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Pedro e o lobo: o criminoso perverso e a perversão social

Peter and the wolf: the perverse criminal and the social perversion

Resumos

O objetivo deste artigo é promover uma reflexão sobre a perversão, em sua relação com a criminalidade, e contribuir para a compreensão da perversão como um mecanismo amplo, como sintoma social, não apenas restrita ao âmbito individual. A perspectiva adotada é psicanalítica, segundo a qual a perversão é entendida como uma posição subjetiva, e não como uma aberração sexual. No presente trabalho, a perversão social é vista como uma recusa da castração, que aparece no âmbito social. A hipótese é de que vivemos sob um desmentido social em dois aspectos complementares: a negação da castração, pelo imperativo do gozo, e a contradição do contrato social, pela falácia da cidadania, o que gera consequências nas formas de subjetivação da atualidade.

crime; prisão; perversão social


The objective of this article is to promote a reflection on perversion and its relation with criminality, and to contribute to the comprehension of perversion as a broad mechanism, as a social symptom, and not as something that concerns only the individual. It is adopted the psychoanalytical perspective, in which perversion is understood as a subjective position, and not as a sexual aberration. In the present study, social perversion is viewed as a refuse of the castration, which appears in the social context. The hypothesis is that we live under a social denial, which has two complementary aspects: the negation of the castration by the imperative of the sexual joy, and the contradiction of the social contract by the fallacy of the citizenship. Both aspects generate consequences concerning the nowadays subjectivation.

crime; prison; social perversion


Pedro e o lobo: o criminoso perverso e a perversão social1 1 Este artigo é baseado em parte da tese de doutorado defendida pela autora na PUC/SP, em 2005, com apoio financeiro do CNPq.

Peter and the wolf: the perverse criminal and the social perversion

Vania Conselheiro Sequeira2 2 Endereço para correspondência: Rua Prof. João Arruda, 168, Ap. 122. São Paulo, SP. CEP 05012-000. Tel/fax: (11) 3673 1039 (11) 93090838. E-mail: vaniasequeira@terra.com.br.

Universidade Presbiteriana Mackenzie

RESUMO

O objetivo deste artigo é promover uma reflexão sobre a perversão, em sua relação com a criminalidade, e contribuir para a compreensão da perversão como um mecanismo amplo, como sintoma social, não apenas restrita ao âmbito individual. A perspectiva adotada é psicanalítica, segundo a qual a perversão é entendida como uma posição subjetiva, e não como uma aberração sexual. No presente trabalho, a perversão social é vista como uma recusa da castração, que aparece no âmbito social. A hipótese é de que vivemos sob um desmentido social em dois aspectos complementares: a negação da castração, pelo imperativo do gozo, e a contradição do contrato social, pela falácia da cidadania, o que gera consequências nas formas de subjetivação da atualidade.

Palavras-chave: crime; prisão; perversão social.

ABSTRACT

The objective of this article is to promote a reflection on perversion and its relation with criminality, and to contribute to the comprehension of perversion as a broad mechanism, as a social symptom, and not as something that concerns only the individual. It is adopted the psychoanalytical perspective, in which perversion is understood as a subjective position, and not as a sexual aberration. In the present study, social perversion is viewed as a refuse of the castration, which appears in the social context. The hypothesis is that we live under a social denial, which has two complementary aspects: the negation of the castration by the imperative of the sexual joy, and the contradiction of the social contract by the fallacy of the citizenship. Both aspects generate consequences concerning the nowadays subjectivation.

Keywords: crime; prison; social perversion.

Para entendermos o crime é interessante retomar a ideia defendida por Lacan (1950/1998) de que nem o crime, nem o criminoso são objetos passíveis de serem compreendidos fora de uma referência sociológica. A violência também tem uma face social. É impossível apreender um crime sem referenciá-lo a um simbolismo, seja pessoal, social ou entre ambos. Para abrir essa discussão sobre crime e perversão, será apresentado um caso atendido pela presente pesquisadora (Sequeira, 2005), que pode ser considerado emblemático dentro do diagnóstico de perversão, pois ilustra a posição subjetiva do perverso e sua relação com o outro. Após isso, será feita uma reflexão sobre perversão social, isso porque na pesquisa de Sequeira não foram encontrados muitos homens com estrutura perversa; a maioria dos indivíduos atendidos apresentava uma estrutura neurótica, com conflitos com a lei e com traços de perversão, denunciando uma falha social que traz consequências na constituição da subjetividade contemporânea.

Estudo de Caso

O objetivo de Sequeira (2005) consistiu em contribuir para uma compreensão do crime e da pena de prisão na sociedade atual a partir da análise do lugar que o crime ocupa para o sujeito e para a sociedade. Os sujeitos da pesquisa foram homens presos, em sua maioria jovens, pobres, com baixa escolaridade e pouca qualificação profissional, oriundos da periferia da cidade. Os delitos mais frequentes eram roubos, furtos, latrocínios, homicídios e tráfico. A coleta de dados foi realizada a partir de atendimentos psicológicos oferecidos a esses homens, durante quatro anos, em uma penitenciária em São Paulo. A pesquisadora se apresentou como psicóloga-pesquisadora e ofereceu atendimentos de orientação psicanalítica a quem se interessasse, deixando claro que ela não fazia parte do corpo técnico da instituição e que o conteúdo do atendimento não seria revelado aos técnicos que faziam pareceres para a CTC (Comissão Técnica de Classificação). Além disso, foi elaborado um diário de campo com registros de impressões, situações cotidianas e conversas informais ocorridas durante os quatro anos de coleta de dados. Os dados foram analisados por meio do método qualitativo. O caso a ser apresentado foi escolhido para abrir essa discussão sobre crime e perversão, pois é emblemático dentro do diagnóstico de perversão, ilustrando a posição subjetiva do perverso e sua relação com o outro.

Relato de um caso: Pedro e o lobo3 3 Em referência a fábula "Pedro e o Lobo", escrita em 1936, por Sergei Prokofiev (Prokofiev, 1936/2000).

Pedro nasceu por volta de 1950, numa cidade pequena. Na época da pesquisa, tinha 47 anos e já estava preso há quase 30 anos. Seu primeiro crime foi matar o chefe do pai. O pai era vigia de uma creche e foi acusado de furtar merenda escolar, sendo que, segundo Pedro, o outro vigia era o autor do furto. A partir da injustiça que o pai sofreu, Pedro decidiu matar não só o responsável pelo furto, como também quem demitiu o pai. Tinha 13 anos. Foi buscar uma arma do avô e se escondeu na mata. Seu avô era um caçador e havia lhe ensinado a sobreviver no mato, à espreita. Sabia caçar e se esconder, coisas fundamentais para a sobrevivência (sic). Conta diversas façanhas de seu avô, durante as caçadas que realizavam juntos.

Conhecia bem a rotina do vigia da creche. Um dia, foi até a casa dele e ficou à sua espera, para matá-lo. Quando o vigia chegou, atirou muitas vezes e foi embora. Escondeu-se na mata e lá ficou por cerca de 15 dias. Fugiu. Não teve mais contato com os pais, na época. Resolveu morar em uma cidade próxima a São Paulo. Lá arrumou uma namorada, que era traficante, e começou a trabalhar com ela. Gostou da vida nova. Matou vários namoradinhos dela, que estavam com ciúmes dele, e várias outras pessoas que não se comportavam direito, já que nesse negócio das drogas tem muito malandro (sic). Viveu com essa moça até a polícia matá-la. Ele conta, com detalhes, sucessivos embates com a polícia e com bandidos, suas fugas e diversos assassinatos. Conta que seu dinheiro vinha do tráfico, que juntou bastante e até comprou uma casa para a família.

Foi preso quando saiu de sua chácara e foi até um bar, que também era dele. Não sabe o que ocorreu; entende que foi uma armadilha. Houve tiroteio, ele levou uns seis tiros e não foi morto porque o tenente R não quis matá-lo. Diz ter ouvido conversa do tenente com outro policial de que não era para matá-lo porque ele ajudou a polícia a eliminar um monte de gente que não presta (sic). É assim que gosta de ser visto, como matador de gente que não presta (sic). Conta que a maioria de seus crimes (homicídios) foram cometidos dentro da cadeia. Não gosta dos presos, mas tem que aguentar firme, porque combinou que não ia matar ninguém, em uma reunião com o juiz e com o diretor da penitenciária, quando foi transferido para a cadeia atual. Diz estar suportando tudo porque é um homem de palavra; se não der para segurar, vai pedir transferência, já que deu sua palavra que não ia matar ninguém, e até agora não o fez, embora tenha vontade. Acredita que muitos presos não prestam, não valem nada, porque são desonestos e prejudicam uns aos outros. Todas as vezes que matou um preso, foi para fazer justiça. Tem uma tatuagem com os dizeres: mato por prazer.

Pedro, o lobo

É preciso sustentar o lugar de analista e não cair na tendência neurótica complementar ao jogo perverso. Sequeira (2005) não entrou em detalhes sobre os assassinatos, nem sobre o planejamento deles, por se recusar a entrar no jogo de ser feita cúmplice dos atos de Pedro, de sua cena montada para que ela fosse expectadora de seu gozo. Essa manipulação que o perverso faz para que se fique como cúmplice de sua cena precisa ser evitada. Queiroz (2004) defende que o discurso perverso se constitui de verleugnung (desmentido) no ato da fala e que esse mecanismo também aparece na transferência, no jogo de olhar, na cena que o perverso monta para colocar o analista como o terceiro, como testemunha.

Pedro resolvia seus conflitos com o outro, eliminando-o. Ele decidia quem merecia, ou não, viver, de acordo com seu julgamento; fazia justiça com as próprias mãos; portanto, ocupava um lugar de lei, posição subjetiva que aponta para a perversão como estrutura. É possível notar sua atitude cotidiana de desafio às leis do presídio, sua posição de estar acima delas e de poder decidir o que, quando e como fazer. A postura das pessoas ao redor dele era de subordinação e temor. Sua posição fálica era sustentada por vários funcionários da instituição. Professores e funcionários davam satisfações sobre o que faziam ou deixavam de fazer. Havia um pacto entre os funcionários e Pedro: eles o respeitavam, já que ele era um matador; não um matador qualquer, mas de criminosos, o que exercia fascínio sobre os agentes de segurança. Havia certa admiração porque ele fazia o que todos queriam fazer e não podiam, não estavam autorizados a isso (é comum o agente de segurança ter sobre o preso um discurso permeado pela vingança). Podemos ver o jogo entre a atuação do perverso e a mobilização da fantasia complementar do neurótico.

Pedro teve, em seu avô, um modelo identificatório. Ele pensava e falava como caçador. Descrevia armadilhas e ciladas, mas Pedro não era só um caçador, como seu avô. Segundo André (1993/1995), o perverso encarna o pai da horda; nele vemos aquele que pode ter acesso a todas as mulheres e que proíbe os filhos de ascender a tal lugar. O pai da horda funciona no regime de exceção, não é castrado; o perverso é identificado com esse pai da horda.

Pedro ficou petrificado, preso como o lobo nos enredamentos subjetivos. Caiu na armadilha. Identificado com o caçador, pensando e agindo como caçador, matou outros homens, ultrapassou limites e, de certo modo, morreu também, sendo ele mesmo sua presa principal. Pedro, o lobo.

Pedro agia como quem tudo podia; olhava para todos dessa forma e estabelecia esse tipo de relação cotidiana; tirava satisfação de tudo que não saía exatamente da forma por ele planejada; exercia controle sobre tudo e ficava muito irritado quando não era obedecido.

É preciso ter muito cuidado na discussão sobre esse caso. Pedro levanta uma questão importante para o sistema penal; ninguém tem dúvidas de que Pedro voltará a matar, se assim o quiser; ele já cumpriu a pena máxima de nosso sistema penal. Ele mostra a falha do sistema. O perverso faz isto: interroga a lei, leva-a a seu extremo. Mas, segundo Sequeira (2005), isso não deve servir de argumento para o aumento da penalização em geral, para instauração da pena de morte, ou de uma política de prisão perpétua, porque, na prisão, a autora não encontrou outros perversos como Pedro, que "matassem por prazer" (em menção à tatuagem que Pedro tem no braço). É verdade que foram encontrados perversos que se destacavam pela liderança e pelos jogos de poder, mas esse não foi o perfil dos presos atendidos durante a pesquisa.

O Conceito de Perversão

Considero importante aprofundar a discussão sobre o conceito. O termo perversão é controverso e carregado de sentido pejorativo, ou é usado para designar desvios no comportamento sexual. Na segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento das teorias sexuais, ele passou a ser empregado, pela medicina, como sinônimo de distúrbio psicossocial. Os desvios passaram a ser entendidos como aberrações que deveriam ser tratadas, pois atingiam todos os aspectos da vida da pessoa e, consequentemente, a sociedade. A política higienista se instala e, com ela, a ideia das doenças hereditárias e degenerativas. As práticas sexuais consideradas como anormais eram também vistas como um desvio à norma e à moral social e precisavam ser controladas.

No século XIX, a psiquiatria divide as perversões em dois tipos, de acordo com sua origem: as adquiridas, por condições de restrição ambiental; e as verdadeiras, ligadas à concepção hereditário-degenerativa. Em meio a essas concepções, Freud começa seus estudos sobre a perversão e caminha de uma descrição das perversões sexuais para uma teorização do mecanismo geral da perversão. A metapsicologia freudiana tem duas explicações para a perversão: a primeira é decorrente da polimorfia da sexualidade infantil e a segunda, do fetichismo, como recusa à castração (Valas, 1990). Tanto as psiconeuroses, como as perversões são concebidas como resultados de distúrbios do desenvolvimento psíquico-individual. Na obra de Freud encontramos a ideia sobre perversão em constante movimento, até chegar à construção sobre a resolução do Édipo, resolução diferenciada entre neuróticos, psicóticos e perversos. Ele aproxima neuróticos e perversos, afirmando que um é o negativo do outro; o que é recalcado e inconsciente no neurótico corresponde ao atuado no perverso.

No livro Três ensaios sobre a sexualidade (Freud, 1905/1995a), temos a sexualidade infantil, a partir do perverso polimorfo e da ideia de que a satisfação sexual infantil não se dá por uma única zona erógena, mas de forma generalizada por todo o corpo, ainda não fixado à satisfação genital; o mesmo ocorreria na perversão, por meio de uma fixação, numa pulsão parcial que escapou ao recalque. A distinção entre perversão e normalidade estaria na fixação, na exclusividade de uma determinada prática para alcance da satisfação sexual. Porém, ao final do texto, ao falar da escolha objetal (definida a partir da resolução edípica e dos conteúdos pré-genitais), Freud aponta que a perversão tem uma relação com a castração.

Freud continua sua elaboração da perversão em Teorias sexuais infantis (1908/1995b) e, em Análise de uma fobia de um menino de cinco anos (1909/1995c), destaca a recusa da criança em aceitar a falta fálica da mãe, que resulta numa ideia fundamental à sua conceituação da perversão: a recusa da percepção infantil da castração da mãe retorna na figura da mulher com pênis, dando origem à fantasia da mulher fálica.

Em Fetichismo (1927/1995e), Freud apresenta o objeto-fetiche como um substituto do pênis, mas não de qualquer pênis; é o substituto do pênis materno, em que o menininho outrora acreditou e não quer abandonar. No desenvolvimento do perverso, ele viveria a castração materna como algo insuportável e criaria um objeto que esconderia a falta materna, o fetiche. O fetichista fica preso a uma atitude infantil, de forma a negar, desmentir a castração feminina; ao mesmo tempo em que a reconhece, sabe da diferença sexual. Freud usa o termo verleugnung4 4 Na edição brasileira (1995) das obras de Freud, o termo foi traduzido por rejeição. , termo que designa que o sujeito sabe e não quer saber sobre a castração. Forma-se uma solução de compromisso pelo conflito entre a percepção desagradável e a força de seu contra-desejo.

De acordo com Hanns (1996), verleugnung é traduzido como negação, rejeição, recusa, repúdio. Um tipo de recusa próxima do desmentir, renegar. Essa palavra alemã é ambígua, entre verdade e mentira. Pode significar desmentir algo, agir contra a própria natureza, negar a própria presença, no sentido de mandar dizer que não está. Sempre se refere a negar algo afirmado ou admitido antes. Nas obras tardias de Freud há uma tendência em usar esse termo para o fetiche e a perversão em geral. A rigor, não é só um termo para a perversão; a diferença entre perversão e psicose está nos conflitos e contradições decorrentes da castração. O psicótico tende a substituir a realidade, enfatizando a negação da castração; já o perverso unifica, simultaneamente, a negação da castração e seu reconhecimento através do fetiche ou outros substitutos. Lacan5 5 Em 27 de novembro de 1975, em uma conferência em Yale (Valas, 1990). propôs uma tradução para o termo verleugnung: démenti (desmentido). Coexistem, na mesma pessoa, duas posições irreconciliáveis: o desmentido (inconsciente) e o reconhecimento da castração feminina. O fetiche representa um triunfo sobre a castração e uma proteção contra essa ameaça assustadora.

A organização psíquica de um sujeito é decorrente dos caminhos do Édipo, na relação que o sujeito mantém com a função fálica. É a metáfora paterna que estrutura o sujeito, pois possibilita o recalque originário e o processo de simbolização da Lei. A mãe não tem o falo; logo, seu bebê o é. Ser o falo para preencher a falta da mãe causa angústia, a mesma de ser engolido por ela. A resposta a essa angústia é uma ilusão; cria-se um falo para a mãe e ela, tendo o falo, deixa o sujeito respirar. O perverso coloca o fetiche como substituto do falo faltante à mãe, que o protege da angústia do desejo dela e de ser engolido pelo desejo do Outro. Na perversão, a criança assume o lugar fálico, retirando o pai desse lugar, obviamente com autorização materna para isso. Na concepção lacaniana de perversão, existe uma alienação porque o sujeito está grudado no desejo da mãe, de forma mais acentuada do que o neurótico. O desmentido funciona como centro nessa estrutura, numa vertente imaginária.

Lacan (1957-58/1999) localizou a perversão como decorrente do momento em que a mãe é objeto de amor, tanto do menino, como da menina, na fase pré-edipiana. Situação imaginária, na qual o filho satisfaz totalmente a mãe. A identificação pré-genital é fálica, relacionada diretamente ao falo materno; a criança está presa no desejo do Outro e se insere na ilusão de ser ela o falo da mãe. Há uma recusa em saber da diferença sexual; o fetiche é o símbolo que dribla, engana. Nessa recusa, o sujeito não se submete à lei paterna (simbólica), desafiando-a. Há uma insistência na transgressão que não anula a angústia de castração. O perverso recusa a castração em forma de ato: transgredindo a lei, ele descumpre o pacto edípico.

O perverso tem um enorme trabalho cotidiano para não se deparar com a castração; ele tem que teatralizar o tempo todo, seguir papéis rígidos, de forma a não deixar aparecer a falta, e se proteger contra a angústia da castração. Precisa manter sua imagem, seu teatro. Para que isso seja possível, procura parceiros que ocupem o lugar do fracasso, da falta, e o neurótico cai bem nesse lugar. Quem pensa que o perverso determina sua ação pelo seu desejo, que ele trabalha para satisfazer seus próprios desejos, se engana. O perverso tem pavor do desejo porque este o colocaria diante da falta e ele é escravo do desejo da mãe, daquela posição fálica inicial edipiana. O perverso se dedica a tampar o furo no Outro; portanto, ele não o despreza; o que ele imagina é poder assegurar o gozo do Outro.

No seminário A relação de objeto (1956-57/1995), Lacan argumenta que os objetos–fetiche são construções que organizam, ou articulam, a vivência da castração. Demonstra a função do véu ou cortina, que esconde e designa. Esconde a falta materna, ao mesmo tempo em que a necessidade do véu aponta a falta, em um jogo de ilusão. Teremos diferentes consequências na sexualidade, se o sujeito estiver diante do véu ou atrás dele. Nos casos de exibicionismo e travestismo, o véu funciona como proteção, o sujeito está identificado com a posição feminina fálica. No fetichismo, o sujeito se identifica com aquilo que falta à mãe, o falo. É importante notar que o perverso precisa de testemunha, presença, olhar. Esse terceiro convidado a ser cúmplice na cena perversa nada mais é que a mãe, aquela a quem ele está preso, tentando ser o falo dela; por isso precisa do testemunho de que ele consegue driblar a lei.

Seguindo os passos da ampliação do âmbito sexual para a posição subjetiva, podemos compreender o perverso preso a esse lugar de sustentação do falo, desafiando a Lei6 6 Aqui temos uma diferenciação interessante a ser feita, sobre as leis e a Lei. As leis são entendidas como normas jurídicas que regulam as relações entre os homens. A Lei é a instância simbólica, oriunda do fim do Édipo, que insere o sujeito no circuito do desejo e da cultura. , o que abre as portas para a transgressão, o desafio à lei, para a postura perversa, desafiadora, provocadora, de quem se comporta como detentor do falo. Como nos ensina Pommier (1987/1992), o fetiche pode ser um chicote ou o poder; os perversos podem se exibir de diferentes formas e a palavra pode ser seu falo.

Sequeira (2005) afirma que os atendimentos realizados em uma penitenciária de São Paulo tornaram evidente que a grande maioria dos criminosos não é perversa7 7 Mais detalhes sobre essa afirmação estão disponíveis em Sequeira (2005). A autora construiu a história de vida de um preso comum, que ilustra bem a diferença entre o Pedro e o restante dos presos (Capítulo III – narrativa de Paulo) e também apresentou outro caso, o de Severino, que ilustra uma apatia, uma vida sem vida, abandonada (Capítulo II – vidas abandonadas). . O crime pode ser uma resposta a uma invisibilidade presente em muitas vidas. Isso traz à tona mais uma questão: como se dá a relação entre perversão, crime e sociedade? Tudo indica que não é tão simples como poderíamos supor, se caíssemos no engodo ideológico de que os presos ou condenados são "monstros" ou perversos. A relação construída entre crime e perversão merece uma mudança de foco, saindo do âmbito individual para alcançar o social.

Este artigo se baseia na hipótese de que a verleugnung é um desmentido da castração que aparece no âmbito social, que vivemos socialmente um desmentido em dois aspectos complementares: um falso contrato social, que não se efetiva; e uma lógica consumista, que promete o impossível, a felicidade ou a satisfação de nossas frustrações por meio de objetos de consumo.

Podemos constatar um desmentido da castração na lógica consumista, por meio da ilusão de preenchimento da falta constitutiva da subjetividade com objetos fálicos, geralmente passíveis de consumo, aos quais os presos (de uma forma que lhes é peculiar) tentam ascender. Isso pode ser verificado na completude incentivada pelas propagandas na mídia; cada produto é associado a algum desejo ou frustração e, a partir disso, vivemos o engodo de que, ao adquirir um produto, junto com ele, vem algo da satisfação dos nossos desejos. Essa promessa oculta nunca se cumpre, o que leva o consumidor a buscar a satisfação de suas frustrações com uma nova compra.

O contrato social também se configura como um engodo, porque parte da premissa de que nós formamos uma sociedade, uma associação na qual cada sócio participa, cedendo um pouco, em nome do bem comum, onde cada um abre mão da satisfação pulsional e, assim, participa da sociedade, da construção de um coletivo. Isso não seria um desmentido? O fundamento de nossa sociedade, de acordo com Agamben (2003/2004), hoje, não é o contrato social, mas o regime de exceção, inaugurado nos campos de concentração do nazismo. Isso não seria uma espécie de perversão social?

O Desmentido do Contrato Social: Uma Hipótese a Ser Considerada

Segundo Freud (1913/1995d), nos primórdios da civilização, tínhamos o caos, o regime da força, não havia regras, o chefe da horda detinha o poder. No começo, um crime, ato fundador da cultura, gerando a interdição. O ódio transformou os filhos submissos em irmãos; irmãos na cumplicidade e na culpa pelo assassinato. Foi o assassinato que fez com que o chefe da horda fosse chamado de pai. Não existe um pai real, mas um pai simbólico, um ser mítico. A partir desse momento é que a função paterna pode ser reconhecida. Sem essa referência, nenhuma cultura é concebível. Saímos de um mundo estabelecido por relações de força para um mundo de relações de aliança e a lei é encarnada pelo pai morto. Na base de todo tabu, está a renúncia em satisfazer algum desejo; a lei só proíbe aquilo que de alguma forma queremos fazer. A civilização se constrói num ato coletivo, sob as ruínas da liberdade individual. Em nome da civilização, o homem precisa abrir mão de parte de seus desejos, ou melhor, em nome da sua própria sobrevivência, pois esta só será possível no coletivo. Freud (1929/1995f) reflete sobre as contradições da vida social, das renúncias que precisam ser feitas. Sustenta que a destrutividade no homem precisa ser controlada, para que exista o grupo. O homem precisa abrir mão de parte dos seus impulsos e desejos para viver em sociedade e essa negociação não é tranquila, perde parte de sua felicidade pela segurança derivada do controle da destrutividade, sendo essa a maior barreira à civilização.

No pensamento freudiano, encontramos a ideia de que há um pacto que sustenta o sujeito, a sociedade e os vínculos entre eles. A ideia de pacto social foi anteriormente defendida por Rousseau (1757/2000), como contrato social, quando o homem encontra obstáculos à sua conservação; a única saída possível é a soma de forças, a agregação. Para que o contrato social dê certo, é preciso que nos alienemos na sociedade, sem reservas, formando a pessoa pública, pela união de todas as outras, em prol da cidade. Cidade constituída por todos reunidos num só corpo, sendo que, ao ofender um dos membros, todos se sentirão atingidos: "O dever e o interesse obrigam as duas partes contratadas a mutuamente se coadjuvarem, e os mesmos homens devem esmerar-se em obter todas as vantagens que, dessa dupla relação, dependem" (Rousseau, 1757/2000, p. 33). Rousseau defende que o Estado represente os interesses de seus membros. O alicerce de todo sistema social reside no pacto, pois nele, os homens podem ser dessemelhantes na força ou no engenho, mas se tornarão iguais por convenção e por direito, numa igualdade moral e legítima. Afirma que, em maus governos, a igualdade é ilusória e serve para manter o pobre na miséria e o rico em sua usurpação. Como mostra Rousseau (1757/2000) "As leis são sempre úteis aos que possuem (bens) e danosas aos que nada têm" (p. 37).

O Estado tem papel ordenador da sociedade e da subjetividade; pode ocupar esse lugar como agente da Lei ou como o chefe da horda, que faz a sua lei própria, sem subordinação a nenhuma outra Lei, o que tornaria o Estado violento e não ordenador. A relação entre o direito e a Lei merece atenção; o pai que está na origem da sociedade pode ocupar seu lugar simbólico, de Lei ou, como um retorno ao recalcado, virar déspota, tal qual o chefe da horda. Enriquez (1983/1990) nos alerta que o Estado pode assumir, também, a violência da horda, que ganhará a roupagem da lei, da norma e das regulações – os Estados Civilizados, com instituições reconhecidas e aceitas, transformam-se em Estados Policiais, prontos a se declararem em 'estado de guerra' contra os compatriotas, a desempenhar o papel de polícia no mundo quando são ameaçados seus interesses vitais. Sabemos que isso é possível, basta lembrarmos do nazismo.

Pellegrino (1983/1987), em seu texto Pacto edípico e pacto social, reflete sobre as consequências da quebra do pacto social e os efeitos da violência social na subjetividade dos que vivem à margem de um sistema desigual e injusto. Ele parte da concepção freudiana de complexo de Édipo para discutir o pacto social na atualidade. O complexo de Édipo e complexo de castração estão articulados na teoria freudiana, o que leva a criança a internalizar a proibição ao incesto, gera identificação com os pais e seus valores, e a faz entrar no mundo da Cultura. É o temor à castração que, num primeiro momento, marca a relação do ser humano com a Lei. Porém, se inicialmente a Lei deve ser temida para ser respeitada, também é verdadeiro que a Lei não se sustentará só pelo temor; o amor lhe dá sustentação. O pai interditor é também o pai possibilitador, porque impede o incesto, incluindo seu filho na cultura e no circuito social; torna possível o nascimento de um sujeito.

A renúncia existe em nome de alguma coisa que a pessoa vai ganhar e que lhe oferece sustentação. O pacto edípico é uma aliança, é uma via de mão dupla: a criança recebe uma ordenação simbólica, que lhe dá ferramentas para constituir-se sujeito, e respeita as regras e interditos sociais, contribuindo para a manutenção da cultura a que pertence. Quando ela cresce, soma-se ao pacto edípico o pacto social e com este assumimos o pertencimento à cultura e ao ordenamento social.

O crime, neste artigo, é entendido como uma resposta ao social, que não cumpre sua promessa e nos deixa submersos numa mensagem dúbia: somos todos iguais e temos direitos à vida, educação, saúde, trabalho, cidadania, pertença social. Mas não somos tão iguais assim; alguns conseguem ter seus direitos preservados, outros ficam à margem deles. A diferença reside no econômico, pois existem os que podem ter seus direitos garantidos. Portanto, parece que vivemos sob um desmentido: o pacto social, embora existente, não se efetiva, dada a lógica da exclusão e da exceção.

O crime aponta a ruptura na rede de agregações sociais. Ele funciona como sutura, possibilitando ao sujeito acesso a algum tipo de reconhecimento, de pertença, geralmente negados pela nossa sociedade, em seus processos de exclusão. Calligaris (1986) aprofunda essa ideia afirmando que, quando os laços sociais são reais, os atos são simbólicos. O problema para o autor está na filiação, porque os laços sociais deveriam outorgar um lugar ao sujeito, dar-lhe sustentação como filho e cidadão. Se os laços são pouco consistentes, os atos têm o papel de inscrever o sujeito, garantindo-lhe um lugar simbólico, o que gera um impasse, "pois o marginal, procurando encontrar quem possa reconhecer, em seu ato, valor simbólico, só pode acabar encontrando a mesma lei que – por parecer sustentada numa violência real – já fracassou em fazer dele sujeito" (pp. 114-115). O ato criminoso pretende ser simbólico, porque é com ele que o sujeito tenta fazer um nome que não lhe foi dado, e é com ele que o sujeito encontra a Lei, mesmo que seja na forma de sanção. O que remete a uma outra discussão sobre que pai ele encontra na pena de prisão: o pai cruel, da horda ou o pai simbólico. A penalização em nossa sociedade se aproxima mais de uma lógica vingativa do que de uma reordenação simbólica. Se a pena tiver uma referência simbólica, ela poderá convocar o sujeito a responder pelos seus atos; mas, se a pena for regida pelo pai cruel, da horda, ela pode alienar o sujeito8 8 Sobre essa discussão de pena simbólica, ver Sequeira (2000). .

O ato delinquente, pode ser compreendido de outra maneira, com certa esperança, se ouvirmos que há um pedido de reconhecimento, uma busca de um lugar social, do pai simbólico decorrente de uma fragilidade na filiação, já que o pacto social não sustenta o pacto edípico. Percebemos isso no discurso de alguns presos que deixam rastros em tudo que fazem, como se pedissem para serem pegos em flagrante. Há casos de presos que gostam muito de roubar carros e desafiar a polícia, procurando por postos policiais para passar em frente, com o carro roubado.

Acredito que vivemos submetidos a uma violência no real, porque a perversão está no laço social; porque há uma montagem perversa. Essa ideia de montagem perversa foi trabalhada por Arendt (1951/1999), com relação ao nazismo, movimento no qual o mal foi realizado por homens comuns, soldados que atuavam burocraticamente. A banalização do mal se efetivava por meio de uma engrenagem muito maior, dos planos nazistas e da extrema dedicação com que muitos trabalharam para a solução final. O mal não está tão longe de nós e pode ser executado por qualquer um, sem que seja condição, a perversidade ou qualquer psicopatia. Calligaris (1990) defende que o nazismo e seus participantes (não estruturalmente perversos) são exemplos do triunfo da técnica, da instrumentalidade, na medida em que os homens reduzem sua subjetividade à instrumentalidade, numa alienação de si, numa paixão em ser instrumento do gozo do Outro. O gozo estaria em fazer parte daquele grupo dos que gozam sem limites, podem tudo. O neurótico pode trabalhar zelosamente, colocando a máquina para funcionar, na espera de algum reconhecimento, alguma migalha do gozo do Outro. A paixão pela instrumentalidade é ordinária na vida social e pode levar à alienação do sujeito; seu gozo pode estar marcado pela participação, numa engrenagem perversa. O neurótico pode entrar nesse jogo, se estiver inserido num processo de alienação de si mesmo e se aceitar seguir sua fantasia de um gozo sem limites.

A lei é uma ordenação para salvar os homens, com força e razão; sem isso, a lei perde a força de obrigação. O estado de exceção é um espaço de anomia, o que está em jogo é uma força de lei, sem lei, barrada, anulada. É um jogo entre o pertencer e o estar fora. A distinção entre os que se incluem na ordem legal e o Homo Sacer (espécie de homem sagrado, conceito discutido por Agamben (1995/2002) não acontece apenas na distinção entre grupos de pessoas, mas entre duas formas superpostas, "perante a Lei, somos tratados como cidadãos, sujeitos legais, enquanto no plano obscuro, supereu complementar dessa lei incondicional vazia, somos tratados como Homo Sacer" (Zizek, 2002/2003, p. 47).

Acredito que a perversão social ocorre nesse desmentido, duas mensagens superpostas sob o véu do contrato social ou seu representante, o Estado. Somos cidadãos e Homo Sacer, fazemos parte e somos excluídos; hoje, os exemplos giram em torno da África e do Terceiro Mundo. Hoje, um grupo, amanhã outro, dependendo dos interesses do Estado; o nazismo já nos ensinou isso9 9 Sobre essa discussão, ver Sequeira (2006). .

Consumo e Imperativo do Gozo

De forma complementar ao pacto social que inclui e exclui, temos o desmentido da castração, pelo imperativo do gozo, promessa do mundo atual, oriunda do capitalismo. Esses dois aspectos são complementares porque o imperativo do gozo leva a um laço perverso10 10 Ver Peixoto Junior (1999), que sistematizou a produção psicanalítica sobre perversões, do sexual ao social. . A sociedade capitalista coloca a mercadoria como fetiche, que tampona a falta, leva à ilusão de completude, de satisfação imediata. Essa posição fetichista é uma negação do subordinamento à lei simbólica, o que compromete o pacto social.

Complexo da castração é o complexo de não-castração do Outro. O Outro que não é castrado goza sem limites, e pode me subjugar. A onipotência do self made man (ideologia do homem que se faz sozinho), na atualidade, pode ser pensada como identificação a esse Outro não castrado, sem limites para o gozo. Frente à angústia da castração, o sujeito pode se colocar como objeto do gozo do Outro, construindo, assim, uma montagem perversa.

O sujeito, na atualidade, está desenraizado, acredita ser livre, sem prestar contas a ninguém, deve gozar tudo que puder, sendo esse gozo permeado pelo consumismo, fenômeno relacionado ao fim das tradições. Na sociedade tradicional, são os costumes e os valores que dão respostas ao sujeito sobre quem ele é na ordem das coisas, já que ser alguém é se inscrever numa filiação e, a partir daí, ocupar um lugar social. Em sociedades tradicionais, as estruturas simbólicas determinavam os destinos dos sujeitos, laços de parentesco, lugares dentro da família, e decidiam que vida o sujeito levaria (Arendt, 1954/1997).

O projeto ético-social denominado sociedade do consumo, nasce a partir dos meios de comunicação de massa que se tornam objetos de consumo pelas mensagens do discurso publicitário. A lógica do consumo é mais complexa do que vender produtos. Trata-se de fazer qualquer coisa para transformar a mercadoria em objetos de consumo. Qualquer bem, para ser consumido, deve se transformar em signo, com um conjunto de simbolizações que estão associadas a determinado objeto. Estamos no mundo midiático, envoltos em prateleiras de supermercado, que vendem subjetividade, pois são os objetos de consumo que dizem quem somos, que nos dão identidade. O verdadeiro objeto de consumo não são produtos, mas a própria subjetividade que virou mercadoria. Lacan (1973/2003) alerta que o mal-estar da atualidade é representado pelo discurso capitalista, que põe o sujeito em relação com o objeto-fugaz e isso estimula a ilusão de completude. A sociedade capitalista se nutre pela fabricação da ilusão de gozo, produz sujeitos insaciáveis em sua demanda de consumo, o sujeito falta-a-ser vira o sujeito falta-a-ser rico (Quinet, 1999). O discurso capitalista sobrepõe o mercado à sociedade, não existe a sociedade, mas só o mercado, cujas leis são reguladas por interesses do capital. Trata-se de um discurso sem Lei, que nega a castração, prega o imperativo do gozo, produz objetos que visam o tamponamento da falta. Esse modo de laço social cria a ilusão de que a satisfação se dá com objetos, degradando as relações. As relações sociais não estão mais centradas nos laços com os outros homens, mas em bens recheados de valores simbólicos, exatamente onde faltam estruturas sociais simbólicas.

A sociedade atual é feita a partir da relação com objetos que nos dão identidade e uma satisfação fugaz. A relação dos homens se dá com os objetos e com o que eles representam e não com outros homens, o que fragiliza os laços sociais. Cria-se uma dimensão imaginária de um gozo sem dívidas e sem limites. O consumidor contemporâneo representa a si mesmo como filho do presente, sem história, sem lei. Direitos fundamentais dos homens como moradia, educação, alimentação, saúde viram bens de consumo, quebrando uma aliança social para transformar tudo em objetos que devem ser consumidos a partir do capital individual, cuja responsabilidade está sob cada um e não mais sob uma ordenação do estado.

Os imperativos do momento são: Seja feliz! Realize-se! Goze! Tanto o delito quanto a droga podem entrar nesse circuito, de completar a falta, de gozo pelo ato, de sustentação do falo imaginário. Nesse sentido perverso, é um sistema que prega completude, nega o Outro e a castração, além de se solidificar pela lógica da exclusão, e não pelo contrato social.

É comum, ao ouvirmos adolescentes infratores e jovens envolvidos com o crime, que apareça em seus discursos o desejo por insígnias fálicas como tênis e roupa de marca, objetos eletrônicos ou carros que dão a eles uma pertença social, na falta de algo mais sólido que não desmanche no ar. É difícil para esse jovem construir sua pertença sem essas insígnias, pois a falha na pertença é anterior a eles; é mais fácil não se afirmar nessas insígnias quando ele encontra raízes para sua pertença, quando um lugar lhe é transmitido, ofertado como herança.

Considerações Finais

Este artigo teve como objetivo iniciar uma reflexão sobre a relação entre perversão e criminalidade, retirando o foco da discussão de perversão do âmbito individual para o social. O delito está para o sujeito no lugar onde faltam palavras, o delito cumpre o papel de dizer algo, no âmbito individual e social. Ele não é só uma busca por gratificações imediatas, mas é também um pedido de reconhecimento, uma tentativa de incluir-se na Lei; por isso, tudo que pudermos fazer para efetivar uma Lei simbólica, para garantir cidadania e pertença social atuará na prevenção do aumento da criminalidade. Talvez isso explique porque algumas iniciativas com projetos sociais, culturais e educacionais em comunidades provoquem a diminuição dos índices de criminalidade da região. De qualquer modo, este trabalho é uma contribuição inicial para o estudo da relação entre perversão e criminalidade que merece aprofundamento.

Na prisão, em nome da lei, encontramos homens abandonados, submetidos a uma lógica de exclusão que antecede sua entrada na prisão. O crime tem aspectos psicológicos relacionados ao funcionamento do sujeito; porém, nesta tese, o crime é entendido como uma resposta ao contexto social, que não cumpre seu papel de garantir filiação e pertencimento a todos os seus membros. Vivemos sob um desmentido do contrato social, que garantiria um lugar a todos os sócios. Nesse sentido, perverso é um sistema que se solidifica pela lógica da exclusão e da exceção.

Recebido em 11.10.07

Primeira decisão editorial em 13.03.08

Versão final em 07.04.09

Aceito em 16.04.09

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  • 1
    Este artigo é baseado em parte da tese de doutorado defendida pela autora na PUC/SP, em 2005, com apoio financeiro do CNPq.
  • 2
    Endereço para correspondência: Rua Prof. João Arruda, 168, Ap. 122. São Paulo, SP. CEP 05012-000. Tel/fax: (11) 3673 1039 (11) 93090838.
    E-mail:
  • 3
    Em referência a fábula "Pedro e o Lobo", escrita em 1936, por Sergei Prokofiev (Prokofiev, 1936/2000).
  • 4
    Na edição brasileira (1995) das obras de Freud, o termo foi traduzido por rejeição.
  • 5
    Em 27 de novembro de 1975, em uma conferência em Yale (Valas, 1990).
  • 6
    Aqui temos uma diferenciação interessante a ser feita, sobre as leis e a Lei. As leis são entendidas como normas jurídicas que regulam as relações entre os homens. A Lei é a instância simbólica, oriunda do fim do Édipo, que insere o sujeito no circuito do desejo e da cultura.
  • 7
    Mais detalhes sobre essa afirmação estão disponíveis em Sequeira (2005). A autora construiu a história de vida de um preso comum, que ilustra bem a diferença entre o Pedro e o restante dos presos (Capítulo III – narrativa de Paulo) e também apresentou outro caso, o de Severino, que ilustra uma apatia, uma vida sem vida, abandonada (Capítulo II – vidas abandonadas).
  • 8
    Sobre essa discussão de pena simbólica, ver Sequeira (2000).
  • 9
    Sobre essa discussão, ver Sequeira (2006).
  • 10
    Ver Peixoto Junior (1999), que sistematizou a produção psicanalítica sobre perversões, do sexual ao social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      16 Abr 2009
    • Revisado
      13 Mar 2008
    • Recebido
      11 Out 2007
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