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Problema e mudança em terapia de grupo: descrições construcionistas sociais

Problem and change in group therapy: social constructionist descriptions

Resumos

Uma descrição construcionista da terapia de grupo convida a defini-la como uma prática discursiva na qual o problema e a mudança são entendidos como construções conversacionais produzidas nas relações entre as pessoas. Assim, o objetivo deste trabalho é compreender como determinadas formas de conversar contribuem para a construção do problema e sua solução em um grupo de apoio para portadores do HIV. O grupo estudado consistiu de dez sessões com quatro participantes. As sessões foram gravadas e transcritas. Através da análise discursiva dos momentos grupais compreendemos como: a construção do problema e da solução são parte de um único processo conversacional; este processo conversacional amplia os domínios de suplementação; a ampliação é marcada pela dinâmica interacional da sessão, pelos discursos sociais sobre o grupo e o problema, e pela forma narrativa do problema. Esta compreensão favoreceu uma reflexão sobre as implicações identitárias e éticas da participação neste grupo.

terapia de grupo; construcionismo social; mudança


A constructionist description of group therapy defines it as a discursive practice in which problem and change are considered conversational constructions produced by people in relationships. The objective of this study is to comprehend how certain ways of talking contribute to the construction of the problem and its solution in a support group for people living with HIV. The group studied had ten sessions and four participants. The sessions were tape-recorded and transcribed. Through the discursive analysis of group moments we comprehended how: the construction of the problem and the solution are part of the same conversational process; this conversational process implies in the expansion of supplementation domains; this expansion is influenced by the interactional dynamic of the session, by the social discourses about the group and the problem, and by the narrative form of the problem. This comprehension favored a reflection about identity and ethical implications on making part of this group.

group therapy; social constructionism; change


Problema e mudança em terapia de grupo: descrições construcionistas sociais1 1 Este estudo é parte da Tese de Doutorado do primeiro autor, sob orientação da segunda autora, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, com apoio FAPESP/CNPq. 2 Endereço: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia e Educação, Avenida dos Bandeirantes, 3900, Campus da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil 14090-910. E-mail: mjapur@ffclrp.usp.br

Problem and change in group therapy: social constructionist descriptions

Emerson F. RaseraI; Marisa JapurII,2 1 Este estudo é parte da Tese de Doutorado do primeiro autor, sob orientação da segunda autora, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, com apoio FAPESP/CNPq. 2 Endereço: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia e Educação, Avenida dos Bandeirantes, 3900, Campus da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil 14090-910. E-mail: mjapur@ffclrp.usp.br

IUniversidade Federal de Uberlândia

IIUniversidade de São Paulo – Ribeirão Preto

RESUMO

Uma descrição construcionista da terapia de grupo convida a defini-la como uma prática discursiva na qual o problema e a mudança são entendidos como construções conversacionais produzidas nas relações entre as pessoas. Assim, o objetivo deste trabalho é compreender como determinadas formas de conversar contribuem para a construção do problema e sua solução em um grupo de apoio para portadores do HIV. O grupo estudado consistiu de dez sessões com quatro participantes. As sessões foram gravadas e transcritas. Através da análise discursiva dos momentos grupais compreendemos como: a construção do problema e da solução são parte de um único processo conversacional; este processo conversacional amplia os domínios de suplementação; a ampliação é marcada pela dinâmica interacional da sessão, pelos discursos sociais sobre o grupo e o problema, e pela forma narrativa do problema. Esta compreensão favoreceu uma reflexão sobre as implicações identitárias e éticas da participação neste grupo.

Palavras-chave: terapia de grupo; construcionismo social; mudança.

ABSTRACT

A constructionist description of group therapy defines it as a discursive practice in which problem and change are considered conversational constructions produced by people in relationships. The objective of this study is to comprehend how certain ways of talking contribute to the construction of the problem and its solution in a support group for people living with HIV. The group studied had ten sessions and four participants. The sessions were tape-recorded and transcribed. Through the discursive analysis of group moments we comprehended how: the construction of the problem and the solution are part of the same conversational process; this conversational process implies in the expansion of supplementation domains; this expansion is influenced by the interactional dynamic of the session, by the social discourses about the group and the problem, and by the narrative form of the problem. This comprehension favored a reflection about identity and ethical implications on making part of this group.

Key words: group therapy; social constructionism; change.

O construcionismo social consiste em um conjunto variado de diferentes contribuições teóricas que se articulam, segundo alguns autores (Burr, 1995; Gergen, 1999; Nightingale & Cromby, 1999), em torno de quatro idéias centrais, quais sejam: a ênfase na especificidade cultural e histórica das formas de conhecermos o mundo; o reconhecimento da primazia dos relacionamentos na produção e sustentação do conhecimento; a interligação entre conhecimento e ação; e a valorização de uma postura crítica e reflexiva.

Estas idéias, produzidas no contexto da Psicologia Social (Gergen, 1997; Shotter, 1993; Spink, 1999), espalharam-se para outros campos, como o da Psicoterapia (Friedman, 1993; Gergen & Warhuus, 2001; Grandesso, 2000; McNamee, 2004; McNamee & Gergen, 1998; Riikonen & Smith, 1997). Neste campo, a perspectiva construcionista tem influenciado propostas terapêuticas que enfatizam: o processo de construção dos sentidos; uma postura de co-construção entre terapeuta e cliente, redimensionado a postura de especialista; o olhar sobre os relacionamentos nos quais o cliente está envolvido e nos quais constrói determinados sentidos; uma atenção aos valores e aos resultados pragmáticos dos discursos que são construídos no contexto terapêutico; a multiplicidade de formas de descrever um problema; e um discurso de potencialidades positivas e de construção de realidades futuras.

No campo da terapia de grupo, as contribuições construcionistas têm sido mais escassas (Becvar, Canfield & Becvar, 1997; Green & Stiers, 2002; Guanaes, 2004; O'Leary, 2001; Rasera & Japur, 2001, 2003). Em uma tentativa de trazer o convite construcionista ao campo da terapia de grupo, Rasera (2004) propõe uma redescrição da terapia de grupo, definindo o grupo como uma prática discursiva – uma forma de criar realidades relacionais através da linguagem. Esta redescrição implica outras ainda: o contrato grupal é o meio de delimitar algumas condições de produção de sentido; a composição grupal é um processo de negociação entre terapeuta e participantes; o terapeuta atua como um parceiro conversacional, e a duração do grupo é definida a partir do entendimento do grupo como uma intervenção ético-política.

A partir desta redescrição, o problema e a mudança são entendidos como construções discursivas produzidas nas relações entre as pessoas. Desta forma, o problema não está nas pessoas, nem no relacionamento como um objeto descolado de seu meio, mas nas formas pelas quais juntos conversamos sobre o mundo. Problemas são determinadas formas de descrição, associadas a um conjunto de valores e discursos sociais, que geram sentidos de conflito e dificuldade. Em um grupo, os problemas podem ganhar múltiplas descrições, o que combate uma visão naturalizada e inevitável de seu desenvolvimento, explicitando sua construção social. A concepção de mudança está associada, assim, à negociação dos sentidos produzidos nas sessões em um processo microssocial. Neste processo constróem-se não apenas o problema e a mudança, mas as pessoas e seu contexto.

O objetivo deste trabalho é compreender como determinadas formas de conversar contribuem para a construção de um problema e sua solução em um grupo de apoio fechado, de curta duração, para pessoas portadoras do HIV em uma ONG/Aids de Ribeirão Preto, a partir das propostas do construcionismo social.

Método

O grupo estudado

O grupo de apoio de curto prazo para pessoas portadoras do HIV aqui estudado teve como objetivo promover conversas dialógicas que permitissem a construção de outras formas de viver com HIV. O terapeuta buscou construir uma parceria conversacional marcada pela reflexão, negociação e co-responsabilização com os outros participantes. Além de duas ou três sessões individuais de seleção e preparação para o grupo, ocorreram dez sessões grupais semanais de 1h30 de duração, uma conversa final e uma conversa de seguimento após três meses do término do grupo, com cada participante. Ele foi composto por quatro participantes e o terapeuta: Pedro, 45 anos, sabia de sua soropositividade há nove meses, buscou o grupo para ter com quem conversar, "colocar suas coisas pra fora" e se sentir melhor; Marina, 53 anos, profissional liberal de nível superior, sabia-se portadora há cinco meses, e necessitava conversar sobre a revelação de sua soropositividade para sua família; Tiago, 30 anos, sabia-se portador há nove anos, e buscava um jeito mais feliz de viver com HIV; Ricardo, 31 anos, sabia-se portador há quatro meses, e precisava saber mais sobre a doença, como enfrentar o preconceito e contar para sua família sobre a soropositividade; e o terapeuta, 29 anos, psicólogo-pesquisador, há seis anos atendia pessoas portadoras do HIV, é o primeiro autor deste artigo.

A construção e análise do corpus

Os dois recursos metodológicos utilizados na constituição do corpus correspondem à gravação em fita cassete de todos os momentos do grupo, desde as conversas iniciais até as conversas de seguimento, bem como o registro em um diário de campo a respeito da vivência do terapeuta neste processo.

A análise do corpus consistiu em: 1) Transcrição e edição de todas as conversas do grupo estudado, desde as iniciais até as de seguimento. 2) Leitura flutuante, curiosa e intensiva da transcrição. 3) Construção de delimitações temático-seqüenciais. As delimitações temático-seqüenciais constituíram recortes seqüenciais de momentos da interação grupal que indicavam como se davam algumas formas de construção dos sentidos. Cada momento consistiu de um conjunto de enunciados no qual havia uma disputa pelos sentidos que determinada questão trazia, produzindo uma ampliação ou restrição dos significados até ali enunciados (Rasera & Japur, 2001, 2003). 4) Seleção de momentos da construção do grupo. Considerando o objetivo de compreender o processo de construção do problema e da mudança nas sessões grupais, selecionamos alguns momentos das sessões nos quais se negociava explicitamente o problema da adesão à medicação anti-retroviral entre os participantes. Trata-se de um tema característico do atendimento a esta população e de fundamental importância no tratamento. 5) Análise dos momentos selecionados. O processo de análise dos momentos selecionados buscou apontar o contexto que se construía a partir dessas conversas e as negociações aí necessárias, tentando respeitar a seqüência das conversas e a troca de turnos entre os participantes. Baseados em uma teoria relacional do significado (Gergen, 1997) buscamos: a) rastrear o processo de suplementação dos enunciados, ou seja, a forma pela qual os participantes respondiam uns aos outros; b) analisar as ontologias relacionais que se construíam entre os participantes, isto é, as formas de descrição compartilhadas sobre si mesmo e sobre o outro decorrentes dos relacionamentos desenvolvidos no grupo.

Através da análise de cada um dos momentos, esperamos poder dar visibilidade ao processo de construção discursiva de um problema e de uma mudança para um participante no contexto grupal e às implicações identitárias e éticas deste processo. A partir desta análise discutiremos como o grupo possibilita a criação de determinadas realidades relacionais através da linguagem, ou seja, como ele se produz como uma prática discursiva.

Análise dos resultados

Negociando diferentes versões de cuidado

Entre os diversos momentos de negociação sobre a adesão à medicação, selecionamos aqueles relacionados à situação de Pedro. Ele era o único participante que não estava tomando medicação, a despeito de uma prescrição médica anterior para que o fizesse. Pedro trazia uma forma de lidar com a medicação que era diferente dos outros participantes, e que fazia com que esta questão fosse discutida no grupo. Através de uma análise das delimitações temático-seqüenciais foi possível observar que a primeira conversa no grupo na qual Pedro passa a se descrever como alguém que toma remédios foi na sessão 4. Anteriormente, nas sessões 2 e 3, Pedro se apresentava como não tomando remédio. Uma leitura processual destes momentos das sessões anteriores, nos quais se conversava sobre a relação de Pedro com a medicação, possibilitou compreendê-los como uma negociação de diferentes versões de cuidado.

Uma forma particular de cuidado

A sessão 2 do grupo é a primeira na qual Pedro participa. Além do terapeuta e de Pedro, estão presentes na sessão Marina, Tiago e Ricardo. Após a conversa sobre o contrato no momento 1, o momento 2 consiste na apresentação de Pedro. Ele se descreve como tendo dor de cabeça, "derrubado", conversando "besteira", pensando em morrer. Marina, em um contexto de acolhimento inicial, tenta apoiá-lo falando que todos têm medo, que para ela também foi difícil, que os remédios são ruins, mas é necessário se cuidar. É então, a partir desta fala de Marina, que Pedro conta que não está mais tomando remédios.

Pedro: Ah, que, pô, no início eu di, você lembra que eu só falava, só de morrer. Quando o [terapeuta] falava comigo eu falava, "Não, eu vou morrer, quero morrer"

Marina: Eu vou morrer mesmo, né?

Pedro: Eu quero morrer e vou morrer e... aí... agora, já de 90% eu num penso isso, né.

Marina: Que bom, é, mas é horrível quando a gente, isso é normal, num pensa você, por exemplo, eu sou mulher né, vocês é, pode, é a mesma coisa. A gente hoje em dia sabe que a mulher é mais frágil, né. E mais o medo é terrível, é, eu tive medo na hora. Eu não gostei nada disso. Eu acho, eu fiquei p da vida né, mas... mas aí eu, é aquilo que eu penso, você tem que ter força, coragem, não pode desanimar, né, os remédio são ruim pra caramba né, pra tomar (rindo)

Pedro: Eu vou...

Marina: Mas vai tudo adaptando, né, pra mim foi ruim, mas já tá...

Pedro: Pra mim também num foi certo nenhum, deu, num deu certo de jeito nenhum.

Marina: Mas tá tomando?

Pedro: Não, tomando nada. Num tô tomando nada.

Marina: Bom, mas, como é que faz?

Pedro: Sim, mas num deu certo, o médico mandou...

Marina: Vai trocando...

Pedro: ... parar..

Marina: ... até dar..

Pedro: ... mandou parar que ele ia estudar outro, até agora num estudou.

Marina: Ah sei.

Pedro: Tô esperando.

Marina: então...

Pedro: Veio, veio o primeiro, me saiu uma caroceira no, no corpo, isso aí num...

Marina: ... é, dá, dá uma alergia, coça.

Pedro: ... uma caroceira, fui lá nele (Pedro conta efeitos colaterais). Ele mandou parar de novo. Agora, graças a Deus, eu, eu tô sem o remédio sabe, tô bom. (Sessão 2, p. 5)

A emergência desta descrição na sessão decorre de uma fala de Pedro cuja função é concordar com Marina que o remédio é ruim. Inicialmente, ele se coloca enfrentando várias dificuldades, tendo pensado em morrer, e melhorado, e como Marina, sofreu com a medicação. A partir de uma lógica de reciprocidade, Pedro parece querer tratar Marina como ela o estava tratando. Esboça-se na fala de Pedro e Marina a construção do grupo como um contexto no qual deve ser privilegiado o apoio mútuo, no qual ambos se posicionam como participantes preocupados com o outro, que buscam acolher e validar o sofrimento alheio. É neste sentido que a descrição que fazem de si mesmos busca caracterizar uma possibilidade descritiva sensível às necessidades do momento, num processo conjunto de construção de determinado contexto conversacional – o grupo.

Por um lado, o questionamento de Marina frente à colocação de Pedro parece traduzir sua busca de construir o grupo como um contexto de cuidado. Colocando-se como alguém que considera que o correto é tomar a medicação anti-retroviral, ela questiona Pedro. Por outro lado, para Pedro, não tomar a medicação não consiste um problema, algo pelo qual ele deve se esforçar para mudar. Porém, esta afirmação de Pedro parece ser entendida por Marina como se opondo à sua colocação sobre a importância de não se desanimar. O contexto imediato da conversa convida Marina a não aceitar esta descrição de Pedro e a questioná-lo. Na dinâmica conversacional, uma discordância entre as pessoas exige outras explicações. Abre-se um espaço naquela descrição de Pedro que exige uma justificativa.

O questionamento de Marina faz Pedro se justificar como não sendo responsável por esta decisão. Pedro conta que já tomou medicação anti-retroviral, teve inúmeros efeitos colaterais que levaram à suspensão de sua utilização, o que produziu um grande alívio para Pedro. Esta justificativa tem a função de garantir a legitimidade de Pedro no grupo como alguém que está preocupado com a própria saúde, e que segue as recomendações médicas. Frente ao questionamento de Marina, ele busca trazer a voz do seu médico, aquele que teria a competência para dizer o que ele deve fazer. Do ponto de vista de Pedro, parece que o maior cuidado que ele poderia ter consigo próprio é respeitar as reações adversas e seguir a orientação médica. A negociação parece se dar em torno das diferentes versões de cuidado dos participantes. Esta negociação se estende para o momento seguinte da sessão.

Este momento da interação grupal explicita, no plano da conversa, como se constrói o problema da adesão à medicação na relação entre estes participantes, bem como, o caráter dinâmico, multinivelado (a dinâmica do contexto conversacional imediato e os discursos do contexto além grupo) e imprevisível da construção do grupo. Entre certa busca generalizada de construir o grupo como um contexto de apoio e as necessidades específicas geradas pelo contexto imediato das perguntas e respostas, a fala de uma participante questiona o que acabava de ser dito. Esta era uma fala inesperada e que impedia a continuidade daquela descrição trazida por Pedro.

Pela inclusão das diferentes possibilidades de cuidado

A partir desta conversa, da apresentação de Pedro se recorta a questão da medicação, e então no momento 3, passa-se a discutir este tema. O terapeuta busca questionar junto ao grupo os sentidos de não tomar a medicação. Trata-se de um convite à emergência de outras vozes, perspectivas e possibilidades de significação.

Pedro se coloca como aliviado por não tomar remédio, mas ao mesmo tempo considera que a medicação é importante no processo de recuperação de sua saúde. Uma ambigüidade que aponta, ao mesmo tempo, uma abertura para a significação do remédio como algo importante para viver e uma passividade frente à antecipação do sofrimento, de algo que está para além de seu controle. Esta ambigüidade na descrição de Pedro será fundamental no processo de construção de outros sentidos relativos à sua adesão à medicação.

O discurso de Pedro contrasta com o discurso do enfrentamento e da superação trazidos por Marina e Tiago. Estes enfatizam como, apesar da dificuldade de tomar a medicação anti-retroviral, é possível reagir e viver bem com ela. Os participantes se esforçam por promover uma conversa na qual se descrevam como agentes de seu próprio cuidado.

Terapeuta: Quer dizer, o Pedro tá contando que na hora que ele tomava o remédio, o que mais marcava na cabeça dele eram os efeitos colaterais, eram as conseqüências do remédio...

Marina: Hum, hum

Terapeuta: ... da adaptação ao remédio. Quer dizer, é o vômito que ele tinha tá, a alergia né, os caroços que davam. Então na hora que parou de tomar remédio, pra ele foi um alivio né, e... agora, tomar, ficar sem tomar remédio é sempre um alívio?

Pedro: Não, tá...

Terapeuta: Por que não? Por que não Pedro?

Pedro: Eu acho, às vezes, quando vai, vai ficando, o corpo vai acabando com a resistência, né? (silêncio)

Terapeuta: Vocês acham isto também?

Pedro: Só tomando o remédio que a gente vai conseguir.

Terapeuta: O remédio é importante? É isso?

Pedro: É, o maior remédio é Deus, né?

Marina: Mas vai dar certo. A gente vai adaptando.... eu, no começo, Pedro, eu tinha assim, muita dor de estômago, diarréia, hoje eu num tenho mais (conta efeitos colaterais). Todo mundo passa por isso, tudo é uma questão de eu, eu quando eu fico assim, eu falo "Não, eu tenho que me adaptar, eu preciso me ajudar". Só você pode, o médico te ajuda de um jeito, ele ajuda, mas o remedinho é só você que pode tomar, né.

(...)

Tiago: Eu também, passei, eu tomo remédio já, há cinco anos. (...) E o remédio foi o que me salvou (conta efeitos colaterais). Mas aí, depois o médico foi ajeitando, hoje, hoje até que num, ai, eu tenho e sofro, ainda, também, porque tira um pouco da fome, né, tira, né, dá um cansaço, tal. Mas acho que eu, eu penso assim, eu tenho que aceitar, procurar, eu num tenho, o que é melhor pra mim.

Pedro: Então, eu tinha um remédio (...) Num comia nada. (...) Depois que eu parei de tomar eu como mais melhor.

Terapeuta: É, eu acho que uma informação importante, né, em relação à questão da medicação (explicação sobre as combinações medicamentosas e possibilidades alternativas de tratamento) (Sessão 2, pp. 6-7).

Marina e Tiago falam das suas dificuldades de tomar a medicação, bem como, da ajuda trazida pela mesma. Para ambos, a medicação é descrita como algo inevitável, como um "cuidado forçado", algo que eles "têm que aceitar", "têm que se adaptar", "têm que se ajudar". Parece que os outros participantes querem mostrar a Pedro que não só é possível se cuidar, mas que isto é de responsabilidade dele, que cabe a ele tomar a medicação prescrita, a despeito da quantidade e dos efeitos colaterais.

Pedro retoma dizendo como, tal qual os outros, está melhor. Contudo, diferente dos outros, está se sentindo melhor pois está sem o remédio. Pedro responde como se esta não fosse uma questão para ele, ressaltando que está bem.

Considerando a preocupação e os esforços dos outros participantes, e o fato de Pedro descrever a medicação como algo necessário, porém ao mesmo tempo como algo desconfortável, e talvez impossível dele fazer uso, o terapeuta significa esta situação como um dilema. Supondo que Pedro talvez não tivesse muitos conhecimentos sobre as medicações, ele informa como outras opções medicamentosas podem não ter os efeitos colaterais desconfortáveis que Pedro teve até então. Trata-se de uma tentativa de criar opções, de investir no entendimento de que Pedro pode se cuidar, apesar de certas dificuldades.

A preocupação do grupo com o fato de Pedro não tomar a medicação faz eco a uma preocupação de Pedro com a perda da resistência do corpo. Rastreia-se aqui alguns momentos iniciais da construção grupal da possibilidade de Pedro tomar remédio, de alguns sentidos partilhados por todos.

Na conversa que se seguiu na sessão, Ricardo, querendo participar, diz que ainda não toma medicação anti-retroviral, porém utiliza medicação antidepressiva. E para explicar a necessidade do antidepressivo fala das dificuldades no trabalho, tema do momento 4 da sessão.

No momento 5, retoma-se a questão da medicação anti-retroviral e do autocuidado. Tal como no momento 3, Tiago e Marina falam de situações nas quais tiveram dificuldades para tomar a medicação, mas superaram tais dificuldades e agora estão se sentindo melhor. A ênfase é na superação das dificuldades trazidas pela medicação. Algo que parece que Pedro não percebe da mesma forma. Em um processo semelhante ao ocorrido no momento 3, Pedro também se coloca como quem se sente bem. Ele recorta o que as pessoas estão falando a respeito de se sentirem bem com a medicação, para falar de como ele está bem.

Este recorte das falas dos outros participantes operado por Pedro chama a atenção do terapeuta. Parece que este também não é o jeito esperado pelos outros participantes de se responder às colocações feitas por eles. Há uma inconsistência no relato de Pedro que exige ser resolvida. Como é possível pensar que se não tomar a medicação perderá sua "resistência" e ao mesmo tempo dizer que está bem, mesmo não tomando tal remédio? A partir daí surgem outras questões: Qual é o lugar em que Pedro se coloca no contexto grupal? Qual é o sentido da medicação para Pedro naquele momento? Pedro está se colocando em oposição a tomar remédio? O que fazer se o remédio é importante mas as reações adversas são muito severas? O que significa para Pedro não conseguir fazer algo que os outros conseguem? Como conversar sobre a medicação de tal forma que não se coloque como impasse? Ao ser questionado pelo terapeuta Pedro cogita a possibilidade de tomar a medicação.

Tiago: São 11, mas tipo assim, esse Viracept, eu tomo três de manhã, três à tarde, e três à noite. E o outro eu tomo às 9 né. Um comprimido, o Biovir né, que é o AZT misturado com outro, outro remédio, e à noite, eu 12 em 12 horas né, eu tomo, e o Bactrim também, que o médico, só que um dia sim eu tomo né, um dia não. Um dia sim, um dia não eu tomo Bactrim. Dois comprimidos grandes.

Marina: Mas se adapta, viu, eu, apesar que faz pouco tempo, eu descobri isso em junho, nós estamos, junho, eu comecei a tomar dia primeiro de julho, então foi julho, agosto, setembro. Estou no terceiro mês, né, quarto né, e eu estou bem. Estou bem. Eu tenho que esquecer a dorzinha de estômago, tenho que ter coragem...

Pedro: Eu, eu também. Graças a Deus eu tô, eu tô bem. Só com uma dor só no fígado, também, que o resto tá tudo bem (?), mas tá tudo bem (rindo).

Terapeuta: É, acho que uma questão que a gente fica preocupado, o Pedro, é assim: que, será que o Pedro tá falando que num vai querer mais tomar mais nenhum remédio....

Pedro: Se for aquele comprimido lá, eu num poder, num vou mais tomar não.

Terapeuta: Ah, se for um daqueles que você já tomou?

Pedro: É..

Terapeuta: Se for outro você toma, vai tentar?

Pedro: Se por um treco ali do lado, pelo amor de Deus, é fogo, Deus, Deus pode tá (?), do jeito que tá, né (rindo).

Terapeuta: Mas, o Pedro, mas se for de outro tipo você topa tentar?

Pedro: É, eu, num custa tentar, num custa né.

Terapeuta: Entendi. Assim ficou mais claro, Pedro.

Marina: Legal (Sessão 2, p. 11)

Após esta conversa Tiago inicia um novo momento na sessão em que serão discutidos outros cuidados na vida da pessoa portadora do HIV. A temática da medicação não é retomada nesta sessão.

Na parte final deste momento da conversa do grupo é possível observar como o terapeuta participa ativamente neste processo de construção de Pedro como alguém que toma a medicação. Este posicionamento do terapeuta busca ao mesmo tempo acolher as preocupações dos outros participantes, legitimando-as como uma forma de cuidado com Pedro, mas ao mesmo tempo, abrir a conversa sobre a medicação e o cuidado de si de forma a auxiliar Pedro na construção de alternativas possíveis para transformar a resposta dos outros participantes em uma resposta pessoal. É um jeito de conversar com Pedro que, considerando a preocupação do terapeuta, ao questioná-lo busca criar espaço para esta possibilidade, ao invés de simplesmente prescrever que ele deve tomar a medicação.

Entre os momentos 3 e 5, os sentidos sobre a medicação e o cuidado enfatizados por Marina e Tiago, especialmente, mostram como é possível viver bem com a medicação, enfrentando os efeitos colaterais. Os outros participantes parecem trazer para Pedro uma postura diferente sobre a medicação. Uma diferença que convida à mudança. Se no momento 2 da sessão, havia uma diferença sobre a perspectiva de cuidado, parece que nos momentos 3 e 5, se busca construir a possibilidade de que Pedro tanto siga as orientações médicas como tome a medicação. Na próxima sessão, estas relações, tanto de Pedro consigo próprio como com os outros participantes, terão um outro caráter, ampliando as possibilidades de entendimento sobre o que estaria ocorrendo na conversa grupal desta sessão.

A afirmação de um discurso do cuidado pessoal

Na terceira sessão do grupo, após os momentos iniciais da sessão, a temática da medicação surge novamente. Primeiro, no momento 4, Marina, ao discutir sua decisão de contar aos filhos sobre sua soropositividade, diz que se inspirou na força de Pedro, e gostaria de vê-lo tomar a medicação. Depois, ao longo do momento 5, Pedro é inúmeras vezes confrontado por Marina e Tiago sobre a importância dele tomar a medicação. A não adesão à medicação associada à condição física de Pedro parece trazer uma sensação de risco de vida e de urgência na tomada de decisões. O grupo parece mobilizado a fazer de Pedro alguém que toma remédio. Além disso, no contexto grupal, o reconhecimento de Pedro como alguém que quer se cuidar e busca ajuda no grupo parece fundamental para sua inclusão no grupo. Afinal, para quê ele procurou o grupo?

Nestas conversas, um discurso psicológico sobre si pautado pelo senso de ação pessoal, de controle e mudança parece fundamental no entendimento sobre o que cabe a cada um dos participantes no grupo, na relação consigo próprio e com os outros. Por outro lado, o remédio parece simbolizar o cuidado mínimo em relação a si próprio, uma ação necessária para quem acredita na vida com HIV. Este sentido de cuidado associado à adesão à medicação parece ser parte do discurso médico, tão central à construção das descrições sobre a soropositividade, e que permeia o contexto terapêutico no qual se desenvolvem estas conversas.

Este processo de negociação sobre a adesão à medicação não se dá de forma simples e tranqüila. Pedro não partilhava a mesma visão dos remédios que os outros participantes. Ele parece se centrar numa lógica dos prejuízos trazidos pela medicação. Esta diferença gera um desconforto e os outros participantes se sentem provocados a confrontá-lo e alertá-lo em diversas tentativas por eles consideradas de ajuda e apoio a Pedro.

Marina: E é isso aí. Tá vendo como você esqueceu e, daqui a pouco você vai querer tomar os remédios, devagarzinho. Você vai ver. Eu consegui. Tô conseguindo tomar bem. Você vai tomar também. Todo mundo toma. Nós temos gente tomando há dez anos, há cinco anos. Por que você não?

Pedro: Eu, eu, o que eu falo: "Eu, num importa, o que importa é os outros".

Marina: Não, mas as outras pessoas querem que você viva, ora.

Pedro: Eu, eu sou uma pessoa assim, eu falo "Eu acho que eu fazendo o bem para os outros, eu, eu já estou, pra mim eu já estou, eu estou satisfeito, já. Para mim está bom demais. (Sessão 3, p. 10)

Marina: (...) Mas, nossa, se você num tomar o remédio, numa próxima crise, como eu não sabia que eu tinha, eu num tinha nenhum sintoma, eu quase morri, Pedro (...) Se você não tomar o remédio você vai parecer criança birrenta. É, porque uma hora num vai dar. Aí a gente vai ficar sabendo que...

Pedro: Aí, eu tomo...

Marina: O Pedro...

Pedro: Aí, aí eu tomo mesmo...

Marina: Não, mas será que num pode ser tarde demais?

Pedro: Aí toma uns três, quatro duma vez e vai melhorando de novo. (Sessão 3, p. 11)

Por que estas conversas parecem um embate marcado pela confrontação direta? O que as falas de Pedro suscitam nos outros participantes? De um lado, parece que as falas de Pedro não são aceitas como justificativas coerentemente organizadas para não se tomar a medicação. Os argumentos de Pedro, aos olhos dos outros participantes, aparentemente trazem inúmeras contradições. Mais do que isso, há um misto de preocupação excessiva com o outro com solução demasiadamente simples para os problemas. Seu relato parece não trazer a consistência interna exigida para que sua descrição proporcione um senso de realidade e desperte confiança nos participantes. Há, assim, uma abertura na descrição de Pedro que convida a outras perguntas e exige novas descrições.

Por outro lado, a implicação de tais negociações para a identidade de Pedro é muito forte. A cada argumento apresentado emerge um contra-argumento de Pedro. Ao convite a uma nova descrição, outra descrição de Pedro se apresenta limitando as possibilidades de negociação. A construção de Pedro como alguém que toma remédio parece ameaçar outras descrições de si mesmo sustentadas por Pedro, tais como de alguém que se importa com os outros e que toma remédio apenas quando muito doente. Há uma rede de descrições de si que é articulada segundo as necessidades de cada momento conversacional. A mudança de uma descrição de si traz implicações para outras descrições sustentadas por Pedro em seus relacionamentos.

As falas de Marina trazem sempre um jogo entre o que ela viveu e o que imagina que Pedro pode viver. A partir do próprio exemplo, ela tenta chamar Pedro para que ocupe uma outra posição questionando e não legitimando as posições atuais de Pedro. Considerando os riscos de morte já vividos por Marina, sua forma de se colocar não permite uma multiplicidade de sentidos, mas exige a resposta da adesão à medicação. Talvez sua percepção do baixo peso e da fragilidade física de Pedro tenha contribuído para uma sensação de urgência na realização desta mudança e para o caráter enfático de suas colocações.

Neste momento, Pedro parece não compartilhar da visão dos outros participantes de que se toma remédio para não adoecer, evitando sofrimentos desnecessários. Ao contrário, para ele, tomar remédio está associado a algo que lhe causa desconforto. Ele tomaria a medicação se estivesse com algum sintoma ou problema grave. Parece que para ele o remédio é algo para curar o que ele sente e não prevenir algo que o médico ou os outros participantes acreditam que ocorrerá. A diferença de descrições entre os participantes talvez esteja associada à proximidade com este discurso biomédico, mais familiar a determinados segmentos sócio-culturais da população, especialmente os de maior escolaridade, como Marina.

Este verdadeiro embate entre os participantes continua no momento 6. Aqui porém, o tom da conversa passa da confrontação direta para a abertura e espera pelas decisões de Pedro. Ressurge a possibilidade de tomar a medicação.

Terapeuta: Você acha que pode acontecer (...) Você acha que isso pode acontecer?

Pedro: Pode acontecer. (...)

Terapeuta: Então, mas, é, eu vou acreditar no que você falou, porque você falou assim: contou pra gente que até pode acontecer, daqui uma, duas sessões ele vir contar pra gente que ele pensou no que a Marina falou, que ele pensou...

Pedro: Ah, eu penso todo dia.

Terapeuta: E daí ele pode tomar uma postura diferente. Acho que ao longo do trabalho a gente pode ir...

Pedro: Eu penso sim.

Terapeuta: ... acompanhando como é que tá, como é que tá esse processo né, como que você tá pensando, como é que estão as coisas indo né. Porque, normalmente a gente, vocês sabem, a gente bater a cabeça, querer colocar a coisa na cabeça do outro..

Pedro: não...

Terapeuta: ... num é assim que acontece. (Sessão 3, p. 18)

Contudo, Marina persiste em sua preocupação:

Marina: Eu vou ficar muito contente se eu souber que você, é, tá tomando. Se eu, o dia que você chegar aqui e falar assim...

Pedro: Num sei que...

Marina: "Oh pessoal, passei lá no médico..." Que você num tem que esperar o médico chamar, nem o próximo retorno, tem que ser com o seu coração. "Oh doutor, vamos começar tudo de novo". (Sessão 3, p. 18)

Neste momento, em uma fala entrecortada dirigida de diferentes formas a Pedro e aos outros participantes, o terapeuta busca acolher a possibilidade dele tomar a medicação, ressaltando contudo a necessidade de refletir sobre esta decisão e de respeitar os ritmos das pessoas aí envolvidas. Trata-se de uma tentativa de criar um espaço mais confortável a todos, legitimando as preocupações dos outros participantes, mas respeitando o espaço de Pedro. O terapeuta buscava assim, através deste convite, diminuir o debate entre os participantes, abrindo espaço para a construção de um diálogo. Contudo, Marina volta a ser enfática em seu desejo de que Pedro tome a medicação. É neste campo de abertura e fechamento que se desenvolve esta sessão. Após estas colocações inicia-se o que nessa análise estamos considerando um outro momento na sessão. A temática da medicação será retomada na sessão seguinte logo em seu início.

Nesta sessão, em todas as justificativas de Pedro, as negociações parecem ocorrer entre várias descrições de si próprio. Diferente da sessão 2, nestes momentos da sessão 3 o questionamento sobre as descrições de Pedro é direto e de confronto. O que Pedro não considerava claramente como um problema é construído no grupo como tal. O que se considerava como uma possibilidade – tomar medicação –, é construído no grupo como algo que exige uma mudança urgente.

Cuidados de si, cuidados para o grupo

A quarta sessão se inicia com uma conversa sobre cobrança entre os participantes por atitudes a serem tomadas, Pedro tomar a medicação e Marina contar para os filhos sobre sua soropositividade. Marina se coloca como não tendo contado aos filhos ainda, porém diz já saber de algumas mudanças de Pedro. Pela primeira vez, Pedro relata estar tomando a medicação.

Marina: Fala, a novidade uai, eu também vou te cobrar, que que é fala de cobrar? Os remédios.

Pedro: Os remédios...

Marina: Tá tomando, começou a tomar.

Pedro: Comecei ontem. (...)

Terapeuta: E o que que, até a semana passada você não tava tomando, e não queria tomar enquanto o médico não mandasse, e hoje você chega aqui falando que já tá tomando desde ontem, que que aconteceu?

Pedro: Aquele dia que eu saí daqui, eu fui lá e marquei [consulta] (...) fui lá, conversei com ele [o médico], ele falou, se você quer tomar os remédios de novo, eu vou passar, e aí ele passou.

Terapeuta: E você tomou essa decisão por que?

Pedro: Pra acabar com a cobrança dela aí. (...)

Terapeuta: E você, o que que você tá achando dessa, você falou assim, ah, ela me cobrou, eu peguei e fui lá (risos), o que que você tá achando de você tá tomando remédio, o que que você tá achando?

Pedro: O que eu tô achando, a Marina falou, o Tiago falou, duas nela, eu falei ainda, eu pensei, cheguei, fiquei aqui pensando e cheguei em casa e pensei, a pessoa tá sofrendo e pensando por mim, então, vou passar no médico e vou beber. (Sessão 4, p. 2)

Neste trecho podemos ver como Marina cobra que Pedro conte ao grupo sobre sua mudança. Ela já sabia de antemão sobre a decisão de Pedro, dado conversa que tiveram antes da sessão, e não espera que ele conte ao grupo.

Frente à colocação de Pedro, o terapeuta o questiona, não apenas como uma forma de saber sobre a decisão, mas também como uma forma de criar uma oportunidade para que ele se coloque, e traga para a relação com os outros participantes e com ele mesmo, uma narrativa na qual seu senso de ação pessoal, de possibilidade de transformar e mudar, esteja fortalecido.

Contudo, sua resposta coloca a cobrança de Marina como motivação para a mudança. Buscando não entender muito rápido, e não se prender ao sentido imediato daquela fala, o terapeuta busca questioná-lo sobre os sentidos dele tomar a medicação. Pedro conta como, após um processo de reflexão no grupo, bem como em sua casa, tomou sua decisão como uma forma de diminuir a preocupação e aliviar o sofrimento dos outros participantes do grupo.

Os outros participantes do grupo têm nesta descrição um lugar privilegiado, o de pessoas pelas quais vale a pena certos esforços. É importante ressaltar que sempre há a possibilidade de se abandonar o grupo frente a desentendimentos ou relações consideradas injustas e inadequadas. Contudo, não é isso o que acontece. Pedro permanece no grupo apesar das conversas da terceira sessão. De alguma forma, as interações entre eles parecem ser significadas por Pedro como momentos de acolhimento. Esta decisão de Pedro consistia uma forma de cuidar de si, mas ao mesmo tempo de cuidar do grupo.

Curiosamente, o que era motivo para não tomar medicação, a preocupação com os outros, se transforma em motivo para tomá-la. Considerando-se a multiplicidade de descrições que nos constitui, a descrição de Pedro que toma medicação significa mudança e permanência. Muda-se a descrição de Pedro que desistiu de tomar remédio, porém mantém-se a de Pedro que se importa com os outros.

É interessante notar também que Pedro decidiu tomar a medicação em um momento de conversa consigo próprio, fora do contexto grupal. Parece que as conversas iniciadas na presença dos outros participantes continuam, constituindo um recurso para os participantes em sua reflexão sobre suas vidas, para além do contexto grupal imediato.

Após esta decisão de Pedro, tomada após as conversas da segunda e terceira sessões, Pedro não deixa de tomar a medicação até a entrevista de seguimento. Ao longo das sessões, Pedro conversa sobre a medicação na sessão 6, falando do enfrentamento de alguns efeitos colaterais. A medicação, ao ser transformada em problema nas conversas grupais, cria a oportunidade para que Pedro experimente através das negociações no grupo, seu poder de mudança, de experimentar outras descrições na relação consigo mesmo e com os outros. A diferença e o conflito abriram espaço para a mudança, ou nas palavras de Gergen (1997), para a expansão dos domínios de suplementação.

Considerações Finais

Construindo um problema e uma mudança: como e para quem?

Através da análise destes momentos podemos ver como o problema e a mudança se constróem na relação entre as pessoas. Não tomar a medicação podia ser vivido por Pedro, em sua relação consigo mesmo, como parte de sua vida que não demandava maiores atenções, apenas esperar por uma possível decisão médica. No grupo, isto se transforma em um problema, algo que Pedro precisa mudar. Através destas conversas grupais, Pedro transforma isto em um problema para si, e então realiza novas ações, tentando solucionar o problema através de determinada mudança.

Nestas conversas, a construção do problema e da solução são parte de um único processo conversacional. Nas conversas, as pessoas negociam permanentemente os sentidos das situações que vivem, categorizando localmente determinadas situações como problema e outras como soluções. Dessa forma, problemas e soluções são parte de um mesmo processo de produção de sentidos sobre si próprio e o mundo.

O problema é aquilo que as pessoas que participam do sistema terapêutico, a partir de sua inserção em determinado contexto sócio-histórico, chamam de problema. Dado que tal inserção social é múltipla e diferenciada, pode haver desacordos quanto ao que é um problema.

O processo de negociar estes acordos implica na ampliação dos domínios de suplementação (Gergen, 1997), isto é, nas possibilidades de construção de novos sentidos. No contexto do grupo, tal ampliação se dá pelos discursos contrastantes através dos quais diferentes participantes dão sentido às suas vidas. Dessa forma, a fala de cada um dos participantes pode convidar o outro a novos entendimentos. Nesta análise da mudança de Pedro, os outros participantes trazem para ele a possibilidade de significar a situação que vivia como um problema promovendo então mudanças em Pedro. O mesmo ocorre com Marina, que diante das descrições de Tiago e Pedro, decide contar aos filhos sobre sua soropositividade.

Este processo de ampliação dos domínios de significação nem sempre se dá de forma partilhada e unidirecional em relação a determinada situação, como se a partir do diálogo todos os participantes construíssem um novo e único sentido sobre um mesmo tema, uma síntese que transforma descrições antes divergentes. Muitas vezes, no contexto grupal, tal ampliação se dá de forma complexa, com diferentes ritmos, focos e de forma não partilhada entre os participantes.

A análise empírica das conversas sobre a adesão à medicação e o autocuidado acaba por explicitar como é ampliada a possibilidade de significação para Pedro, e reafirmados os entendimentos de Marina e Tiago. Este processo de ampliação dos domínios de suplementação é marcado pela dinâmica interacional na sessão, pelos discursos sociais sobre o grupo e o problema e pela forma narrativa do problema. Tal processo se dá ainda na articulação do contexto conversacional imediato com o contexto discursivo mais amplo, tendo implicações identitárias seja na relação consigo próprio ou na relação com o outro.

Uma atenção aos contextos locais da conversa e seu desenvolvimento nos permite uma certa forma de entender como são negociados, a partir da fala de cada um dos participantes da conversa, determinados deveres e direitos para os mesmos na criação conjunta do contexto grupal. Assim, podemos ver como a fala de Pedro no momento 2 da sessão 2 tem, no contexto imediato, a função de concordar com Marina, e ao ser questionado por Marina ele tem o dever de se explicar. É a dinâmica interacional na construção dos lugares dos participantes no grupo que constrói espaços de ruptura e possibilitam a construção de outros sentidos.

Contudo, além das condições imediatas, da relação face a face entre os participantes, os discursos socialmente disponíveis a respeito do enfrentamento do HIV também possibilitam determinadas formas de negociação. O questionamento de Marina no momento 2 da sessão 2 parece ser pautado pelos discursos médicos e psicológicos sobre o enfrentamento do HIV, nos quais se valoriza a resposta medicamentosa através de uma ação pessoal como forma adequada de cuidado nos contextos de saúde. Temos assim, que a conversa entre os participantes sempre se dá na contextualização local dos discursos sociais, na articulação ativa dos contextos imediatos com os outros contextos da sociedade em que se vive.

Tal possibilidade de abertura também foi favorecida pela forma com a qual Pedro descrevia o fato de não estar tomando a medicação. Suas justificativas não se articulavam coerentemente a partir das expectativas geradas por tais discursos médico e psicológico. Pedro não se colocava como alguém suficientemente informado, que tinha tomado uma decisão "racional", legitimada ou ao menos consentida, por um médico. Ao contrário, em sua descrição, ele não tomava a medicação pelo desconforto dos efeitos colaterais, acreditava que não tomar a medicação o deixaria mais enfraquecido, e se colocava passivamente esperando pela ação de seu médico. Não havia assim uma narrativa progressiva na qual não tomar a medicação fosse resultado da superação de um sofrimento, de desafios e reflexões. Sua narrativa era insegura, com avanços e recuos, deixando inúmeras aberturas e, neste contexto, convidando os outros participantes a "co-construí-la" de uma forma, julgada por eles, mais consistente.

Esta redescrição de Pedro tem várias implicações identitárias, representando uma mudança em sua relação com os outros participantes do grupo. Na sessão 2, Pedro era uma diferença que o grupo buscava entender. Na sessão 3, as conversas com Pedro construíram um problema que necessitava ser resolvido. Agora com esta nova descrição na sessão 4, Pedro é mais um participante que busca se cuidar. Através desta descrição Pedro começa a fazer parte de uma comunidade na qual questões que envolvem a vida com HIV podem não apenas ser ditas mas expandidas, ampliadas através de novas ações num contínuo movimento de vida e de novas tentativas.

Ao mesmo tempo em que estas conversas possibilitaram uma mudança na relação de Pedro com os outros participantes, o mesmo ocorreu com os outros participantes. Marina constrói no grupo um certo lugar de cuidadora e passa a se sentir mais confiante consigo mesma para também realizar mudanças pelas quais procurou o grupo, tal como, contar aos seus filhos sobre sua soropositividade. Tiago tenta se posicionar como alguém que enfrenta muitas dificuldades mas também tem lições a ensinar.

Esta descrição sobre a construção do problema/mudança até aqui apresentada nos permite compreender os vários aspectos inter-relacionados do processo de ampliação dos domínios de suplementação para Pedro. Parece ser possível visualizar como os outros participantes contribuem na construção do problema/mudança. Contudo, os relacionamentos construídos no grupo a partir destas negociações sobre a adesão à medicação também nos fazem pensar sobre as relações de poder aí produzidas, ou seja, para quem se construiu um problema/mudança.

Uma certa leitura destas conversas grupais pode apontar para uma repetição permanente na qual não era possível construir outros sentidos possíveis para o fato de Pedro não tomar remédio. De um lado, o próprio recorte disto como um problema, sustentado na fala dos vários participantes, parece permanentemente dificultar a construção de outros sentidos para esta situação. Não há novos sentidos e interpretações: não tomar a medicação é um problema. Esta possibilidade de leitura inevitavelmente ressaltaria o papel da psicoterapia e da Psicologia em geral, como um instrumento de controle social, promovendo certas adaptações do indivíduo a uma norma padrão estabelecida por certos grupos sociais interessados em manter seus privilégios.

A construção social deste problema aponta para os limites dos sistemas culturais de significação em uma sociedade medicalizada e psicologizada como a nossa. Torna-se difícil em contextos profissionais no campo da saúde, como o grupo de apoio para portadores do HIV, não entender esta situação como um problema. Este impasse explicita as delimitações sócio-históricas dos sistemas de significação e conseqüentemente do grupo como uma prática discursiva.

Se pudermos entender os poderes e limites construídos a partir de tais delimitações sócio-históricas, como pensar suas implicações no contexto interpessoal? Quais os efeitos de tal relação para Pedro e os outros participantes? Qual o lugar desta mudança no contexto interpessoal do grupo? Quais os sentidos de poder aí construídos?

A partir de um foco nas relações face a face entre os participantes do grupo, podemos entender que Pedro não mudou pelo outro – se submetendo à versão hegemônica da não-adesão à medicação como um problema – mas, a partir do outro. O que era uma questão do outro é vivida como também sendo sua e deste lugar, no qual torna o discurso alheio um discurso próprio, Pedro toma sua decisão. Esta consistiria uma mudança decorrente das novas aprendizagens de Pedro com implicações para o conjunto de suas relações cotidianas. A julgar pelas outras questões trazidas por Pedro nas sessões seguintes, especialmente sobre seu casamento, um novo senso de ação foi possível após esta mudança em relação à adesão à medicação.

Entre estas formas de entender tal situação, ficamos com os questionamentos: Qual é o sentido de se decidir a fazer algo pelo outro ou a partir do outro? Que tipo de autonomia do indivíduo é que se procura? Que tipo de relação pode legitimar este tipo de decisão de Pedro? Até onde tomar medicação não pode ser legitimado? Se esta não fosse uma possibilidade para Pedro, tal mudança teria ocorrido a despeito dele? Se não tomar a medicação é uma descrição-problema hegemônica no contexto da atenção profissional em saúde no Brasil, quais as possibilidades daqueles que não compartilham desta descrição neste contexto grupal?

Esta discussão, mais que técnica, nos parece ética. Se, por um lado, parece fácil identificar que o grupo de alguma forma contribuiu para esta mudança de Pedro, por outro lado, qual o sentido de Pedro tomar a medicação? Uma resposta unívoca a estas questões é problematizada no referencial construcionista. A discussão ética sobre determinada mudança não deve nos levar a um embate em busca da afirmação de uma verdade e um valor final sobre o sentido desta mudança pois ela estará sujeita a outras recontextualizações com diferentes implicações éticas. É esta abertura do processo de produção de sentido que faz a reflexão sobre o processo terapêutico nunca se fechar, contemplando e abarcando novas possibilidades que dificultam a prescrição de modos de trabalhar em terapia e a significação unívoca de um resultado que se pretende terapêutico.

Assim, tomar remédio não é bom em si mesmo, mas dependente de um conjunto de discursos e práticas sociais. Se pensarmos que Pedro considerava a medicação como algo que poderia melhorar a vida das pessoas, mas que para ele trazia muito sofrimento, o fato de Pedro conseguir tomar a medicação pode ser compreendido como algo benéfico. Se, por outro lado, pensarmos que Pedro não considerava aquela descrição como uma fonte de problemas, nomeá-la como tal no grupo, era lhe trazer mais dificuldades e sofrimento.

Contudo, se retomarmos o lugar desta mudança específica no contexto das relações grupais, parece-nos que tomar remédio significava para Pedro e os outros participantes do grupo que Pedro era alguém que podia mudar, transformando o contexto em que vivia e superando as dificuldades por ele enfrentadas. Assim, apesar de se reconhecer o contexto social mais amplo que possibilita determinados sentidos, privilegia-se aqui a validade local dos mesmos na construção de determinadas relações dos participantes consigo próprios e com os outros, participantes do grupo ou da vida cotidiana dos mesmos.

Recebido em 23.08.2004

Primeira decisão editorial em 14.02.2005

Versão final em 09.03.2005

Aceito em 28.03.2005

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  • 1
    Este estudo é parte da Tese de Doutorado do primeiro autor, sob orientação da segunda autora, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, com apoio FAPESP/CNPq.
    2
    Endereço: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia e Educação, Avenida dos Bandeirantes, 3900, Campus da USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil 14090-910. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2005

    Histórico

    • Aceito
      28 Mar 2005
    • Revisado
      09 Mar 2005
    • Recebido
      23 Ago 2004
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