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Validação da Versão Brasileira da Escala ISMI Adaptada para Dependentes de Substâncias1 1 Apoio: CNPq; CAPES; FAPESP

Validation of the Brazilian Version of the ISMI Scale Adapted for Substance Dependents

RESUMO

Esse estudo teve como objetivo validar a escala Internalized Stigma of Mental Illness – ISMI adaptada para dependentes de substâncias psicoativas, no Brasil. A pesquisa foi conduzida com uma amostra de 299 dependentes de substâncias. O valor do alfa de Cronbach do escore total foi de 0,83 e o Coeficiente Spearman-Brown de 0,76. A validade de constructo, estimada pela Análise Fatorial Exploratória de Máxima Verossimilhança, demonstrou correlação estatisticamente significativa (p<0,01) entre a ISMI e as escalas CES-D (r=0,47), Escala de Esperança de Herth (r=-0,19) e Escala de Autoestima de Rosenberg (r=-0,48). A versão brasileira da ISMI demonstrou propriedades psicométricas satisfatórias e promete ser um instrumento útil para mensurar estigma internalizado entre dependentes de substâncias.

Palavras-chave:
medidas; estigma; abuso de drogas

ABSTRACT

The aim of this study was to validate the Internalized Stigma of Mental Illness scale – ISMI adapted for substance dependents in Brazil. The research was conducted with a sample of 299 substance dependents. In this sample, the scale had a reliability coefficient alpha of .83 and a coefficient Spearman-Brown of .76. The construct validity, estimated by Exploratory Maximum Likelihood Factor Analysis, showed a statistically significant correlation (p<0.01) between ISMI and CES-D (r=.47), Herth Hope Scale (r=-.19), and Rosenberg Self-Esteem Scale (r=-0.48). The Brazilian version of ISMI showed satisfactory psychometric properties in the studied sample and promises to be a useful tool to measure internalized stigma among substance dependents.

Keywords:
measurement; stigma; drug abuse

O processo de estigmatização tem sido apontado como profundamente danoso a algumas condições de saúde estigmatizadas na cultura dominante atual (Kanter, Rusch, & Brondino, 2008Kanter, J. W., Rusch, L. C., & Brondino, M. J. (2008). Depression self-stigma – A new measure and preliminary findings. Journal of Nervous and Mental Disease, 196(9), 663-670.; Ritsher, Otilingam, & Grajales, 2003Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.). Em termos gerais, a estigmatização ocorre quando as pessoas distinguem e rotulam diferenças pessoais e, por meio das crenças compartilhadas culturalmente, as pessoas rotuladas são compreendidas como possuidoras de características indesejáveis; em seguida, confirma-se um grau de separação e desvalorização em relação ao grupo estigmatizado (Link & Phelan, 2001Link, B. G., & Phelan, J. C. (2001). Conceptualizing Stigma. Annual Review of Sociology, 27, 363-385.).

No que se refere às consequências do estigma para os indivíduos estigmatizados, o principal impacto é a internalização do estigma, fenômeno denominado estigma internalizado ou auto-estigma. De uma perspectiva sócio-cognitiva, a internalização do estigma ocorre à medida que o indivíduo torna-se consciente dos estereótipos negativos que as outras pessoas endossam (consciência dos estereótipos), concorda pessoalmente com esses estereótipos (concordância com estereótipos) e aplica esses estereótipos a si mesmo (Corrigan, Watson, & Barr, 2006Corrigan, P. W., Watson, A. C., & Barr, L. (2006). The self-stigma of mental illness: Implications for self-esteem and self-efficacy. Journal of Social and Clinical Psychology, 25(8), 875-884.). Livingston e Boyd (2010)Livingston, J. D, & Boyd, J. E. (2010). Correlates and consequences of internalized stigma for people living with mental illness: A systematic review and metaanalysis. Social Science & Medicine, 71(12), 2150-2161. complementam o conceito se referindo ao estigma internalizado como um processo subjetivo, embutido dentro de um contexto sociocultural, que pode ser caracterizado por sentimentos negativos (sobre si), comportamentos mal-adaptativos, transformação de identidade ou endossamento do estereótipo, resultados das experiências e percepções de um indivíduo ou antecipação de reações sociais negativas com base em seu transtorno mental.

A relação entre estigma internalizado e suas implicações não é linear, sendo melhor compreendida como um círculo repetitivo, no qual, aspectos da recuperação no tratamento são bloqueados assim como diversas esferas da vida do indivíduo são afetadas, resultando em percepções subjetivas de se sentir desvalorizado e marginalizado (Verhaeghe, Bracke, & Bruynooghe, 2008Verhaeghe, M., Bracke, P., & Bruynooghe, K. (2008). Stigmatization and self-esteem of persons in recovery from mental illness: the role of peer support. International Journal of Social Psychiatry, 54(3), 206-218.). O processo de internalização do estigma torna-se, portanto, central para as condições psicológicas desses indivíduos, tais como diminuição de auto-estima, autoconfiança e auto-eficácia, percepção de descrédito, sentimentos de vergonha, culpa, angústia, raiva ou autoreprovação (Corrigan & Watson, 2002Corrigan, P. W., & Watson, A. C. (2002). The paradox of self-stigma and mental illness. Clinical Psychology: Science and Practice, 9(1), 35-53.; Corrigan et al., 2006Corrigan, P. W., Watson, A. C., & Barr, L. (2006). The self-stigma of mental illness: Implications for self-esteem and self-efficacy. Journal of Social and Clinical Psychology, 25(8), 875-884.), assim como gera várias implicações práticas na vida de um paciente, dentre as quais perspectivas limitadas de recuperação e restrição de redes sociais (Verhaeghe et al., 2008Verhaeghe, M., Bracke, P., & Bruynooghe, K. (2008). Stigmatization and self-esteem of persons in recovery from mental illness: the role of peer support. International Journal of Social Psychiatry, 54(3), 206-218.).

Esses fatores podem levar ao isolamento, desemprego e ao baixo rendimento, influenciando na disposição dos sujeitos em procurar tratamento, pois, na tentativa de evitar que sua condição de saúde se torne pública, na maioria das vezes, eles não o procuram (Kanter et al., 2008Kanter, J. W., Rusch, L. C., & Brondino, M. J. (2008). Depression self-stigma – A new measure and preliminary findings. Journal of Nervous and Mental Disease, 196(9), 663-670.). Neste sentido, muitas vezes, em situações de saúde, a condição de estigmatização pode se tornar muito mais danosa do que propriamente o transtorno em si, conduzindo a diversas consequências, inclusive, o agravamento da situação (Ronzani, Furtado, & Higgins-Biddle, 2009Ronzani, T. M., Furtado, E. F., & Higgins-Biddle, J. (2009). Stigmatization of alcohol and other drug users by primary care providers in Southeast Brazil. Social Science & Medicine, 69(7), 1080-1084.).

Dentre as condições de saúde que podem ser agravadas pelo estigma internalizado, a dependência de álcool e outras drogas tem uma relevância significativa, uma vez que é um dos principais transtornos estigmatizados em todo o mundo, sendo a moralização do consumo um dos principais aspectos envolvidos nesse processo (Room, 2006Room, R. (2006). Taking account of cultural and societal influences on substance use diagnoses and criteria. Research Report, 101(1), 31-39.). Estudos sobre a percepção de profissionais de saúde a respeito do uso e usuários de drogas sinalizam que, assim como a população geral, os profissionais atribuem estereótipos negativos aos usuários (Silveira, Martins, & Ronzani, 2009Silveira, P. S., Martins, L. F, & Ronzani, T. M. (2009) Moralização sobre o uso de álcool entre agentes comunitários de saúde. Psicologia Teoria e Prática, 11(1), 62-75.; Soares et al., 2011Soares, R. G, Silveira, P. S., Martins, L. F, Gomide, H. P, Lopes, T. M., & Ronzani, T. M. (2011). Distância social dos profissionais de saúde em relação à dependência de substâncias psicoativa. Estudos de Psicologia (Natal), 16(1), 91-98.). O estudo de Silveira et al. (2009)Silveira, P. S., Martins, L. F, & Ronzani, T. M. (2009) Moralização sobre o uso de álcool entre agentes comunitários de saúde. Psicologia Teoria e Prática, 11(1), 62-75. sobre agentes comunitários de saúde apontou que esses profissionais moralizam o uso de álcool e consideram os alcoolistas como uma classe de pacientes difíceis de lidar. A moralização da dependência de álcool também foi encontrada entre estudantes de graduação ligados à saúde (Martins, Silveira, Soares, Gomide, & Ronzani, 2010Martins, L. F., Silveira, P. S., Soares, R. G., Gomide, H. P., & Ronzani, T. M. (2010). Moralização sobre o uso de álcool entre estudante de curso de saúde. Estudos de Psicologia (UFRN), 15(1), 33-41.).

Contudo, poucos estudos documentaram as consequências físicas, psicológicas e sociais associadas ao uso de substâncias, bem como os efeitos da internalização do estigma no tratamento e na vida desses usuários. O estudo de Ahern, Stuberc e Galea (2007)Ahern, J., Stuberc, J., & Galea, S. (2007). Stigma, discrimination and the health of illicit drug users. Drug and Alcohol Dependence, 88(2-3), 188-196., realizado com usuários de drogas, encontrou que a percepção de desvalorização entre os usuários é prevalente, estando associada à periculosidade e desconfiança.

Assim, a utilização de instrumentos que sejam voltados para a mensuração do estigma internalizado entre dependentes de substâncias torna-se útil e necessária, uma vez que a internalização do estigma pode ser identificada por profissionais de saúde juntamente com os pacientes em atendimento, assim como pode ser trabalhada em intervenções que busquem reduzi-la concomitantemente aos sintomas da condição de saúde. Embora o desenvolvimento de instrumentos de mensuração do estigma internalizado venha se propagando na literatura internacional, existe uma grande lacuna no que se refere às especificidades da dependência de substâncias. Estudos sinalizam a necessidade de aperfeiçoar as escalas existentes ou desenvolver novos instrumentos que possam auxiliar na investigação do estigma internalizado e suas implicações em dependentes de substâncias, visto que são imprescindíveis intervenções efetivas que incluam maneiras de ajudar esses pacientes a reduzir o estigma internalizado, assim como aumentar a adesão dos mesmos ao tratamento (Luoma, O'Hair, Kohlenberg, Hayes, & Fletcher, 2010Luoma, J. B., O’Hair, A. K., Kohlenberg, B. S., Hayes, S. C., & Fletcher, L. (2010). The development and psychometric properties of a new measure of perceived stigma toward substance users. Substance Use Misuse, 45(1-2), 47-57.).

Portanto, este estudo consistiu no processo de tradução e validação da Internalized Stigma of Mental Illness – ISMI (Ritsher et al., 2003Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.), considerada na literatura como um importante instrumento de mensuração do estigma internalizado. A escala de estigma internalizado validada para o Brasil poderá, futuramente, contribuir: na investigação da magnitude dos efeitos do estigma internalizado entre dependentes de substâncias, na inclusão do tema na elaboração de políticas públicas e na capacitação de profissionais, assim como incentivar médicos e outros profissionais de saúde a incluir a redução do estigma como parte do tratamento dos pacientes, na medida que, intervenções que reduzam tanto o estigma internalizado quanto os sintomas da doença são prováveis de serem mais eficazes e duradouras (Ritsher et al., 2003Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.).

Método

Participantes

Foram considerados elegíveis para participar deste estudo indivíduos dependentes de substâncias psicoativas maiores de 18 anos, escolhidos mediante os seguintes critérios de inclusão: a) ter recebido o diagnóstico de dependência; b) ser usuário do serviço de tratamento em dependência do tipo ambulatorial ou internação; c) ter dado entrada no serviço no mês de coleta para evitar vieses de tratamento. O critério de exclusão dos participantes do presente estudo foi: a) estar sob efeito de substâncias psicoativas.

A amostra foi composta por 299 indivíduos em tratamento para dependência de substâncias, dos quais, 63,2% eram pacientes da instituição pública de saúde especializada para tratamento de álcool e outras drogas (nível ambulatorial) e, 36,8% eram pacientes do hospital público (internação), ambos da cidade de Juiz de Fora, MG. Em relação à dependência, 59,2% eram dependentes de uma única substância e 40,8% de múltiplas substâncias. A Tabela 1 apresenta a descrição completa da amostra.

Tabela 1
Descrição das Características da População Estudad (N = 299)* * Para algumas variáveis, o percentual está baseado em um N menor devido ao missing dos dados.

Instrumentos

Os instrumentos de pesquisa utilizados entre os participantes foram compostos por escalas e questionários estruturados (com questões fechadas), sigilosos, aplicados através de entrevista.

Questionário sócio-demográfico: foram utilizadas para a caracterização dos participantes da pesquisa as variáveis: gênero, idade, estado civil, status profissional, renda sócio-econômica, escolaridade, anos de educação, praticante ou não de alguma religião, número de vezes que deu entrada em serviços para tratamento de dependência e se alguma vez tal tratamento foi compulsório.

Dependência de Substância (MINI): instrumento utilizado como critério de elegibilidade para o estudo. Consiste em um questionário breve em que a cotação das questões é dicotômica (SIM/NÃO), compatível com os critérios do DSM-III-R/IV e da CID-10. O MINI tem sido amplamente utilizado para a seleção rápida de populações homogêneas em ensaios clínicos e estudos epidemiológicos ou ainda para a avaliação breve de critérios diagnósticos em estudos longitudinais (Amorim, 2000Amorim, P. (2000). Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI): validação de entrevista breve para diagnóstico de transtornos mentais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 22(3), 106-115.).

Versão Brasileira da Escala de Estigma Internalizado de Transtorno Mental (ISMI) Adaptada para Dependentes de Substâncias: escala que avalia o estigma internalizado de transtorno mental, composta por 29 itens de uma escala do tipo Likert de 4 pontos (1 a 4) que varia de discordo totalmente a concordo totalmente, traduzida e adaptada para dependentes de substâncias do estudo de Ritsher et al. (2003)Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.. O escore total varia de 29 a 116, sendo que, quanto maior o escore, mais alto o nível de estigma internalizado. Os itens são agrupados tematicamente em cinco subescalas: Alienação; Aprovação do Estereótipo; Percepção de Discriminação; Evitação Social; e Resistência ao Estigma (apresenta pontuação invertida).

Escala de Auto-Estima de Rosenberg (EAER): instrumento composto por 10 itens de uma escala do tipo Likert de quatro pontos (1 a 4) que variam de concordo plenamente a discordo plenamente. O escore total varia de 10 a 40, sendo que quanto maior o escore, mais alto o nível de auto-estima. Os itens 2, 5, 6, 8, 9 apresentam pontuação invertida (Dini, Quaresma, & Ferreira, 2004Dini, G. M., Quaresma, M. R., & Ferreira L. M. (2004). Adaptação Cultural e Validação da Versão Brasileira da Escala de Auto-Estima de Rosenberg. Revista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, 19(1), 41-52.). A EAER foi utilizada para avaliar a validade de constructo da ISMI: a hipótese é de que essa escala seja negativamente correlacionada com a ISMI. No presente estudo, a EAER demonstrou alfa de Cronbach igual a 0,64.

Escala de Esperança de Herth (EEH): essa escala consiste em 12 itens escritos de forma afirmativa em que a graduação dos itens ocorre por escala tipo Likert de 4 pontos (1 a 4), variando de concordo completamente a discordo completamente. O escore total varia de 12 a 48 sendo que quanto maior o escore, mais alto o nível de esperança. Dois itens, a afirmação de número 3 e a de número 6, apresentam escores invertidos. Em seu estudo de validação para a língua portuguesa, a EEH apresentou alfa de Cronbach igual a 0,83 (Sartore & Grossi, 2008Sartore, A. C. & Grossi, S. A. A. (2008). Escala de Esperança de Herth: instrumento adaptado e validado para a língua portuguesa. Revista da Escola de Enfermagem, 42(2), 227-232.). Essa escala foi utilizada para avaliar a validade de constructo da ISMI. Espera-se que a Escala de Esperança de Herth seja negativamente correlacionada com a ISMI. O alfa de Cronbach da escala no presente estudo foi de 0,80.

Escala de Depressão do Centro de Estudos Epidemiológicos (CES-D): A CES-D constitui instrumento de rastreamento elaborado pelo National Institute of Mental Health visando identificar humor depressivo em estudos populacionais e tem sido amplamente utilizada em diferentes contextos (Silveira & Jorge, 1998Silveira, D. X., & Jorge, M. R. (1998). Propriedades psicométricas da escala de rastreamento populacional para depressão CES-D em populações clínica e não clínica de adolescentes e adultos jovens. Revista de Psiquiatria Clínica, 25(5), 251-261.). A escala compreende 20 itens relacionados a humor, comportamento e percepção que foram considerados relevantes em estudos clínicos sobre depressão. A graduação dos itens ocorre por escala tipo Likert de quatro pontos (1 a 4), variando de raramente a durante a maior parte do tempo. O escore total varia de 20 a 80, sendo que quanto maior o escore, mais alto o nível de sintomas depressivos. Os itens 4, 8, 12 e 16 apresentam pontuação invertida. Em seu estudo de validação para a língua portuguesa, a consistência interna medida pelo alfa de Cronbach foi 0,85 (Silveira & Jorge, 1998Silveira, D. X., & Jorge, M. R. (1998). Propriedades psicométricas da escala de rastreamento populacional para depressão CES-D em populações clínica e não clínica de adolescentes e adultos jovens. Revista de Psiquiatria Clínica, 25(5), 251-261.). A CES-D foi utilizada para avaliar a validade de constructo da ISMI. Espera-se que a CES-D se correlacione positivamente com a ISMI. Em nossa amostra, o alfa de Cronbach da CES-D foi de 0,87.

Procedimentos

O processo de tradução e adaptação cultural da presente escala consistiu em cinco passos:

Tradução: A tradução do instrumento original foi realizada por dois tradutores (T1 e T2), trabalhando independentemente. Os tradutores eram naturais do país para qual o instrumento estava sendo traduzido, e possuíam domínio semântico, conceitual e cultural do idioma do instrumento original. Um dos tradutores teve acesso sobre os objetivos básicos que tratava o instrumento, para conduzir uma tradução que considerasse as peculiaridades do tema estudado. O outro tradutor desconhecia o tema, não tendo ligações com a área de estudo. Sua tradução ofereceu uma linguagem usada pela população em geral.

Síntese: Dois juízes se reuniram para sintetizar em uma versão única as duas traduções (T1 e T2). Foram discutidas e anotadas as divergências das traduções. Na versão única (T12) apareceu o consenso dos juízes.

Retrotradução: A partir da síntese do questionário, foram feitas duas retrotraduções (RT1 e RT2), por dois retrotradutores, os quais eram especialistas da língua do país do instrumento original e trabalharam com a versão única (T12) construída pelas duas traduções, sem conhecer o instrumento original. Essa etapa destinou-se a averiguar se a versão única traduzida refletia os mesmos conteúdos que a versão original, assegurando a consistência da tradução.

Comitê de Peritos: O penúltimo passo foi submeter todo o material – as duas traduções (T1 e T2), a versão única (T12) e as duas retro-traduções (RT1 e RT2) ao Comitê de Peritos. Foram consideradas as observações feitas pelos tradutores, retrotradutores e juízes de síntese em cada uma das etapas. O Comitê foi minimamente formado por um professor de línguas, pelos juízes de síntese, por dois professores metodologistas, conhecedores do tema do questionário, e pela autora da escala original. Por se apresentar de maneira mais clara, optou-se por encaminhar a retrotradução 2 (RT2) à autora, de forma que ela pudesse compará-la com escala original e, assim, avaliá-la.

O objetivo dessa etapa foi produzir uma versão final, sintetizando todas as versões. Foram discutidas instruções, itens, formato do instrumento, entre outras questões. As decisões desse comitê foram tomadas procurando garantir as equivalências semântica, idiomática e cultural entre o instrumento original e o instrumento traduzido. Para a execução dos ajustes, manteve-se estreito contato com a autora da escala original e cada possibilidade de mudança foi discutida diretamente com a mesma. Somente ao final de todas as modificações, fez-se a substituição da expressão "doente mental" por "dependente de substâncias" em cada item. Como dito anteriormente, a aplicação do questionário seria por meio de entrevista, assim, passou-se todas as questões dos instrumentos que compunham o questionário para a 3ª pessoa, de forma que facilitasse a leitura das questões pelo entrevistador. As informações obtidas por meio de entrevistas pessoais foram consideradas, uma vez que o analfabetismo, problemas de linguagem, diferenças culturais e outras limitações poderiam interferir nas respostas, caso se optasse pela forma de aplicação auto-administrada.

Pré-teste:Beaton, Bombardier, Guillemin e Ferraz (2000)Beaton, D. E., Bombardier, C., Guillemin, F., & Ferraz, M. B. (2000). Guidelines for the process of cross-cultural adaptation of selfreport measures. Spine (Phila Pa 1976), 25(24), 3186-3191. sugerem a aplicação do instrumento entre 30 e 40 indivíduos em uma amostra da população alvo, com o propósito de verificar as dúvidas e a compreensão relativas às questões do instrumento. O pré-teste – aplicado em 30 pacientes de uma instituição pública especializada em tratamento para dependência de substâncias de Juiz de Fora, MG – avaliou, além da compreensão dos itens, as instruções, a estrutura do questionário, a compreensão das opções de resposta da escala, a dificuldade de responder e o grau de atenção do respondente. Foi conduzido num ambiente e contexto semelhante ao da pesquisa real. Após a aplicação, os avaliados relataram as dificuldades e as dúvidas. Como não foi necessária nenhuma alteração, essa primeira versão foi considerada satisfatória.

Após o processo de tradução e adaptação cultural, e aceite do Comitê de Ética de Pesquisa da UFJF – Parecer nº 057/2010 – iniciou-se a coleta de dados. Foi encaminhada uma carta de apresentação às instituições, explicando os objetivos do presente estudo. Uma vez aprovada a coleta de dados pelos coordenadores, forneceu-se a cada participante, um Termo de Consentimento Livre Esclarecido, no qual foram explicados os objetivos da pesquisa e os aspectos éticos. Assinado o termo, agendou-se com cada paciente uma entrevista na qual foram aplicados os instrumentos anteriormente citados.

Análise dos Dados

Os dados coletados, característicos dos questionários estruturados e escalas psicométricas, foram digitados por dois digitadores diferentes, em um banco de dados da versão 15.0 do software Statistical Package for Social Science - SPSS®. As duas versões da digitação foram submetidas a um processo de comparação para detectar eventuais erros de digitação, os quais foram corrigidos para formar um banco de dados consolidado. Após a construção desse banco de dados e organização das variáveis, os dados foram submetidos a análises estatísticas descritivas e inferenciais. Para caracterização da amostra, foi utilizada análise estatística descritiva, com cálculo da média, mediana, desvio padrão e frequência para as variáveis nominais e ordinais. A análise inferencial para os grupos componentes da amostra total empregou o Teste T e coeficiente de Correlação Linear de Pearson. Para fins de comparabilidade dos resultados da validação com a escala original, optou-se por reproduzir as mesmas análises de Ritsher et al. (2003)Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41..

A análise de confiabilidade da ISMI foi realizada através da consistência interna, estimada pelo Coeficiente alfa de Cronbach e Coeficiente Spearman-Brown, o qual foi obtido por meio do método das duas metades (split-half). As evidências de validade da ISMI foram analisadas por meio da validade de conteúdo e de constructo.

A fim de elucidar a validade de constructo (convergente-discriminante) da ISMI, foram calculadas as correlações entre os escores totais da ISMI e das escalas EAER, EEH e CES-D. O teste Kolmogorov-Smirnov mostrou que a EAER e a subescala da ISMI Resistência ao Estigma não apresentaram distribuição normal (p<0,05). Assim, foram utilizadas correlações não-paramétricas para as análises de comparação da subescala Resistência ao Estigma e da EAER. As demais escalas apresentaram distribuição normal em seus escores (p>0,05) e, portanto, utilizou-se correlações paramétricas.

Para testar o quanto o constructo de estigma internalizado é distinto de outros constructos mensurados por outros instrumentos, foi conduzida a Análise Fatorial Exploratória de Máxima Verossimilhança do conjunto de itens da ISMI e as escalas EAER, EEH e CES-D (uma por vez), especificando dois fatores para cada análise. Para realçar o contraste entre os fatores, optou-se por utilizar a rotação Varimax. Adotou-se como nível de significância de 5% em todos os testes estatísticos (α =0,05).

Resultados

Confiabilidade

A confiabilidade da ISMI Brasil foi determinada pelo cálculo dos coeficientes de consistência interna de toda escala e das subescalas. O alfa de Cronbach dos itens da escala total foi 0,83 e o Coeficiente Spearman-Brown (split-half) foi 0,76. Como mostrado na Tabela 2, os itens individuais apresentaram médias variando de 2,13 a 3,49, sendo 2,5 o ponto médio de alcance. O desvio padrão (DP) variou de 0,64 a 0,93.

Tabela 2
Média e Desvio Padrão dos Itens da ISMI Adaptada para Dependentes de Substâncias (N=299)

Os valores do alfa de Cronbach do escore total e das subescalas da ISMI Brasil são apresentados na Tabela 3 junto com os escores originais obtidos na versão original da escala. Como pode ser visto, os escores da consistência interna da versão brasileira da ISMI variaram entre 0,32 e 0,69. A subescala que apresentou menor escore foi Resistência ao Estigma com α=0,32.

Tabela 3
Consistência Interna dos Escores Totais e Subescalas da ISMI Adaptada para Dependentes de Substâncias (N=299)

Visto que a subescala Resistência ao Estigma apresentou baixo coeficiente de confiabilidade, também foi testada uma versão de 24 itens da escala, composta somente pelas outras quatro subescalas. A versão de 24 itens teve o alfa igual a 0,85 e o Coeficiente Spearman-Brown (split-half) igual a 0,81 (Tabela 3). Como realizado no estudo de Ritsher et al. (2003)Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41., essa versão de 24 itens também foi testada nas análises de validade de constructo da escala, conforme descrito a seguir.

Validade de Constructo

A validade de constructo foi confirmada por meio da validade convergente que demonstrou correlação estatisticamente significativa entre os escores totais da ISMI Brasil e das cinco subescalas. A subescala Resistência ao Estigma apresentou os menores índices de correlação com as outras subescalas da ISMI Brasil e com o escore total. Os coeficientes de correlação que mostram a validade convergente entre as pontuações do escore total e das subescalas da ISMI Brasil são apresentados na Tabela 4.

Tabela 4
Correlações entre o Escore Total e das 5 Subescalas da ISMI Adaptada para Dependentes de Substâncias

A validade de constructo também foi confirmada por meio da validade discriminante que demonstrou correlação estatisticamente significativa entre os escores da ISMI Brasil e das escalas CES-D, EEH e EAER. Como esperado, houve uma relação positiva entre os escores totais da ISMI Brasil e a CES-D, e uma relação negativa entre as pontuações totais da ISMI Brasil e as escalas EEH e EAER. As relações entre as subescalas da ISMI Brasil e as outras escalas também foram significativas, como esperado. Verificou-se que as pontuações para as quatro subescalas da ISMI Brasil foram negativamente relacionadas com as escalas EEH e EAER e, positivamente relacionadas com a CES-D. A subescala Resistência ao Estigma não apresentou correlações significativas com as outras escalas, assim como a EEH não se correlacionou significativamente com o primeiro fator da ISMI Brasil. A EEH foi a escala que apresentou os menores índices de correlação entre as subescalas da ISMI Brasil. Todos os outros coeficientes de correlação obtidos para os escores totais foram significativos (p<0,05). Os coeficientes de correlação que mostram a validade discriminante entre as pontuações das subescalas da ISMI Brasil e pontuação total das outras escalas são apresentados na Tabela 5.

Tabela 5
Correlações entre os Escores da ISMI Adaptada para Dependentes de Substâncias e as Escalas EAER, EEH e CES-D

O escore médio da ISMI Brasil apresentou-se similar entre os grupos, sendo 80,00 para os pacientes do serviço de tratamento ambulatorial e 80,36 para os pacientes internados, e não houve diferença significativa (p=0,77), o que demonstrou alto índice de estigma internalizado entre os dois grupos, independente do tipo de serviço de saúde frequentado.

A Análise Fatorial Exploratória de Máxima Verossimilhança foi conduzida para testar o quanto o constructo de estigma internalizado é distinto de outros constructos mensurados por outros instrumentos. Para as análises dos itens da CES-D e os itens da ISMI Brasil, cada item teve sua maior carga sobre o fator esperado, exceto um item da CES-D "Sentiu-se, comparando-se às outras pessoas, tendo tanto valor quanto a maioria" (-0,07/-0,11).

A análise fatorial dos itens das escalas EEH e ISMI Brasil, também mostrou que todos os itens foram classificados no fator esperado, exceto para dois itens da EEH "Você se sente muito sozinho" (-0,07/0,47) e "Você tem medo do seu futuro" (-0,19/0,33).

Na análise fatorial da escala EAER com a ISMI Brasil, seis itens da EAER não foram ordenados no fator esperado. Dois itens da subescala Resistência ao Estigma, da ISMI Brasil, também não foram ordenados no fator esperado: "Você pode ter uma vida boa, plena, apesar de sua dependência de substâncias" (-0,26/0,33) e "Viver com uma dependência de substâncias te tornou um forte sobrevivente" (-0,06/0,15).

Ao realizar a análise fatorial com os itens da ISMI Brasil (Tabela 6), optou-se por calculá-la com 24 itens (excluindo a subescala Resistência ao Estigma), assim como feito no estudo de Ritsher et al. (2003)Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.. Apesar do agrupamento entre os itens não ter confirmado a mesma composição dos fatores da escala original, os itens apresentaram boa correlação item-total (r> 0,40) de acordo com o critério adotado pelos autores da ISMI original (Ritsher et al., 2003Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.).

A estrutura da escala foi direcionada para resultar em uma solução de quatro dimensões. O primeiro e segundo fatores agruparam nove itens cada, e o terceiro e quarto fatores agruparam quatro itens cada. Os itens 4, 8, 11, 12 e 16 repetiram-se em dois fatores. O primeiro, segundo e terceiro fatores explicaram, respectivamente, 12,9%, 23,8% e 32,0% da variância total dos itens da escala. Os quatro fatores explicaram 42,0% da variância total. De acordo com essa análise, os itens 15 e 29 seriam excluídos da escala.

Discussão

Os resultados mostraram que a ISMI Brasil apresentou índices satisfatórios de confiabilidade e validade de constructo. A confiabilidade do instrumento pode ser classificada em moderada a elevada, uma vez que o Coeficiente alfa de Cronbach do escore total (29 itens) foi de 0,83 e o Coeficiente Spearman-Brown de 0,76. Em relação às subescalas – com exceção da subescala Resistência ao Estigma – o valor de alfa variou entre 0,53 a 0,69.

O valor reduzido da consistência interna das subescalas do presente estudo já era esperado, visto que foram realizadas três alterações na adaptação da escala: uma em relação à linguagem e cultura, outra em relação ao transtorno e, a terceira em relação à forma de aplicação do questionário (entrevista). Uma vez que as subescalas de estigma internalizado deste estudo foram diretamente adaptadas de subescalas criadas especificamente para uso em uma população com transtorno mental, pode haver itens que, embora relevantes para as pessoas com transtornos mentais, não são importantes para aqueles com abuso de substâncias, resultando em uma limitação na validade de conteúdo que está para além da adaptação semântica da escala. O desenvolvimento de pesquisas qualitativas poderia auxiliar a determinar quais itens poderiam ser adicionados ou removidos das medidas de estigma utilizadas neste estudo.

Tabela 6
Análise Fatorial Exploratória dos 24 itens da ISMI Adaptada para Dependentes de Substâncias

O menor coeficiente de consistência interna foi o da subescala Resistência ao Estigma (α = 0,32). Essa subescala, que procura descrever a experiência de resistir ou não ser afetado pelo estigma internalizado, também apresentou o menor índice de consistência interna no estudo original (α = 0,58). É possível que os resultados fracos de consistência interna da subescala Resistência ao Estigma da ISMI Brasil indiquem, além das justificativas já apresentadas, que os entrevistados tiveram dificuldade de interpretação dos itens invertidos dessa subescala. No entanto, Ritsher et al. (2003)Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41. recomendam que essa subescala permaneça no instrumento, uma vez que os itens que a compõem têm algum valor como validade de verificação, bem como proporciona algum alívio para os respondentes a partir do foco negativo dos outros itens. No entanto, a utilidade desses itens deve ser testada em trabalhos futuros, em diferentes amostras.

No que diz respeito à validade de constructo da ISMI Brasil, os coeficientes de correlação obtidos com a CES-D, EEH e EAER e os resultados da análise fatorial cumpriram as expectativas teóricas. Os itens da ISMI Brasil correlacionaram-se significativamente entre si e com as escalas CES-D, EEH e EAER; e os resultados da análise fatorial indicaram que o construto mensurado pelos 29 itens da escala parece ser distinto dos constructos medidos pelas outras escalas. Para cada par de escalas, os itens tiveram sua maior carga fatorial sobre o fator esperado.

Verificou-se que a ISMI Brasil foi positivamente correlacionada com a CES-D, que mede humor depressivo (r = 0,47). Pode-se teorizar que a depressão, a qual leva a avaliações negativas sobre o eu e a vida em geral, aumenta a internalização do estigma e, ao mesmo tempo, o estigma internalizado pode estimular estados depressivos, resultando em um ciclo vicioso (Kanter et al., 2008Kanter, J. W., Rusch, L. C., & Brondino, M. J. (2008). Depression self-stigma – A new measure and preliminary findings. Journal of Nervous and Mental Disease, 196(9), 663-670.). Por isso, a relação positiva entre humor depressivo e internalização do estigma era esperada.

Como esperado, a ISMI Brasil foi negativamente correlacionada com a Escala de Esperança de Herth (r = -0,19). Isso implica que o estigma internalizado está inversamente associado a sentimentos de esperança. A desesperança pode resultar na internalização do estigma ou em crenças estereotipadas sobre o transtorno mental (Lysaker, Salyers, Tsai, Spurrier, & Davis, 2008Lysaker, P. H., Salyers, M. P., Tsai, J., Spurrier, L. Y., & Davis, L. W. (2008). Clinical and psychological correlates of two domains of hopelessness in schizophrenia. Journal of Rehabilitation Research & Development, 45(6), 911-919.), assim como indivíduos auto-estigmatizados podem não aderir ao tratamento prescrito por se sentirem sem esperança e achar que o tratamento não rende benefícios (Corrigan et al., 2006Corrigan, P. W., Watson, A. C., & Barr, L. (2006). The self-stigma of mental illness: Implications for self-esteem and self-efficacy. Journal of Social and Clinical Psychology, 25(8), 875-884.). Pesquisas futuras são necessárias para determinar por que a diminuição da esperança está relacionada ao estigma internalizado, mas não especificamente à experiência subjetiva de ser avaliado de forma inferior aos demais membros da sociedade, visto que não houve correlação significativa entre a EEH e a subescala Alienação da ISMI Brasil.

Por fim, a Escala de Auto-estima de Rosenberg também foi negativamente correlacionada com a ISMI Brasil (r = -0,48), como esperado. Diversos autores têm mostrado que uma das principais consequências negativas do estigma internalizado é a perda da auto-estima (Ritsher et al., 2003Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.). Apesar da correlação estatisticamente significativa entre as escalas, em termos de constructo, na análise fatorial da EAER com a ISMI Brasil, alguns itens não se agruparam no fator esperado: seis itens da escala de auto-estima não foram ordenados no fator da EAER – sendo que cinco deles possuem pontuação invertida – e, dois itens da subescala Resistência ao Estigma também não foram ordenados no fator da ISMI Brasil. A dificuldade de interpretação dos respondentes em relação aos itens invertidos das escalas aplicadas é um ponto que merece atenção em estudos futuros, visto que foram esses itens que não se agruparam nos fatores esperados em todas as análises fatoriais.

Ainda em relação aos resultados da análise fatorial realizada com a EAER, outras questões devem ser levantadas. Em primeiro lugar, no que diz respeito à confiabilidade da EAER: dentre as três escalas utilizadas na análise fatorial da ISMI Brasil, a EAER apresentou o menor índice de consistência interna (α = 0,64). Em segundo lugar, em relação à população para a qual a EAER foi validada no Brasil: apesar de ser internacionalmente utilizada em estudos com pacientes com transtornos mentais, pode-se supor que a Escala de Auto-estima de Rosenberg validada para o Brasil (Dini et al., 2004Dini, G. M., Quaresma, M. R., & Ferreira L. M. (2004). Adaptação Cultural e Validação da Versão Brasileira da Escala de Auto-Estima de Rosenberg. Revista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, 19(1), 41-52.) não seja o melhor instrumento para mensurar a auto-estima entre dependentes de substâncias – visto que foi validada para pacientes que iriam se submeter à cirurgia plástica.

Enfim, a complexidade do conceito de estigma internalizado somada à divergência teórica e metodológica presente em uma importante parte da produção acerca do tema, dificulta a comparação dos resultados entre estudos, e pode levar a uma confusão conceitual entre o constructo de estigma internalizado e de auto-estima, expressa nos itens das respectivas escalas. Ambos os conceitos envolvem o apreço e a consideração que uma pessoa sente por si própria, ou seja, como ela se vê e o que pensa sobre si mesma sob uma perspectiva de valores. Assim, pesquisas futuras são necessárias para determinar se há distinção entre os constructos de auto-estima e estigma internalizado entre dependentes de substâncias.

Na Análise Fatorial Exploratória com os itens da ISMI Brasil, optou-se por excluir a subescala Resistência ao Estigma, visto que a mesma apresentou índice muito baixo de confiabilidade – procedimento também adotado por Ritsher et al. (2003)Ritsher, J. B., Otilingam, P. G., & Grajales, M. (2003). Internalized stigma of mental illness: psychometric properties of a new measure. Psychiatry Research, 121(1), 31-41.. Das 24 questões, seis mantiveram-se em agrupamentos fatoriais similares àqueles encontrados na escala original: as questões 17 e 21 permaneceram no 1º fator, as questões 6 e 10 no 2º fator, a questão 25 no 3º fator, e a questão 4 no 4º fator. Devido à variação dos itens em relação aos fatores originais, seria mais sensato criar novas classificações para as subescalas. No entanto, visto que esse movimento alteraria substancialmente o formato da nova escala, optou-se por manter os itens nas classificações originais.

As questões remanescentes, 15 e 29, foram excluídas da análise do componente principal, uma vez que se revelaram de pequena importância no conjunto. O comportamento independente dessas duas questões suscita algumas ponderações. A questão 15 possui uma expressão pouco usual em nossa cultura "condescendência", o que poderia levar a uma dificuldade de entendimento da questão por parte dos respondentes. Na questão 29, apesar da expressão "estereótipos" ter sido substituída por "imagens" durante a fase de tradução e adaptação cultural da escala, ainda assim, ela pode ter causado um estranhamento aos respondentes dentro do contexto da questão, ou mesmo não ter sido a melhor opção para suprir o significado de "estereótipos" nesse item.

De uma forma geral, apesar da maioria dos itens não ter se agrupado nos fatores esperados, as questões da ISMI Brasil mantiveram desempenho adequado, inclusive no que se refere às cargas fatoriais. A despeito das discrepâncias observadas quanto aos itens dos fatores obtidos, a consistência interna de 0,85 (para os 24 itens) é indicativa da manutenção da confiabilidade da escala quando utilizada em nosso meio.

Desta forma, as propriedades psicométricas da Versão Brasileira da Escala de Estigma Internalizado (ISMI) Adaptada para Dependentes de Substâncias foram bem estabelecidas, no entanto, este estudo apresenta algumas limitações. Apesar da consistência interna e split-half terem sido utilizados para verificar a homogeneidade da amostra, não foram testados outros métodos para obter uma compreensão mais clara da confiabilidade da escala, entre eles, o teste-reteste. Investigações complementares incluindo análise fatorial confirmatória, e exames de outras evidências de validade da escala também são necessárias, assim como análises estatísticas mais sofisticadas, tais como Teoria de Resposta ao Item (TRI) e análise de regressão múltipla.

Este estudo adotou a abordagem quantitativa para a obtenção de informações sobre o estigma internalizado entre dependentes de substâncias. Apesar de figuras numéricas serem úteis para análises objetivas de dados, não foram incluídos dados qualitativos no questionário. Estudos com uma combinação de métodos quantitativos e abordagens qualitativas devem ser executados no futuro para maior entendimento de como os efeitos negativos do estigma internalizado afetam as relações sociais e o tratamento entre dependentes de substâncias. Estudos longitudinais também seriam de grande importância para melhor compreender o processo de internalização do estigma e avaliar as consequências de longo prazo do estigma na vida de uma pessoa.

Considerações Finais

Foram atingidos os objetivos de validar, para a realidade brasileira, a Escala de Estigma Internalizado de Transtorno Mental (ISMI) Adaptada para Dependentes de Substâncias. Após as análises realizadas, a escala permaneceu com os 29 itens originais escritos de forma afirmativa em que a graduação dos itens ocorre por escala tipo Likert de quatro pontos, variando de discordo totalmente (1) a concordo totalmente (4). Os itens da subescala Resistência ao Estigma apresentam escores invertidos. O escore total varia de 29 a 116, sendo que quanto maior o escore, mais alto o nível de estigma internalizado. Considera-se importante que a ISMI Brasil continue a ser testada quanto à sua confiabilidade e validade em diferentes contextos sócio-culturais e populacionais da realidade brasileira.

Uma vez que os instrumentos de avaliação psicológica desempenham, atualmente, um papel fundamental nos diversos contextos de atuação dos psicólogos e de outros profissionais de saúde, espera-se que este instrumento torne-se uma importante ferramenta para clínicos e pesquisadores que ainda não dispõem de uma escala específica para avaliar o estigma internalizado entre dependentes de substâncias psicoativas. Mediante a verificação dos escores pontuados nas subescalas do instrumento, os profissionais poderão identificar, com maior precisão, a intervenção necessária para o tratamento da dependência de substâncias e, consequentemente, para a redução do estigma internalizado desses pacientes.

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    Apoio: CNPq; CAPES; FAPESP

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2012
  • Aceito
    28 Ago 2014
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