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De Ana-e-seu-bebê à Ana: um percurso clínico com Winnicott

From Hanna-and-her-baby to Hanna: a clinical path with Winnicott

Resumos

Segundo Winnicott, o nascimento de um bebê desencadeia em sua mãe um adoecimento/saudável que permite que esta exerça suas funções fundando condições facilitadoras ao desenvolvimento de seu filho. No caso clínico apresentado, um impasse nessa relação primordial precipitou a entrada em análise e ambos compareciam às sessões apresentando respostas à situação instaurada a partir de planos defensivos diferenciados: o adoecimento físico (bebê) e a fuga à intelectualidade (mãe). Apresentam-se alguns movimentos clínicos entendo-os a partir dos conceitos winnicottianos de integração, personalização, holding, placement e espaço potencial. Finaliza-se tecendo considerações sobre a possibilidade do espaço clínico exercer a função de espaço potencial no interior do qual a unidade mãe/bebê ganhou contornos de diferenciação, demandando, da analista, uma reflexão sobre a função que ocupou nessa cena.

clínica psicanalítica; preocupação materna primária; espaço potencial


The birth of a baby brings the mother to a special psychological state that allows her to exercise her maternal functions in order to create a facilitating environment for her child's development. We present a clinical case study where this relation came to a dilemma that caused a demand for psychoanalysis treatment where both came to the sessions presenting different defense mechanisms: somatic illness (baby) and rationalizing (mother). We describe some clinical movements trying to understand them from some of Winnicott's concepts of integration, personalizing, holding and potential space. We conclude by proposing that clinical space can perform the function of potential space so that the unity mother/baby might more differentiation. Some considerations about transference and counter-transference are made.

psychoanalytic clinic; primary mother preoccupation; potential space


De Ana-e-seu-bebê à Ana: um percurso clínico com Winnicott

From Hanna-and-her-baby to Hanna: a clinical path with Winnicott

Nadja Nara Barbosa Pinheiro

Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Nadja Nara Barbosa Pinheiro Universidade Federal do Paraná, Laboratório de Psicanálise, sala 115 Praça Santos Andrade, Centro Curitiba, PR, CEP: 80060-240 E-mail: nadjanbp@ufpr.br

RESUMO

Segundo Winnicott, o nascimento de um bebê desencadeia em sua mãe um adoecimento/saudável que permite que esta exerça suas funções fundando condições facilitadoras ao desenvolvimento de seu filho. No caso clínico apresentado, um impasse nessa relação primordial precipitou a entrada em análise e ambos compareciam às sessões apresentando respostas à situação instaurada a partir de planos defensivos diferenciados: o adoecimento físico (bebê) e a fuga à intelectualidade (mãe). Apresentam-se alguns movimentos clínicos entendo-os a partir dos conceitos winnicottianos de integração, personalização, holding, placement e espaço potencial. Finaliza-se tecendo considerações sobre a possibilidade do espaço clínico exercer a função de espaço potencial no interior do qual a unidade mãe/bebê ganhou contornos de diferenciação, demandando, da analista, uma reflexão sobre a função que ocupou nessa cena.

Palavras-chave: clínica psicanalítica, preocupação materna primária, espaço potencial

ABSTRACT

The birth of a baby brings the mother to a special psychological state that allows her to exercise her maternal functions in order to create a facilitating environment for her child´s development. We present a clinical case study where this relation came to a dilemma that caused a demand for psychoanalysis treatment where both came to the sessions presenting different defense mechanisms: somatic illness (baby) and rationalizing (mother). We describe some clinical movements trying to understand them from some of Winnicott's concepts of integration, personalizing, holding and potential space. We conclude by proposing that clinical space can perform the function of potential space so that the unity mother/baby might more differentiation. Some considerations about transference and counter-transference are made.

Keywords: psychoanalytic clinic, primary mother preoccupation, potential space

O exercício da clínica nos coloca, constantemente, diante de situações inesperadas que demandam de nossa parte uma abertura ao inusitado e à surpresa. Foi assim que eu me senti quando Ana me procurou para dar início à sua análise e, ao telefone, me pediu para levar consigo seu bebê que nascera há menos de um mês e não teria como ficar em casa sem ela.1 1 Por questões éticas, o nome da paciente foi modificado, assim como algumas situações omitidas. Igualmente, aguardou-se mais de 5 anos após o término do atendimento para efetuarmos sua publicação. Sem muitas certezas, concordei com seu pedido, atenta à sua importância, pois, se Winnicott estava certo (e acredito que sim), o início da maternidade é marcado por um período no qual, a mãe, totalmente devotada a seu bebê, centraliza suas forças, afetos, atenção e investimentos em torno do novo ser que dela depende em totalidade. Sendo assim, a primeira pergunta que me fiz, enquanto os aguardava em meu consultório, foi sobre o que teria ocorrido que tornara necessário a essa mãe, tão prematuramente, desviar o olhar de seu bebê e procurar uma análise? Um passo, que sabemos, só é dado a partir de um impasse, um descompasso no viver que torna algo bastante difícil de ser suportado. O que houve, aí, que precipitou a emergência da dor? O interessante é que, como veremos, se a mãe respondeu a esse impasse no plano psíquico recorrendo à fuga, à intelectualidade como defesa, o bebê, sem poder recorrer a tais instrumentos, respondia corporalmente, adoecendo fisicamente. Fato que nos indica que, paradoxalmente, a vivência da maternidade se processou de uma forma, simultaneamente, saudável e adoecida. Saudável, pois, em certa medida, Ana pôde sustentar a vivência de uma preocupação materna primária e se "fusionar" ao seu bebê. Porém, esse processo trouxe, por seu turno, dificuldades para ambos.

Na presente comunicação, tentarei discorrer sobre alguns desdobramentos desse processo clínico focalizando como o setting clínico pôde proporcionar as bases para que houvesse a paulatina construção de um espaço potencial no interior do qual um esboço de separação entre a paciente e seu bebê pudesse ir surgindo e ambos, mãe e filho iniciassem uma trajetória vivencial singularizada. Ao final, algumas considerações a respeito do campo transferencial serão tecidas na medida em que o lugar que fui convocada a ocupar nessa cena, me demandou a revivescência de afetos em relação à minha própria maternidade. Um processo difícil que suscitou movimentos contra- transferenciais intensos que, contudo, se mostraram necessários à condução desse trabalho clínico, em particular.

Nesse percurso, as fontes bibliográficas de minha reflexão se concentrarão, sobretudo, em Winnicott. Não pelo fato desse tema ser completamente original ou que não haja autores, no momento, com ele trabalhando. Mas, exclusivamente, por uma razão particular, pois, na construção de modos de compreensão e condução do caso em questão, meus pensamentos, quase que involuntariamente, retornavam a seus textos e foram neles que (re)encontrei os fundamentos norteadores que deram sustentação às reflexões que apresento a seguir.

O transcorrer clínico

Enquanto eu os aguardava, em meu consultório, para a primeira entrevista, levantei inúmeras hipóteses: talvez esse bebê não tivesse sido desejado; talvez fosse fruto de uma relação não "formal" ou fosse fruto de uma violência; talvez fosse seu primeiro filho e ela estivesse assustada diante da responsabilidade; talvez o pai os tivesse abandonado ao longo da gravidez... talvez... talvez... talvez... A chegada de Ana com seu bebê demonstrou o quanto eu estava enganada. Ana possuía um relacionamento estável e formalizado já há uns 10 anos. Esse era o segundo dos planejados e desejados filhos do casal, ambos nascidos nos momentos em que consideravam certo. Além disso, ela possuía um emprego também estável, que a permitia desfrutar os cinco meses de licença maternidade sem sobressaltos e preocupações até o retorno ao trabalho no qual ela tinha um horário flexível, creche para o bebê, um salário razoável e próximo de sua casa. Ana parecia, no todo, bastante bem não fossem dois pontos que me chamaram a atenção: o fato de ela ter procurado ajuda em um momento tão prematuro da vida de seu bebê e, principalmente, a inquietação visível do pequeno que demonstrava grande desconforto e agitação ao longo das entrevistas preliminares, capturando, desde o início, a minha atenção. Ele exigia e, simultaneamente, recusava o seio de sua mãe. Ao mesmo tempo em que pegava o bico de seu peito, o soltava, choramingava, (re)iniciava a busca, a mordiscada, o breve sugar, a soltura, o choramingo... em um movimento circular incessante. Ana tentava acalmá-lo, o trocava de posição, de seio, o colocava para arrotar... andava pelo consultório com ele... às vezes obtinha bons resultados, às vezes não... e eles iam embora.

Lembrei-me do que dizia Winnicott (1963/1983a): não há aquilo que chamamos de um bebê se não levarmos em conta o cuidado materno. E pensei que talvez, naquele momento, de alguma forma, o bebê e sua inquietação e insatisfação expressavam o que sua mãe, conscientemente, desconhecia. As reações corporais do bebê me demonstravam, sobretudo, a confusão no exercício da função materna que acabava sendo expressa através das reações contraditórias de seu filho: entre o sugar e o soltar o bico; entre a satisfação e a frustração, entre o encontro e o desencontro, entre a vivência de uma experiência de satisfação compartilhada e o isolamento. Percebo que nessa relação não ocorria o suporte materno (holding) suficiente, que Winnicott (1960/1983b) considerava como fundamental para o crescimento emocional de um bebê, pois a presença materna não era suficiente à sustentação da vivência de uma experiência a dois, o que nesse momento de desenvolvimento da vida de um bebê significa um dilema entre o viver e o morrer, pois é na sustentação oferecida pela mãe que é dada ao bebê a possibilidade de ser, de existir. Razões pelas quais, para Winnicott (1960/1983b), o holding ultrapassa os cuidados técnicos da maternagem e inclui, também, algo da ordem emocional e afetiva que se centraliza em torno da confiança e da segurança.

Comecei a pensar, então, que talvez residisse aí a angústia de Ana e a busca pela análise: um pedido de ajuda endereçado a mim, uma mulher, no sentido de melhor entender o que é ser mãe, e poder ofertar com isso, a vida simbólica a seu filho. Acompanhar o desenvolvimento do bebê talvez nos ajudasse nesse caminhar em direção à maternidade, na medida em que seu corpo era capaz de expressar, de forma visível, o estado afetivo confuso de sua mãe. Assim, nesse caso, tomei como ponto de partida a proposta de Winnicott (1956/2000a), segundo a qual, a esse estágio de dependência total em que vive o bebê ao nascer, deve corresponder, em simetria, um posicionamento materno de total devoção e empatia, o que significa que a mãe, ao identificar-se com seu bebê, pode antecipar imaginariamente as necessidades de seu filho, e, em decorrência, satisfazê-las.

Winnicott (1956/2000a) nos adverte que, nesse instante, é importante que a mãe crie fantasiosamente o seu bebê de forma a poder interpretar suas necessidades e satisfazê-las. Assim procedendo, ela vai provendo de significados o campo fisiológico do pequeno ser e permitindo com seu gesto que, paulatinamente, uma trama psíquica vá sendo constituída. Por seu turno, tal experiência permite ao bebê que este vá construindo a ilusão que é ele próprio quem manipula, onipotentemente, o mundo dos objetos em benefício de sua satisfação. Assim, se como nos informa Freud (1900/1986a), a construção primária do aparelho psíquico se dá no plano da alucinação, Winnicott (1953/1975a) nos adverte que é importante perceber que os objetos do mundo estavam bem ali para serem encontrados. Tal perspectiva nos possibilita entender que há um amparo da realidade material que ultrapassa o caráter alucinatório fundante do estrato psíquico. Não à toa, constitui uma das funções maternas apresentar os objetos do mundo ao seu bebê para que desse suporte ele possa ir construindo seus mundos, de tal forma que as realidades interna e externa, ainda que correlacionadas, se mantenham separadas.

O interessante era que no caso de ana-e-seu-bebê, a identificação materna se apresentava espelhada e o bebê refletia o estado emocional materno de confusão, insegurança e angústia. O que me permitia, ao olhá-lo, perceber o que se passava com sua mãe no nível sensitivo e não no nível cognitivo da racionalização, pois nesse último, Ana se organizava de forma coerente e completamente racional, não demonstrando nenhum tipo de desorganização. Fato que me fez retomar a hipótese winnicottiana segundo a qual, tal distinção entre os planos perceptivos de uma vivência a dois se refere intrinsecamente aos primeiros momentos de vida de um bebê e correspondem ao processo de integração que fornece as bases para a personalização, ou seja, para a construção das malhas psicossomáticas que dão fundamento para a constituição da mente. Para o autor, nos estados saudáveis, psique-soma e mente devem funcionar integrados e harmoniosamente. Para que tal processo se estabeleça, em sua perspectiva, preocupada e identificada ao seu bebê, a mãe, ao atender às necessidades inicialmente fisiológicas de seu bebê de forma repetitiva, consistente e organizada, vai permitindo que algo se acople à satisfação somática cunhando o rudimento de sensações psíquicas. Para Winnicott (1956/2000a), esse é o início da constituição do campo psicossomático, ou seja, o início de uma trama que comporta o funcionamento da psique relacionada ao soma por toda vida. Aí residindo, para o autor, a importância desse cuidado ambiental inicial para o bebê, posto ser esse cuidado o suporte necessário e facilitador para colocar em marcha, e em andamento, o desenvolvimento fisiológico, emocional e afetivo que o bebê possui, potencialmente, ao nascer. Esse suporte é aquilo que permite que as primeiras experiências de satisfação gradualmente inscrevam um estofo emocional que permite um contínuo na vivência de existência. As constantes e sucessivas procuras do bebê pelo seio de Ana e pela confirmação de sua presença física ao seu lado me pareciam uma ruptura justamente nessa continuidade do existir que necessitava ser constantemente re-assegurada para que o bebê pudesse ter algum conforto. O que apontava também para a dificuldade de se estabelecer a integração do soma na psique.

Importa salientar que para que esse processo de integração das experiências inicialmente dispersas, relativas ao momento de não-integração ocorra, nos explica Winnicott (1963/1983a), há, de um lado, um bebê premido por necessidades a serem satisfeitas, e, por outro, uma mãe ansiosa em satisfazê-las. É do encontro desses dois anseios que a vivência de uma experiência pode ocorrer. Uma vivência que se torna única e singular, acalmadora e integradora, ao redor da qual outras vivências vão se agrupando e se tornando significativas, transformando o que era da pura ordem orgânica em somato/psíquica. O interessante, no caso descrito, era que paradoxalmente, a mãe se inscrevia no exercício próprio da preocupação materna primária, oferecendo condições de fusionabilidade com seu bebê. Mas, por razões desconhecidas, tal condição não se sustentava e o que eu observava ocorrer entre ana-e-seu-bebê apontava não para o encontro, mas para o desencontro de experiências, a partir da qual cada participante respondia em planos diferenciados de possibilidades: apresentando dores psíquicas (a mãe) e dores somáticas (o filho). O que se apresentava assim através do bebê dizia respeito a um tempo de constituição subjetiva referente ao estado de não-integração original a partir do qual, caso o ambiente forneça regularidade e suporte vai, aos poucos, sendo integrado em um ego organizado sustentado pelas malhas psicossomáticas. Para isso é necessário, como nos informa Winnicott (1988/1990), que a mãe funcione como um ego auxiliar de seu bebê até o momento em que este possa dela prescindir. Não sendo tal função exercida suficientemente bem, a integração psique-soma tendia ao rompimento e o bebê, defensivamente, adoecia. Em contrapartida, Ana apresentava através de seu modo coerente e organizado de ordenar sua maternagem e seu discurso nas sessões, a outra ponta desse movimento: a fuga para a intelectualidade, como defesa (Winnicott, 1949/2000b).

Uma vez partindo do princípio que o estado incessante de não-integração do pequeno bebê, me indicava que este espelhava uma desorganização materna que se escamoteava atrás de uma consistente defesa psíquica (a fuga para a intelectualidade), tentei entendê-la a partir daquilo que Ana poderia ir me revelando sobre seus conflitos. Após algum tempo, o desconforto difuso que Ana trazia como queixa inicial se desdobrou em novos sentidos. Sentia-se fragmentada, despedaçada, confusa, desorientada. Sua vida abria-se para ela como um enigma. Estava confusa quanto à sua profissão, seu casamento, sua capacidade de ser mãe. Não tinha certeza sobre as escolhas que havia feito. Iniciara sua vida profissional atuando na clínica, depois enveredara para a carreira acadêmica, hoje gostaria de ter ficado na clínica e gostaria de retomá-la, talvez a busca pela análise tivesse sido o primeiro passo para esse recomeço (seria mesmo desse recomeço que se tratava?). O que ela realmente podia dizer era que se sentia insatisfeita profissionalmente, pois não se percebia produzindo nem em um nem em outro lugar.

Confusão de lugares que também aparecia em relação a sua vida afetiva. Há anos atrás mudara de sua cidade buscando desfazer uma relação amorosa que a fizera muito sofrer. Anos depois retornara à sua cidade natal acompanhando o atual marido, nova relação amorosa, que havia conhecido quando este era ainda casado com outra mulher. O retorno para sua cidade natal produziu novos deslocamentos. Uma transferência no trabalho que a fez ocupar um lugar que não era o seu. Pertencia a uma instituição federal na cidade em que prestara concurso e estava emprestada em outra instituição. Em termos burocráticos ela não conseguia se desembaraçar dessa situação. O interessante era que ela percebia que havia algo afetivo que dificultava esse desembaraço para além das dificuldades concretas. Mas não sabia bem o quê... De forma similar, o mesmo embaraço aparecia em relação a seu casamento e de um modo não compreensível, ela não se sentia plenamente casada e perante os amigos e familiares de seu marido parecia pressentir o "fantasma" de sua ex-mulher os rondando. Sensação inexplicável uma vez que racionalmente e legalmente estavam casados. Divisão e separação que, no entanto, se tornava concreta no campo financeiro. Cada um tinha sua conta bancária separada, suas responsabilidades em pagar determinadas contas inflexivelmente combinadas, sem permitir que o dinheiro dos dois se misturasse. Lembro-me do que afirmava Freud (1913/1986b) em relação a todo simbolismo inerente à relação entre o dinheiro e distribuição de investimentos libidinais e penso: porque tanta separação? Porque não há mistura? Porque essa dificuldade em construir um campo comum no qual haja um planejamento do casal? E os filhos, como entravam nessa composição? Suas vidas pareciam compartimentos fragmentados, separados, divididos, organizados como viveres paralelos e não integrados, uma multiplicidade de lugares que se tocava, mas que não se interpenetrava.

O que todas essas experiências e sensações me indicavam era que Ana até agora não conseguira estabelecer a construção de um lugar genuinamente seu. Em todos os campos de sua vida sentia-se como se estivesse ocupando o lugar de outra pessoa, o que me fez pensar como, então, ela poderia se fazer "lugar" de referência para seu filho e permitir com isso que a integração psique-soma se estabelecesse satisfatoriamente. Lembrando que, para Winnicott (1988/1990), o importante nessa integração é que ela seja complementada com a sensação de ir se delimitando um contorno corporal que faça a função de um lugar (placement) no qual se possa habitar internamente, confortavelmente. Designando esse processo de personalização, o autor sustenta a necessidade que este permita que a criança comece a perceber a diferença entre si e os outros assim como perceber que ela habita um corpo que é seu, um lugar, um contorno, que o singulariza perante si e os outros. Porém para que tal processo ocorra, à mãe cabe a função de sustentar, com sua presença regular ao lado de seu bebê, modos de organização de forma a fornecer-lhe os sentidos e significações de um mundo que lhe vai sendo apresentado em pequenas doses significativas (Winnicott, 1965/1982).

No entanto, o que Ana me apresentava era um grande afastamento entre o sentir e o pensar, o qual trazia em consequência a perda do sentido do viver, um esvaziamento no sentido da existência. As raízes dessa defesa são situadas por Winnicott (1949/2000b) na dificuldade do estabelecimento de uma relação entre o psique-soma e a mente. Entendendo essa última como os processos cognitivos como o pensar, o racionalizar, o calcular, o planejar, o ordenar, o organizar, etc. Para o autor, em um desenvolvimento emocional saudável, tais processos cognitivos, se estabelecem em seu tempo e sua hora em sintonia com as atividades psicossomáticas. O desequilíbrio nessa harmonia quando introduzido induz a respostas defensivas que podem tender a uma desconstrução da malha psicossomática (se expressando através de adoecimentos psicossomáticos), ou a um acréscimo da atividade intelectual e um paralelo empobrecimento do campo transicional. Interessante que Ana me contava, em relação à sua filha mais velha, que vinha encontrando uma dificuldade muito grande em "brincar" com ela. Sabia racionalmente da importância que tem para o relacionamento entre as duas poderem brincar juntas, mas não conseguia obter prazer nisso e nem mesmo se desligar de seus afazeres para poder apenas sentar ao seu lado e brincar. Mais interessante ainda, que Ana complementava que talvez isso não fizesse muita falta para sua filhinha, pois essa sempre foi muito esperta e desde muito pequenininha já fazia muitas coisas sozinhas. Confirmação da proposta winnicottiana de que em reação à impossibilidade materna em exercer sua função de ser, por um tempo, aquela que organiza o mundo para seu bebê, este desenvolve, como suplência, prematuramente, atividades intelectuais que o permita organizar o mundo para si mesmo, porém, ao preço de uma resposta adoecida da fuga à intelectualidade que empobrece a capacidade infantil de brincar criativamente produzindo uma cisão no funcionamento integrado entre o psique-soma e a mente.

Deduzi, então, que essa mesma limitação na área transicional aparecia também em relação ao bebê e estava afetando o seu crescimento no sentido de não dar suporte suficiente para seu desenvolvimento afetivo, com a criação de uma área comum na qual o inter-jogo subjetivo pudesse ir acontecendo e a gestação dos símbolos que o ligassem e o separassem de sua mãe pudesse ir sendo constituída de forma a sustentar o processo de separação/união de seus mundos interno e externo (Winnicott, 1953/1975a). E, ali, o que eu percebia era a construção de um equilíbrio muito tênue que precipitava a se desfazer a cada tentativa de afastamento físico e geográfico entre os dois. Não à toa a adaptação do bebê à creche foi marcada por sucessivos insucessos. Ana queixava-se da inabilidade dos funcionários da instituição em contornar o choro de seu bebê e a fragilidade imunológica deste que constantemente adoecia tendo que ficar em casa por alguns dias, o que circularmente dificultava sua adaptação à escolinha e o mantinha ao lado de sua mãe. Ao lado dela, inquieto; longe dela, adoecendo...

Transferência e transicionalidade: e a analista, que lugar ocupa nessa cena?

Sempre que damos início a uma análise ficamos atentos aos lugares nos quais os vínculos transferenciais do paciente nos convocarão a ocupar. Sabemos, desde Freud (1912/1986c), que da transferência não podemos escapar, e nem seria desejável o fazermos, pois é através dela que operamos, na clínica, a transformação psíquica, na medida em que por meio de seus movimentos há a (re)atualização dos processos inconscientes, no espaço clínico de uma sessão. Trabalhamos, então, com aquilo que o paciente nos oferece como material tanto no campo da discursividade quanto no campo da atuação, sobre aquilo que ambos nos indicam acerca das tramas sobre as quais a subjetividade se constituiu. E o que ana-e-seu-bebê me apresentava? O que me demandava? Em qual lugar me colocava como participante da cena analítica? Aos poucos fui percebendo que para ana-e-seu-bebê congelara-se o espaço de sustentação e segurança que permite que a marcha à maturidade se inicie e continue ao longo da vida. Assim, abria-se, na clínica, a necessidade de que o setting analítico viesse a se constituir como esse lugar de confiança relativo à função materna na construção da subjetividade. Dessa forma, no caso de ana-e-seu-bebê comecei a conceber que o campo transferencial constituído se comportava como um campo transicional no qual essas primeiras experiências vivenciais pudessem ocorrer e fossem transformadoras tanto para mãe quanto para o filho. Para tal me pareceu necessário que houvesse um longo tempo de preparação, como no jogo da espátula proposto por Winnicott (1941/2000c) entre mim e ana-e-seu-bebê, para que essas situações primitivas pudessem ocorrer. Tal perspectiva sobre a transferência se coaduna com o pensamento de Winnicott (1955/2000d), que a concebe como um movimento que ultrapassa o plano da repetição de vínculos objetais infantis ao constituir-se como um campo de experimentação, de ilusão, de vivências primitivas anteriores, inclusive, à capacidade de estabelecimento das relações de objeto.Nesses momentos, nos adverte o autor, o manejo clínico antecede o uso da interpretação, como instrumento, uma vez que o que está em jogo refere-se a um momento de constituição subjetiva no qual ainda não há recursos psíquicos capazes de promover a simbolização. Assim, se a necessidade de ana-e-seu-bebê era de uma outra ordem, que não ainda simbólica, tratava-se, nesse momento, de permitir que o setting funcionasse como holding. Mas para que tal fosse possível, a mim fora demandado assumir a função materna dessa unidade composta de dois e permitir com isso que alguma delimitação e diferenciação entre eles pudessem ir acontecendo sem que isso abrisse para ambos a possibilidade de inserir a ameaça do colapso.

Interessante que o sentimento que tal demanda suscitava em mim era o de amorosidade e não o de raiva (o que comumente ocorre comigo na condução de atendimentos com crianças) e a dificuldade maior que eu encontrava durante as sessões era a de superar minha dificuldade em prestar atenção ao que Ana dizia ao ter um bebezinho tão lindo no consultório e, muito facilmente, minha atenção e meu olhar se concentravam nele. Lembro-me como eram prazerosos os momentos em que Ana o deixava em meu colo, ao precisar ir ao banheiro ou ajeitar algumas coisinhas do bebê em sua sacola. Momentos de recordação, de revivescência, de re-atualização de sensações sensitivas, pelo odor, pelo contato da pele, pelo som dos balbucios que trocávamos, sensações que momentaneamente me transportavam para outro tempo, outro lugar, outro espaço de minha vida. Que me remetiam a um passado distante de minha vida, já que nessa altura meus próprios filhos estavam bem crescidos (com idades que variavam entre a adolescência e o início da vida adulta). Quando Ana o retomava em seus braços para irem embora, ficávamos nós duas falando sobre o bebê, como ele havia crescido, engordado, aquietado, ou como o narizinho estava entupido, ou como ele estava choroso, enfim, por alguns minutos nós duas nos endereçávamos ao bebê e fazíamos dele um elo entre nós, um objeto transicional nosso.

Porém tal situação inusitada em minha experiência clínica incluiu novidades instigantes. Seria correto agir assim? O que ocorria nesses momentos? Era psicanálise? Era resistência contratransferencial? Estava saindo da minha posição? Por outro lado, como lidar internamente com as sensações que emergiam? A amorosidade, a alegria em recebê-los, a tristeza quando iam embora, a inveja por não estar no lugar de Ana, e poder vivenciar uma gravidez, a saudade e o questionamento sobre a minha própria maternidade e feminilidade. Como fazer tudo isso retornar para o exercício da clínica? Se por um lado tais sensações serviram de estofo para a minha análise pessoal no desdobramento e desvelamento de importantes configurações, por outro trouxe novidades importantes para a minha compreensão da clínica. E, mais uma vez tomando o pensamento winnicottiano como fio condutor, comecei a pensar que tal situação era a necessária para promover a transformação naquele caso singular. Que eu pudesse sustentar com minha presença e dedicação o que Ana não estava conseguindo fazer em relação a seu filhinho, que eu fosse, naquela hora, a mãe suficientemente boa que permitisse a abertura de campo da transicionalidade para ambos. Assim, nesses momentos iniciais, eu tinha o cuidado de não trazer as minhas próprias experiências em relação aos cuidados maternos, nem fazer interpretações a respeito da forma como Ana agia com seu bebê, pois elas, me parecia, soariam como intromissões, como invasões ambientais sobre a área de experimentação, sobre o espaço transicional em vias de se constituir caso eu a desautorizasse em suas próprias manipulações experimentais. Nesse momento, ao contrário, eu escolhi ouvi-la, indagar sobre o seu cotidiano com o bebê, comentar alguns procedimentos, e ouvir, ouvir, ouvir. Assim o fazendo, procurava dar sustentação às suas argumentações, descobertas e explorações em relação à função materna. Creio que assim, permitia que Ana pudesse ir ao encontro da construção de sua maternidade e do lugar que podia ocupar ao lado de seu filho. Se tais atitudes não se coadunam com o que se espera em uma análise standard, creio que era o que precisava ser feito, posto que tínhamos ali não um paciente standard, isto é, um neurótico exercendo todo o manancial de defesas simbólicas padrões, mas uma mãe cuja maternidade fez regredir à sua própria infância e, de forma singular, reativar defesas as mais primitivas, promovendo uma dissociação entre o psique-soma e a mente e o correlato empobrecimento da transicionalidade. Nesse entendimento, mais uma vez recorri a Winnicott (1975b) que indica que a análise se faz na interpenetração de duas áreas lúdicas, do paciente e do analista. Se um dos dois não está podendo brincar, no sentido criativo do termo, há a necessidade que essa área seja aberta como operador clínico. Assim, se o exercício da maternidade, ao longo de minha vida, vinha se constituindo como uma função que me trazia prazer, talvez fosse interessante que continuasse a ser assim no interior desse espaço clínico, pois dessa abertura ao brincar de mãe e ao prazer daí advindo dependia a possibilidade de ana-e-seu-bebê retomar o seu processo de crescimento e desenvolvimento emocional que a permitisse exercer a função materna de uma forma mais criativa e prazerosa. E assim foi feito, até o dia em que ela não precisou mais disso e o bebê não retornou mais às sessões, pois ele não demandava mais a presença de sua mãe em todos os momentos, podendo ficar sem ela, na creche ou em casa, sossegado...

E aí, a análise de Ana tomou um novo rumo. Mas isso já é outra história, que, quem sabe, poderei retratar em outro momento e lugar...

Recebido em 14.03.2010

Primeira decisão editorial em 05.06.2013

Versão final em 18.06.2013

Aceito em 05.08.2013

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  • Endereço para correspondência:

    Nadja Nara Barbosa Pinheiro
    Universidade Federal do Paraná, Laboratório de Psicanálise, sala 115
    Praça Santos Andrade, Centro
    Curitiba, PR, CEP: 80060-240
    E-mail:
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    Por questões éticas, o nome da paciente foi modificado, assim como algumas situações omitidas. Igualmente, aguardou-se mais de 5 anos após o término do atendimento para efetuarmos sua publicação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      14 Mar 2010
    • Aceito
      05 Ago 2013
    • Revisado
      18 Jun 2013
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