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Crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids e suas famílias: aspectos psicossociais e enfrentamento

Children and adolescents living with HIV/Aids and their families: psychosocial aspects and coping

Resumos

O estudo teve por objetivos: descrever aspectos sociodemográficos, médico-clínicos e da organização familiar de crianças e adolescentes soropositivos infectados pela transmissão vertical; descrever dificuldades e estressores percebidos pelos cuidadores sobre aspectos psicossociais e do tratamento para o HIV e analisar estratégias de enfrentamento utilizadas. Participaram 43 cuidadores primários, a maioria (N = 24) mães soropositivas; a idade variou de 18 a 68 anos. Os instrumentos incluíram entrevista semi-estruturada e a Escala Modos de Enfrentamento de Problemas (EMEP). Os resultados revelaram a presença de dificuldades em áreas como adesão ao tratamento, revelação do diagnóstico para a criança/adolescente e informação sobre o diagnóstico na escola. Quanto às estratégias de enfrentamento, houve predomínio de busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso e focalização no problema, segundo escores da EMEP. O estudo indica a necessidade das equipes de saúde se qualificarem para atendimento a demandas psicossociais, visando atenção integral e interdisciplinar a familiares e crianças/adolescentes vivendo com HIV/aids.

crianças e adolescentes vivendo com HIV/aids; transmissão vertical do HIV; cuidadores primários; família; enfrentamento


The objectives of this study were to describe socio-demographic and medical aspects of children and adolescents who acquired HIV infection during the prenatal period. It also intends to describe de organizational aspects of their families; to delineate difficulties and stressors perceived by caregivers based upon psychosocial and HIV-related issues, so that it became able to analyze coping strategies utilized, one of the main objectives of this paper. Forty-three primary caregivers took part in this research, most of them were mothers infected with HIV (24), between the ages of 18 and 68. The instruments used included a semi-structured interview and the Ways of Coping with Problems Scale (WCPS). The results revealed difficulties in areas such as adherence to treatment, disclosure of diagnosis to children/adolescents and providing of information about the diagnosis at school. With reference to the coping strategies, there was a predominance of search for religious practices/fantastical thoughts and problem focusing, according to the scores of the WCPS. The study corroborates the necessity for health care professionals to strive to sharpen their professional expertise to attend psychosocial demands, endeavoring to devote interdisciplinary attention to children and adolescents living with HIV/AIDS, as well as their family members.

children and adolescents living with HIV/AIDS; acquired HIV infection during prenatal period; primary caregivers; family; coping


Crianças e adolescentes vivendo com HIV/Aids e suas famílias: aspectos psicossociais e enfrentamento

Children and adolescents living with HIV/Aids and their families: psychosocial aspects and coping

Eliane Maria Fleury Seidl1 1 Endereço: Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Campus Darcy Ribeiro, Brasília, DF, Brasil 70910-900. E-mail: seidl@unb.br ; Walnicéia dos Santos Rossi; Keylla Furuhashi Viana; Ana Karenine F. de Meneses; Everson Meireles

Universidade de Brasília

RESUMO

O estudo teve por objetivos: descrever aspectos sociodemográficos, médico-clínicos e da organização familiar de crianças e adolescentes soropositivos infectados pela transmissão vertical; descrever dificuldades e estressores percebidos pelos cuidadores sobre aspectos psicossociais e do tratamento para o HIV e analisar estratégias de enfrentamento utilizadas. Participaram 43 cuidadores primários, a maioria (N = 24) mães soropositivas; a idade variou de 18 a 68 anos. Os instrumentos incluíram entrevista semi-estruturada e a Escala Modos de Enfrentamento de Problemas (EMEP). Os resultados revelaram a presença de dificuldades em áreas como adesão ao tratamento, revelação do diagnóstico para a criança/adolescente e informação sobre o diagnóstico na escola. Quanto às estratégias de enfrentamento, houve predomínio de busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso e focalização no problema, segundo escores da EMEP. O estudo indica a necessidade das equipes de saúde se qualificarem para atendimento a demandas psicossociais, visando atenção integral e interdisciplinar a familiares e crianças/adolescentes vivendo com HIV/aids.

Palavras-chave: crianças e adolescentes vivendo com HIV/aids; transmissão vertical do HIV; cuidadores primários; família; enfrentamento.

ABSTRACT

The objectives of this study were to describe socio-demographic and medical aspects of children and adolescents who acquired HIV infection during the prenatal period. It also intends to describe de organizational aspects of their families; to delineate difficulties and stressors perceived by caregivers based upon psychosocial and HIV-related issues, so that it became able to analyze coping strategies utilized, one of the main objectives of this paper. Forty-three primary caregivers took part in this research, most of them were mothers infected with HIV (24), between the ages of 18 and 68. The instruments used included a semi-structured interview and the Ways of Coping with Problems Scale (WCPS). The results revealed difficulties in areas such as adherence to treatment, disclosure of diagnosis to children/adolescents and providing of information about the diagnosis at school. With reference to the coping strategies, there was a predominance of search for religious practices/fantastical thoughts and problem focusing, according to the scores of the WCPS. The study corroborates the necessity for health care professionals to strive to sharpen their professional expertise to attend psychosocial demands, endeavoring to devote interdisciplinary attention to children and adolescents living with HIV/AIDS, as well as their family members.

Key words: children and adolescents living with HIV/AIDS; acquired HIV infection during prenatal period; primary caregivers; family; coping.

A modificação da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids), de agravo com alta letalidade para enfermidade crônica, tem repercussão no desenvolvimento físico e psicológico de crianças e adolescentes soropositivos, notadamente aqueles infectados pela transmissão vertical. Com o advento da terapia anti-retroviral e o acesso ao tratamento, estudos têm mostrado a melhoria da qualidade de vida das crianças HIV+, de modo que necessidades de natureza psicossocial passam a ter novo significado e relevância (Ledlie, 2001; Mialky, Vagnoni & Rutstein, 2001).

Antes do surgimento da terapia anti-retroviral combinada, a taxa de mortalidade por aids de crianças soropositivas era elevada, além da ocorrência freqüente de déficits no desenvolvimento psicomotor e neurocognitivo devido à ação do HIV sobre o sistema nervoso central. Com a disponibilidade de tratamento, observa-se a melhoria dos índices gerais de saúde e de desenvolvimento desses pacientes, com redução acentuada da ocorrência de internações e de infecções oportunistas (Brown & Lourie, 2000). Assim, os familiares, em especial os cuidadores primários, tendem a se deparar com novos desafios, tais como a revelação do diagnóstico, o início e a continuidade da escolarização, a adesão a um tratamento complexo e de longo prazo, a chegada da puberdade e o início da vida sexual (Antle, Wells, Goldie, De Matteo & King, 2001; Thorne & cols., 2002; Wiener, Vasquez & Battles, 2001). No processo de revelação do diagnóstico, por exemplo, há diversos aspectos que dificultam a tomada de decisão pelos cuidadores quanto ao momento oportuno de contar para a criança ou adolescente sobre a sua real condição de saúde. Pode-se citar o medo do estigma social, sentimentos de culpa ou vergonha acerca da transmissão vertical, perda de algum membro da família devido à aids, gravidade da patologia da criança, receio do impacto da notícia sobre o desenvolvimento sócio-emocional infantil (Gerson & cols., 2001; Instone, 2000).

A cronicidade da aids implica a adesão a um regime medicamentoso complexo e prolongado. Estudos demonstram que falhas na adesão aumentam o risco de incompleta supressão viral e de desenvolvimento de cepas virais resistentes aos medicamentos disponíveis (Baer & Roberts, 2002; Murphy & cols., 2003). Diante de situações difíceis de lidar, relativas ao tratamento e a aspectos do cotidiano, os cuidadores primários — muitos deles também soropositivos — adotam estratégias de enfrentamento diversas para o manejo de estressores, visando o bem-estar físico, psicológico e social das crianças/adolescentes (Klunklin & Harrigan, 2002; Rehm & Franck, 2000). Estudos realizados em países desenvolvidos apontam que crianças e adolescentes soropositivos possuem maior risco de apresentar problemas de ajustamento psicológico em função da diversidade de estressores, tais como a manutenção do segredo sobre o diagnóstico, alterações das rotinas de vida e a presença de perdas multigeracionais. Dificuldades em lidar com a necessidade diária de tomar medicamentos, sentimentos de raiva, frustração, solidão e baixa auto-estima também foram identificados em alguns estudos (Khoury & Kovacs, 2001). Soma-se a isto o fato de que muitas dessas crianças e suas famílias vivem em condições de pobreza, com acesso precário aos recursos médicos e sociais (Lewis, 2001).

Pesquisas revelam, por outro lado, que a adaptação parental à soropositividade pode ser um importante fator na determinação do ajustamento da criança vivendo com HIV/aids (Brown & Lourie, 2000). Pesquisadores têm observado que muitas famílias desenvolvem estratégias de enfrentamento voltadas para a normalização, manutenção da saúde, inserção social e melhoria da qualidade de vida da criança soropositiva (Bachanas & cols., 2001; Steele & Mayes, 2001).

Em relação ao Brasil, pouco se conhece sobre as dificuldades e os fatores adversos que estão afetando as crianças/adolescentes vivendo com HIV/aids e suas famílias, apesar de esforços para a sistematização de experiências relativas ao atendimento institucional a essa clientela, realizadas por organizações da sociedade civil, muitas delas com apoio governamental e de agências internacionais (USAID, 2004). A experiência desenvolvida no atendimento a pessoas adultas soropositivas, desde 1996, em atividade de extensão denominada Projeto Com-Vivência (Ações Integradas de Estudos e Atendimento a Pessoas Portadoras do HIV/aids e Familiares), no Hospital Universitário de Brasília, revela o crescimento da demanda por atendimento psicológico a familiares e a crianças/adolescentes soropositivos, em função do aumento do número dos que estão chegando à segunda infância e à pré-adolescência (Seidl, 2001). As principais demandas dos familiares aos profissionais de psicologia têm sido: como lidar com a curiosidade sobre o diagnóstico, quando e como revelar a soropositividade para a criança, dificuldades de adesão ao tratamento, dúvidas e preocupações relacionadas à escolarização e à chegada da puberdade. Essas evidências têm sido compartilhadas por médicos pediatras e infectologistas que apontam novos e crescentes desafios para as equipes que atendem a essa clientela infanto-juvenil.

No Brasil, dados epidemiológicos indicavam a existência de 8900 casos de aids por transmissão vertical, até dezembro de 2003 (Brasil, 2003). No Distrito Federal, informações apontavam a existência, em registro ativo, de aproximadamente 120 casos de aids e de portadores do HIV, em pessoas com até 19 anos de idade, a quase totalidade infectada por transmissão vertical até dezembro de 2003 (Secretaria de Saúde do Distrito Federal, 2003).

O presente estudo teve como objetivos: (1) descrever aspectos sociodemográficos, médico-clínicos e da organização familiar de crianças e adolescentes soropositivos infectados pela transmissão vertical, a partir de relatos verbais de seus cuidadores primários; (2) descrever dificuldades e estressores percebidos pelos cuidadores sobre aspectos psicossociais e do tratamento para o HIV de crianças/adolescentes soropositivos; (3) identificar e analisar estratégias de enfrentamento utilizadas pelos cuidadores para lidar com estressores relativos à soropositividade da criança/adolescente. A relevância da pesquisa justifica-se em face da necessidade de se conhecer melhor os aspectos psicológicos e sociais que afetam esse segmento de pessoas soropositivas, para a estruturação de modelo de atendimento psicossocial direcionado a cuidadores/familiares e crianças/adolescentes, visando a atenção integral e interdisciplinar em HIV/aids.

Método

Participantes

Participaram do estudo 43 cuidadores de crianças/adolescentes soropositivos em acompanhamento pediátrico em dois serviços de referência para atendimento de HIV/aids na rede pública de saúde. Esse número, igual ao número de crianças e adolescentes pesquisados (N = 43), representava cerca de 30% do total de casos de crianças/adolescentes infectados por transmissão vertical em tratamento para HIV/aids no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Saúde, quando a coleta de dados foi realizada (Secretaria de Saúde do Distrito Federal, 2003).

A preferência pela inclusão do cuidador primário na amostra decorreu da importância de que pessoa significativa do contexto sócio-familiar, com participação efetiva no cotidiano e no tratamento, relatasse os temas focalizados e informasse sobre a criança/adolescente. A caracterização sociodemográfica dos participantes está apresentada no tópico Resultados.

Instrumentos

Questionário sociodemográfico, sobre condição de saúde e psicossocial

Foi elaborado um roteiro de entrevista semi-estruturado, previamente testado para adequação quanto à linguagem, seqüência e clareza das questões, abordando os seguintes aspectos: (1) sociodemográficos: dados de identificação do cuidador e da criança/adolescente; organização familiar; situação empregatícia do cuidador; condições da moradia; acesso a benefícios sociais; renda familiar e presença de soropositividade na família; (2) condição de saúde da criança/adolescente: tempo do diagnóstico; realização da prevenção da transmissão vertical; dificuldades percebidas pelo cuidador no desenvolvimento da criança/adolescente; internações anteriores; doenças oportunistas atuais e anteriores; uso de terapêutica anti-retroviral (ARV); avaliação do cuidador quanto à adesão ao tratamento da criança/adolescente e manejo de dificuldades de adesão; contagem de linfócitos T CD 4 e da carga-viral (dados obtidos do prontuário do paciente referentes aos exames mais recentes); (3) psicossociais: escolarização da criança/adolescente; revelação do diagnóstico; socialização e restrição a atividades de lazer; expectativas e preocupações do cuidador quanto ao futuro da criança/adolescente; suporte social percebido; demandas de atendimento identificadas pelo cuidador relativas à soropositividade da criança/adolescente.

Escala Modos de Enfrentamento de Problemas (EMEP)

Adotou-se a definição de enfrentamento de Folkman, Lazarus, Gruen e De Longis (1986) "respostas cognitivas e comportamentais voltadas para o manejo de exigências internas e/ou externas específicas, que são avaliadas como sobrecarga aos recursos pessoais do indivíduo" (p. 572). Foi utilizada a Escala Modos de Enfrentamento de Problemas (Seidl, Tróccoli & Zannon, 2001), que contém 45 itens, distribuídos em quatro fatores: Fator 1 – enfrentamento focalizado no problema (18 itens, alpha de Cronbach = 0,84), estratégias comportamentais que representam aproximação em relação ao estressor, voltadas para o seu manejo ou solução, bem como estratégias cognitivas direcionadas para a reavaliação e resignificação do problema; Fator 2 – enfrentamento focalizado na emoção (15 itens, alpha de Cronbach = 0,81), estratégias cognitivas e comportamentais de esquiva ou negação, expressão de emoções negativas, autoculpabilização e/ou culpabilização de outros, com função paliativa ou de afastamento do problema; Fator 3 – busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso (sete itens, alpha de Cronbach = 0,74), definido como adoção de práticas religiosas ou pensamentos de conteúdo fantasioso como modos de enfrentamento do estressor; Fator 4 – busca de suporte social (cinco itens, alpha de Cronbach = 0,70), definido como procura de apoio social, emocional ou instrumental, para lidar com o problema. As respostas foram dadas em escala Likert de cinco pontos (1 = nunca faço isso; 5 = faço isso sempre). Os escores, variando de 1 a 5, foram obtidos mediante média aritmética, e os mais altos foram indicativos de maior utilização de determinada estratégia de enfrentamento. No presente estudo, solicitou-se aos cuidadores que respondessem a EMEP com base nas estratégias de enfrentamento que estavam utilizando para lidar com a soropositividade da criança/adolescente. Os escores foram computados com base na estrutura fatorial encontrada por Seidl e cols. (2001). Indicadores de consistência interna com a amostra desse estudo foram investigados: enfrentamento focalizado no problema (alpha = 0,86); enfrentamento focalizado na emoção (alpha = 0,83); busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso (alpha = 0,70) e busca de suporte social (alpha = 0,60). Observaram-se índices satisfatórios, semelhantes ao estudo original, exceto quanto ao fator busca de suporte social que apresentou alpha de Cronbach relativamente baixo.

Procedimentos

Conforme os preceitos éticos que regem as pesquisas com seres humanos, foi apresentado aos participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, explicitando os objetivos do estudo e convidando-os a participar. O sigilo quanto às informações prestadas e a voluntariedade foram garantidos. Crianças e adolescentes HIV+ em acompanhamento na pediatria costumam ter consulta mensal nas unidades de saúde. A estratégia de coleta de dados consistiu da realização das entrevistas prioritariamente nos dias de consulta do paciente infantil, ou em outro momento previamente definido de conveniência do cuidador.

Duplas de pesquisadores participaram da coleta: um responsável pela condução da entrevista e outro pelo registro dos relatos verbais. Após a realização da entrevista, o cuidador foi instruído sobre o preenchimento da Escala Modos de Enfrentamento de Problemas, cuja resposta ao instrumento foi auto-administrada e ocorreu na presença do pesquisador. O procedimento individual de coleta de dados durou cerca de 60 minutos. As crianças e adolescentes não estiveram presentes na sala onde ocorreu a entrevista. Os prontuários dos pacientes foram consultados para obtenção dos resultados dos últimos exames de contagem dos linfócitos CD4 e da carga viral

Estudos dessa natureza permitem, muitas vezes, identificar demandas de atendimento durante o processo de coleta de dados. Foram disponibilizadas informações e orientações, bem como realizados encaminhamentos para atendimento psicossocial do cuidador e/ou da criança/adolescente, quando necessário. Os participantes ficaram com uma referência institucional do pesquisador principal (nome do serviço, endereço e telefone).

Análise de dados

Trata-se de um estudo descritivo, de corte transversal. Após as análises estatísticas de freqüência, medidas de dispersão e tendência central, foram realizados testes bivariados entre escores da EMEP e variáveis relativas à caracterização sociodemográfica e clínica dos cuidadores. O pacote estatístico SPSS (Statistical Package for Social Sciences), versão Windows 11.5, foi utilizado na análise quantitativa de dados. No que se refere à análise das questões abertas, os registros sobre os relatos verbais foram avaliados de modo independente por três juízes, pesquisadores do estudo, que submeteram os temas, categorias e freqüência identificados a testes de concordância (mínimo de 90%).

Resultados

Descrição sociodemográfica dos cuidadores

A maioria (n = 36) era do sexo feminino. Mais da metade (n = 24) da amostra foi composta de mães soropositivas. Quanto à situação conjugal dos participantes, a maior parte vivia com esposo/a ou companheiro/a (n = 24). A idade dos cuidadores apresentou grande variabilidade, entre 18 e 68 anos (M = 36,7; DP = 10,3).

No que se refere à escolaridade, houve predomínio do ensino fundamental incompleto (n = 14) e completo (n = 9). Prevaleceram níveis baixos de renda familiar: 30 cuidadores informaram renda de até três salários-mínimos. Com relação à situação empregatícia, observou-se que quase a metade dos cuidadores estava com atividade laborativa: 11 cuidadores possuíam emprego fixo, a maioria com direitos trabalhistas, e 10 eram trabalhadores autônomos regulares ou eventuais. A Tabela 1 resume as características sociodemográficas dos cuidadores.

As condições habitacionais das famílias eram relativamente satisfatórias para a maioria da amostra: 25 participantes relataram morar em casa própria, 11 em casa alugada e seis moravam junto com outras famílias, em espaços cedidos ou emprestados. A quase totalidade dessas habitações era de alvenaria, 34 delas com piso e cinco sem piso; duas famílias habitavam casas de madeira. A existência de saneamento básico (água e esgoto) foi referida por 31 cuidadores e sete informaram a existência apenas de água.

Dentre os 43 cuidadores, 40 informaram não participar ou se beneficiar de ações de organizações da sociedade civil do DF na área do HIV/aids.

Aspectos sociodemográficos e médico-clínicos das crianças e adolescentes

Vinte e cinco crianças/adolescentes eram do sexo masculino. A idade variou de 3 a 14 anos (M = 7,2; DP = 2,8). Em 29 casos, as crianças/adolescentes sempre viveram no mesmo contexto familiar, enquanto que 14 deles viveram em outras organizações familiares. A mudança deveu-se ao falecimento de um ou dois dos genitores, assim como à ausência de condições financeiras, de saúde e/ou psicológicas dos pais biológicos para prover os cuidados à criança/adolescente.

Sobre a prevenção da transmissão vertical, a maioria (n = 31) informou que esta não foi realizada porque não havia conhecimento do diagnóstico de soropositividade da mãe nos períodos pré e peri-natal; dois cuidadores disseram que o protocolo foi realizado. A descoberta do diagnóstico de soropositividade ocorreu quando as crianças tinham, em média, 2,8 anos de idade, em geral devido ao adoecimento da própria criança, o que levou a hipótese de infecção pelo HIV. Para grande parte dos pacientes infantis (n = 30), o acompanhamento médico e o tratamento para HIV/aids foram iniciados em torno dos 3 anos de idade.

Quanto às internações decorrentes de problemas de saúde e/ou infecções oportunistas, indicativos de debilidade da condição imunológica, 16 crianças tinham sido internadas uma vez e 20 delas estiveram hospitalizadas duas vezes ou mais. A grande maioria das crianças/adolescentes (n = 39) estava em uso de medicação anti-retroviral (ARV), sendo que o tempo de utilização desses medicamentos variou de menos de um ano a 10 anos (M = 4,0; DP = 2,15). Considerando os que estavam em uso de ARV, 34 cuidadores informaram que o tratamento com esses medicamentos nunca tinha sido interrompido e três admitiram que o tratamento foi interrompido por conta própria, pelo menos uma vez. Os motivos relatados para a interrupção foram dificuldades do próprio cuidador (depressão, recusa do cuidador em prover a medicação à criança).

Os indicadores referentes à condição imunológica mostraram que a contagem de linfócitos T CD4 variou de 4 a 1390 (M = 538,10; DP = 413,34; Mdn = 502,50). Constatou-se que 10 crianças estavam com CD4 abaixo de 200, indicativos de maior debilidade da condição imunológica. Quanto à contagem da carga viral plasmática, esta variou de 658 a 430.000 cópias (M = 81.952; DP = 121.410; Mdn = 17.451), expressando a grande variabilidade desse índice no conjunto dos participantes e a anormalidade dessa distribuição, achado que era esperado tendo em vista as características do indicador. A boa condição imunológica de grande parte da amostra — expressa pela contagem dos linfócitos T CD4 ao lado de níveis baixos da carga viral plasmática —, podem ser atribuídos à eficácia do tratamento anti-retroviral e à baixa freqüência de problemas relevantes de adesão relatados pela maioria dos participantes.

Percepção dos cuidadores sobre dificuldades no desenvolvimento

A percepção de problemas atuais no desenvolvimento pelos cuidadores indicou que a maioria da amostra (n = 25) não relatou dificuldade ou atraso no desenvolvimento psicomotor, cognitivo, afetivo-emocional e social das crianças/adolescentes soropositivos. Dificuldades cognitivas – descritas como dificuldades de aprendizagem, com prejuízo da atenção, concentração, com repercussão negativa no desempenho escolar – foram referidas por quatro cuidadores. Quanto à esfera motora, dois casos foram relatados, categorizados como problemas diversos de coordenação motora e de prejuízo da locomoção. Foram mencionadas ainda dificuldades de fala (indicativas de disartria) em duas crianças e dificuldades múltiplas em quatro crianças. Na esfera afetiva-emocional, um caso foi incluído nessa categoria, pelo conjunto de informações descritas pelo cuidador sugestivas de dificuldades relevantes apresentadas pela criança nessa área. A Tabela 2 sintetiza algumas informações sociodemográficas e médico-clínicas sobre as crianças e adolescentes.

Escolarização e revelação do diagnóstico na escola

Vinte e nove crianças encontravam-se matriculadas em instituições da rede particular e privada de ensino: cinco delas freqüentavam pré-escola e 24 cursavam o ensino fundamental. Quatorze crianças não haviam iniciado a escolarização, todas com idade inferior a 6 anos, exceto um caso. Esse achado parece decorrer da falta de opções de acesso à pré-escola na rede pública de ensino, que atinge grande parte das crianças oriundas de famílias de baixa renda do Distrito Federal.

Das 29 crianças que iniciaram a vida escolar, o desempenho foi descrito como bom por 16 cuidadores, os quais referiram facilidades de aprendizagem, interesse e rendimento satisfatório da criança nas atividades escolares. Para nove crianças o desempenho foi descrito como regular e três cuidadores assinalaram que o desempenho escolar das crianças era ruim, exemplificado com informações sobre defasagem idade-série, histórico de repetência ou o fato da criança ainda não estar alfabetizada. A comparação da idade cronológica da criança em relação à série que estava cursando levou os pesquisadores a analisar a existência de defasagem idade-série nas crianças que tinham iniciado a escolarização, com base no critério de tempo superior a dois anos de atraso em relação à idade esperada para freqüência em determinada série. Verificou-se a presença de seis casos com defasagem, a partir desse critério estabelecido. Esses problemas de desempenho podem ser atribuídos tanto a dificuldades de aprendizagem da própria criança como à precária qualidade do ensino, aspecto freqüente nas escolas brasileiras, em especial as da rede pública, onde a quase totalidade da amostra estava matriculada.

Das 29 crianças matriculadas em estabelecimentos de ensino, houve revelação do diagnóstico de soropositividade na escola em 11 casos. Entre os motivos apresentados pelos cuidadores para realizarem a revelação foi mencionada a necessidade de justificar as faltas da criança na escola (em função de internações, idas ao médico etc) e de obter ajuda para a administração da medicação durante o período escolar. Nos casos de não informação sobre o diagnóstico, o medo do preconceito e da quebra do sigilo por pessoas da comunidade escolar foram razões citadas para a não revelação da soropositividade da criança/adolescente. Constataram-se ainda dúvidas e inquietações de alguns cuidadores pelo fato de não terem revelado o diagnóstico para a direção e/ou professores, receosos de estarem infringindo aspectos éticos ou regras relativas à obrigatoriedade desse tipo de informação na escola.

Por outro lado, dentre os que informaram o diagnóstico (n = 11), não houve menção a reações de preconceito e/ou discriminação, exceto em dois casos, o que levou essas famílias a retirar a criança da escola. Em ambos os casos, pareceu ter havido precipitação dos cuidadores, que se devidamente orientados para o manejo das dificuldades, poderiam ter solucionado os problemas identificados.

Adesão ao tratamento

Do total de casos em uso de terapia anti-retroviral (n = 39), 28 cuidadores não relataram problemas ou dificuldadoes na administração dos medicamentos, não apresentando queixas sobre o comportamento de adesão da criança/adolescente ao tratamento. Nos 11 casos com algum problema de adesão, quatro categorias de dificuldades foram identificadas a partir dos relatos verbais dos cuidadores (Tabela 3).

O manejo dessas dificuldades foi investigado e as estratégias mais freqüentes utilizadas foram: associação da medicação a alimentos de preferência da criança como doces, mel e refrigerantes; estratégias para convencimento sobre a necessidade de uso de medicação (sem necessariamente explicitar a enfermidade real); administração sob controle e/ou supervisão direta do cuidador nos casos das crianças que estavam com maior autonomia.

Segundo a percepção dos cuidadores, a maioria (n = 30) avaliou a adesão da criança/adolescente como muito boa e nove consideraram a adesão razoável, achado coerente com os relatos anteriores sobre as dificuldades de adesão apresentadas.

Socialização e restrição de atividades sociais

Entre os cuidadores entrevistados apenas três não souberam enumerar a realização de atividades distrativas e prazerosas pelas crianças. A maioria (n = 40) dos cuidadores apontou que as crianças participavam de atividades individuais e em grupo, tendo oportunidade de desfrutar de experiências de socialização com os familiares e com seus pares. Identificou-se, por outro lado, relatos referentes à restrição de atividades (n = 15) que pudessem facilitar a aquisição de doenças oportunistas (exposição a ambientes como piscina, chuva, frio, sereno) ou resultar em danos físicos à criança (andar de bicicleta, subir em árvore, manuseio de objetos cortantes como tesoura). Foi verificada, em alguns casos, a necessidade de orientação aos cuidadores, visando à modificação de condutas de restrição de atividades e/ou excesso de cuidado/proteção motivadas por crenças irracionais sobre as formas de infecção do HIV (contaminação de terceiros apenas pelo contato da pele com o sangue da criança, por exemplo).

Conhecimento do diagnóstico pela criança/adolescente

Os relatos indicaram que 13 crianças/adolescentes sabiam sobre seu diagnóstico, e suas idades variaram entre 5 e 12 anos. As que não tinham conhecimento, segundo os cuidadores, foram maioria (n = 25), com idades entre 6 e 14 anos. Considerou-se que essa questão não se aplicava a cinco crianças com idade inferior a 5 anos, dada a sua pouca idade.

Em relação aos motivos para a revelação do diagnóstico (n = 13), sete crianças souberam após a morte ou adoecimento de um dos genitores ou de ambos. Em três casos a revelação foi feita em função da convivência com outras pessoas soropositivas, quando viviam em instituições como abrigos. Quanto à pessoa que informou, a revelação foi feita, na maioria dos casos, pelo próprio cuidador. Em quatro casos, a informação foi dada por um profissional de saúde, por solicitação do cuidador ou diante de questionamentos da própria criança. No que se refere às reações emocionais apresentadas após a revelação do diagnóstico, os cuidadores mencionaram a presença de sentimentos de tristeza, isolamento e silêncio, quando a criança não fazia qualquer pergunta sobre o assunto. Alguns cuidadores informaram que a criança reagiu de modo tranqüilo, atribuído ao fato da mesma, na época da revelação, não ter condições de compreender a gravidade da doença.

Quando perguntado sobre as vantagens da criança já ter conhecimento sobre seu próprio diagnóstico, 10 desses cuidadores apontaram aspectos positivos, como esta adotar postura mais ativa quanto ao auto-cuidado e ao tratamento. Quatro cuidadores apontaram desvantagens na revelação, justificadas pelo medo de que os pacientes informassem sobre o HIV/aids para outras pessoas e, em conseqüência, pudessem ser vítimas de preconceito e rejeição.

Quanto aos motivos para o fato da criança/adolescente ainda não ter sido informada sobre o diagnóstico (n = 25), 12 cuidadores alegaram a pouca idade e, em conseqüência, a imaturidade cognitiva e emocional da criança para compreender a doença. Outros seis cuidadores expressaram receio da reação emocional negativa do paciente frente à revelação. Para cinco cuidadores, o diagnóstico não foi revelado por falta de questionamento do paciente sobre a doença ou o tratamento, entendido pelo cuidador como falta de curiosidade da criança. Vários cuidadores verbalizaram, por outro lado, que não se sentiam preparados para falar sobre o assunto com a criança/adolescente.

Quanto às expectativas sobre a revelação do diagnóstico no futuro, foram mencionadas vantagens relativas à maior participação do paciente no tratamento e no auto-cuidado, maior facilidade para lidar com seu problema de saúde, além de melhor compreensão sobre sua própria condição de saúde. Em relação às desvantagens, 10 cuidadores manifestaram receio de que a criança revelasse a informação para outras pessoas, e tivesse reações negativas frente à doença, como depressão, revolta, culpabilização do cuidador, e que sofressem alguma forma de preconceito.

Quando questionados sobre como planejavam revelar o diagnóstico, nove deles relataram que pretendiam buscar ajuda profissional de médicos e psicólogos, enquanto que para cinco cuidadores a melhor estratégia seria fornecer informações a fim de sanar ao máximo as dúvidas dos pacientes; oito não faziam planos para revelar a curto prazo. De forma geral, a tomada de decisão quanto à revelação parecia depender da maior capacidade de entendimento e compreensão por parte do paciente, da necessidade de auto-cuidado e do cuidado com os futuros parceiros sexuais.

Apoio social

No que se refere ao apoio social, este foi descrito como sendo proveniente de três fontes principais: familiares ou outras pessoas significativas da rede social, como amigos e vizinhos; profissionais ou voluntários envolvidos no oferecimento de cuidados à criança; e religião, que incluiu a menção a membros da comunidade religiosa e até a entes divinos como fontes de apoio. A maioria dos cuidadores (n = 33) apontou que está satisfeita com o apoio social recebido, em especial o emocional, sendo menos freqüente o relato de apoio instrumental, que abrange auxílio financeiro e ajuda em aspectos operacionais e práticos do cotidiano. Cinco cuidadores mencionaram não receber nenhum tipo de apoio e estarem insatisfeitos com essa situação. No entanto, mesmo entre os que informaram satisfação com o apoio disponível, verificou-se que havia demanda de recebimento de outras modalidades de apoio, a saber: atendimento psicológico e de outros profissionais da área de saúde, assistência socioeconômica, apoio de organizações da sociedade civil voltadas para auxílio à população soropositiva.

Expectativas e preocupações quanto ao futuro

Em relação às expectativas quanto ao futuro da criança/adolescente, a maior parte (N = 18) manifestou uma perspectiva normalizante e otimista, com esperança de que a criança/adolescente cresça e se desenvolva, desfrutando de qualidade de vida. Quatorze cuidadores expressaram expectativa de que o avanço da ciência e da tecnologia resultasse em descoberta da cura da doença e de uma vacina. Dois deles manifestaram expectativas de que entidades divinas favorecessem esse processo no futuro. Cinco cuidadores afirmaram possuir expectativas pessimistas quanto ao futuro, relatando medo da própria morte ou da criança, além de receio de preconceito e de exclusão social. Quatro cuidadores assinalaram ausência de expectativas futuras, dizendo focalizar-se apenas no momento presente.

Entre as preocupações associadas ao futuro das crianças, foram mencionadas: preocupações sobre o desenvolvimento, inclusive sobre o início das atividades sexuais, além de preocupações concernentes à própria doença, ao tratamento, à possibilidade de ocorrência de situações de preconceito e à ausência de rede de apoio social.

Estratégias de enfrentamento

Os escores da EMEP indicaram a variabilidade das respostas de enfrentamento emitidas pelos cuidadores. Os resultados mostraram que a modalidade de enfrentamento mais usada foi busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso (M = 3,83; DP = 0,74; Mdn = 3,86; amplitude = 1,14 – 5,0), seguida de enfrentamento focalizado no problema (M = 3,74; DP = 0,70; Mdn = 3,90; amplitude = 1,50 – 4,78) e busca de suporte social (M = 3,12; DP = 0,72; Mdn = 3,20; amplitude = 1,20 – 4,60). Estratégias focalizadas na emoção foram relatadas em menor freqüência no conjunto da amostra estudada, evidenciadas pela média, mediana e amplitude mais baixos (M = 2,18; DP = 0,72; Mdn = 2,0; amplitude = 1,0 – 3,80).

Coeficientes de correlação de Pearson mostraram, ainda, a presença de associação positiva significativa entre enfrentamento no problema e busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso (r = 0,63; p < 0,001) e de enfrentamento no problema e busca de suporte social (r = 0,49; p < 0,001), indícios do uso complementar dessas modalidades de enfrentamento pelos participantes. Não se observou associação significativa entre as demais modalidades de enfrentamento.

Investigou-se a presença de diferenças nas médias dos escores das estratégias de enfrentamento, mediante análises pelo teste t de Student. Os resultados (Tabela 4) não indicaram diferenças significativas entre os cuidadores segundo o sexo, escolaridade, situação conjugal (vive só e vive com parceiro/a) e tipo de cuidador (mãe/pai soropositivo e outros cuidadores) em três modalidades de enfrentamento. Em relação à busca de suporte social, cuidadores com mais anos de estudo tiveram média significativamente mais alta, sugerindo maior utilização dessa modalidade de enfrentamento. Não se observou diferença nas médias da variável busca de suporte social quanto aos outros aspectos investigados.

A investigação dos escores oriundos de itens que avaliavam a presença de emoções negativas, inseridos no fator enfrentamento focalizado na emoção da EMEP mostrou, no entanto, que mães/pais soropositivos apresentaram médias significativamente mais altas (M = 2,8; DP = 1,06) no subfator auto-culpabilização, em comparação com os demais cuidadores (M = 1,8; DP = 0,66), alcançando significância estatística (t = 3,60; p = 0,001). Essa análise específica foi realizada em função de achados referentes à presença freqüente de sentimentos de culpa relatados por genitores soropositivos, em especial as mães, devido à transmissão do HIV para seus filhos.

Discussão

Corroborando achados de pesquisas realizadas em outros contextos socioculturais (Ledlie, 2001; Mialky & cols., 2001), o estudo desvendou questões psicossociais e dificuldades que afetam crianças e adolescentes soropositivos e suas famílias, indicando a importância de que estas sejam identificadas e valorizadas pelas equipes de saúde, em uma perspectiva de atenção integral e interdisciplinar.

A heterogeneidade da amostra no que tange aos graus de parentesco foi evidenciada, resultado que era esperado devido à diversidade de vínculos sócio-familiares que caracterizam os cuidadores primários de crianças e jovens soropositivos. No entanto, a maior freqüência de mães biológicas entre os cuidadores da amostra pode ser considerado reflexo da política pública que permite o acesso universal ao tratamento anti-retroviral, propiciando melhor qualidade de vida e de saúde aos cidadãos brasileiros vivendo com HIV/aids. Assim, muitas mães soropositivas têm desempenhado seu papel como cuidadoras primárias, participando do processo de desenvolvimento de seus filhos. As boas condições de saúde e de desenvolvimento das crianças e adolescentes também são frutos dessa política pública: a maioria utilizava medicação anti-retroviral e apresentava condição imunológica satisfatória, usufruindo do convívio com seus pares e familiares.

Ao lado desses bons indicadores observou-se, no entanto, que cerca de um quarto das crianças/adolescentes estava com baixa capacidade imunológica, apresentando níveis de linfócitos TCD4 inferior a 200 células/ml, com grande vulnerabilidade e possibilidade do agravamento das condições de saúde. Ademais, verificou-se 11 casos com presença de indicadores sugestivos de algum nível de atraso no desenvolvimento. Déficits ao longo do desenvolvimento, associados a encefalopatias progressivas pela ação do HIV sobre o sistema nervoso central, com prevalências variando de 13 a 23%, têm sido citados na literatura (Rehm & Franck, 2000). Os resultados do presente estudo reforçam a importância da constituição de equipes interdisciplinares, que estejam atentas à presença de atraso no desenvolvimento e preparadas para uma avaliação multidimensional da criança HIV+, com o intuito de diagnosticar precocemente problemas existentes e intervir de modo apropriado e oportuno (Brown & Lourie, 2000).

No que concerne ao número elevado de crianças que já haviam sido internadas, este pareceu ser oriundo do contexto de descoberta do diagnóstico de infecção pelo HIV em crianças infectadas pela transmissão vertical, que muitas vezes se dá pelo aparecimento de quadros clínicos associados à aids, em etapas anteriores do desenvolvimento. Uma vez iniciado o tratamento e a terapia anti-retroviral, a freqüência de doenças oportunistas e de internações teve redução importante na maioria dos casos do estudo, conforme informação dos cuidadores.

Quanto à escolarização, vários aspectos positivos foram evidenciados. Destaca-se a inclusão das crianças e jovens soropositivos em escolas regulares, a maioria com bom desempenho acadêmico, além da freqüência quase nula de relatos sobre reações de preconceito e discriminação quando a revelação do diagnóstico tinha ocorrido no estabelecimento escolar. Esses achados permitem supor a ocorrência de mudanças socioculturais em setores da sociedade brasileira, com tendência de redução de atitudes preconceituosas em relação ao HIV/aids.

Constatou-se, no entanto, que o medo do preconceito tem levado os cuidadores, na maioria dos casos, a optar pelo segredo sobre o diagnóstico na escola. Este achado remete ao que foi referido por Rehm (2000), estudando cuidadores norte-americanos, que lançavam mão da chamada revelação seletiva, isto é, informando o diagnóstico apenas para pessoas de sua confiança, devido ao receio do estigma e da discriminação em contextos sociais diversos. Outro ponto digno de nota referiu-se às dúvidas de muitos cuidadores sobre a infração de aspectos éticos quando da não revelação da soropositividade na escola: muitos deles desconheciam que o sigilo sobre o diagnóstico é um direito, e que nenhuma pessoa é colocada em risco de infectar-se ao conviver (estudar, brincar) com uma criança ou adolescente soropositivo. Essa constatação aponta para a necessidade de escuta, orientação e disponibilização de informações sobre os direitos das pessoas vivendo com HIV/aids, propiciando maior segurança e confiança aos familiares, crianças e adolescentes no lidar com temas dessa natureza.

Outra questão relevante referiu-se às dificuldades de adesão, evidenciadas em aproximadamente um quarto dos participantes. A queixa maior centrou-se na administração da medicação em horários inconvenientes e em locais públicos, como a escola. Considerando a complexidade do tratamento, seu caráter prolongado e a exigência quanto ao alto nível de adesão para alcance de eficácia, é fundamental que as equipes identifiquem esses problemas, busquem prescrever esquemas terapêuticos simplificados, orientando e auxiliando os cuidadores, crianças e jovens no manejo comportamental da adesão (Murphy & cols., 2003).

O tema adesão, assim como outros investigados, sofrem influência de um dos principais desafios identificados no estudo: a revelação do diagnóstico de soropositividade para a criança/adolescente. Os achados, corroborando o que foi observado por outros pesquisadores (Gerson & cols., 2001; Instone, 2000), mostraram as dificuldades vivenciadas pelos familiares nessa esfera, com tendência a postergar ao máximo o momento da revelação, com uso freqüente de respostas evitativas. Segundo Grecca (2004), a partir dos 7 anos

"as crianças serão expostas a informações sobre HIV/aids na escola e pelos meios de comunicação. Podem iniciar o acúmulo de fatos de sua vida diária, tirar suas próprias conclusões e, então, começar com indagações específicas sobre o seu diagnóstico (...). Na ausência de questionamentos é importante não concluir que a criança não está interessada em conhecer o seu diagnóstico" (p. 61).

Em muitas famílias parece ter sido instituído um pacto do silêncio, quando a comunicação sobre HIV/aids estaria impossibilitada de ocorrer, mesmo diante de indícios de que a criança/adolescente desconfia da verdadeira enfermidade que o acomete. A concepção dos pais de que a revelação pode trazer sofrimento emocional às crianças soropositivas não tem sido verificada em estudos realizados. Assim, Mellins e cols. (2002) observaram que a revelação do diagnóstico não resultou em aumento de problemas emocionais e comportamentais e que as crianças que sabiam sobre a soropositividade eram menos deprimidas e tinham mais suporte social, quando comparadas àquelas que desconheciam o seu diagnóstico. De fato, a demora no processo de revelação pode prejudicar, ou mesmo inviabilizar, a intervenção da equipe de saúde junto à criança/adolescente em temas relevantes como adesão, orientação sobre o início da puberdade, sexualidade e práticas seguras, entre outros.

Quanto às estratégias de enfrentamento, o estudo permitiu identificar modos diversos de atuação dos cuidadores para lidar com estressores, indicando uso freqüente de estratégias adaptativas. O enfrentamento avaliado pela EMEP mostrou que a distribuição dos escores da medida do enfrentamento foi semelhante à encontrada em estudo com pessoas adultas brasileiras vivendo com HIV/aids, não obstante ter havido predomínio, naquela amostra, de focalização no problema (Seidl, no prelo). O uso predominante de busca de práticas religiosas/pensamento fantasioso pelos cuidadores vem ao encontro de estudos da literatura sobre coping que apontam a busca da religiosidade no enfrentamento de estressores percebidos como incontroláveis, como uma enfermidade crônica grave, ainda sem cura, cujo tratamento é complexo (Seidl, 2001; Faria, 2004).

Verificou-se também que os cuidadores, de modo geral, não diferiram quanto às estratégias de enfrentamento utilizadas, considerando alguns aspectos sociodemográficas e clínicos. No entanto, quanto à busca de suporte social verificou-se que cuidadores com melhor nível de escolaridade usavam mais essa modalidade de enfrentamento se comparados àqueles com ensino fundamental completo e incompleto. É possível supor que escolaridade mais elevada possa estar facilitando o acesso à informação, ocasionando maior habilidade para falar sobre a enfermidade, obter apoio e fortalecer a rede social. Estudo com amostra adulta soropositiva brasileira também constatou que pessoas com baixa escolaridade percebiam menos disponibilidade e estavam menos satisfeitas com o suporte social, em especial o emocional (Seidl, 2001). Ressalta-se ainda que a investigação sobre o enfrentamento é importante já que estudos apontam que o ajustamento do cuidador pode influenciar o bem-estar psicológico de crianças e adolescentes soropositivos (Wiener & cols., 2001). Assim, merece atenção o achado que cuidadores HIV+ tiveram escores mais elevados em auto-culpabilização, aspecto observado na prática clínica com essa clientela.

Por fim, o estudo pretendeu integrar ações de pesquisa e intervenção. Em continuidade ao presente estudo, tem sido realizado trabalho psicoeducativo em grupo com cuidadores com os objetivos de promover troca de experiências, melhorar o nível de conhecimento sobre HIV/aids e desenvolver habilidades de enfrentamento adaptativas, preparando-os para lidar com estressores relativos à soropositividade. Atendimentos individuais a familiares e a crianças/adolescentes soropositivos também vêm sendo realizados, em especial voltados para revelação do diagnóstico para a criança/adolescente e adesão ao tratamento. Conclui-se que a abordagem das questões psicossociais deve ser iniciativa das equipes de saúde visando à qualidade de vida das famílias e das crianças e adolescentes vivendo com HIV/aids.

Seidl, E. M. F. (no prelo). Enfrentamento, aspectos clínicos e sociodemográficos de pessoas vivendo com HIV/aids. Psicologia em Estudo, 10.

Recebido em 05.01.2005

Primeira decisão editorial em 28.03.2005

Versão final em 29.11.2005

Aceito em 01.12.2005

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Aceito
      01 Dez 2005
    • Revisado
      29 Nov 2005
    • Recebido
      05 Jan 2005
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