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Reconstrução microcirúrgica em um hospital ortopédico: Indicações e desfechos em adultos

Resumo

Objetivo

Os avanços da microcirurgia reconstrutiva na cirurgia ortopédica proporcionaram melhores resultados funcionais e estéticos, evitando as muitas indicações de amputação. Nos hospitais de ortopedia e traumatologia com um grande volume de atendimento, a reconstrução microcirúrgica é essencial, a fim de reduzir os custos e as complicações destes complexos defeitos ortopédicos. Descrevemos uma abordagem microcirúrgica para feridas traumáticas, ressecção tumoral, defeitos ósseos e transferência muscular livre realizada por uma unidade ortopédica especializada em microcirurgia. O objetivo do presente estudo é avaliar os fatores preditivos de resultados dos retalhos microcirúrgicos na reconstrução dos membros, fornecendo uma análise descritiva dos retalhos microcirúrgicos para as indicações ortopédicas.

Métodos

Estudo prospectivo transversal, que incluiu todos os casos consecutivos de retalhos microcirúrgicos com indicação ortopédica de 2014 a 2020. Foram coletados os dados do histórico clínico pessoal, procedimentos microcirúrgicos intraoperatórios e exames laboratoriais. As complicações e os desfechos de retalho livre foram estudados mediante uma análise descritiva e estatística.

Resultados

Avaliamos 171 retalhos em 168 pacientes. A indicação mais frequente para a realização de um retalho microcirúrgico foi a traumática, em 66% dos pacientes. Foram observadas complicações cirúrgicas em 51 retalhos, conforme a classificação de Clavien-Dindo do tipo III. A taxa de êxito global dos retalhos microcirúrgicos foi de 88,3%. Na análise multivariada, foram identificados como fatores de risco para complicações tempo de isquemia ≥ 2 horas (p= 0,032) e obesidade (p= 0,007). A perda parcial do retalho foi mais comum em pacientes com trombocitose, com contagem de plaquetas pré-operatória (p= 0,001).

Conclusão

Os fatores de risco independentes para complicações de retalhos microcirúrgicos para a reconstrução de membro são obesidade e tempo de isquemia do retalho ≥ 2 horas, e a presença de trombocitose como fator de risco para perda parcial do retalho.

Palavras-chave
retalhos de tecido biológico; trauma; microcirurgia; procedimentos ortopédicos; transplante de tecidos

Abstract

Objective

Advances in reconstructive microsurgery in orthopedic surgery provided better functional and aesthetic results and avoided many indications for amputation. In high-volume trauma and orthopedic hospitals, microsurgical reconstruction is essential to reduce costs and complications for these complex orthopedic defects. We describe a microsurgical approach to traumatic wounds, tumor resection, bone defects, and free muscle transfer, performed by an orthopedic microsurgery unit. The objective of the present study was to evaluate predictor factors for outcomes of microsurgical flaps for limb reconstruction, and to provide a descriptive analysis of microsurgical flaps for orthopedic indications.

Methods

Cross-sectional prospective study that included all consecutive cases of microsurgical flaps for orthopedic indications from 2014 to 2020. Data were collected from personal medical history, intraoperative microsurgical procedure, and laboratory blood tests. Complications and free-flap outcomes were studied in a descriptive and statistical analysis.

Results

We evaluated 171 flaps in 168 patients; the indications were traumatic in 66% of the patients. Type III complications of the Clavien-Dindo Classification were observed in 51 flaps. The overall success rate of the microsurgical flaps was 88.3%. In the multivariate analysis, the risk factors for complications were ischemia time ≥ 2 hours (p= 0.032) and obesity (p= 0.007). Partial flap loss was more common in patients with thrombocytosis in the preoperative platelet count (p= 0.001).

Conclusion

The independent risk factors for complications of microsurgical flaps for limb reconstruction are obesity and flap ischemia time ≥ 2 hours, and presence of thrombocytosis is a risk factor for partial flap loss.

Keywords
free tissue flaps; trauma; microsurgery; orthopedic procedures; tissue transplantation

Introdução

Os retalhos microcirúrgicos constituem uma ferramenta importante na reconstrução de defeitos complexos traumáticos dos membros. Em alguns casos, esta ferramenta pode fornecer um melhor resultado estético e funcional, além de uma cobertura imediata e definitiva, seguindo um antigo conceito de “fix and flap”11 Godina M. Early microsurgical reconstruction of complex the extremities. Plast Reconstr Surg 1986;78(03):285-292 ou um conceito mais atual denominado elevador reconstrutivo.22 Gottlieb LJ, Krieger LM. From the reconstructive ladder to the Plast Reconstr Surg 1994;93(07):1503-1504

O tratamento das lesões complexas do sistema musculoesquelético tem evoluído para uma combinação de técnicas ortopédicas aliadas à transferência de retalho livre, descrita em casos traumáticos como reconstrução ortoplástica.33 Wagels M, Rowe D, Senewiratne S, Read T, Theile DR. Soft after compound tibial fracture: 235 cases over 12 years. J Plast Reconstr Aesthet Surg 2015;68(09):1276-1285,44 Heitmann C, Levin LS. The orthoplastic approach for the severely traumatized foot and ankle. J Trauma 2003;54(02): 379-390 Grande parte destes casos complexos precisa ser transferida para um hospital de referência, prolongando assim o tempo de internação e os custos para o sistema público de saúde.55 Dos Anjos KC, de Rezende MR, Mattar R Jr. Social and hospital patients admitted to a university hospital in Brazil due crashes. Traffic Inj Prev 2017;18(06):585-592

Os retalhos microcirúrgicos para reconstrução do membro são tanto funcionais quanto uma tentativa de evitar a cirurgia do membro; portanto, geralmente são realizados em circunstâncias distantes de serem as ideais, cujo objetivo é reduzir as complicações. Embora os pacientes com lesões complexas dos membros sejam encaminhados para hospitais ortopédicos, os retalhos microcirúrgicos geralmente são realizados por equipes de cirurgia plástica. Nós descrevemos a experiência de um grupo de microcirurgia ortopédica fornecendo tratamento precoce combinado, cujo objetivo é reduzir os custos de assistência à saúde e alcançar melhores resultados funcionais. O objetivo do presente estudo é descrever o papel da microcirurgia reconstrutiva, realizada em um hospital ortopédico com indicações e resultados de retalhos livres, com o tratamento combinado para lesões ortopédicas, por meio da análise descritiva dos casos e da avaliação dos fatores preditivos que influenciam as complicações dos retalhos microcirúrgicos no aparelho musculoesquelético.

Pacientes e Métodos

Estudo prospectivo observacional com inclusão consecutiva de todos os pacientes submetidos a retalhos microcirúrgicos em um hospital ortopédico. As principais indicações foram as feridas traumáticas com exposição óssea e/ou feixe neurovascular que não puderam ser recobertos com retalhos pediculares, enxertos cutâneos, defeitos em ossos longos > 6 cm e transferências musculares funcionais livres para os membros superiores. Os critérios de exclusão foram pacientes < 18 anos e dados pós-operatórios insuficientes no acompanhamento. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética e Ciência (CAAE n° 42679515.2.0000.0068). Consentimento informado foi obtido de forma individual de todos os participantes incluídos no presente estudo, o qual foi realizado de acordo com a Declaração de Helsinque.

O banco de dados incluía dados demográficos dos pacientes (idade, gênero e comorbidades) e análises laboratoriais dos níveis sanguíneos de hemoglobina e contagem de plaquetas. Foram registrados os seguintes dados intraoperatórios: tipo de retalho, vasos receptores, tipo de anastomose arterial, número de anastomoses venosas, tempo de isquemia intraoperatória do retalho livre (tempo decorrido entre o corte do pedículo na área doadora e a liberação dos retalhos da artéria, e de pelo menos uma veia com perfusão do retalho) e a participação do residente de treinamento na realização da microanastomose.

As complicações incluídas foram (tipo III da Classificação de Clavien-Dindo):6 infecção profunda que exigiu desbridamento cirúrgico, hematoma que exigiu drenagem cirúrgica, deiscência, reintervenção cirúrgica do retalho, amputação e perda parcial ou total do retalho.

Análise Estatística

Para a realização da análise estatística foi utilizado o programa IBM SPSS Statistics for Windows, versão 20.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA). O critério de anemia (moderada ou grave) foi definido quando os níveis de hemoglobina se encontravam < 11 g/dL (Organização Mundial da Saúde [OMS]),77 World Health Organization WHO. Haemoglobin the diagnosis of anaemia and assessment of severity mineral nutrition information system. Geneva:World 2011. Available from: e a definição de trombocitose foi estabelecida como contagem de plaquetas ≥ 450 × 109/L.88 Harrison CN, Bareford D, Butt N, et al. British Committee in Haematology. Guideline for investigation and adults and children presenting with a J Haematol 2010;149(03):352-375 Obesidade foi definida pela presença de índice de massa corporal (IMC) ≥ 30 kg/m2 (OMS). Os casos traumáticos, excluindo os 6 casos de transferência do dedo do pé para mão, foram divididos em crônicos (operados em > 21 dias após o evento traumático) e agudos (operados em ≤ 21 dias após o traumatismo). Em seguida, estes grupos foram subdivididos em 2 grupos: ≤ 7 dias do trauma ou > 7 dias. Os dados qualitativos foram analisados pelo teste qui-quadrado de Pearson ou pelo teste exato de Fisher e aplicados para os casos nos quais a frequência era menor do que a esperada. O teste U de Mann-Whitney foi usado para dados quantitativos não paramétricos. O ponto de corte do tempo de isquemia foi determinado pelos critérios de Youden na curva característica de operação do receptor (ROC, na sigla em inglês). A regressão logística binária foi então realizada nas variáveis com p<0,20 na análise univariada e incluídas uma variável na regressão logística para cada 10 casos de ocorrência de complicação. Foi utilizado o algoritmo com seleção para trás (backward).

Resultados

Foram estudados 171 retalhos microcirúrgicos em 166 pacientes no período entre 2014 e 2020 (Tabela 1). A média de idade foi de 35,2 anos (de 19 a 69 anos; desvio padrão [DP]: 11,3 anos). A lesão traumática, presente em 109 pacientes (Fig. 1), foi a indicação mais comum para a reconstrução microcirúrgica; entre eles houve 6 casos de transferência dedo do pé-mão e 103 casos de reconstrução de membro, com 50 pacientes sendo tratados antes de 21 dias do evento traumático (19 pacientes antes de 7 dias do evento traumático) e 53 pacientes após 21 dias ou casos crônicos (Tabela 2).

Fig. 1
Paciente do sexo masculino, 67 anos, apresentando ferida complexa traumática do antebraço, submetido à retalho ALC, carpectomia da fileira proximal e fixação externa do punho.

Tabela 1
Dados epidemiológicos
Tabela 2
Casos traumáticos

A idade do paciente não influenciou a presença de complicações (p= 0,996).

Cinquenta pacientes apresentaram anemia na avaliação pré-operatória. Os valores médios de hemoglobina foram 13,1 g/dL. No pós-operatório, 90 pacientes (52,6%) apresentaram anemia, e o nível médio de hemoglobina foi de 10,4 g/dL (DP = 1,8 g/dL). A análise da contagem de plaquetas mostrou que 19 pacientes apresentaram trombocitose pré-operatória, com 307 × 109/L em média (DP = 146 × 109/L).

O retalho mais comum foi o retalho anterolateral da coxa (ALC) em 31% dos casos (Figs. 2 e 3). Os dados intraoperatórios estão descritos na Tabela 3.

Fig. 2
Tipo de retalho microcirúrgico de acordo com a área doadora.

Fig. 3
Paciente do sexo feminino, 32 anos, apresentando defeito crônico complexo traumático da tíbia, submetida à encurtamento ósseo e fixação interna intramedular e retalho ALC.

Tabela 3
Dados intraoperatórios

Um enxerto venoso foi necessário para anastomose em nove pacientes. O sistema comitante ou venoso profundo foi escolhido em 77,2% dos casos. O tempo médio de isquemia foi de 124,49 minutos (DP: 45,2 minutos). Os residentes realizaram pelo menos 1 anastomose arterial ou venosa (ou ambas) em 141 retalhos (82,5%).

As complicações do tipo III de Clavien-Dindo foram observadas em 51 retalhos, descritos na Fig. 4. Em 4 pacientes, foi necessário um segundo retalho livre e, em 1 destes pacientes, foi realizado um terceiro retalho livre (Fig. 5).

Fig. 4
Número de casos de retalhos microcirúrgicos de acordo com a presença de complicações.

Fig. 5
Paciente do sexo masculino, 28 anos, submetido a ressecção oncológica e retalho ALC. Complicação como a perda parcial do retalho, sendo tratada com terapia por pressão negativa (TPN) e enxerto cutâneo.

O aumento do tempo de isquemia apresentou associação estatisticamente significativa com as taxas de complicações. A área sob a curva ROC (Fig. 6) foi de 0,617 e o ponto de corte foi determinado com base nos critérios de Youden de 2 horas (sensibilidade de 71% e especificidade de 59%). Com base neste ponto de corte, o tempo de isquemia foi categorizado em 2 grupos: > 2 horas e ≤ 2 horas.

Fig. 6
Características da curva ROC, com análise do tempo de isquemia relacionado às complicações.

A Tabela 4 resume a análise univariada e multivariada dos fatores de risco para complicações. Tempo de isquemia > 2 horas e obesidade permaneceram como fatores de risco independentes. Os pacientes com complicações ficaram internados por um período mais longo (p <0,001). Os residentes que realizaram a anastomose não influenciaram a incidência de complicações (p= 0,982), inclusive na realização da anastomose do tipo término-lateral (TL) (p= 0,217). Excluindo a obesidade, a presença de outras comorbidades não influenciou na incidência de complicações (p= 0,982), incluindo os pacientes com diabetes mellitus (p= 0,813).

Tabela 4
Análise multivariada dos fatores de risco para complicações com retalhos microcirúrgicos

A presença de trombocitose (p= 0,003), anemia pré-operatória (p= 0,013) e anastomose arterial TL (p= 0,009) foram estatisticamente significantes na análise univariada para a perda parcial do retalho. A trombocitose foi o único fator de risco independente na análise multivariada (p =0,001). O fator de risco para perda total do retalho foi a indicação de enxerto venoso para anastomose (p= 0,012).

A indicação de reintervenção cirúrgica do retalho foi associada a uma maior incidência de perda total do retalho (p< 0,001). Na análise multivariada, o fator de risco independente para a reintervenção cirúrgica do retalho foi a obesidade. A análise estatística está resumida na Tabela 5.

Tabela 5
Análise multivariada dos fatores de risco para reintervenção cirúrgica dos retalhos microcirúrgicos

No grupo dos casos traumáticos, os pacientes submetidos à reconstrução microcirúrgica com > 7 dias do evento traumático apresentaram uma taxa maior de complicações (p= 0,043) e nenhuma diferença na sobrevida do retalho (p= 0,64). Não houve diferença entre os casos crônicos (operados > 21 dias após o trauma) e os casos agudos em relação às complicações e a taxa de sobrevida (p= 0,3 e p= 0,93, respectivamente).

A taxa de êxito dos retalhos microcirúrgicos foi de 88,3%, com uma taxa de amputação de 3%.

Discussão

A reconstrução microcirúrgica na cirurgia ortopédica requer suporte técnico especializado, materiais de alto custo, o envolvimento de muitos profissionais de saúde, além da necessidade de um longo período de internação.99 Al-Dam A, Zrnc TA, Hanken H, et al.Outcome of microvascular in a high-volume training centre. J Craniomaxillofac Surg 2014;42(07):1178-1183 Pohlenz et al.1010 Pohlenz P, Blessmann M, Blake F, Li L, Schmelzle R, Heiland and complications of 540 microvascular free flaps: experience. Clin Oral Investig 2007;11(01):89-92 citaram que a taxa de êxito cirúrgico em um grande centro hospitalar se deve à experiência e ao suporte pós-operatório. Em nosso estudo, assim como na literatura,1111 Fischer JP, Wink JD, Nelson JA, et al. A retrospective review and flap selection in free tissue transfers for extremity reconstruction. J Reconstr Microsurg 2013;29(06):407-416

12 Lazo DAA, Zatit SCA, Colicchio O, Nishimura MT, Mazzer CH. Reconstrução dos membros com retalhos microcirúrgicos na urgência: experiência de 10 anos com 154 Rev Soc Bras Cir Plást 2005;20(02):88-94
-1313 Severo AL, Scorsatto C, Valente EB, Lech OLC. Retalhos para reconstrução de perdas musculocutâneos em membros inferiores: análise de 18 casos. Rev Bras Ortop 2004;39(10):578-589 observamos um aumento da incidência de pacientes jovens do sexo masculino com lesões traumáticas, principalmente por acidentes de trânsito (53% dos casos). Nestes casos, é importante realizar um tratamento combinado, com estabilização óssea, reconstrução com cobertura cutânea, e com diversas equipes especializadas, tudo com o objetivo de reduzir o número de cirurgias, as taxas de infecção e o tempo de hospitalização,1414 Mathews JA, Ward J, Chapman TW, Khan UM, Kelly MB. reconstruction of Gustilo-Anderson Grade tibial fractures greatly reduces infection rates. Injury 2015; 46(11):2263-2266 É importante que sejam instalados centros de microcirurgia reconstrutiva nos hospitais ortopédicos.

Não observamos a influência da idade avançada nas complicações, conforme evidenciado por outros estudos.1515 Chang EI, Chang EI, Soto-Miranda MA, et al. of risk factors and management of impending in 2138 breast free flaps. Ann Plast Surg 2016;77(01):67-71,1616 Jubbal KT, Zavlin D, Suliman A. The effect of age on flap outcomes: An analysis of 5,951 cases. Microsurgery 2017;37(08):858-864 Em nosso hospital ortopédico, os retalhos livres não são comuns em pacientes idosos, já que a reconstrução oncológica é menos comum do que a traumática; apenas 6 pacientes com mais de 60 anos foram submetidos à cirurgia, sem a ocorrência de complicações. Em determinados pacientes que necessitam de retalho microcirúrgico para o salvamento de membro, a idade não deve ser um fator determinante para a contraindicação absoluta.1717 Malata CM, Cooter RD, Batchelor AG, Simpson KH, Browning SP. Microvascular free-tissue transfers in elderly patients: experience. Plast Reconstr Surg 1996;98(07):1234-1241 As taxas de êxito em pacientes idosos podem ser semelhantes às de pacientes jovens, por meio de um planejamento pré-operatório adequado e a estabilização clínica do paciente.

Ao analisarmos a presença de comorbidades, a obesidade foi um fator de risco independente para as complicações, incluindo a reintervenção cirúrgica do retalho. Cleveland et al.1818 Cleveland EC, Fischer JP, Nelson JA, Wink JD, Levin LS, Kovach SJ 3rd. Free flap lower extremity reconstruction in the obese weight matter? J Reconstr Microsurg 2014;30(04): 263-270 também observaram um aumento na incidência de perda total do retalho. Os pacientes obesos apresentam uma maior propensão às doenças cardiovasculares e distúrbios metabólicos, apresentando dificuldades inerentes à anestesia, como o controle da distribuição dos fármacos e um maior volume administrado. Do ponto de vista cirúrgico, estes pacientes também apresentam maior dificuldade técnica, devido ao aumento da perda sanguínea e a profundidade das estruturas a serem operadas.

A presença de anemia não influenciou os resultados do nosso estudo. Hill et al.1919 Hill JB, Patel A, Del Corral GA, et al. Preoperative anemia and free flap failure in microvascular Plast Surg 2012;69(04):364-367 demonstraram um aumento na perda total do retalho e de trombose vascular em pacientes com anemia. Em situações de hipotensão e hipovolemia, ocorre a vasoconstrição periférica, provocando uma redução do fluxo, o que é prejudicial aos retalhos microcirúrgicos. Portanto, sugerimos manter os valores de hemoglobina > 10 g/dL, o que justifica a elevada indicação de hemotransfusão em nosso estudo (60% dos pacientes).

A realização de uma ou duas anastomoses venosas com retalho sem o uso de dreno não influenciou a incidência de complicações em nosso estudo; no entanto, foi observado um aumento na reintervenção cirúrgica do retalho em pacientes com apenas uma anastomose venosa (22 versus 15% com duas anastomoses venosas), porém sem significância estatística. Ross et al.2020 Ross GL, Ang ES, Lannon D, et al. Ten-year experience of free head and neck surgery. How necessary is a second Head Neck 2008;30(08):1086-1089 observaram melhores resultados com a reconstrução com retalho livre quando da realização da anastomose bivenosa. Dornseifer et al.2121 Dornseifer U, Kleeberger C, Kimelman M, et al. Less is of single venous anastomosis on the intrinsic transit free flaps. J Reconstr Microsurg 2017;33(02):137-142 descreveram uma maior incidência de reintervenção cirúrgica do retalho com anastomose venosa única. Como a trombose venosa é a complicação vascular mais comum em retalhos microcirúrgicos, sugerimos que quando o retalho possuir mais de um sistema venoso para drenagem e quando o tempo cirúrgico não for longo, devem ser realizadas anastomoses bivenosas.

Ao comparar o tipo de anastomose arterial, observamos que a anastomose termino-lateral (TL) apresentou uma maior incidência de perda parcial do retalho na análise univariada. Tsai et al.2222 Tsai YT, Lin TS. The suitability of end-to-side in free flap transfer for limb reconstruction. Surg 2012;68(02):171-174 concluíram que as anastomoses término-terminal e TL apresentam taxas semelhantes de sobrevida dos retalhos. Recomendamos que seja utilizada a anastomose TL a fim de preservar as artérias principais dos membros e quando existirem variações anatômicas, como a discrepância entre o diâmetro dos vasos,2323 Cho EH, Garcia RM, Blau J, et al. Microvascular anastomoses versus end-to-side technique in lower extremity transfer. J Reconstr Microsurg 2016;32(02):114-120,2424 Heidekrueger PI, Ninkovic M, Heine-Geldern A, Herter F, Broer versus end-to-side anastomoses in free flap centre experiences. J Plast Surg Hand Surg 2017; 51(05):362-365 embora a anastomose TL exija uma maior habilidade técnica, provavelmente com uma maior curva de aprendizado da técnica cirúrgica nos hospitais-treinamento, com a residência em microcirurgia.

Nossa unidade de ortoplastia possui residência em microcirurgia no hospital ortopédico, sendo que os residentes realizam anastomose microvascular (82% dos retalhos), sob a supervisão de microcirurgiões mais experientes. Observamos um aumento da indicação de reintervenção cirúrgica do retalho para os casos operados pelo residente (21 versus 6% quando operado pelo cirurgião principal), porém sem significância estatística, sendo que a presença de complicações não interferiu nas taxas de sucesso dos retalhos microcirúrgicos. Na literatura, alguns estudos2525 le Nobel GJ, Higgins KM, Enepekides DJ. Predictors of free flap reconstruction in head and neck of 304 free flap reconstruction procedures. Laryngoscope 2012;122(05):1014-1019

26 Raval MV, Wang X, Cohen ME, et al. The influence of on surgical outcomes. J Am Coll Surg 2011;212(05): 889-898
-2727 Hirche C, Kneser U, Xiong L, et al. Microvascular free flaps are and suitable training procedure during structured residency: A comparative cohort study with 391 Plast Reconstr Aesthet Surg 2016;69(05):715-721 observam uma alta porcentagem de complicações e aumento do tempo de internação quando os residentes realizam retalhos livres. Vale lembrar que a característica do nosso programa de residência é a formação de novos cirurgiões, fundamental para o futuro da microcirurgia. Seguindo este objetivo, sempre que houver necessidade, os hospitais públicos e universitários com alta demanda de casos ortopédicos complexos terão os recursos para realizar reconstruções microcirúrgicas especializadas.

O tratamento das lesões traumáticas do membro com retalhos microcirúrgicos apresenta maiores percentuais de perda total do retalho e complicações2828 Hill JB, Vogel JE, Sexton KW, Guillamondegui OD, Corral RB. Re-evaluating the paradigm of early free flap lower extremity trauma. Microsurgery 2013;33(01):9-13

29 Rinker B, Amspacher JC,Wilson PC, Vasconez HC. dressing as a bridge to free tissue transfer in of open tibia fractures. Plast Reconstr Surg 2008;121(05):1664-1673
-3030 Xiong L, Gazyakan E, Kremer T, et al. Free flaps for reconstruction tissue defects in lower extremity: A meta-analysis on and safety. Microsurgery 2016;36(06):511-524 do que retalhos para reconstrução na região da cabeça, do pescoço ou das mamas,1515 Chang EI, Chang EI, Soto-Miranda MA, et al. of risk factors and management of impending in 2138 breast free flaps. Ann Plast Surg 2016;77(01):67-71 devido à qualidade dos vasos receptores e trombofilia pós-traumática. Nosso hospital é uma referência para traumatismos; normalmente, os pacientes com extensas lesões nos membros que necessitam de reconstrução microcirúrgica são encaminhados para tratamento com o nosso grupo de microcirurgia reconstrutiva após o momento ideal para a reconstrução precoce: < 50% dos retalhos livres são realizados em < 21 dias a partir do evento traumático, e < 20% antes de 7 dias após o trauma. As taxas de complicações foram maiores em pacientes operados com > 7 dias, com semelhante sobrevida do retalho. Portanto, é importante ressaltar que a presença de uma equipe preparada para reconstrução microcirúrgica em um hospital ortopédico pode reduzir as complicações pós-operatórias, diminuindo o tempo de internação e promovendo a redução de custos para a saúde pública.

Em nosso estudo, tempo de isquemia intraoperatória ≥ 2 horas foi um fator de risco independente para as complicações com retalho livre. A influência de um maior tempo de isquemia nas complicações com retalhos microcirúrgicos foi demonstrada pela primeira vez em reconstruções mamárias.1515 Chang EI, Chang EI, Soto-Miranda MA, et al. of risk factors and management of impending in 2138 breast free flaps. Ann Plast Surg 2016;77(01):67-71 O maior tempo de isquemia pode estar associado a diversos fatores, principalmente àqueles relacionados à área receptora e aos vasos, devido à complexidade das feridas. Este fator de risco demonstra a importância do controle das variáveis intraoperatórias, limitando o tempo de isquemia, reduzindo, desta forma, as maiores taxas de complicações nas reconstruções ortopédicas.

A taxa de sucesso final de nossa série de reconstruções microcirúrgicas de membros se assemelha às de outros estudos publicados sobre retalhos microcirúrgicos, com uma taxa de sucesso geral de 88,3%.

Uma limitação do presente estudo é que algumas escolhas técnicas cirúrgicas como a escolha dos vasos receptores, o número de veias e o tipo de anastomoses arteriais podem apresentar viés, uma vez que podem ser afetadas pela gravidade da ferida e pela decisão pessoal de cada cirurgião. O número de casos no presente estudo é uma limitação para a análise estatística da influência das comorbidades individuais na incidência de complicações. No entanto, este é um estudo transversal, com inclusão prospectiva de todos os casos de reconstrução ortoplástica dos membros, o que permite tirar algumas conclusões por meio de uma análise de poder aceitável.

Conclusão

Os fatores de risco independentes para as complicações de retalhos microcirúrgicos para reconstrução de membros são: obesidade, tempo de isquemia do retalho ≥ 2 horas e a presença de trombocitose, esta última como fator de risco para perda parcial do retalho. Em um hospital ortopédico com microcirurgia reconstrutiva, recomendamos estar ciente desses fatores de risco a fim de evitar a ocorrência de complicações.

  • Suporte Financeiro
    Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2021
  • Aceito
    18 Maio 2021
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