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Resenha: tempo de gestar: encontros terapêuticos com gestantes à luz da preocupação materna primária

Book review: time to gestate: therapeutic encounters with pregnant women under the lights of primary maternal preoccupation

Resenha: tempo de gestar: encontros terapêuticos com gestantes à luz da preocupação materna primária

Book review: time to gestate: therapeutic encounters with pregnant women under the lights of primary maternal preoccupation

Jacirema Cléia Ferreira1 1 Endereço: Instituto de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo - Rua Coronel Melo de Oliveira, 453 - Vila Pompéia - CEP 05011-040 - São Paulo – SP. Email: jaciferreira@uol.com.br

Universidade de São Paulo

Este livro tem por berço uma dissertação de mestrado que, por sua vez, resulta de uma ampla experiência clínica com gestantes, atendimentos inicialmente realizados em uma das Oficinas Psicoterapêuticas da “Ser e Fazer” do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.2 2 As oficinas psicoterapêuticas integram o “Ser e Fazer”: Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, criado em 1992, sob coordenação da Profª Livre docente Tânia Maria José Aiello Vaisberg. A partir de 1997, foi disponibilizado à comunidade mais um serviço: Ser e Criar, atendimento à Gestante e à Mãe, também inspirado no pensamento winnicottiano.

Tania Granato, fazendo uso das ressonâncias emanadas destes encontros com mulheres grávidas, em alguns casos, acompanhadas posteriormente dos recém-nascidos, individualmente ou em grupo, apresenta uma oportuna reflexão sobre o conceito de preocupação materna primária, cunhado por D. W. Winnicott.

A autora demonstra uma grande sensibilidade para apreender os delicados processos em curso durante a gestação, ilustrando vivamente o acolhimento às inquietações próprias deste período, desde as angústias associadas às transformações do corpo até as da amamentação e pós-parto. Trata também dos anseios quanto aos quesitos fundamentais à recepção do pequeno bebê no mundo, abordando, com uma habilidade singular, conceitos fundamentais a essa fase do desenvolvimento, ilustrando-os de uma forma criativa à luz de fragmentos narrativos de encontros.

Valendo-se do postulado de Winnicott relativo à tendência inata ao desenvolvimento, desde que as condições básicas sejam favorecidas ao indivíduo pelo ambiente, Granato traça um paralelo com os cuidados essenciais ao desabrochar dos brotos na terra para nos apresentar a seus pacientes. A feliz metáfora irriga de poesia as narrativas, tornando irresistível o convite a embarcar pelos meandros destas alamedas sem que, durante o percurso, se perca o foco principal, o preciso entremeio clínico-teórico.

Assim é que ficamos conhecendo Prímula e seu bebê Narciso e, por seu intermédio, somos introduzidos a questões relativas aos estágios iniciais do processo maturacional, preconizados por Winnicott, tais como: o segurar (holding), o manipular (handling) e a apresentação de objetos, que requer extrema sensibilidade da mãe, como mediadora dos primeiros contatos do bebê com a realidade externa. Neste período à mãe compete a façanha, quase mágica3 3 É necessário ressaltar que estamos usando o “quase mágico” como um paradoxo, pois, se por um lado, como indica Winnicott, a apresentação do objeto é acontecimento ordinário, exeqüível por uma mãe devotada comum, por um outro, a sensível adaptação e o preciso suprimento para as necessidades do bebê, responsáveis pela criação do fenômeno da ilusão, conferem extraordinariedade à tarefa. , de fazer coincidir a apresentação do objeto com a prontidão do bebê para criá-lo, no momento e local propícios. Estas pequenas doses de ilusão possibilitam à pequena criança a crença de que encontrará no mundo o objeto de sua necessidade4 4 Temos publicado artigos a partir de pesquisas sobre o sofrimento amoroso de mulheres, temática próxima àquela da psicologia da gestação (FERREIRA, J. C., 2002 no prelo, FERREIRA, J. C.; VAISBERG, T. M. J. A. 2003). .

A mesma Prímula presta-se à elaboração de idéias a respeito da organização psicossomática do indivíduo que pode sofrer alterações significativas em decorrência das sensações e transformações corporais inerentes à gestação, parto e puerpério. Em algumas pacientes, a experiência pode evocar temores arcaicos, acompanhados de estados desintegrados. Outras, ao imaginarem o momento do parto, vêem despertadas fantasias mutilantes e castradoras, associadas a vivências pregressas, relacionadas à perspectiva frustrada de criação de um espaço confiável para o bebê.

Com Gardênia enveredamos em uma dolorosa via crucis, emblemática de uma maternagem em constante desafinação com os acordes da criança que, por vezes, só pode reagir à falha ambiental, numa tentativa de preservação do self. Vitimada por invasões diversas, a paciente oferece o pretexto para uma sensível abordagem do papel desempenhado pela mãe, em sua função de espelhar o bebê, as possibilidades de se habitar um espaço próprio, bem como o lugar do vínculo psicoterapêutico na dramática ilustrada.

É a narrativa de Gérbera, contudo, que nos propicia um contato mais íntimo com um processo de derrocada da integração psicossomática, como uma tentativa de defesa ante a experiência aterradora no parto. A modalidade de vínculo estabelecida por Gérbera em relação ao seu marido é análoga ao estádio da dependência relativa, descrito por Winnicott5 5 No transcurso do período de dependência relativa a mãe deveria promover uma desadaptação gradual às necessidades de seu bebê. Segundo Winnicott, neste estágio a criança começa, de certa forma, a adquirir consciência de sua dependência, tornando-se ansiosa, por exemplo, se a ausência da mãe supera a capacidade que tem de acreditar em sua sobrevivência 91963/1990, p. 79/87). . A ameaça de perda do marido, seu principal esteio, provoca em Gérbera um aprofundamento do processo regressivo iniciado na gestação que, em situação favorável, deveria decorrer no estado de preocupação materna primária. Somos testemunhas, também, do potencial mutativo que os verdadeiros encontros carregam em seu cerne e de como é verdadeira a afirmação de Winnicott de que basta oferecer ao paciente a oportunidade para que ele exponha sua necessidade mais premente (1971, p. 9-19).

Acreditamos que estes três exemplos sejam suficientes para instigar o leitor a conhecer esta obra imprescindível a quaisquer profissionais que se dediquem a esta delicada tarefa de lidar com a saúde das gestantes e de seus bebês.

Com admirável acuidade, Granato contempla o leitor não apenas com a anunciada reflexão sobre o conceito de preocupação materna primária, como também com uma fecunda investigação sobre as vicissitudes do relacionamento humano, cujo bojo revela ora uma rigorosa pesquisadora, ora uma sensível poeta.

Resta finalmente dizer que seu estilo de contar e a maneira de habitar as experiências parecem ter sido embebidos na mesma fonte a que recorreram todos os narradores, segundo Benjamim “... na experiência que é transmitida de pessoa a pessoa” (1936/1996, p. 199), respeitando, sobretudo, a função mais arcaica da narrativa: a de instaurar um fecundo campo intercambiante de experiências.

Recebido em 31.03.2003

Aceito em 05.04.2003

  • Benjamim, W. (1936). O narrador. Consideraçőes sobre a obra de Nikolai Leskov. Em: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura 10. reimpressăo. Săo Paulo: Brasiliense, 1996. p. 199-221.
  • Ferreira, J.C. (no prelo). Enlaces, Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle.
  • Ferreira, J.C. & Vaisberg, T.M.J.A. O amor violenta: dom de iludir. Em: Vaisberg, T.M.J.A. & Ambrosio, F.F. (Orgs.). Trajetos do sofrimento: rupturas e (re) criaçőes de sentido Săo Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de Săo Paulo, 2003. p. 122-137.
  • Granato, T.M.M. (2002). Tempo de gestar: encontros terapęuticos com gestantes ŕ luz da preocupaçăo materna primária. Săo Paulo: Landmark, 2002, 129 p. ( ISBN 85-88781-04-2).
  • Winnicott, D.W. (1971). Introduçăo. Em: ____. Consultas terapęuticas em psiquiatria infantil Traduçăo de Joseti Marques Xisto Cunha. Rio de Janeiro: Imago, 1984. p. 9-19.
  • Winnicott, D.W. (1963). Da dependęncia ŕ independęncia no desenvolvimento do indivíduo. Em: ____. O ambiente e os processos de maturaçăo 3 ed. Traduçăo de Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. p. 79-87.
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    Endereço: Instituto de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo - Rua Coronel Melo de Oliveira, 453 - Vila Pompéia - CEP 05011-040 - São Paulo – SP. Email:
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    As oficinas psicoterapêuticas integram o “Ser e Fazer”: Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, criado em 1992, sob coordenação da Profª Livre docente Tânia Maria José Aiello Vaisberg. A partir de 1997, foi disponibilizado à comunidade mais um serviço:
    Ser e Criar, atendimento à Gestante e à Mãe, também inspirado no pensamento winnicottiano.
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    É necessário ressaltar que estamos usando o “quase mágico” como um paradoxo, pois, se por um lado, como indica Winnicott, a apresentação do objeto é acontecimento ordinário, exeqüível por uma mãe devotada comum, por um outro, a sensível adaptação e o preciso suprimento para as necessidades do bebê, responsáveis pela criação do fenômeno da
    ilusão, conferem extraordinariedade à tarefa.
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    Temos publicado artigos a partir de pesquisas sobre o sofrimento amoroso de mulheres, temática próxima àquela da psicologia da gestação (FERREIRA, J. C., 2002 no prelo, FERREIRA, J. C.; VAISBERG, T. M. J. A. 2003).
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    No transcurso do período de
    dependência relativa a mãe deveria promover uma desadaptação gradual às necessidades de seu bebê. Segundo Winnicott, neste estágio a criança começa, de certa forma, a adquirir consciência de sua dependência, tornando-se ansiosa, por exemplo, se a ausência da mãe supera a capacidade que tem de acreditar em sua sobrevivência 91963/1990, p. 79/87).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2003
    • Data do Fascículo
      Abr 2003

    Histórico

    • Aceito
      05 Abr 2003
    • Recebido
      31 Mar 2003
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