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As Clínicas da Psicanálise: Sutileza e Força dos "Jogos de Verdade" na Produção de Subjetividade

Clinics of Psychoanalysis: Subtlety and Strength of the "Truth Games" on Subjectivity Production

RESUMO

O presente artigo visa a apresentar e a inserir os resultados de duas dissertações de mestrado em uma discussão sobre os efeitos de legitimação das práticas clínicas psicanalíticas. Tomou-se como corpus o discurso de psicanalistas brasileiros que se reconheciam como kleinianos ou lacanianos. Em um dos estudos, investigou-se o reconhecimento das noções de transferência e interpretação; no outro, as concepções de término de análise. Os discursos (gravados e transcritos) foram analisados por meio do método da Análise Institucional de Discurso. Foi possível delinear os lugares atribuídos ao paciente, à teoria e ao próprio entrevistado. A análise apontou especificidades, mas também surpreendentes aproximações entre os discursos de lacanianos e kleinianos. Concluiu-se que, em função de efeitos de naturalização dos conceitos no discurso dos analistas, configura-se uma espécie de antecipação de uma subjetividade desenhada pela teoria psicanalítica.

Palavras-chave:
psicanálise clínica; análise institucional de discurso; subjetividade

ABSTRACT

This article aims to present and to insert the results of two Master Theses in a discussion of effects of clinic practices, to reinforce the clinic practice as an institution. The speech of Brazilian psychanalysts who identify themselves as Kleinian or Lacanian constituted the corpus of this investigation. In one of the studies the recognition of the concepts of transfer and interpretation was investigated, and in the other study the conceptions of analysis ending. The discourses (recorded and transcribed) of psychanalysts were analyzed using the Institutional Analysis of Discourse method. The results permitted to outline the position assigned to the patient, the theory and the professional in the clinical context. The results also indicated particularities and similarities between the two groups (Lacanian and Kleinian). It can be concluded that there exists a kind of anticipation of subjectivity designed by psychoanalytic theory.

Keywords:
psychoanalysis clinic; institutional analysis of discourse; subjectivity

O título do presente artigo remete-nos à pluralidade no exercício da clínica psicanalítica. Mais ainda, faz supor que nele produzem-se (e não se desvelam) subjetividades num sutil jogo de forças da relação saber/poder, constitutivo daquilo que nomeamos análise. No que diz respeito à pluralidade, nada de original para este começo de conversa: não há apenas uma, mas várias psicanálises (Altoé & Silva, 2013Altoé, S., & Silva, M. M. (2013). Características de uma clínica psicanalítica com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Estilos da Clínica, 18(1), 125-141.; Costa-Rosa, 2011Costa-Rosa, A. (2011). Ética e clínica na atenção psicossocial: Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan. Saúde Sociedade, 20(3), 743-757.; Coutinho, 2012Coutinho, A. H. (2012). Inconsciente e clínica psicanalítica contemporânea. Reverso, 63(34), 15-23.; Oliveira, 2012Oliveira, E. S. (2012). O analista, o poeta e o mestre do Zen: Reflexões sobre os impasses da clínica. Reverso, 64(34), 43-48.; Vilhena & Rosa, 2011Vilhena, J., & Rosa, C. M. (2011). A clínica psicanalítica nos espaços abertos do CAPS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 63(3), 130-147.). Prometemos, entretanto, a partir de um determinado recorte conceitual, revirar tal afirmação e iluminar diversas faces no avesso de seu avesso... Isto é, prometemos mostrar que, por efeitos de naturalização e legitimação do fazer clínico, em suas repetições e variações cotidianas, cada analista reconhece seu trabalho como a clínica, apesar de também se dizer filiado a esta ou aquela psicanálise, de dizer professar este ou aquele autor, desde sua formação para o ofício. E, assim, a psicanálise se torna única para quem a faz na condição de analista. Com essa mágica passagem do plural dito ao dizer-se no singular, um destacável aspecto parece ser lançado à sombra de nossas ações mais caracteristicamente conscientes: a subjetividade - que julgamos, pela sagrada hipótese do inconsciente, revelar-se ou desvelar-se, em sua não menos sagrada singularidade - poderia ser considerada como produzida pelo e no contexto concreto das sessões de... análise. Produzida como um saber que se antecipa ou se segue a cada ato analítico. Produzida como um saber sobre o que é a análise, os fatores de sua eficácia, o sujeito psíquico (e/ou do inconsciente) que se põe na qualidade de paciente. Produzida em um jogo de forças que sutilmente esconde sua condição de engenho instituinte do autoconhecimento, do conhecimento do outro, do auto, do outro, da mudança e do movimento possível em um processo terapêutico.

O intrincado jogo de palavras, no parágrafo acima, presta-se a abrir uma discussão um tanto quanto séria. É um jeito, talvez um pouco pesado, de abrir caminho. No entanto, nas páginas que se seguem, a intenção é retirar o caráter de mistério, é desmistificar a eficácia mágica das passagens obscuras, é demonstrar, por uma estratégia de pensamento e fora das sendas teóricas da própria psicanálise, que o exercício da clínica acaba por conferir uma certeza íntima a quem o faz: a da unicidade e obviedade da verdade desse fazer. Trocando em miúdos: cada analista, em seu consultório, não se questiona sobre a relatividade de seu fazer. Pelo contrário, parece que a cenografia do atendimento - o setting - cadencia o ritmo de andar, o tom da fala, o modo de vestir e as palavras com as quais ouvimos o que nos dizem nossos pacientes. Tudo indica que a cena e o palco montados posicionam os personagens (analista e paciente), bem como faz com que suas falas façam sentido (para quem fala e para quem ouve). Há, nessa colocação, algum tipo de juízo ou crítica condenatória? Absolutamente não. Há nela uma recorrência à célebre frase: "o discurso, na prática, é outra coisa"? Também não. O que há é uma afirmação, intencionada por uma estratégia de pensar, que aposta na força dos efeitos de reconhecimento e desconhecimento de qualquer prática clínica, porque a considera como uma instituição do fazer em um determinado campo1 1 Estamos considerando, aqui, as práticas clínicas como instituição. Para tanto, apoiamo-nos no conceito de instituição de (Guilhon-Albuquerque, 1980). Para esse autor, o termo instituição pode ser entendido como um conjunto de relações sociais que se repetem e nessa repetição se legitimam, pelos efeitos de reconhecimento e desconhecimento desse e nesse fazer concreto .

No âmbito deste artigo, a aposta conceitual de que há a redução "da pluralidade do dito ao dizer-se no singular" será sustentada pela apresentação dos resultados de análise de duas pesquisas com psicanalistas de diferentes orientações/escolas: inglesa e francesa (Lima, 2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).; Veiga, 2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).). Embora cada uma dessas pesquisas trate de temas específicos (uma: a concepção de transferência e interpretação; a outra: a concepção de término de análise) e os entrevistados apresentem orientações teórico-clínicas diversas, ambas apontaram para a naturalização do fazer clínico, bem como para surpreendentes aproximações nos discursos dos analistas no que se refere ao modo de se verem, de verem seus pacientes e a própria análise.

Reservamos à escritura do presente texto a finalidade precípua de inserir os resultados de análise desses estudos em uma discussão mais ampla sobre os efeitos, ao mesmo tempo sutis e intensos, de legitimação das práticas clínicas; isto, pela antecipação naturalizada de uma subjetividade desenhada pela teoria. E, pela particularidade da estratégia de pensamento (da organização metodológica-conceitual) - que atribui sentidos, desde a formulação do campo das questões que acima nos colocamos até a configuração do discurso analítico a que chegamos -, teremos à nossa frente um rigoroso esforço de demonstração de que nossas análises se sustentam em função do que nos propusemos fazer. Não se fará confronto com outras pesquisas sobre o tema, uma vez que estudos prévios (Lima, 2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).; Veiga, 2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) demonstraram que elas foram realizadas a partir de recortes teórico-metodológicos diferentes do nosso e, com isso, perderíamos o escopo para conclusões minimamente consistentes.

Para maior clareza na exposição das ideias, faremos seguir:

  1. considerações sobre o Método, sobre o campo conceitual que o define;

  2. discussão da pesquisa de Veiga (2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).), intitulada Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalítica, do ponto de vista dos objetivos deste artigo;

  3. discussão da pesquisa de Lima (2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).), intitulada O paciente e o término da análise no discurso de psicanalistas - uma análise institucional do discurso, igualmente na perspectiva dos objetivos deste artigo;

  4. considerações finais, sob o título Subjetividade, verdade e clínica: a instituição da singularidade.

Método

Ao iniciarmos este item, fazem-se necessárias algumas considerações. É importante dizer que operar com a Análise Institucional de Discurso implica conceber o termo método de uma forma particular. Significa não o entender como um conjunto de regras e procedimentos que garantiriam o acesso de forma imparcial a uma verdade à espera de ser revelada; mas como um conjunto de conceitos que organizam um modo de pensar. O método, dessa perspectiva, constitui-se como uma estratégia de pensamento que não apenas orienta um modo de análise, mas representa um modo de conceber/produzir a pesquisa desde seu início (Guirado, 2004Guirado, M. (2004). Psicologia institucional (2ª ed). São Paulo: EPU.; 2010Guirado, M. (2010). A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. São Paulo: Annablume e Fapesp.).

O organizador primeiro desse modo de pensar é um conceito de instituição2 2 A definição de instituição como conjunto de práticas sociais que se repetem e se legitimam foi estabelecida por (Guilhon-Albuquerque, 1980). No entanto, essa noção foi apropriada e retrabalhada por (Guirado, 2004, 2010) ao elaborar sua proposta metodológica chamada Análise Institucional de Discurso. como relações sociais, como um conjunto de práticas concretas que se repetem e, nessa repetição, produzem um efeito de reconhecimento e naturalização de atos, condutas e expectativas, e, ao mesmo tempo, de desconhecimento de sua relatividade ao contexto imediato, ao contexto histórico geográfico, ao discursivo, enfim. Ao arrepio da consciência vamos, nas relações que fazemos e/ou repetimos, legitimando fazeres e concepções, como se eles sempre tivessem sido assim, como se não se tramassem pela própria ação de seus atores, e isso em um certo tempo, um certo lugar e por certo grupo de regras. Tudo se passa como se nos esquecêssemos de que poderia ser de outra forma, outra história, outro discurso. Por esse conceito de instituição, não importam o número de pessoas em jogo, o espaço físico e os estatutos escritos. Importa, sim, que se trate de uma relação que é pautada por expectativas cruzadas entre os atores e/ou interlocutores que a fazem. Importa que tudo isso seja representado por esses atores como natural e legítimo, e não como produzido. Tal compreensão remete diretamente à ação, ao fazer de seus agentes e clientes, ou melhor, à relação de clientela (Guilhon-Albuquerque, 1980Guilhon-Albuquerque, J. A. (1980). Instituição e poder. Rio de Janeiro: Graal.). E disso não escapa a clínica psicanalítica. Pode-se, sob esse recorte, considerá-la uma instituição.

Mais ainda, tais relações não se fazem fora do discurso. Um discurso entendido, aqui, como ato, como dispositivo, nos termos de Foucault (1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970)). Para além das palavras e dos significantes, pensado como acontecimento, o discurso representa um "perigo", que precisa ser controlado e regrado de modo a afastar sua temível materialidade. Nessa concepção, os dispositivos institucionais/discursivos são procedimentos sub-repticiamente enredados nas palavras que se tem para ouvir e para falar.

É assim que, nas relações, ritos e mitos, produzem-se e reproduzem-se por um incessante jogo de tensões, de correlações de forças de poder e resistência, como "ação sobre ação" (Foucault, 1995Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In H. Dreyfus & H. Rabinow (Orgs.), Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária.). Todos, fatores que se exigem mutuamente para que a relação se dê (Foucault, 1976/2003Foucault, M. (2003). História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. (Original publicado em 1976)). E, como o afirma Foucault (1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970)), no desenho desse jogo de forças, constituem-se saberes, tomados como verdades que parecem sempre ter estado lá, prontas (ou quase prontas) para serem descobertas. Nos procedimentos ou dispositivos institucionais, portanto, ao mesmo tempo, sutil e consistentemente, produzem-se verdades sobre si e sobre o outro, sobre o mundo e sobre sua estabilidade, à espera de um desvelamento. Tais discursos guardam a particularidade de recusar todo conhecimento que lhes seja estrangeiro, como teratologia do saber, como falso, como excluído do campo desse saber assim verdadeiro (Foucault, 1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970)).

Um ponto fundamental desse processo é a consistência que ganha um discurso pela pertença de seus falantes ao grupo dos que pensam e agem do mesmo modo. No mesmo e, agora, único campo possível de verdades que pelo discurso-ato se definiu. É nele que se constitui o sujeito dessas práticas.

Foucault (1976/2003Foucault, M. (2003). História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. (Original publicado em 1976)), entretanto, não atribui a esse movimento dos (eternamente tensos) jogos de força um caráter estritamente restritivo e repressivo. Pelo contrário, ao afirmar que a resistência é constitutiva das relações de poder (só se pode falar de poder, se se falar de resistência), pelo efeito de produção de saber, faz supor uma dimensão produtiva e criadora às relações de poder.

As particularidades desse recorte conceitual dão o escopo de uma análise dos discursos que será, sempre, rarefeita e descritiva, não interpretativa. Trata-se de uma analítica da subjetividade no sentido de configurar a objetivação do sujeito que, nessas práticas, produz-se; uma análise arqueogenealógica da constituição de saberes reconhecidos como verdade.

Trazendo a estratégia de pensar de Foucault (1995Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In H. Dreyfus & H. Rabinow (Orgs.), Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária., 1997/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970), 1976/2003Foucault, M. (2003). História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. (Original publicado em 1976), 1963/2004Foucault, M. (2004). O nascimento da clínica (6ª ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1963)) para as fronteiras da análise do discurso de instituições concretas, deve-se levar em conta: o contexto em que se produz um determinado conhecimento sobre o outro; as expectativas aí criadas, bem como em função de que podem ter sido criadas; a reação à ação; as resistências que denunciam a presença e a força do outro polo. No modo como se fala, mais que no conteúdo, nos lugares atribuídos e assumidos nas cenas que se enunciam, mais do que na fala como representante de uma verdade e uma realidade fora dela, temos os vetores da análise de discurso assim concebida. Desse modo, configura-se à análise que ora propomos: como e em que lugar se põe o sujeito que fala e aquele a quem fala; que relação se mostra como a verdadeira, a legítima e natural, em seu reconhecimento/desconhecimento. Como pensar tudo isso, colocando em perspectiva a clínica psicanalítica?

Dissemos de início que, pelo recorte conceitual com que trabalhamos, a clínica pode ser considerada uma instituição3 3 Novamente, instituição entendida conforme a perspectiva de (Guilhon-Albuquerque, 1980), ou seja, como um conjunto de práticas sociais que se repetem e que enquanto se repetem se legitimam. . Assim, a relação analista-cliente não se fará senão em um quadro legitimado e legitimador das ações de ambos os parceiros, e a verdade ali construída tende a ser considerada como a verdade sobre um paciente que, nas malhas das instituições de formação, objetivou-se como o sujeito em análise, quer seja ele tomado como portador de queixas ou demandas de um desejo inconsciente que lhe rouba a possibilidade de saber de si enquanto fala, que pela mesma fala pode ser interpretado na suposição/certeza de que transfere imagos infantis na relação com o psicanalista, quer como portador de uma verdade a ser decifrada por quem se dispõe a analisá-lo (Freud, 1912/1996Freud, S. (1996). A dinâmica da transferência. In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vol. XII, pp. 109-119). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1912); Klein, 1952/1991Klein, M. (1991). As origens da transferência. In Inveja e gratidão e outros trabalhos (pp. 70-79). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1952)). Nas instituições de formação, pela convicção com que os mestres costumam apresentar as diferentes teorias que ensinam e pelas práticas de estágio supervisionado das clínicas-escola, bem como nas análises pessoais, vai se desenhando o perfil de um paciente e de suas "razões e desrazões", um perfil do fazer analítico e do lugar do analista que, na desigualdade, antecipa-se com um saber, àquele que se construiria, por ventura, a cada sessão ou a cada análise.

Nos atendimentos concretos, os procedimentos e as teorias constitutivas da escuta do analista, que dariam a este a sensação de pertença ao grupo de psicanalistas, tendem também, "naturalmente", a se antecipar ao que diz o cliente que busca, por suas razões e motivos, esse atendimento. E, nessas malhas, todas discursivas, é que se produzirão os sujeitos/subjetividades das práticas clínicas. Quando um analista fala sobre seu trabalho, fala o discurso das certezas assim construídas, como se fosse o conhecimento verdadeiro sobre algo; quer seja esse "algo" a realidade psíquica do paciente, seu funcionamento inconsciente, suas queixas, suas demandas, suas resistências, suas transferências.

De fora das modalidades estritas de fazer psicanálise e munidos dessa concepção sobre o que acontece quando um paciente procura um analista e faz (sua) análise, é que se colocam os autores do presente texto. Apesar de psicanalistas, conduzirão a análise que fazem, não mais a partir de uma ou outra prática clínica, mas sim, a partir da estratégia de pensamento que nomeamos Análise Institucional do Discurso (Guirado, 2004Guirado, M. (2004). Psicologia institucional (2ª ed). São Paulo: EPU.; 2010Guirado, M. (2010). A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. São Paulo: Annablume e Fapesp.), na fronteira da psicanálise com outras áreas do conhecimento.

A Análise Institucional do Discurso, portanto, pode ser entendida como uma estratégia de pensamento que é fruto de uma articulação entre diversas áreas de conhecimento: a sociologia de Guilhon-Albuquerque (1980Guilhon-Albuquerque, J. A. (1980). Instituição e poder. Rio de Janeiro: Graal.), a psicanálise freudiana (1886-1939/1996Freud, S. (1996). Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Vols. 1-24). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1886-1939)), a linguística discursiva de Dominique Maingueneau (1997Maingueneau, D. (1997) Novas tendências em análise de discurso (3ª ed). Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas.) e o pensamento de Michel Foucault (1995Foucault, M. (1995). O sujeito e o poder. In H. Dreyfus & H. Rabinow (Orgs.), Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária., 1997/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970), 1976/2003Foucault, M. (2003). História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal. (Original publicado em 1976), 1963/2004Foucault, M. (2004). O nascimento da clínica (6ª ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1963)). Trata-se de um modo de pensar (e também de proceder à análise) que toma como operadores conceituais as noções de instituição (que, por sua vez, implica a noção de efeitos de reconhecimento e desconhecimento), de discurso como ato e de relações de poder.

A análise dos corpora, a partir dessa perspectiva, implica um processo em que se busca evidenciar o modo como o discurso se organiza, ou seja, enfatizar a enunciação e não apenas o enunciado, dar destaque ao dizer ao invés do dito. Trata-se de delinear, a partir do modo de enunciar dos entrevistados, os efeitos de reconhecimento e desconhecimento, ou seja, os lugares assumidos por aquele que fala, os lugares atribuídos ao outro (ao paciente, à teoria, ao entrevistador, às situações), as expectativas decorrentes dessa distribuição de lugares e os jogos de força constitutivos das cenas enunciativas analisadas (Guirado, 2000Guirado, M. (2000). A clínica psicanalítica na sombra do discurso: Diálogos com Dominique Maingueneau. São Paulo: Casa do Psicólogo.).

Dois trabalhos empíricos colocam-se como suporte para as considerações aqui apresentadas: A interpretação e a transferência como instituintes da clínica psicanalítica, de Luiz Gustavo Veiga (2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).), e O paciente e o término da análise no discurso de psicanalistas, de Marco Aurélio de Lima (2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).), apresentados como dissertações de mestrado na USP, respectivamente, em agosto de 2006 e junho de 2007, sob orientação de Marlene Guirado. Cada uma à sua vez, as duas serão mostradas em seus resultados mais contundentes. Se nos escaparam aspectos que poderiam torná-los mais esclarecedores e suficientemente argumentativos, contamos com os trabalhos citados, na íntegra, nas referências bibliográficas. Contamos, acima de tudo, com a disposição favorável do leitor para pesquisar a indicação.

A partir desses trabalhos (Lima, 2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).; Veiga, 2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).), espera-se demonstrar o modo pelo qual analistas de diferentes escolas de psicanálise, ao falarem sobre seu ofício permitem configurar: (a) o que legitimam como o trabalho analítico; (b) quem é o paciente que atendem; (c) o atravessamento de uma teoria sobre o psiquismo e sua análise, na escuta do que lhe diz o paciente; (d) sua pertença a uma determinada comunidade discursiva que se encarna nos procedimentos reconhecidos como psicanalíticos no trato diário dos atendimentos que fazem; (e) nisso tudo, a construção de uma verdade sobre o sujeito em análise e a subjetividade em geral (a que adoece e aquela da cura), com a transparência e a obviedade das mais completas naturalizações do que é relativo.

Os procedimentos utilizados pelos pesquisadores (Lima, 2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).; Veiga, 2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) foram os de realizar entrevistas de aproximadamente sessenta minutos com psicanalistas que tivessem de dez a vinte anos de experiência de atendimento clínico psicanalítico. Tais entrevistas eram gravadas e sua transcrição era submetida ao processo de análise. Veiga (2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) selecionou para as entrevistas o número de 8 psicanalistas, entre os quais 4 eram filiados a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP-SP) e se reconheciam como vinculados a tradição da escola inglesa de psicanálise e os 4 restantes, ligados a Escola Brasileira de Psicanálise - Escola do Campo Freudiano (EBP - ECP) e se identificavam como lacanianos. Lima (2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).), por sua vez, selecionou 6 psicanalistas, 3 deles se reconheciam como ligados à tradição kleiniana e/ou de Wilfred Bion (escola inglesa) e os outros 3, como tributários da perspectiva lacaniana de psicanálise (escola francesa).

Resultados e Discussão4 4 Os títulos dos itens que se seguem e a forma de sua apresentação temática buscarão inserir os resultados analíticos das dissertações supracitadas na discussão mais ampla a que visamos com este artigo, conforme nos comprometemos a fazer desde a Introdução.

Na Transferência e na Interpretação, o Engenho Instituinte da Subjetividade

Desde o título, a dissertação de Veiga (2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) traz o comprometimento com o método em questão: os termos transferência e interpretação são dois fortes instituintes da clínica da psicanálise. Isso nos remete ao fato de que o que o analista entende ser "transferência" ou o que ele espera como efeitos de suas interpretações são fatores que dão a uma determinada clínica o seu perfil. É bem concreto, portanto, o contexto de produção de verdades: são as sessões de análise e/ou terapia, em que um "busca a verdade" de si e o outro mais ou menos eficazmente a "descobre". E isso, em princípio, apoiado em uma teoria da técnica.

Como dissemos anteriormente, Veiga (2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) analisou o discurso de psicanalistas ligados a Sociedade Brasileira de Psicanálise, autoreferidos como kleinianos e também o daqueles vinculados à Escola Brasileira de Psicanálise, os quais se reconhecem com lacanianos. O objetivo visado foi o de configurar como os lugares são dispostos e atribuídos na clínica, que cenas são construídas; enfim, como se faz essa instituição.

Os procedimentos de análise, em linha geral, caracterizaram-se por destacar, nas falas dos entrevistados, as cenas que construíam ao tratar de seu cotidiano. Nelas, destacavam-se: (a) lugares assumidos e atribuídos aos personagens e à relação entre eles; (b) o lugar que os conceitos e a psicanálise, como instituição do conhecimento e como discurso, exercia, sobretudo na ação do personagem analista ao interpretar a transferência e/ou no desenvolvimento de expectativas sobre o "processo de seu paciente", como se ele (o analista) tivesse autonomia diante de todo o discurso psicanalítico (para dizer do término da análise, por exemplo, do lugar dele e do paciente na prática clínica). Destacava-se, também, como se dava a relação de fala entrevistador/entrevistado, pois considerávamos, como "quadro discursivo" em análise, a própria instituição de pesquisa. Essa era a cenografia do estudo: fundamental para tratar dos resultados analíticos, de seus limites e de seus alcances.

Constatou-se que os psicanalistas entrevistados, que se pautam por diferentes vertentes teóricas, de acordo com as instituições a que se vinculam, produzem um trabalho clínico até certo ponto específico. Porém, também foi possível traçar, entre essas clínicas, aproximações impensadas a princípio. Isso ficou claro na semelhança encontrada na distribuição de lugares para os atores em cena nas diversas clínicas. Psicanalista e paciente têm papéis atribuídos e assumidos com características muito semelhantes, o que condiz com a suposição de que a clínica é, por efeitos de re(des)conhecimentos, uma prática institucional que produz subjetividades reconhecidas como específicas, especiais ou até únicas e singulares, lá onde se desconhece a naturalização da reprodução do mesmo. O que é isso? Acompanhemos o texto analítico e, por certo, os esclarecimentos virão.

Da naturalização das práticas. A interpretação ganha destaque, nos discursos, por se fundar em certezas anteriores à própria sessão. Isso fica evidente quando tais certezas são colocadas sobre as falas dos pacientes, como se os psicanalistas já esperassem determinada fala ou posicionamento das pessoas que atendem. A interpretação fica caracterizada como um saber constituído que entra em jogo, até certo ponto, independentemente dos pacientes. Vejamos abaixo.

A transferência está ocorrendo ali no momento da sessão, por exemplo. E ele traz alguma figuração, alguma representação, ele trouxe a cena do sonho. [...] sei lá, e já é alguma coisa transferencial. A pessoa traz e você percebe que é um material transferencial, daí você interpreta. A interpretação é sempre uma consequência, ela vem como uma decorrência. (Analista de Escola Inglesa 01)

Nas falas dos psicanalistas entrevistados, o conhecimento transmitido pelo analista ampliaria os recursos do paciente. O efeito de saber e mostrar a verdade (da parte do analista) acaba caracterizando o paciente como quem precisa ser educado sobre si, precisa reestruturar suas atitudes, e tudo isso se presta a que o sucesso da análise se estabeleça. O analista parece refratário aos supostos ataques sofridos. O que parece mantê-lo inabalável é sua certeza de verdade e conhecimento sobre quem é e como deverá ser o paciente. A este, cabe uma espécie de sujeição, aceitação dessa regra não explícita, mas mostrada, para que a análise aconteça. O extrato abaixo é sutilmente exemplar:

Uma interpretação bem-sucedida é aquela que permite que o paciente tome uma outra atitude, né... que ele amplie um recurso dele, né... [...] Então, é difícil aceitar que alguém lhe dê algo de bom, né, e ela costuma atacar, né. [...] E em um certo momento eu disse para ela com muita clareza esse movimento dela, [...] mas ela continua indo à sessão, porque ela quer que eu diga a verdade para ela. Ela começou a mudar um pouquinho a postura em relação a isso. (Analista de Escola Inglesa 02)

Outro exemplo, menos sutil, porém, aparece carreado pelo termo redução, utilizado por uma das psicanalistas lacanianas, que aponta para uma postura de domínio de um saber necessário e suficiente sobre a vida do paciente. Ocorre um direcionamento de comportamentos, que molda a forma de agir: o analista diz o que o paciente pode ou não fazer.

Então, você não vai mais para a praia, vai ficar, o máximo que você pode fazer é subir a serra, se quiser ir para Campos do Jordão vai, para a praia você não vai mais. Então, reduzir esse momento significa circunscrever aquele problema a um espaço físico aonde ele evitasse aquilo [...] ouvi tudo aquilo e chamei o pai e a mãe [...] Eles não me obedeceram; o pai e a mãe não me obedeceram e, passado um mês, ele fugiu de casa de novo. [...] ele é um psicótico que precisa de estabilização, e essa redução estabiliza. (Analista de Escola Inglesa 03)

A analista dá as vias da estabilização da relação pais/filho. Isso supõe corrigir e moldar o funcionamento familiar. Pressupõe um conhecimento sobre o que é bom para o paciente e para a família. Assim, a interpretação/redução derivada desses supostos e pressupostos aproxima-se da normatização.

Diferenças e semelhanças entre as práticas. É na interpretação que é possível desenhar mais nitidamente algumas diferenças entre o fazer dos analistas lacanianos e kleinianos entrevistados. Além da redução, a interpretação é denominada por alguns lacanianos como uma chamada a saber. Vista dessa forma, ela delimita certos posicionamentos na clínica. Quando o analista chama o paciente a saber, isso não se mantém apenas como um chamar a um ato - o de saber -, mas também a saber algo; algo que, no modo como descrevem seu trabalho, estaria claro para o psicanalista e obscuro para o paciente. Suposto saber? Ou saber não assumido pelo analista? A título de exemplo:

Mas tem uma mãe muito interessante, ela é mãe de uma criança autista, [...] ela começou a usar, muito interessante, um significado que é "pilotar", "tenho que pilotar o banho dele", [...] E aí, num certo momento, eu... eu consegui assim... fazer ela parar e fazer uma associação, "a gente pilota o quê?", né. [...] Quer dizer, o desejo que o outro não assuma, não seja sujeito do seu destino, para que ela continue fazendo com que ele seja uma coisa, para que ela possa pilotá-lo. [...] E... não foi interpretação, foi uma chamada a saber que eu... porque também estava óbvio, eu queria que ela levasse um susto com o que ela estava fazendo. (Analista de Escola Francesa 01)

Na sequência, uma frase sobre o banho do menino já se engata a uma série de verdades, como interpretação, sobre os limites do corpo. O movimento rápido e natural que interliga o fato de sua paciente ter contado que o filho tomou banho sozinho à nova concepção dos limites corporais do menino também chama a atenção, como aparece na entrevista. Continua a fazer as ligações para a paciente, antecipando o que ela precisa notar no filho, direcionando o que deve fazer, educando o olhar e a ação frente à criança. Tudo indica que houve, nessa situação, uma chamada ao saber e não a saber. A rigor e mais especificamente, ao saber de quem dava os rumos: a analista. Assim, a mudança de comportamento e conduta é vista como objetivo e sinal de sucesso da interpretação.

Para os analistas kleinianos entrevistados, o sucesso ou insucesso das interpretações ocorre na própria sessão; os fatos ficam mais circunscritos àquele momento. Há uma possibilidade, diante do insucesso, de contorná-lo na mesma sessão e, para isso, usam analogias que dão conta de explicar seus procedimentos e ações na interpretação. O analista liga "automaticamente" os conteúdos dos sonhos do paciente à relação entre eles dois. A interpretação vai mostrar sempre o que se passa na relação, mesmo que essas analogias pareçam estranhas ao paciente. Nisso, nota-se que, assim como os lacanianos, os analistas kleinianos entrevistados mostram um saber que deve ser transmitido ao paciente, um saber que ainda é estranho a ele. A relação estabelecida é entendida como transferência, e as falas do paciente, supõe-se, indicam características ("inconscientes") dessa relação. A naturalidade do modo como todos esses aspectos se interligam mostra que há a concepção de que o paciente está ali para transferir conteúdos para o analista, e este está ali para interpretar tal transferência, movimento que tem um aspecto de transmissão de conhecimento do analista para o paciente; de alguém que sabe para alguém que não sabe.

Assim, os analistas de escola inglesa entrevistados vinculam transferência e interpretação de forma constante e interdependente. A transferência traz para a sessão a figuração de uma cena da vida do paciente: algo "exterior à análise" que se repete no decorrer da consulta e é dirigido ao analista. A partir disso, estabelece-se o subsídio para a interpretação, pois se aponta, justamente, a repetição, por meio de projeções e sentimentos na relação analítica. Para esses analistas, a interpretação fala da transferência diretamente, enquanto que, para os analistas de escola francesa entrevistados, a transferência define os papéis que possibilitarão o sucesso da interpretação.

Os psicanalistas lacanianos entrevistados, apesar de também indicarem que o paciente se caracteriza por transferir e o analista por interpretar, mostram que a relação entre esses lugares é diferente. A transferência garante a possibilidade de interpretação, pois dá ao analista um saber que o paciente não tem. E, graças a isso, o analista pode interpretar, ser ouvido e fazer com que a análise aconteça. É o encontro de um paciente que (a)credita um saber diferenciado ao analista e de um analista que se apodera dessa suposição de saber para ser ouvido.

Da verdade que se produz nesse jogo e do sujeito da análise. A verdade clínica que se produz delimita o sujeito da análise e as subjetividades em jogo. Por meio da interpretação, confirma-se a relação entre analista e paciente e se definem as estratégias dessa relação no que diz respeito à ação do primeiro. Há uma distribuição de lugares que se complementam pelas oposições - saber e não saber, conhecimento e desconhecimento - e, nisso, estabelecem-se modos de relação que dão o perfil do atendimento. Em seus discursos, os psicanalistas entrevistados mostram, sem disto se darem conta, pressupostos sobre os pacientes que, ao se acumularem, acabam por construir uma auto-evidência da verdade da interpretação. A sedimentação dos pressupostos constrói essa verdade que, supostamente, viria "à tona" por meio da interpretação. Os efeitos disso são os redirecionamentos das atitudes do paciente, a ampliação de recursos, a mudança de postura, entre outros aspectos que alteram os comportamentos do paciente, e não propriamente o seu discurso. Essas ações dão um parâmetro claro sobre os sujeitos em cena.

As dicotomias entre paciente e analista estruturam a clínica e garantem o lugar exercido pelo analista como detentor de um conhecimento - que se veicula pelas certezas relatadas nas interpretações que fazem. Portanto, o processo de análise não funciona se o analista sai de sua posição de saber que, sempre para o "bem do paciente" (conforme reiteradamente sugerem em suas falas), é importante que seja mantida.

No Término, as Inegáveis Marcas de Tensão da Análise

O trabalho de Lima (2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) teve como objetivo configurar o modo como os profissionais entrevistados reconhecem o fim de análise e quais imagens montam de um paciente que conclui seu processo terapêutico. Para isso, o caminho trilhado foi o de configurar a cena enunciativa, ou melhor, destacar: (a) os lugares assumidos pelo entrevistado ao narrar as situações concretas de atendimento; (b) os lugares atribuídos aos personagens integrantes da cena clínica descrita (refere-se aqui especialmente ao paciente e também à teoria psicanalítica); (c) os jogos de expectativas produzidos em função dessa distribuição de lugares. Foram entrevistados 6 psicanalistas, divididos em dois grupos, a saber, o grupo da escola inglesa e o grupo da escola francesa.

Como se verificará adiante, de um lado, as falas delinearam a mesma posição de desigualdade entre os parceiros, caracterizada no estudo de Veiga (2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) quanto às possibilidades de saber sobre o que acontece com o paciente, sobre a origem desse saber (mormente nas teorias que o analista tem a instrumentar sua escuta), bem como sobre o destino do processo (desfecho da análise, causador de alterações sensíveis na modulação de seu discurso). De outro lado, tudo indica que o tema-alvo da pesquisa causa embaraço nas práticas clínicas, independentemente da orientação ou filiação que as marcam. Muito provavelmente, para além de motivos concretos, como o fato de ser esse um serviço prestado por um profissional, somam-se outros de natureza mais específica e dão ao fim da análise um caráter desconcertante. Isso acontece na fala de quem parece lutar para sua manutenção, na fala de quem parece se colocar como seu artífice: o analista. As oposições que entretecem a instituição da análise tomam o perfil de um paradoxo quando se trata de pensar seu fim.

A distribuição dos lugares e a escuta analítica. Predominantemente, no discurso dos psicanalistas entrevistados, analista e paciente posicionam-se em lugares opostos e complementares. Do lado do paciente, a despeito das diferenças entre as "escolas" de psicanálise, pudemos delinear a imagem de alguém que não sabe sobre si, que ignora seu desejo, suas angústias, suas prepotências, seus limites; que desconhece a si próprio. "A questão dessa moça é uma questão tipicamente histérica, né, [...] fundamentalmente, a questão da... do desconhecimento do próprio desejo" (Analista de Escola Francesa 02).

Constituído pela dicotomia exterior/interior, manifesto/latente, o paciente não tem, assim, conhecimento daquilo que "se encontra" em suas "profundezas", subjacente à manifestação sintomatológica. "Vêm, via de regra, com algum sintoma, externo, né. [...] São graus de insatisfação que as pessoas, no manifesto, trazem. [...] Se eu resumir, mais profundamente, né, é dificuldade de se relacionar consigo mesmo" (Analista de Escola Inglesa 04).

No mesmo ato, e complementarmente, o analista surge nessa cena como quem é capaz de perceber, de descobrir e de revelar o segredo ignorado por aquele que o porta, no caso, seu cliente. Produzem-se, para o profissional, convicções sobre qual é a verdade daquele que se deita em seu divã. E isso é de tal forma reconhecido como natural, que psicanalistas entrevistados se atribuem a capacidade de "ver" o "interior" do paciente, suas intenções, desejos, vivências emocionais ou mesmo "a transferência". Uma das falas dos entrevistados pode servir como ilustração: "estou vendo uma vivência emocional que é da ordem primitiva descarregando em mim" (Analista de Escola Inglesa 04).

Parece ser essa uma das formas de a instituição clínica psicanalítica acontecer. Ou seja, por meio dessa disposição de lugares, dos efeitos de reconhecimentos e desconhecimentos constituídos por e constituintes dessa relação, configuram-se, para os analistas, certezas sobre o paciente.

Assim, o posicionamento dos atores e a distribuição de papéis na cena parecem acontecer da seguinte maneira: o paciente é aquele que desconhece a si mesmo e o analista é alguém que porta um saber sobre seu cliente, em função da teoria que professa. Esse paciente é alguém que pode vir a ter esse saber em função da capacidade de "captar" ou "ver" os conteúdos inconscientes que seu analista possui. Este, por sua vez, é alguém que consegue "enxergar" através daquilo que é manifesto. Consequentemente, a função do analista é dizer, pronunciar, revelar e a do paciente é ouvir, apreender o que o analista tem a lhe comunicar. Acompanhemos o extrato abaixo.

Eu procuro dizer para eles aquilo que eles [os pacientes] não estão percebendo. Então é uma observação de mão dupla, né. Ver se ele está querendo se analisar, né, podendo escutar, e achar uma forma de comunicar isso para ele. (Analista de Escola Inglesa 04)

Aos poucos, [...] acabou aparecendo também... hã... alguma curiosidade, né, seja do ponto de vista do "eu não entendi o que você quis dizer", [...] a própria pergunta dele já... é... anunciava um não saber, um "olha, eu não... é... isso ai não estava no esquete", né, "não estava no previsto" e "eu quero saber o que você pode dizer a respeito", uma abertura para a escuta toda. (Analista de Escola Francesa 03)

Surpreendentemente, a escuta é algo a ser exercido pelo paciente. Ao que tudo indica, reconhece-se a análise como a possibilidade de acesso a um saber, a um conhecimento. Entretanto, o processo aparenta ser menos o da produção pelo paciente de um saber sobre si, e mais o de reconhecimento da verdade apresentada pelo analista.

A subjetividade de que se parte (a que se pretende alterar) na clínica desses analistas é aquela constituída por fantasias onipotentes, por limitações, por angústias, pelo desconhecimento de si. O sujeito que se põe em análise é um sujeito "rompido" consigo mesmo. Dividido entre manifesto e latente, tal sujeito/paciente é alguém que não tem contato consigo próprio. É o analista quem vai identificar, ou melhor, ver esse aspecto e evidenciá-lo.

Em outras palavras, é ele quem vai restaurar o contato rompido. A mudança possível é resultado da capacidade do analista de perceber e revelar. Nessa relação, a potência é do analista. O analista faz o paciente reconhecer o que ele (analista) está percebendo. Ao paciente cabe a necessidade de lidar com aquilo que o analista está apresentando. A subjetividade a que se pretende chegar é a subjetividade como potência de entrar em contato com suas limitações, com suas feridas narcísicas (limitações e feridas estabelecidas pelo analista).

O paciente: uma pedra no caminho da análise. Mais algumas considerações sobre o modo como o paciente é reconhecido: é possível afirmar que esse lugar se constitui, para os analistas, como a própria dificuldade do processo. Ele é alguém que não quer se analisar, tem desejos onipotentes de transformação, resiste, não entende o modo de funcionamento analítico. O trabalho analítico realizado com o paciente oferece "riscos", visto ser necessário "lidar com a doença, com a angústia, com a tralha do humano", algo que "nos contamina". Ele "encontra muita resistência por parte dos sujeitos" (Analista de Escola Inglesa 04).

Na relação entre esses lugares na cena analítica, é possível identificar um desencontro de expectativas. Há uma espécie de não correspondência entre o que o analista espera do paciente e o que este, por sua vez, supostamente espera da análise.

Porque eu logo percebi que, quando eu falava determinadas coisas que poderiam ter... é... um sentido mais especifico, ele [o paciente] logo se baseava nisso... é... para uma contraposição... é... que vinha ou desqualificar a... a... a fala, né, no sentido de fazer um exercício de um confronto transferencial constante, como se o posicionamento dele fosse possível somente na medida em que ele podia se confrontar a mim, mas que acabava ficando também amarrada aí a forma de trabalhar, porque era como se ele ficasse esperando o momento para passar a perna e a gente ficasse então paralisado nesse embate analista/paciente. (Analista de Escola Francesa 03)

Parecem esperados nesse fazer e refazer cotidiano da relação entre analista e paciente: antagonismos, tensões, afrontamentos, desigualdade móvel de forças. Nessas situações de oposição entre parceiros, configura-se um sujeito/paciente confrontador, que não compreende o modo de funcionamento do processo analítico e recusa se adequar ao mesmo. Constitui-se a imagem de um paciente que funciona como o próprio obstáculo da análise.

Acompanhemos outra descrição do antagonismo entre esses parceiros.

É uma criança que [...] vinha para fazer gato e sapato de mim. [...] chega aqui, maltrata, pisa [...] E, no começo, ele... no começo, ele me deixava muito confusa. Ele tinha uma conduta que provocava em mim muita confusão, muito desnorteada. [...] Então, nesse momento, que eu comecei a achar que ele estava bem, [...] era o momento em que podia fazer comigo, o que ele sentia que o mundo fazia com ele, fazia gato e sapato. [...] ele estava vivendo, para falar em... nas relações objetais. Ele estava vivendo toda a possibilidade de se sentir bravo e saber que eu... tanto que a primeira vez que ele ficou bravo ele saiu da sessão, mas ele logo voltou e abriu a porta e deu, enfim, inventou qualquer coisa para falar comigo e aí eu estou me valendo da boa e velha Melanie Klein, quer dizer, ele foi ver se eu estava inteira, sabe, se ele não tinha me matado. (Analista de Escola Inglesa 05)

Na cena, a contraposição é abarcada pelos pressupostos psicanalíticos, pois a tensão produzida é assimilada pela atribuição de sentidos oriundos da teoria. Essa analista, por meio da descrição de seus sentimentos, ao mesmo tempo em que se mostra ciente de fazer uso de uma teoria, deixa transparecer certa convicção em relação ao que se passava com seu paciente.

Há uma sobreposição de hipóteses teóricas e situação concreta. A teoria parece ocupar o espaço deixado pela não compreensão e confusão. A convicção parece dar-se na medida em que um pressuposto pode "socorrer" o analista e dar um sentido ao que se passava. Essa parece ser uma ocasião de (re)produção de uma verdade sobre o paciente.

Aqui, como em outras falas, o que se julga "descobrir" sobre o modo de ser do paciente, sob o crivo de nossa análise, mostrou-se, frequentemente, uma espécie de aplicação de um termo ou de um conjunto de relações teóricas a uma situação clínica específica. O analista não parecia dar-se conta disso; muito pelo contrário, reassegurava-se de seu saber.

Podemos dizer, portanto, que essas relações de poder entre esses atores institucionais constituem certos "jogos de verdade", nos quais a teoria parece ocupar um lugar privilegiado e, ao mesmo tempo, produz-se um paciente teórico. Configura-se a produção de uma verdade que é a reverberação da teoria. Se tomarmos um termo do léxico foucaultiano (Foucault, 1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970)), a título de analogia, podemos dizer que se configura um paciente que é como um comentário do arcabouço teórico psicanalítico.

Dizer que o paciente se produz como um comentário significa pensar que a teoria aparece como a possibilidade de "tradução" daquele que se deita sobre o divã e de sua verdade e que, ao mesmo tempo, a situação analítica, ou a revelação das verdades do paciente, é a ocasião do reaparecimento daquilo que já foi um dia pronunciado - a teoria. Com as palavras de Foucault (1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970)), talvez possamos afirmar que o novo é menos o conteúdo revelado e mais o acontecimento dessa repetição.

O fim da análise. Os entrevistados não falavam sempre da mesma maneira sobre os diversos temas abordados. É possível dizer que se marcavam diferenças à medida que o discurso se fazia: em alguns momentos ele se tornava desinibido e faceiro, era fluente e eloquente, como se carregasse uma força, uma convicção; em outros, deixava esgarçar seu vigor, desbotava-se. Em outros momentos, ainda, o discurso se mostrava bastante reticente, entrecortado, algumas vezes lacônico. As palavras ficavam um pouco mais escassas, pareciam perder um pouco de seu brilho, seu vigor, e eram apresentadas com muito cuidado, como se se entrasse em um terreno cheio de riscos e perigos. Era quando se tratava, nas situações concretas da clínica, do tema do fim da análise: aí, o discurso era mais modesto ou mais precavido. Muitas vezes, ele insistia em recair no campo seguro e seco do arcabouço teórico psicanalítico.

No grupo da escola francesa, os analistas, ao falarem de sua clínica, afirmaram não ter atendimentos finalizados (com apenas uma exceção). O tema constitui-se como algo delicado, do qual só podem falar aqueles que concluíram seu processo pessoal ou têm algum paciente que "chegou" a esse ponto.

O término da análise parece, portanto, envolver certo mistério, do qual só se pode falar teoricamente, pois dele não se (re)conhece uma referência concreta. Os atendimentos encerrados não podem ser considerados análises concluídas, mas processos "interrompidos".

Para um dos psicanalistas (Analista de Escola Francesa 02), é possível dizer que alguns casos até "chegaram perto", mas não atingiram o ponto final. Esse ponto de chegada é pressuposto no discurso como algo que existe, o que se percebe quando ele mesmo conta que sua análise "ainda não terminou". E continua: "eu não cheguei ao final de minha da minha análise". Ainda que não se saiba concretamente "onde fica", o fim da análise é um "lugar" em que se espera chegar.

O limite até onde o paciente "consegue ir" também é determinado pelo ponto em que o analista conseguiu chegar em sua análise pessoal, pois, como afirmou o Analista de Escola Francesa 02, "a gente só consegue ir até onde nossa análise foi. [...] não cheguei ao final da minha análise. Então, não tem como chegar ao final da análise de alguém".

Além disso, a intrincada teorização que aparece nesse momento contribui com a atribuição de um caráter paradoxal ao fim da análise, na medida em que o configura como uma meta predeterminada (o "deparar-se com a castração" (Analista de Escola Francesa 03), o "atravessamento da fantasia" (Analista de Escola Francesa 02), a "saída da posição de alienação" (Analista de Escola Francesa 04), a "reedição intensa da neurose de transferência com o analista" (Analista de Escola Inglesa 06) e, com isso, "sair diferente dessa experiência, sabendo [...] lidar diferentemente com o sintoma" (Analista de Escola Francesa 02) e, ao mesmo tempo, apresentá-la como uma meta que, a não ser pelo ponto de vista conceitual, não se consegue saber ao certo de que se trata, quase como se ela pertencesse a um plano ideal, não certo de ser atingível.

Os analistas da escola inglesa também não discorriam sem certos cuidados sobre o assunto, entretanto, parece-nos, faziam-no com um pouco mais de liberdade. O término do tratamento surge como um momento em que o analista precisa discriminar certos aspectos: que a "resistência" cedeu seu lugar à "realidade", que o paciente atingiu certas "condições emocionais" ou que o processo esbarrou em uma limitação do analista. Como se, para eles, o fim fosse algo mais fácil de conceber.

Apesar das diferenças, entretanto, podemos dizer que, para ambos os grupos, o tema do término de análise e do paciente em "alta" se configuram como algo delicado, "de difícil consideração", controverso. "É uma questão complexa", da qual se fala sem convicção plena.

Para alguns psicanalistas da escola inglesa, o fim da análise mais implica uma decisão. Segundo um deles (Analista da Escola Inglesa 05), "cumpre ao analista discriminar" esse momento. Já para outra analista (Analista da Escola Inglesa 06), a decisão cabe ao paciente, pois "em geral essas coisas o paciente decide". Parece-nos, assim, que o fim de análise mostra-se como um momento de acirramento do jogo de forças da relação analítica, visto que "paciente e analista devem se debruçar sobre este momento" (Analista da Escola Inglesa 05), e também de retomada da teoria, pois "aí eu torno a citar Freud" (Analista da Escola Inglesa 06)5 5 É importante dizer que, no caso dos analistas ingleses entrevistados - e em especial em um deles (Analista de Escola Inglesa 06) -, a retomada da teoria é menos literal e menos plasmada nas palavras literais dos fundadores de discursos analíticos. .

Na fala dos entrevistados, é possível identificar uma espécie de polêmica em torno de questões como a de cura e como a da controvérsia entre análise vista como autoconhecimento ou como terapêutica.

Eu não me ocupo dos efeitos das coisas que eu digo ou da análise como tratamento. Porque eu acho que não trata. Até bem... bem... bem justo, né, não é uma terapia, ou seja, ela não é um tratamento. Até trata. [...] Quais são os efeitos que a análise gera nos meus pacientes? [...] acho que, fundamentalmente, eu resumiria: melhor autoconhecimento. (Analista da Escola Inglesa 04)

O analista, aquele que é capaz de ver e revelar os conteúdos inconscientes do paciente, caso se deseje "usar a metáfora da homeopatia" para descrevê-lo, é também aquele que pode extrair o "veneno" do paciente e, ao revelá-lo, "põe dentro dele, exagera e ele [o paciente] cria anticorpos e reage melhor" (Analista da Escola Inglesa 04). O sujeito em fim de análise é alguém vacinado por sua própria verdade, ainda que esta seja aquilo que o analista reconhece como sendo a verdade do paciente.

Tudo indica que o tema do fim da análise coloca nossos entrevistados em um terreno ainda não totalmente desbravado, algo complexo, delicado, de difícil consideração. No entanto, embora aparente ser este um tema em aberto, em que sempre há o que ampliar, ele assume, por meio de nossa análise, o caráter de um "tabu". Ao invés de algo a ser "descoberto", ele é mais um segredo a ser guardado, um assunto sobre o qual não se deve falar. Trata-se de um assunto misterioso e também de um ponto de tensão na prática analítica.

Considerações Finais: Subjetividade e Verdade Clínica na Instituição de Singularidade

Assim, a partir de nossas análises, deixamos como hipótese que aquilo em torno de que a clínica se faz (o objeto institucional), aquilo sobre o que ela reivindica o monopólio de legitimidade, é o desvelamento de uma verdade sobre o paciente. Não se trata, no entanto, de qualquer verdade, ou então da idealizada verdade única e singular, mas daquela que - como buscamos demonstrar - é produzida na escuta do analista, na instância da teoria.

Por vezes, o trabalho do analista mostra-se como a revelação desse conhecimento (plasmado na teoria que professa) e a condução do paciente ao reconhecimento do saber apresentado. A subjetividade a que se visa ao final de um processo, então, aparenta ser aquela aproximada do que é previsto pelo referencial teórico psicanalítico. É o analista que define, segundo os operadores teórico-conceituais que possui para pensar e ouvir, as verdades "iniciais" - o que deve ser trabalhado - e as verdades "finais" que devem ser assumidas ou "introjetadas" pelo paciente. É assim que o sujeito/paciente "em alta" é alguém que reeditaria sua transferência com o analista, deparar-se-ia com a castração, lidaria melhor com seus sintomas e poderia sentir/expressar suas emoções.

Parece que as práticas clínicas, na somatória dos vetores de força, dos jogos de poder, das tensões, afrontamentos, configuram como alvo, estrategicamente, o saber sobre o paciente, o acesso a sua verdade. Esse parece ser um dos modos fundamentais pelos quais a clínica psicanalítica acontece. Um modo de se fazer e refazer-se, construído historicamente, não necessário, mas reconhecido como natural, absoluto.

Se tratar do término da análise mostrava-se um tema embaraçoso, cabe ainda destacar que, nas duas pesquisas (Lima, 2007Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).; Veiga, 2006Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).) e independentemente das escolas ou das formações em questão, cada psicanalista, ao falar de sua experiência clínica, parecia se colocar na posição de um oráculo que o entrevistador consultava para saber o que era análise. Dizendo de outro modo: cada fala se revestia de certezas ou incertezas, erros ou acertos, mas sempre se apresentava como a única forma de fazer a clínica, de interpretar, de pensar a cura, de entender o que se passa com um paciente. Quanto a isso, não parecia haver dúvidas...

Suportados por Foucault (1970/1996Foucault, M. (1996). A ordem do Discurso (8ª ed.). São Paulo: Loyola. (Original publicado em 1970)), poderíamos afirmar que, no que diz respeito ao fim da análise, o discurso assume sua face perigosa, sua terrível materialidade... O que explicaria essa alternância entre a segurança institucional do discurso teórico e a rarefação do discurso sobre o fim? Talvez tenha sido essa a provocativa contribuição desses nossos estudos: flagrar um possível ponto de virada em que a recorrência ou a repetição não flui pela "naturalidade" das palavras. Os jogos de verdade podem, nesse ponto, apresentar um esgarçamento produtivo, que nos impede de parar nas afirmações do caráter repressivo das relações instituídas.

Em que pese a multiplicidade de aspectos aqui discutidos, cremos ter sido possível, ainda que dentro de limites claros, demonstrar a sutileza e a força desses jogos de verdade instituídos e instituintes das clínicas psicanalíticas. Em sua diversidade e na legitimadora unicidade característica da fala de cada entrevistado, os senhores e senhoras psicanalistas.

Referências

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  • Lima, M. A. (2007). O paciente e o término de análise no discurso de psicanalistas: Uma análise institucional do discurso (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).
  • Maingueneau, D. (1997) Novas tendências em análise de discurso (3ª ed). Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas.
  • Oliveira, E. S. (2012). O analista, o poeta e o mestre do Zen: Reflexões sobre os impasses da clínica. Reverso, 64(34), 43-48.
  • Veiga, L. W. (2006). Interpretação e transferência como instituintes da clínica psicanalitica (Unpublished master´s thesis). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil).
  • Vilhena, J., & Rosa, C. M. (2011). A clínica psicanalítica nos espaços abertos do CAPS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 63(3), 130-147.
  • 1
    Estamos considerando, aqui, as práticas clínicas como instituição. Para tanto, apoiamo-nos no conceito de instituição de (Guilhon-Albuquerque, 1980Guilhon-Albuquerque, J. A. (1980). Instituição e poder. Rio de Janeiro: Graal.). Para esse autor, o termo instituição pode ser entendido como um conjunto de relações sociais que se repetem e nessa repetição se legitimam, pelos efeitos de reconhecimento e desconhecimento desse e nesse fazer concreto
  • 2
    A definição de instituição como conjunto de práticas sociais que se repetem e se legitimam foi estabelecida por (Guilhon-Albuquerque, 1980Guilhon-Albuquerque, J. A. (1980). Instituição e poder. Rio de Janeiro: Graal.). No entanto, essa noção foi apropriada e retrabalhada por (Guirado, 2004Guirado, M. (2004). Psicologia institucional (2ª ed). São Paulo: EPU., 2010Guirado, M. (2010). A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. São Paulo: Annablume e Fapesp.) ao elaborar sua proposta metodológica chamada Análise Institucional de Discurso.
  • 3
    Novamente, instituição entendida conforme a perspectiva de (Guilhon-Albuquerque, 1980Guilhon-Albuquerque, J. A. (1980). Instituição e poder. Rio de Janeiro: Graal.), ou seja, como um conjunto de práticas sociais que se repetem e que enquanto se repetem se legitimam.
  • 4
    Os títulos dos itens que se seguem e a forma de sua apresentação temática buscarão inserir os resultados analíticos das dissertações supracitadas na discussão mais ampla a que visamos com este artigo, conforme nos comprometemos a fazer desde a Introdução.
  • 5
    É importante dizer que, no caso dos analistas ingleses entrevistados - e em especial em um deles (Analista de Escola Inglesa 06) -, a retomada da teoria é menos literal e menos plasmada nas palavras literais dos fundadores de discursos analíticos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2014
  • Revisado
    04 Jun 2014
  • Aceito
    04 Set 2016
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