2015;24(2):317-25. publicaram um artigo de revisão no qual também questionam a longevidade das artroplastias feitas em pacientes com menos de 50 anos.

Outras opções cirúrgicas, como a descompressão da cabeça umeral, a artroplastia de superfície, o desbridamento artroscópico e a enxertia de osso vascularizado, foram descritas, porém com pequenas amostras de pacientes, geraram resultados pouco conclusivos.11 Hasan SS, Romeo AA. Nontraumatic osteonecrosis of the humeral head. J Shoulder Elbow Surg. 2002;11(3):281-98. Procedimentos que envolveram a reconstrução biológica articular com enxerto homólogo fresco foram descritos por Gortz et al.66 Görtz S, De Young AJ, Bugbee WD. Fresh osteochondral allografting for steroid-associated osteonecrosis of the femoral condyles. Clin Orthop Relat Res. 2010;468(5): 1269-78.no tratamento da osteonecrose dos côndilos femorais, com bons resultados. Esse tipo de tratamento também é usado para preencher os defeitos da cabeça umeral decorrente da instabilidade posterior do ombro;77 Diklic ID, Ganic ZD, Blagojevic ZD, Nho SJ, Romeo AA. Treatment of locked chronic posterior dislocation of the shoulder by reconstruction of the defect in the humeral head with an allograft. J Bone Joint Surg Br. 2010;92(1): 71-6.,88 Gerber C, Catanzaro S, Jundt- Ecker M, Farshad M. Long -term outcome of segmental reconstruction of the humeral head for the treatment of locked posterior dislocation of the shoulder. J Shoulder Elbow Surg. 2014;23(11):1682-90. os defeitos condrais no joelho, na cabeça femoral, no tálus; ou mesmo no tratamento da osteoartrose do tornozelo.

Nesse contexto, descrevemos nossa técnica cirúrgica com o uso de enxerto homólogo congelado com cartilagem no tratamento da osteonecrose segmentar da cabeça umeral em pacientes com menos de 50 anos como uma opção às artroplastias, já que não há relatos na literatura desse tipo de abordagem para a osteonecrose da cabeça umeral até o nosso conhecimento. Vale lembrar que, até o momento em que foram feitas as cirurgias, não dispúnhamos de enxerto homólogo fresco no nosso banco de tecidos. Descrevemos também os resultados dos três pacientes com maior tempo de seguimento.

Técnica cirúrgica

A cirurgia é feita sob anestesia geral, com o paciente em decúbito dorsal em posição de “cadeira de praia” por meio da via deltopeitoral. Após a desinserção do tendão do músculo subescapular, a epífise umeral é exposta e o foco de necrose ressecado (fig. 1). O defeito articular resultante da ressecção da necrose é preenchido com enxerto homólogo de cabeça umeral congelado com cartilagem (proveniente do banco de tecidos da nossa Instituição), que é esculpido intraoperatoriamente conforme cada caso (fig. 2). Então, o enxerto é fixado com dois parafusos de osso esponjoso de 4,0 mm com rosca parcial (feito em quatro casos) ou com dois parafusos de compressão sem cabeça (feito em um caso), a depender da disponibilidade do material em cada situação. Sepultamos a cabeça dos parafusos convencionais para evitar proeminência articular. Antes do término da cirurgia, a porção desinserida do subescapular é reinserida com pontos inabsorvíveis transósseos.

Figura 1
(A), exposição da epífise umeral com o foco da necrose evidente; (B), retirada do foco da necrose.

Figura 2
(A) enxerto congelado de cabeça umeral; (B), fragmento do enxerto esculpido de acordo com o tamanho da área afetada; (C), fragmento articular necrosado.

Para os pacientes submetidos à fixação do enxerto com parafusos com cabeça, foi programada uma segunda cirurgia (pela mesma via de acesso), seis meses após a primeira, para a retirada dos parafusos, uma vez que poderiam estar proeminentes na articulação. Abaixo descreveremos três casos.

Caso 1

Paciente com 40 anos, sexo masculino, trabalhador braçal, com diagnóstico de luxação anterior recidivante do ombro no membro dominante após ter sofrido queda ao solo. O paciente persistiu com episódios de dor e instabilidade associados ao aparecimento de foco de necrose segmentar na cabeça umeral seis meses após a queda. Após um ano do trauma inicial foi submetido a cirurgia de reconstrução biológica da cabeça umeral com enxerto ósseo homólogo congelado com o uso de dois parafusos convencionais, juntamente com o reparo aberto da lesão de Bankart com duas âncoras. Após a retirada dos parafusos e com mais de 14 anos de seguimento no período pós-operatório, o paciente evoluiu sem dor, sem novos episódios de luxação, e manteve bom arco de movimento (140° de elevação, 50° de rotação lateral e rotação medial até T7), somou 35 pontos no questionário da UCLA (University of California at Los Angeles) e 92 pontos no de Constant (Constant Score). Nas imagens radiográficas atuais verificamos integração do enxerto (fig. 3).

Figura 3
(A), imagem radiográfica pré-operatória na incidência anteroposterior do ombro esquerdo, com necrose segmentar da cabeça umeral; (B), imagem radiográfica do mesmo paciente 14 anos após a cirurgia, com enxerto integrado.

Caso 2

Paciente com 19 anos, sexo masculino, estudante com dor no ombro não dominante havia um ano. Após exame clínico e radiográfico que demonstrou colapso subcondral articular da cabeça umeral, sem antecedentes que justificassem seu aparecimento, fechou-se o diagnóstico de osteonecrose idiopática da cabeça umeral direita. O paciente então foi submetido à cirurgia de reconstrução biológica da cabeça umeral com enxerto ósseo homólogo congelado com cartilagem com o uso de dois parafusos convencionais, retirados após seis meses. Atualmente, com seguimento de mais de 15 anos, o paciente continua sem dor, com 140° de elevação, 80° de rotação lateral e rotação medial até T5, 35 pontos no questionário da UCLA (University of California at Los Angeles) e 95 pontos no de Constant (Constant Score). Nas imagens de ressonância magnética e radiográficas, encontramos também o enxerto completamente consolidado, sem sinais de osteoartrose (fig. 4).

Figura 4
(A), imagens radiográficas na incidência anteroposterior e de ressonância magnética no corte coronal ponderada em T1 do ombro direito do caso 3 no período pré-operatório, demonstra a área de necrose (setas); (B), imagens radiográficas na incidência anteroposterior e de ressonância magnética no corte coronal ponderada em T1 do ombro direito do mesmo caso, demonstra total integração do enxerto após seguimento de 15 anos.

Caso 3

Paciente com 25 anos, sexo masculino, autônomo, sofreu uma luxação traumática do ombro não dominante, foi submetido a reparo artroscópico da lesão de Bankart e da lesão do lábio superior um mês após o último episódio de luxação anterior glenoumeral. Pouco mais de um mês após a cirurgia de reparo labial, o paciente iniciou quadro constante de dor. A partir dos exames radiográficos foi evidenciada necrose focal da cabeça umeral do ombro, foi submetido, seis meses após o início dos sintomas, à reconstrução biológica da cabeça umeral com enxerto ósseo homólogo congelado com uso de dois parafusos de compressão sem cabeça. O paciente evoluiu com recidiva da dor seis meses após a cirurgia de reconstrução da cabeça umeral, com sinais de reabsorção do enxerto e colapso subcondral articular (fig. 5). Um ano e seis meses após a cirurgia com o uso de enxerto homólogo, foi feita conversão para hemiartroplastia parcial do úmero esquerdo.

Figura 5
(A), imagem radiográfica na incidência anteroposterior do ombro esquerdo na qual visualizamos a reabsorção do enxerto e o colapso subcondral, com protrusão articular de um dos parafusos, seis meses após a cirurgia de reconstrução articular da cabeça umeral; (B), imagem tomográfica no corte coronal (janela óssea) do mesmo ombro, demonstra a protusão articular do parafuso com maior detalhe.

Considerações finais

As artroplastias para tratamento da osteonecrose da cabeça umeral em jovens não apresentam solução definitiva para o problema.

A cirurgia de reconstrução biológica da cabeça umeral com enxerto ósseo homólogo congelado é uma opção viável e que pode postergar uma futura artroplastia, como vimos no caso 3.

Caso haja total integração do enxerto, acreditamos que nossa técnica pode proporcionar uma solução definitiva para o paciente, como vimos nos casos 1 e 2.

References

  • 1
    Hasan SS, Romeo AA. Nontraumatic osteonecrosis of the humeral head. J Shoulder Elbow Surg. 2002;11(3):281-98.
  • 2
    Heimann WG, Freiberger RH. Avascular necrosis of the femoral and humeral heads after high-dosage corticosteroid therapy. N Engl J Med. 1960;263:672-5.
  • 3
    Cruess RL. Experience with steroid-induced avascular necrosis of the shoulder and etiologic considerations regarding osteonecrosis of the hip. Clin Orthop Relat Res. 1978;(130):86-93.
  • 4
    Bartelt R, Sperling JW, Schleck CD, Cofield RH. Shoulder arthroplasty in patients aged fifty-five years or younger with osteoarthritis. J Shoulder Elbow Surg. 2011;20(1):123-30.
  • 5
    Johnson MH, Paxton ES, Green A. Shoulder arthroplasty options in young (<50 years old) patients: review of current concepts. J Shoulder Elbow Surg. 2015;24(2):317-25.
  • 6
    Görtz S, De Young AJ, Bugbee WD. Fresh osteochondral allografting for steroid-associated osteonecrosis of the femoral condyles. Clin Orthop Relat Res. 2010;468(5): 1269-78.
  • 7
    Diklic ID, Ganic ZD, Blagojevic ZD, Nho SJ, Romeo AA. Treatment of locked chronic posterior dislocation of the shoulder by reconstruction of the defect in the humeral head with an allograft. J Bone Joint Surg Br. 2010;92(1): 71-6.
  • 8
    Gerber C, Catanzaro S, Jundt- Ecker M, Farshad M. Long -term outcome of segmental reconstruction of the humeral head for the treatment of locked posterior dislocation of the shoulder. J Shoulder Elbow Surg. 2014;23(11):1682-90.
  • Trabalho desenvolvido na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Grupo de Cirurgia de Ombro e Cotovelo, São Paulo, SP, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2016
  • Aceito
    15 Dez 2016
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br