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O corte interpretativo em psicanálise

The interpretative cut in psychoanalysis

Resumos

Este estudo propõe uma construção teórica sobre a função do corte como fundamento formal da interpretação psicanalítica. Através da abordagem dos aspectos topológicos do corte em Lacan, interpretação e ato psicanalítico serão reunidos sob o conceito de corte interpretativo. Para tanto, o inconsciente será considerado superficial, o que permite uma discussão com noções clássicas da psicanálise freudiana e suas incidências no campo da técnica psicanalítica, principalmente em relação à interpretação.

psicanálise; topologia; interpretação; técnica


This study proposes a theoretical base for the concept cut as a formal foundation of psychoanalytical interpretation. Through the topological aspects approach of the concept cut in Lacan, interpretation and psychoanalytical act will be united under the concept of interpretative cut. For this purpose, the unconscious will be considered superficial, allowing a discussion with the classic notions of Freudian psychoanalysis and its implications in the field of the psychoanalytical method, mainly in relation to interpretation.

psychoanalysis; topology; interpretation; technique


O corte interpretativo em psicanálise

The interpretative cut in psychoanalysis

Vitor Hugo Couto Triska; Marta Regina de Leão D'Agord

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Vitor Hugo Couto Triska Rua Dario Pederneiras 354/403, Bairro Petrópolis Porto Alegre, RS, CEP: 90630-090 E-mail: vitortriska@yahoo.com.br

RESUMO

Este estudo propõe uma construção teórica sobre a função do corte como fundamento formal da interpretação psicanalítica. Através da abordagem dos aspectos topológicos do corte em Lacan, interpretação e ato psicanalítico serão reunidos sob o conceito de corte interpretativo. Para tanto, o inconsciente será considerado superficial, o que permite uma discussão com noções clássicas da psicanálise freudiana e suas incidências no campo da técnica psicanalítica, principalmente em relação à interpretação.

Palavras-chave: psicanálise, topologia, interpretação, técnica

ABSTRACT

This study proposes a theoretical base for the concept cut as a formal foundation of psychoanalytical interpretation. Through the topological aspects approach of the concept cut in Lacan, interpretation and psychoanalytical act will be united under the concept of interpretative cut. For this purpose, the unconscious will be considered superficial, allowing a discussion with the classic notions of Freudian psychoanalysis and its implications in the field of the psychoanalytical method, mainly in relation to interpretation.

Keywords: psychoanalysis, topology, interpretation, technique

Através da abordagem dos fundamentos topológicos do conceito de corte na obra de Lacan, será possível equiparar dois termos que, dentro do contexto da psicanálise lacaniana, designam uma e mesma operação. Serão reunidos, portanto, a interpretação e o ato psicanalítico dentro da noção de corte interpretativo; o que não significa, porém, que esse termo reunirá sob si todas as possibilidades da técnica psicanalítica.

Lacan teve oportunidade de criticar o amplo emprego de "interpretação" pelos psicanalistas que lhe foram contemporâneos e que assim teriam dissipado os conceitos freudianos: "A dificuldade de interpretar e de esclarecer o termo [interpretação] faz com que o vago termo 'analisar' seja empregado com freqüência" (1955/1998, p. 334). Pois, considerada essa dificuldade que Lacan aponta, colocamos a questão: o uso amplo e diverso de "corte", "ato" e "interpretação" não seria diretamente causado pela não abordagem da elaboração topológica subjacente? Este trabalho não busca dogmatizar a obra lacaniana, mas antes considerá-la dentro do seu rigor, abordando suas bases a fim de melhor apreendê-la.

A importância de resgatar o sentido do conceito de corte se justifica quando reconhecemos que tal é o caminho que Lacan encontra para criticar e refundar a interpretação psicanalítica, operação central ao campo da técnica, no contexto do retorno a Freud. Significaria isso uma descontinuidade entre os dois autores?

Existem conceitos analíticos de uma vez por todas formados? A manutenção quase religiosa dos termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica, a que se remete ela? Tratar-se-á de um fato muito surpreendente na história das ciências - o de que Freud seria o primeiro, e permaneceria o único (...) a ter introduzido conceitos fundamentais? Sem esse tronco, sem esse mastro, esse piloti, onde amarrar nossa prática? Poderemos dizer mesmo que se tratam, propriamente falando, de conceitos? Serão conceitos em formação? Serão conceitos em evolução, em movimento, a serem revistos?

(Lacan, 1964/1998, p. 17-18).

Trechos assim demonstram que o retorno a Freud não é exatamente o resgate de um suposto sentido "verdadeiro" ou "correto" da obra, mas antes uma crítica que ressignifica seus conceitos e lhe acrescenta outros. Neste trabalho propõe-se um estudo acerca do corte que permita uma construção esclarecedora sobre sua função enquanto fundamento formal da interpretação psicanalítica; não defendendo que haja apenas um sentido possível de conceber a questão, porém não se esquivando de propor um que apareça como mais preciso e válido para a prática clínica.

Um trabalho topológico preliminar

É imprescindível fazer os seguintes procedimentos para visualizar os traçados com os quais lidaremos na sequência do trabalho. São cinco passos simples e rápidos:

1) construir uma banda de Moebius com algum material que possa ser cortado;

2) em uma folha de papel sobre um plano, desenhar a borda da banda de Moebius sem tirar o lápis da folha (aparecerá um traçado cuja forma é chamada de oito-interior);

Primeira conclusão: a borda da fita de Moebius é resultado de uma combinatória de pontos homóloga ao oito-interior.

3) traçar uma linha na área central da banda de Moebius (equidistante aos lados da borda), percorrendo toda sua extensão até que o traçado encontre seu ponto de partida;

4) desenhar o traçado do item 3 numa folha de papel sobre um plano, também sem tirar o lápis (novamente aparecerá o oito-interior);

5) cortar a fita de Moebius com a tesoura percorrendo o traçado do item 3.

Segunda conclusão: o corte no centro da fita de Moebius é também em forma de oito-interior e, por ter essa estrutura combinatória, faz uma nova borda, duplicando o número de lados da superfície.

Oito-interior: repetição e diferença

Em A Identificação (1961-62/2003), Lacan utiliza um traçado topológico para propor uma nova noção de repetição em psicanálise. É o que representa a figura 1, onde uma única linha se atravessa para depois se fechar. No ponto onde o traçado se encontra, porém, admitiremos que a linha não passa por cima de si mesma, mas de fato se auto-atravessa, constituindo um único ponto, como um quiasma ou "X". É o chamado oito- interior ou volta-dupla (em francês, double boucle) e consiste numa combinatória de pontos conforme propõe Eidelsztein (2006). É o que demonstra a figura 2, onde se dá a sequência A-B-C-D-E-B-F. Veremos mais adiante que a noção de borda (outro termo empregado ampla e diversamente) também encontra aí seu apoio.



Em sua característica de grafo planar, 2D, o oito-interior demonstra a propriedade de possuir um ponto (B) sobre o qual se passa duas vezes no deslocamento A-F; eis a repetição. Caso não ligarmos A e F com um novo segmento que fecharia o traçado, podemos conectar uma sequência infinita de estruturas assim, promovendo um movimento de bobina onde cada volta estará caracterizada por um ponto que se repete. Basta imaginar que, de forma homóloga ao percurso A-F, um percurso F-L (F-G-H-I-J-G-L), que também abriga uma repetição (G), sucederia a A-F e assim por diante.

Essa combinatória pode ser representada diacronicamente como a sucessão A-B-C-D-E-B-F. O traçado da figura 2, ao voltar sobre si mesmo em B, trata de tornar mais apreensível o funcionamento do oito-interior ao explicitar o efeito de sincronia. Trata-se, porém, de dois Bs diferentes, que podem ser sobrepostos, ou da repetição do mesmo B? Analisemos pormenorizadamente algumas passagens de A Identificação a fim de reconhecer a importância dessa contribuição de Lacan e buscar alguns caminhos para a pergunta.

Efeito de significante, o corte foi primeiro para nós, na análise fonemática da linguagem, essa linha temporal, mais precisamente sucessiva dos significantes que os habituei a chamar até agora de cadeia significante. Mas, o que vai acontecer, se agora lhes incito a considerar a própria linha como corte original?

(Lacan, 1961-62/2003, p. 348, grifo do autor).

O corte seria então uma interrupção qualquer na linearidade da fala, como por exemplo o assinalamento de determinado fonema na cadeia significante? Seria a suspensão da sessão? Sigamos a fim de explorar melhor a questão antes de nos precipitarmos em respostas.

Dentro da lógica lacaniana o significante advém quando o traço (o corte primeiro, inscrição original) se recorta voltando sobre si mesmo, como demonstra o oito-interior. O traço, enquanto incidência primeira da linguagem, seria o conjunto indiferenciado dos segmentos e adviria como significante ao repetir o elemento B, onde a sucessão discursiva se recorta, secciona-se. Isto coloca a repetição do traço como geradora da diferença que é a característica própria do significante saussureano. Nas palavras de Lacan:

Se a própria linha é corte, cada um de seus elementos será, portanto, secção de corte, e é isso, em suma, que introduz esse elemento vivo, se posso dizer, do significante, que chamei de oito interior, a saber, precisamente o laço [boucle]. A linha se recorta

(Lacan, 1961-62/2003, p. 348).

Concluindo que o chamado corte é de fato um recorte, o que implica uma repetição, retorno ao mesmo, encontramos uma ferramenta topológica precisa para a demontração do Real como "o que retorna ao mesmo lugar" (Lacan, 1961-62/2003, p. 348).

Sublinhemos agora duas conclusões importantes: a) o corte é, na verdade, um recorte e por isso implica a repetição, isto é, que uma linha se feche sobre si mesma; b) é no momento dessa repetição, fechamento ou "retorno ao mesmo" que o Real se presentifica. Lacan (1961-62/2003, p. 348-349) insiste nessa ideia, que analisaremos em duas partes:

O que isso quer dizer, senão que a secção de corte, em outras palavras, o significante sendo aquilo que nós dissemos, sempre diferente dele mesmo - A não é igual A, A não é idêntico a A - nenhum meio de fazer aparecer o mesmo, senão do lado do real. Dito de outra maneira, o corte, se posso assim me exprimir, no nível de um puro sujeito de corte, o corte não pode saber que ele se fechou, que ele só repassa por ele mesmo porque o real, enquanto distinto do significante, é o mesmo.

Importante ressaltar aqui o "no nível de um puro sujeito de corte, o corte não pode saber que ele se fechou", pois expressa o aspecto involuntário - e por isso manifestação do Real inconsciente como repetição - do fechamento sobre si mesma de uma sucessão diacrônica como a fala. Outro aspecto a ser sublinhado é a estrita impossibilidade de que o significante signifique a si mesmo, ou seja, que sua identificação se dê através dele próprio. Se a repetição manifesta o Real enquanto o mesmo, é no Simbólico que a diferença será produzida, uma vez que o significante tem seu valor produzido negativamente, a partir de diferenças puras em relação aos demais do conjunto. A citação de Lacan (1961-62/2003, p. 348-349) anterior segue assim:

Em outras palavras, só o real o fecha. Uma curva fechada é o real revelado, mas, como vêem, mais radicalmente, é preciso que o corte se recorte. Se nada já não o interrompe, imediatamente após o traço, o significante toma essa forma, que é, propriamente falando, o corte. O corte é um traço que se recorta. É somente depois que ele se fecha sobre o fundamento que, se cortando, ele encontrou o real, o qual só permite conotar como o mesmo, respectivamente aquilo que se encontra sob o primeiro, depois o segundo laço.

Essa citação fornece o subsídio para retomar uma questão anterior: o elemento repetido (B) se trata de dois pontos diferentes que são sobrepostos ou do mesmo ponto que se repete? Parece-nos coerente afirmar que, mesmo que sejam dois elementos diferentes sobrepostos, eles obtêm o valor de mesmo, isto é, manifestam um retorno ao mesmo enquanto Real, e por isso trata-se de uma repetição que produz o sujeito do inconsciente como "puro corte". Eis o sentido da repetição como geradora de diferença, questão complexa que continuaremos aprofundando com Lacan (1961-62/2003, p. 325-326):

O passo que tento fazê-los dar já começou a ser traçado, é aquele onde se enlaça a descontinuidade com o que é a essência do significante, a saber, a diferença. Se aquilo sobre o qual temos feito girar, temos feito retornar incessantemente essa função do significante, é para atrair a atenção de vocês para aquilo que, mesmo a repetir o mesmo, o mesmo, ao ser repetido, se inscreve como distinto.

Aqui alguma luz é lançada sobre a questão: produz-se uma diferença a partir da repetição, mas o repetido é o mesmo e nem poderia deixar de ser quando se trata do Real. Não diremos, portanto, que o sujeito progride ou evolui em uma análise, tampouco que a fala se desenrola em diacronia, isto é, linearmente num único sentido, mas sim que os efeitos que uma psicanálise produz possuem a espacialidade do movimento em bobina (oito-interior ou volta dupla) comentado anteriormente, um avanço caracterizado sempre por movimentos de retorno - o encadeamento de oitos-interiores subsequentes, cada um deles marcado por um efeito de repetição do mesmo (Real) que produz e lança o sujeito a outra sequência discursiva. O desenrolar de uma psicanálise, por assim dizer, não é linear, mas depende do acontecimento de caráter sincrônico, quando o mesmo elemento se repete em contextos diferentes e, reconhecidos e encontrados como o mesmo, produzem um efeito de sincronia onde a estrutura é manifesta retroativamente (après-coup). Sobre tal movimento de retroação, sugere-se como excelente exemplo a análise do jogo de par ou ímpar presente no escrito O seminário sobre "A carta roubada". Além de estabelecer a produção da diferença como a repetição do mesmo - o corte -, Lacan (1961-62/2003, p. 326) propõe que a introdução da topologia na psicanálise permite ir "além da escansão temporal". Destacamos o "para além da escansão temporal" como um divisor de águas no pensamento lacaniano, principalmente no que diz respeito à técnica da interpretação. A escansão deixará de ser simplesmente temporal, ou seja, o corte não é somente a suspensão da sessão ou qualquer tipo de interrupção da fala. Será necessária a referência à topologia para acompanhar a elaboração de A Identificação e suas noções de corte e inscrição.

O significante quando repetido ou comparado consigo mesmo (encontro com o Real) deve necessariamente gerar uma diferença, pois seu sentido é suspenso, relativizado, e a produção de um novo sentido e/ou significação tem lugar. Usemos um pequeno e simples exemplo. Se falarmos "depressão" e depois "de pressão", nota-se como a repetição do significante, isto é, a referência dele a ele mesmo, aponta necessariamente para uma diferença, de maneira que "depressão" pode ter certo sentido para a psiquiatria e "de pressão" para a hidráulica, por exemplo. Resgatando o pensamento de Saussure, Lacan insiste no significante como nunca identificado a si mesmo, mas apenas negativamente pela diferença pura em relação aos demais que compõem o conjunto.

Ato analítico: o corte interpretativo na superfície moebiana

Percorridas as elaborações lacanianas de A Identificação que agregam à psicanálise um aporte topológico no que diz respeito à noção de repetição, veremos como o traçado do oito-interior servirá de base para o conceito de ato psicanalítico enquanto suporte da divisão do sujeito.

Antes de O ato psicanalítico (Lacan,1967-68), Lacan já havia proposto o ato em pelo menos um seminário, a saber, A lógica do fantasma (Lacan,1966-67/2002). Contudo, tal fato é pouco comentado, muito embora seja nesse seminário que o ato é formalizado - e justamente como corte no formato de oito-interior sobre a superfície da fita de Moebius. Há ainda uma referência ao tema em Radiofonia (1970/2003) com a qual será arrematada a construção proposta a seguir.

Começamos com A lógica do fantasma onde é colocada a pergunta "como definir o que é um ato?": "É impossível defini-lo de outra maneira que sobre o fundamento da volta dupla (double boucle), é dizer, da repetição, e sobre o plano de uma falta. É precisamente nisto que o ato é fundador de um sujeito" (Lacan, 1966-67/2002, p. 13).

O círculo "interior" do oito-interior cerca uma falta, falta de superfície (se concebemos seu traçado como a borda da banda de Moebius, percebemos claramente como a borda limita a superfície em relação ao espaço), circunscrevendo e presentificando o que pode ser considerado o objeto a e conferindo à interpretação uma função desalojadora. Os elementos fundamentais são, portanto: a) a repetição significante em forma de um retorno, efeito de après-coup; b) a presentificação da dimensão da falta. O trecho acima citado é complementado pela sequência: "(...) o equivalente da repetição em um único traço, que recém designei por este corte que é possível fazer no centro da banda de Moebius, é em si mesmo a volta dupla do significante" (Lacan, 1966-67/2002, p. 13). De forma bastante clara, a interpretação, equiparada ao ato, é aqui considerada como o corte sobre o traçado do oito-interior que pode ser riscado na linha média da banda, criando uma nova borda, tornando a superfície dividida.

No seminário O ato psicanalítico, que segue A lógica do fantasma, a identificação do ato ao corte interpretativo não é retomada diretamente. Mesmo assim, a ligação do ato com a falta e a divisão é bastante assinalada: "O sujeito depende desta causa que o faz dividido e que se chama o objeto a" (Lacan, 1967-68, p. 84). Por presentificar a falta, incidindo sobre a causa de desejo, o ato tem efeito desalojador para o sujeito que aí encontra-se dividido: "(...) esse ato vai colocar seu sentido precisamente no que se trata de atacar, de abalar, seu sentido ao abrigo da inabilidade, da falha. Eis aí o que é a intervenção psicanalítica: o ato (...)" (Lacan, 1967-68, p. 33).

Alguns anos mais tarde, em Radiofonia, o assunto é novamente abordado, ainda que de forma enigmática. É um momento onde aparece de fato a expressão corte interpretativo e relacionada aos elementos da construção que realizamos aqui:

Mas não seria o próprio corte interpretativo que, para aquele que titubeia na borda, constitui um problema, por criar consciência? Ele revelaria então a topologia que o comanda num cross-cap, ou seja, numa banda de Moebius. Pois é só por esse corte que essa superfície (...) se vê, num depois, provida de uma frente e um verso. A dupla inscrição freudiana não seria, portanto, da alçada de nenhuma barreira saussuriana, mas da própria prática que formula a pergunta, isto é, do corte mediante o qual o inconsciente, ao se retirar, atesta que consistia apenas nele, ou seja, quanto mais o discurso é interpretado, mais confirma ser inconsciente. A tal ponto que somente a psicanálise descobriria que existe um avesso do discurso - sob a condição de interpretá-lo

(Lacan, 1970/2003, p. 416- 417).

O trecho reforça mais ainda a característica superficial do inconsciente, não como um nível mais profundo da fala, mas como um produto do ato. O que a interpretação trata de fazer é o corte que transforma a estrutura contínua e não-orientável em descontínua e orientável, atualizando o consciente em relação ao inconsciente (Dor, 1995, p. 166), ou como escreveu Lacan, "criando consciência". Marcamos, portanto, a descontinuidade, função desalojadora, como resultado da operação interpretativa.

Outra questão central ao nosso assunto é a noção de borda, tomada diretamente da topologia, muito embora o emprego da palavra frequentemente não seja feita a partir da referência topológica. Uma compreensão consistente, porém, é da maior importância para nosso problema. Quanto à estrutura combinatória da borda (Lacan, 1964/1998), podemos representá-la segundo grafo proposto por Eidelsztein (2006) (ver figura 2).

Para criar o que consideramos uma borda, topologicamente falando, através de apenas um traçado, é necessário que se produza uma volta sobre si mesmo, o que acontece no ponto B. O corte do significante cria uma nova borda na estrutura moebiana, borda cujo traçado é também um oito interior, permitindo que a própria banda de Moebius possa ser considerada um corte; construção ousada de Lacan apresentada em O Aturdito (1972/2003). Contra a perspectiva intuitiva das leituras que tomam inconsciente freudiano como um lugar a ser acessado pelo lado de fora através de uma abertura (a queda das resistências, suspensão do recalque, etc), Lacan propõe que o inconsciente seja revelado justamente através desse fechamento que se delineia no traçado do corte em oito-interior que compõe borda.

Hiância, pulsação, uma alternância de sucção, para seguirmos certas indicações de Freud: é disso que precisamos dar conta, e foi isso que tratamos de fazer fundamentando-o numa topologia. A estrutura daquilo que se fecha inscreve-se, com efeito, numa geometria em que o espaço se reduz a uma combinatória: ela é, propriamente falando, o que ali se chama de uma borda. Ao estudá-la formalmente nas consequências da irredutibilidade de seu corte, nela poderemos reordenar algumas funções, entre a estética e a lógica das mais interessantes. Nisso percebemos que é o fechamento do inconsciente que fornece a chave de seu espaço e, nomeadamente, a compreensão da impropriedade que há em fazer dele um interior

(Lacan, 1964/1998, p. 852).

Se uma das possíveis leituras da técnica freudiana faz com que ela consista em trazer os conteúdos latentes à superfície da consciência, Lacan, por sua vez, aponta justamente para a função divisora da interpretação. Por um lado, pode-se ler em Freud a consideração da interpretação como uma "tomada de consciência", ressaltando a passagem de um elemento inconsciente para o consciente, ou uma mudança qualitativa do mesmo elemento, que antes era inconsciente e passa a ser consciente; problemática da dupla inscrição abordada por Freud (1915e/1996). Ora, o conceito lacaniano de sujeito (falta-a-ser) repudia qualquer ideia de todo, de um inteiro, ou da totalização do saber na consciência. É o resultado da troca da unidade unificante pela distintiva, o significante. O que se obtém ao cortar a banda de Moebius pela linha média é uma superfície bilátera de duas bordas, divida em dois conjuntos de pontos, um em cada face da estrutura. Se a interpretação em Lacan coincidisse com as leituras mais comuns de Freud, ela teria a estrutura de uma colagem que busca tornar uma superfície unilátera, unificando os pontos de uma superfície em um lado apenas. Pelo contrário, o que opera no corte proposto por Lacan é o estabelecimento de uma divisão radical entre dois conjuntos de pontos, o que revela a estrutura do sujeito dividido.

Se o ato é caracterizado pelo momento em que o significante e o sujeito são uma e mesma coisa, não por isso este fica menos dividido diante do objeto de seu desejo (Lacan, 1966-67/2002). Não percamos de vista a relação da verdade com essa questão, pois é dela que se trata sempre que fazemos referência ao sujeito que se divide por amparar-se na falha de saber do campo do Outro (objeto a). A verdade desencadeada pelo ato sempre provocará, por isso, um efeito perturbador (Lacan, 1966/1998).

A técnica em Freud e Lacan

Em Posição do Inconsciente, Lacan (1964/1998) vai adiante e afirma que o inconsciente, entre o sujeito e o Outro, é o corte em ato. Novamente, a noção de um lugar interior, assim como a perspectiva ontológica, são completamente suprimidas, dando lugar à uma lógica onde o ato é um corte: "Pois é na escansão do discurso do paciente, à medida nele intervém o analista, que veremos ajustar-se a pulsação da borda pela qual deve surgir o ser que reside para aquém dela" (Lacan, 1964/1998, p. 858).

Destacamos o "surgir" empregado por Lacan, mostrando que a intervenção do analista enquanto corte, ou seja, o ato analítico, ele mesmo não é uma comunicação "verdadeira" ao paciente, mas o que revela, produz o sujeito do inconsciente. Não podemos deixar de ver aí uma questão de grande importância técnica, uma vez que em Freud uma construção pode ser correta ou errada. É um juízo do qual prescinde a modalidade de interpretação lacaniana, enquanto que, em Freud, uma construção correta promove uma aproximação da verdade histórica (Freud, 1937d/1996), preenchendo uma lacuna de memória na forma de comunicação que reconstrói alguma parte da história do paciente através dos traços que o esquecimento deixou. Esse preenchimento das lacunas de memória foi um dos principais objetivos da técnica freudiana desde seu princípio até suas últimas formulações. Um aspecto interessante é o acolhimento ou não, por parte do paciente, da comunicação do analista; o paciente estará convencido do conteúdo da construção se houver alguma vivência transferencial que a reforce. Há ainda que se considerar a seguinte distinção entre interpretação e construção, apresentada assim por Freud:

O analista completa um fragmento da construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constrói então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele se derrama, lida com este da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado, até o fim. (...) acho que 'construção' é de longe a descrição mais apropriada. "Interpretação" aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia [Fehlleistung]. Trata-se de uma "construção", porém, quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu, aproximadamente da seguinte maneira: [segue um exemplo de construção tipicamente edípica

1 1 "Até os onze anos de idade, você se considerava o único e ilimitado possuidor de sua mãe; apareceu então outro bebê e lhe trouxe uma séria desilusão. Sua mãe abandonou você por algum tempo e, mesmo após o reaparecimento dela, nunca mais se dedicou exclusivamente a você. Seus sentimentos para com ela se tornaram ambivalentes, seu pai adquiriu nova importância para você..." (Freud, 1937d/1996, p. 279).

] (Freud, 1937d/1996, p. 279).

Ambas têm um caráter comum, que é o de trazer algo latente à consciência. Se a interpretação (Deutung) busca antes a significação (Bedeutung), sentido ou significado latentes (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 247), a construção remonta uma sequência histórica. Na interpretação há a suposição de que as formações do inconsciente possuem causas incompatíveis com as exigências da consciência, mas que algum sentido ou significação permanecem latentes, enquanto que a construção procura uma rememoração do material esquecido. Apesar dessa distinção, os casos clínicos de Freud demonstram uma impossibilidade de sistematização das diversas intervenções ali praticadas, na medida em que estas não se resumem apenas a construção e interpretação.

Lacan (1964/1998) aborda a questão do sentido na interpretação afirmando que "(...) não é o efeito de sentido que opera na interpretação, mas a articulação, no sintoma, dos significantes (sem nenhum sentido) aprisionados nele", (p. 856). Ora, visto que para o autor a falta de sentido é justamente aquilo que deve ser articulado pela interpretação, já que a divisão do sujeito é sustentada, podemos considerar uma mudança em relação ao pensamento freudiano onde se busca a explicitação de um sentido ou significação (Bedeutung) oculta. No exemplo que Freud dá ao final da citação anterior, o saber psicanalítico, isto é, sua teoria sobre o complexo de Édipo serve para preencher a lacuna de memória. Tratar-se-ia de uma intervenção intelectualizada, modalidade criticada por Lacan?

Porém, à medida que a autenticidade da relação analítica mais se destaca do discurso em que ela se inscreve, aquilo que se continua a chamar de sua "interpretação" depende, cada vez mais exclusivamente, do saber do analista. Sem dúvida, esse saber foi muito ampliado nessa via, mas que não se pretenda haver assim tomado distância de uma análise intelectualista, a menos que se reconheça que a comunicação desse saber ao sujeito age apenas como uma sugestão à qual o critério da verdade permanece alheio

(Lacan, 1955/1998, p. 339 -340).

Freud (1937d/1996) mantém essa questão em vista quando afirma que a construção é apenas um trabalho preliminar. Há, conforme aponta Lacan no trecho acima, uma comparação possível entre a construção e a sugestão, problema que Freud não deixa de abordar em Construções em Análise:

Com bastante freqüência não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi reprimido. Em vez disso, se a análise é corretamente efetuada, produzimos nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico que uma lembrança recapturada

(Freud, 1937d/1996, p. 284).

Não se deve, contudo, basear-se no resultado terapêutico para atestar a verdade da ficção. Segundo Freud (1937d/1996), o sim do paciente não possui valor a menos que seja seguido de novas lembranças que completem e ampliem a construção. O não, por sua vez, pode ser uma resistência ou a prova de que ainda é incompleta a rememoração. Uma boa confirmação seria o "nunca pensei nisso antes" ou, melhor ainda, associação análoga ao conteúdo da construção. O efeito que comprova a justeza da construção é, pois, a descontinuidade, o efeito de surpresa desalojadora cuja importância é tão destacada por Lacan.

Não podemos deixar de considerar que as intervenções de Freud tratam de trazer elementos novos e surpreendentes ao paciente, provocando um desdobramento no que era linear, que é o objetivo da interpretação lacaniana. Podemos então comparar Lacan e Freud nesse ponto? Poderíamos dizer que as intervenções que Freud sistematizou sob os nomes de interpretação e construção operam apenas no campo do sentido, enquanto que a interpretação de Lacan não? O lugar onde essas perguntas se articulam torna-se menos nebuloso se considerarmos que aquilo que Freud expôs e sistematizou como elementos da técnica psicanalítica não correspondem à totalidade de ferramentas e noções que podem ser lidas e extraídas de sua obra através de uma leitura crítica como a de Lacan. A obra freudiana é evidentemente mais rica do que as sínteses e sistematizações que o seu próprio autor realiza. Assim sendo, mais do que marcar as diferenças que encontramos entre ambos autores, buscamos antes colocá-los em tensão a fim de tornar mais clara a compreensão dos conceitos e noções que aí trabalhamos, explicitando a racionalidade da técnica.

Reflexões finais

Suas bases topológicas formais comuns permitem que a interpretação e o ato psicanalítico sejam considerados como uma e mesma coisa, isto é, o corte interpretativo (conforme nomeado em Radiofonia). Colocar esses elementos em questão põe em discussão as questões técnicas já presentes em Freud através das ideias de interpretação e construção.

A consideração lacaniana do corte interpretativo é correlata do inconsciente superficial e discursivo, ou seja, não uma camada submersa e oculta da mente. A interpretação, nesse contexto, trataria de estabelecer continuidade entre duas cenas a princípio desconexas, questão que vimos como a repetição do mesmo elemento (sincronia) em dois momentos diferentes da linha temporal da fala (diacronia). É uma proposta distinta da leitura onde o inconsciente é o recalcado enquanto saber latente, oculto, impedido de chegar à consciência por alguma espécie de barreira. Pensemos num exemplo: um analisante bastante interessado em jogos diversos e suas estratégias "muda" para o assunto de sua vida profissional, questionando se aí também não carece de estratégias. Logo após, involuntariamente, percebe-se falando sobre sua incapacidade de praticar competentemente esportes (jogos), mas releva o problema dizendo que nunca pretendeu ser um "jogador profissional". Num único dito, o jogador e o profissional se apresentam em continuidade, marcando uma sincronia e produzindo aí um sujeito estritamente gerado pela fala, ainda que dividido na mesma.

Deve-se reconhecer que Lacan extrai tais ideias não apenas de sua imersão (estudo) na matemática, filosofia e etc, mas também em Freud. Podemos dizer, porém, que o corte interpretativo é uma ferramenta freudiana? Lembremos que a técnica freudiana é orientada para um certo ideal de cura que implica uma tomada de consciência daquilo que antes era inconsciente, isto é, há uma tendência a promover um sujeito que sabe sobre sua verdade inconsciente, conhecedor de si mesmo. Por outro lado, o que vemos na técnica do corte interpretativo lacaniano, é o contrário: a interpretação atualiza e produz a divisão do sujeito, não uma continuidade entre ics e cs, mas uma descontinuidade em forma de desconhecimento radical.

A partir da construção sobre o corte interpretativo e das comparações realizadas com a obra de Freud, de acordo com as questões problematizadas na seção anterior de nosso texto, perfila-se como continuidade desse estudo um maior aprofundamento não apenas nos textos onde Freud sistematiza sua técnica, mas ainda mais naqueles onde as noções que lhe servirão de suporte estão ainda maleáveis, em formação. Dessa forma, a pesquisa tem como consequência não apenas estabelecer pontos de encontro e desencontro entre Freud e Lacan, mas retirar da tensão dessas comparações novas noções que ali subjazem potencialmente como novos conceitos a serem articulados à prática clínica, fundamentado a técnica psicanalítica e explicitando sua racionalidade.

Recebido em 26.09.2010

Primeira decisão editorial em 26.06.2013

Versão final em 26.06.2013

Aceito em 26.06.2013

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  • Endereço para correspondência:

    Vitor Hugo Couto Triska
    Rua Dario Pederneiras 354/403, Bairro Petrópolis
    Porto Alegre, RS, CEP: 90630-090
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    "Até os onze anos de idade, você se considerava o único e ilimitado possuidor de sua mãe; apareceu então outro bebê e lhe trouxe uma séria desilusão. Sua mãe abandonou você por algum tempo e, mesmo após o reaparecimento dela, nunca mais se dedicou exclusivamente a você. Seus sentimentos para com ela se tornaram ambivalentes, seu pai adquiriu nova importância para você..." (Freud, 1937d/1996, p. 279).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      26 Set 2010
    • Aceito
      26 Jun 2013
    • Revisado
      26 Jun 2013
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