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Teorias da Dislexia: Sustentação com Base nas Alterações Perceptuais Auditivas1 1 Apoio: PROAP/CAPES

RESUMO

Este estudo teve por objetivo examinar teorias contemporâneas da dislexia, com base nos achados sobre as alterações no processamento auditivo e na percepção de fala em disléxicos. A sustentação das teorias fonológica, alofônica e do déficit auditivo é discutida a partir dos achados sobre essas alterações perceptuais. É proposto um novo modelo teórico, segundo o qual a dislexia é um distúrbio multifatorial, com uma gama de sintomas comportamentais associados. O déficit apresentado pelos disléxicos é em parte linguístico, como enunciado na teoria fonológica, e em parte causado pela alteração perceptual auditiva, como prevê a teoria do déficit auditivo. Ambos os fatores interagem e são indissociáveis na explicação da sintomatologia observada no transtorno de leitura e escrita.

Palavras-chave:
dislexia; processamento auditivo; percepção de fala

ABSTRACT

This study aims to examine contemporary theories on dyslexia, based on findings related to changes in auditory processing and speech perception found in dyslexics. The support for the phonological, allophonic and auditory deficit theories of dyslexia is discussed based on findings related to these changes in auditory perception. A new theoretical model is proposed, according to which dyslexia is a multifactorial-based deficit, with a gamut of associated behavioral symptoms. The deficit presented by dyslexics is partially linguistic, as advocated by the phonological theory, and partially auditory, as advocated by the theory of auditory deficit. Both factors interact and are inseparable in accounting for the symptomatology observed in reading and writing disorders.

Keywords:
dyslexia; auditory processing; speech perception

A dislexia é um distúrbio neurobiológico persistente, de origem genética, em que a história familial é um dos mais importantes fatores de risco. Vem a ser um dos distúrbios mais comuns que afetam o desempenho acadêmico; sua incidência aproximada na população em geral é de 5 a 10% (Jucla, Nenert, Chaix, & Demonet, 2010Jucla, M., Nenert, R., Chaix, Y., & Demonet, J. F. (2010). Remediation effects on N170 and P300 in children with developmental dyslexia. Behavioural Neurology, 22 (3-4), 121-129.). Também denominada dislexia do desenvolvimento, é tradicionalmente definida pela discrepância entre as habilidades de leitura e a capacidade intelectual de crianças que receberam instrução adequada. Os disléxicos, apesar de apresentarem capacidade intelectual adequada para idade e receberem instrução apropriada, apresentam dificuldade importante (e inesperada) para aprender a ler.

A característica fundamental da dislexia, consistente e sistematicamente encontrada nos estudos de casos e nos grupos de estudos, até mesmo quando comparados a controles com mesmo nível de leitura, vem a ser o déficit em consciência fonológica e na rota fonológica da leitura (Bogliotti, Serniclaes, Messaoud-Galusi & Charolles, 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.). A consciência fonológica é definida por (Goswami 2015Goswami, U. (2015). Sensory theories of developmental dyslexia: Three challenges for research. Nature Reviews Neuroscience, 16 (1), 43-54.) como a capacidade de refletir sobre os elementos sonoros que constituem as palavras. A rota fonológica é caracterizada pela decodificação segmentada das palavras por meio da conversão grafema-fonema. Existe vasta evidência de que o domínio da relação entre grafemas e fonemas é determinante para o sucesso do aprendizado da leitura e escrita. As evidências principais baseiam-se em estudos longitudinais que constataram que indivíduos que posteriomente foram diagnosticados como disléxicos apresentavam fraco desempenho em consciência fonológica mesmo antes de iniciarem processo de aquisição da leitura escrita, estudos que verificaram a eficácia do treinamento com base na correspondência grafema-fonema e estudos que demonstraram que os disléxicos apresentam dificuldade importante na leitura sem auxílio do conhecimento lexical (leitura de pseudopalavras) (Bogliotti et al., 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.).

A origem do déficit fonológico apresentado pelos disléxicos é objeto de intenso debate. Alguns autores propõem que ele se configura o quadro primário à sintomatologia da dislexia. Outros autores acreditam que esse déficit seria secundário a um déficit mais elementar. Este estudo objetivou debater três teorias contemporâneas explicativas da dislexia, com base nos achados sobre as alterações no processamento auditivo e na percepção de fala em disléxicos. Inicialmente, serão apresentadas as teorias fonológica, alofônica e do déficit auditivo. Posteriormente, serão discutidos os achados sobre as alterações perceptuais auditivas e suas implicações para as diferentes teorias. Por fim, será proposto um novo modelo teórico.

Teorias Explicativas da Dislexia

Teoria Fonológica

Essa teoria postula que os disléxicos apresentam um déficit específico na representação, no armazenamento e na evocação dos sons da fala, e que a capacidade de atender e manipular sons linguísticos é crucial para o estabelecimento e automatização da relação grafofônica que subjaz as habilidades de codificação e decodificação fonológica (Landerl & Willburger, 2010Landerl, K., & Willburger, E. (2010). Temporal processing, attention, and learning disorders. Learning and Individual Differences, 20 (5), 393-401.; Ramus et al., 2003Ramus, F., Rosen, S., Dakin, S. C., Day, B. L., Castellote, J. M., White, S., & Frith, U. (2003). Theories of developmental dyslexia: insights from a multiple case study of dyslexic adults. Brain,126, 841-865.).

Segundo (Peterson e Pennington 2012Peterson, R. L., & Pennington, B. F. (2012). Developmental dyslexia. The Lancet, 379 (9830), 1997-2007.), o déficit fonológico apresentado pelos disléxicos resulta de uma representação fonológica imprecisa e degradada. Se os sons da fala são mal representados, armazenados e evocados, a aprendizagem da relação grafofônica fica comprometida. Os defensores dessa teoria concordam em relação ao papel central e causal do déficit fonológico na dislexia; e sendo assim, essa teoria postula a especificidade do déficit fonológico, ou seja, a existência de uma ligação direta entre um déficit cognitivo linguístico (que seria o déficit primário) e o comportamento do disléxico (Ramus et al., 2003Ramus, F., Rosen, S., Dakin, S. C., Day, B. L., Castellote, J. M., White, S., & Frith, U. (2003). Theories of developmental dyslexia: insights from a multiple case study of dyslexic adults. Brain,126, 841-865.). As evidências que dão suporte a essa teoria vieram de estudos que demonstraram que os disléxicos apresentam desempenho inferior em tarefas de consciência fonológica, segmentação e manipulação dos sons da fala.

Essa teoria é criticada por desconsiderar os achados sobre déficits não linguísticos em indivíduos disléxicos. Ela não enfatiza quais fatores de risco linguísticos e não linguísticos, como o déficit perceptual auditivo, interagem com problemas fonológicos no desenvolvimento de problemas de leitura.

Teoria Alofônica

Essa teoria foi desenvolvida com base nas evidências de que os disléxicos apresentam alteração na percepção de fala (Noordenbos & Serniclaes, 2015Noordenbos, M. W., & Serniclaes, W. (2015). The categorical perception deficit in dyslexia: A meta-analysis. Scientific Studies of Reading, 19 (5), 340-359.). A representação fonêmica é o produto final de um processo de desenvolvimento que apresenta duas etapas importantes: a integração de características universais alofônicas em características fonológicas específicas da língua, que ocorre por volta de um ano de idade, e a combinação de características fonológicas em segmentos fonêmicos, que ocorre entre os cinco e seis anos de idade (Hoonhorst et al., 2011Hoonhorst, I., Medina, V., Colin, C., Markessis, E., Radeau, M., Deltenre, P., & Serniclaes, W. (2011). Categorical perception of voicing, colors and facial expressions: A developmental study. Speech Communication, 53 (3), 417-430.).

Segundo a Teoria Alofônica, os disléxicos não integram as características alofônicas em características fonêmicas durante o desenvolvimento da percepção de fala e, consequentemente, percebem a fala em unidades alofônicas, em vez de fonemas, o que é denominado percepção alofônica. Essa incapacidade de integrar as características fonêmicas não seria secundária ao déficit perceptual auditivo ou à alteração na consciência fonológica, mas causada por uma falha no acoplamento entre predisposições fonéticas, no curso do desenvolvimento perceptual (Bogliotti et al., 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.). Segundo (Serniclaes, Heghe, Mousty, Carré e Sprenger-Charolles 2004Serniclaes, W., Van Heghe, S., Mousty, P., Carré, R., & Sprenger-Charolles, L. (2004). Allophonic mode of speech perception in dyslexia. Journal of Experimental Child Psychology, 87(4), 336-361.), a Teoria Alofônica se diferencia da Teoria Fonológica por postular que a alteração na representação dos sons da fala decorre da falha na desativação das categorias fonéticas que não são relevantes para a percepção dos fonemas presentes no ambiente linguístico e que estão predispostas ao nascimento. Sendo assim, a percepção atípica da fala seria a causa direta da dislexia, uma vez que a não percepção de fonemas afeta especificamente o mapeamento entre grafemas e fonemas, prejudicando a compreensão sobre o princípio alfabético. Mesmo os sistemas alfabéticos transparentes se tornariam opacos para os disléxicos, conforme a Teoria Alofônica.

Segundo (Serniclaes 2006Serniclaes, W. (2006). Allophonic perception in developmental dyslexia: Origin, reliability and implications of the categorical perception deficit. Written Language & Literacy, 9 (1), 135-152.), o déficit na percepção categórica ocupa uma posição central entre as diversas alterações que têm sido associadas à dislexia. Nessa teoria, a percepção alofônica é a causa da alteração em consciência fonológica, uma vez que afeta a consistência das representações mentais dos fonemas, levando a uma alteração na reflexão acerca dos sons da fala, mal representados. O déficit na memória fonológica de curto prazo é causado pela exigência de uma maior carga de memória ao se processar sons da fala codificados como alofones em vez de fonemas. Assim como a Teoria Fonológica, a Teoria Alofônica também pode ser criticada por desconsiderar os achados sobre déficits não linguísticos em indivíduos disléxicos, como o déficit na percepção auditiva.

Teoria do Déficit Auditivo

Segundo essa teoria, o déficit auditivo seria a causa direta da alteração no curso do desenvolvimento do déficit fonológico apresentado pelos disléxicos e, por sua vez, da dificuldade no aprendizado da leitura e escrita. O déficit fonológico seria um déficit secundário a um déficit auditivo mais elementar (Tallal et al., 1993Tallal, P., Miller, S., & Fitch, R. H. (1993). Neurobiological basis of speech: A case for the preeminence of temporal processing. Annals of the New York Academy of Sciences, 682 (1), 27-47.). Uma vez que o estímulo de fala é um sinal acústico, a alteração no processamento temporal auditivo pode levar a uma dificuldade no processamento de elementos curtos, como as consoantes, que são caracterizadas por rápidas transições de formantes (Banai & Kraus, 2007Banai, K., & Kraus, N. (2007). Neurobiology of (central) auditory processing disorder and language-based learning disability. Em: F. E. Musiek, G. D. Chermak (Orgs.), Handbook of (central) auditory processing disorder: Auditory neuroscience and diagnosis. Singular Publishing Group, San Diego.; Ramus et al., 2003Ramus, F., Rosen, S., Dakin, S. C., Day, B. L., Castellote, J. M., White, S., & Frith, U. (2003). Theories of developmental dyslexia: insights from a multiple case study of dyslexic adults. Brain,126, 841-865.). A alteração na percepção de sons curtos e de transições rápidas dos estímulos auditivos levaria a dificuldades importantes na percepção de fala, impactando negativamente na construção das representações mentais dos estímulos de fala. A discriminação entre fonemas cujas pistas de contrastes são auditivas fica prejudicada (Serniclaes et al., 2001Serniclaes, W., Sprenger-Charolles, L., Carré, R., & Démonet, J. F. (2001). Perceptual discrimination of speech sounds in dyslexics. Journal of Speech Language and Hearing Research, 44, 384-399.).

Está bem documentado que, subjacente à dificuldade na leitura apresentada por disléxicos, há um déficit no sistema linguístico, mais precisamente nas habilidades de processamento fonológico (Liberman & Shankweiler, 1985Liberman, I. Y., & Shankweiler, D. (1985). Phonology and the problems of learning to read and write. Remedial and Special Education, 6, 8-17.; Peterson & Pennington, 2012Peterson, R. L., & Pennington, B. F. (2012). Developmental dyslexia. The Lancet, 379 (9830), 1997-2007.; Ramus et al., 2003Ramus, F., Rosen, S., Dakin, S. C., Day, B. L., Castellote, J. M., White, S., & Frith, U. (2003). Theories of developmental dyslexia: insights from a multiple case study of dyslexic adults. Brain,126, 841-865.). Para aprender a ler e escrever são necessários níveis complexos de conhecimentos fonológicos: é necessária uma adequada representação dos menores elementos sonoros da língua (fonemas), uma boa capacidade de reflexão sobre esses elementos e o conhecimento de que esses sons podem ser representados por grafemas diferentes. A experiência auditiva é a via sensorial habitual que permite às crianças adquirirem as representações fonológicas necessárias à aprendizagem da habilidade de decodificação grafêmica (Morais, 2009Morais, J. (2009). Representações fonológicas na aprendizagem da leitura e na leitura competente. Em: Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, XXIV. Lisboa: APL, 7-21.).

A escrita grafofônica consiste na codificação e decodificação de estímulos gráficos que representam sons (os fonemas). Para aprender a ler, é indispensável a capacidade de associar um componente auditivo fonêmico com um componente visual gráfico. Uma dificuldade para lidar com o componente auditivo fonêmico pode se dever a uma estimulação sonora incipiente, que em casos de uma alteração perceptual auditiva não está relacionada à escassez de estímulos relevantes presentes no meio, mas sim à dificuldade ou inabilidade para processar os estímulos disponíveis. Sendo assim, é possível supor que o déficit apresentado pelo disléxico pode não ser específico do processamento fonológico, e sim ser secundário a uma alteração perceptual auditiva.

Diversos estudos têm evidenciado déficit na discriminação fonêmica de disléxicos (Bogliotti et al., 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.; Serniclaes et al., 2001Serniclaes, W., Sprenger-Charolles, L., Carré, R., & Démonet, J. F. (2001). Perceptual discrimination of speech sounds in dyslexics. Journal of Speech Language and Hearing Research, 44, 384-399.). Segundo a teoria do déficit auditivo, a dificuldade em perceber e discriminar sons do espectro da fala resulta em uma dificuldade na construção de representações mentais importantes para a associação entre letras e sons (Banai & Kraus, 2007Banai, K., & Kraus, N. (2007). Neurobiology of (central) auditory processing disorder and language-based learning disability. Em: F. E. Musiek, G. D. Chermak (Orgs.), Handbook of (central) auditory processing disorder: Auditory neuroscience and diagnosis. Singular Publishing Group, San Diego.; Birch & Belmont, 1964Birch, H. G., & Belmont, L. (1964). Auditory-visual integration in normal and retarded readers. American Journal of Orthopsychiatry, 34, 852-61.).

Muitos autores refutam essa teoria baseados na evidência de que nem todos os disléxicos apresentam alteração no processamento temporal. Por outro lado, os achados recorrentes de alteração no processamento temporal auditivo em indivíduos disléxicos podem significar que existem diferentes subtipos de dislexia, sendo um deles de alguma forma associado à alteração no processamento temporal auditivo (Peterson & Pennington, 2012Peterson, R. L., & Pennington, B. F. (2012). Developmental dyslexia. The Lancet, 379 (9830), 1997-2007.; Ramus et al., 2003Ramus, F., Rosen, S., Dakin, S. C., Day, B. L., Castellote, J. M., White, S., & Frith, U. (2003). Theories of developmental dyslexia: insights from a multiple case study of dyslexic adults. Brain,126, 841-865.). Também é possível que a alteração no processamento temporal auditivo não tenha sido evidenciada em parte da amostra de disléxicos em razão de ter sido superada, e sua ocorrência nos primeiros anos de vida pode ter impactado negativamente no desenvolvimento das representações fonológicas (Boets, Wouters, Wieringen & Ghesquière, 2007Boets, B., Wouters, J., Van Wieringen, A., & Ghesquière, P. (2007). Auditory processing, speech perception and phonological ability in pre-school children at high-risk for dyslexia: A longitudinal study of the auditory temporal processing theory. Neuropsychologia, 45 (8), 1608-1620.).

Desafios para as teorias explicativas da dislexia

Segundo (Frost 1998Frost, R. (1998). Toward a strong phonological theory of visual word recognition: True issues and false trails. Psychological Bulletin, 123 (1), 71-99.), aprender a ler é, às vezes, erroneamente considerada uma habilidade visual, mas na verdade é um processo linguístico. A leitura envolve a extração de informações linguísticas de um código visual que representa a fala. (Ramus e cols. 2003Ramus, F., Rosen, S., Dakin, S. C., Day, B. L., Castellote, J. M., White, S., & Frith, U. (2003). Theories of developmental dyslexia: insights from a multiple case study of dyslexic adults. Brain,126, 841-865.), realizaram estudo de 16 casos de universitários disléxicos e constataram que a alteração fonológica estava presente em todos os casos. A alteração mais frequentemente associada à alteração fonológica na amostra estudada foi a auditiva, encontrada em 10 dos 16 casos.

A constatação de que nem todos os disléxicos apresentam alteração no processamento auditivo pode significar que existem tipos diferentes de dislexia, sendo um deles associado à alteração no processamento auditivo, ou apenas que os déficits podem ter sido superados. Para a Teoria Fonológica, a alteração perceptual auditiva apenas coexiste com a dislexia, sem fazer parte de sua gênese e sem interferir em sua sintomatologia. Já para a Teoria do Déficit Auditivo, a alteração auditiva é a causa da alteração fonológica na dislexia.

(Landerl e Willburger 2010Landerl, K., & Willburger, E. (2010). Temporal processing, attention, and learning disorders. Learning and Individual Differences, 20 (5), 393-401.) contestam a existência de uma relação causal entre dislexia e alteração no processamento auditivo temporal. Argumentam que, uma vez que nem todos os indivíduos com alteração no processamento temporal apresentam comprometimento na leitura e escrita, não se pode concluir que a alteração no processamento temporal auditivo seja a causa da dislexia. Com o objetivo de testar a Teoria do Déficit Auditivo da dislexia, os autores realizaram estudo transversal de múltiplos casos com 40 crianças do 2º ao 4º ano de uma escola de Ensino Fundamental I, que apresentavam alteração importante no processamento temporal. Não foi observado nenhum padrão consistente no desempenho nos testes utilizados (leitura de palavras e pseudopalavras, soletração, consciência fonológica, nomeação rápida, atenção, QI verbal e não verbal). Além disso, as correlações obtidas foram muito fracas e 12 crianças apresentaram desempenho normal nas habilidades de leitura, apesar de pobres processadores temporais. Os autores concluíram que problemas no processamento temporal não conduzem necessariamente ao comprometimento na leitura e escrita, mas podem ser um marcador de atraso no desenvolvimento do sistema nervoso. Propõem que as dificuldades de origem fonológica dizem respeito, especificamente, a um déficit linguístico relacionado exclusivamente ao processamento da linguagem.

Em uma revisão sistemática dos estudos que verificaram a leitura em indivíduos com alteração no processamento auditivo, (Wit e cols. 2016Wit, E., Visser-Bochane, M. I., Steenbergen, B., Van Dijk, P., Van der Schans, C. P., & Luinge, M. R. (2016). Characteristics of auditory processing disorders: A systematic review. Journal of Speech, Language, and Hearing Research, 59 (2), 384-413.) ressaltaram que os déficits na leitura em indivíduos com alteração no processamento auditivo foram observados em todos os estudos. Conforme (Landerl e Willburger 2010Landerl, K., & Willburger, E. (2010). Temporal processing, attention, and learning disorders. Learning and Individual Differences, 20 (5), 393-401.), pode-se interpretar que nenhuma das alterações (na leitura e no processamento auditivo) estão associadas entre si, e as duas variáveis estão relacionadas a um atraso na maturação do sistema nervoso. Os consistentes achados de déficits na leitura em indivíduos com histórico de otite média crônica na infância nos levam, no entanto, a questionar essa hipótese. Nos indivíduos com histórico de otite, as dificuldades em leitura não podem ser explicadas por um atraso no desenvolvimento do sistema nervoso, nem por déficits cognitivos.

Segundo (Balbani e Montovani 2003Balbani, A. P. S., & Montovani, J. C. (2003). Impacto das otites médias na aquisição da linguagem em crianças. Jornal de Pediatria, 79 (5), 391-396.), o caráter flutuante da perda auditiva nas otites médias (podendo alternar períodos de audição normal) leva a uma estimulação sonora inconsistente do sistema nervoso auditivo central, dificultando a percepção dos sons da fala pela criança. As alterações de sensibilidade flutuante cessam com a remissão do quadro infeccioso. No entanto, apesar da remissão das otites com o avançar da idade, existem evidências de que a alteração no processamento auditivo permanece. Segundo (Zeng e Djalilian 2010Zeng, F. G., & Djalilian, H. (2010). Hearing impairment. Em C. Plack (Org.). The Oxford Handbook of Auditory Science: Vol 3. Hearing (pp 325-347). New York: Oxford.), a privação auditiva na infância, secundária à otite, pode repercutir no desenvolvimento das habilidades auditivas, ocasionando uma alteração importante no processamento auditivo, sobretudo no processamento temporal e de fala. (Balbani e Montovani 2003Balbani, A. P. S., & Montovani, J. C. (2003). Impacto das otites médias na aquisição da linguagem em crianças. Jornal de Pediatria, 79 (5), 391-396.) ressaltam que a inconsistência e a alteração na estimulação do sistema auditivo nos três primeiros anos de vida, em razão do quadro crônico de otite, têm efeito duradouro, comprometendo não apenas a aquisição da linguagem nesse período crucial, mas também o futuro aprendizado escolar da criança.

(Ruben 1999Ruben, R. J. (1999). Persistency of an effect: otitis media during the first year of life with nine years follow-up. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology, 49, S115-S118.) acompanhou, por nove anos, dois grupos de crianças com mesma condição socioeconômica, sendo que um dos grupos era composto por 18 crianças que apresentaram vários episódios de otite média durante o primeiro ano de vida e cuja audição estava normal nos oito anos seguintes. O outro grupo era composto por 12 crianças que não apresentavam otite médica crônica. Os autores observaram que o grupo com histórico de otite crônica no primeiro ano de vida apresentou desempenho inferior ao grupo controle em todas as oito medidas que avaliavam habilidades linguísticas e de linguagem, como a leitura e a escrita. Apesar de o quadro de otite ter sido evidenciado apenas no primeiro ano de vida, os déficits linguísticos e nas habilidades de linguagem foram persistentes, tendo sido observados em todos os estágios, inclusive aos 9 anos de idade. Esses achados são consistentes com os encontrados por (Luotonen et al. 1998Luotonen, M., Uhari, M., Aitola, L., Lukkaroinen, A. M., Luotonen, J., & Uhari, M. (1998). A nation-wide, population-based survey of otitis media and school achievement. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology, 43, 41-51.), em estudo de base populacional, com 1708 crianças finlandesas, no qual foi verificado que os episódios de otite média, quando presentes nos três primeiros anos de vida, estiveram associados a um desempenho inferior na aprendizagem, mas não quando presentes em idades posteriores.

Tanto a constatação de que indivíduos com alteração no processamento auditivo apresentam déficits na linguagem escrita quanto a constatação de que indivíduos com alteração no processamento auditivo em decorrência de otite crônica na primeira infância apresentam déficits em leitura são evidências de que a alteração perceptual auditiva interfere negativamente na leitura e na escrita.

Em síntese, como apresentado, a Teoria Fonológica postula a especificidade do déficit linguístico na dislexia. A alteração fonológica seria a causa direta da dislexia e a alteração na percepção de fala e no processamento auditivo apenas coexistiriam com a dislexia, sem interferir em sua sintomatologia e sem fazer parte de sua gênese. Já segundo a Teoria Alofônica, a alteração fonológica apresentada pelos disléxicos seria causada por um déficit na percepção de fala, caracterizado por um modo de percepção alofônico, em que ocorre uma insensibilidade para a percepção de fonemas. Para a Teoria do Déficit Auditivo, a alteração na percepção de fala seria secundária a uma alteração mais elementar no processamento de estímulos acústicos. Por outro lado, os dados empíricos mostram fragilidade nessas teorias. (Peterson e Pennington 2012Peterson, R. L., & Pennington, B. F. (2012). Developmental dyslexia. The Lancet, 379 (9830), 1997-2007.) ressaltam a importância do desenvolvimento de pesquisas que tentem explicar a natureza, ainda não compreendida, do déficit fonológico, e pesquisas que esclareçam melhor quais fatores de risco linguísticos e não linguísticos, como o déficit perceptual auditivo, interagem com problemas fonológicos no desenvolvimento de problemas de leitura. Eles acenam para a perspectiva de que mais de um fator contribua para o desenvolvimento da dislexia.

Processamento auditivo em disléxicos

Um dos primeiros estudos que evidenciaram a presença de alteração perceptual auditiva em indivíduos disléxicos foi desenvolvido por (Tallal 1980Tallal, P. (1980). Auditory temporal perception, phonics and reading disabilities in children. Brain and Language, 9,182-198.). A autora comparou o desempenho de crianças com dislexia ao de leitores típicos em uma bateria experimental, contendo testes não verbais de discriminação e de ordenação de frequência, e discriminação e ordenação de duração. Foi observado desempenho significantemente inferior em todos os testes temporais auditivos do grupo estudado, levando à conclusão de que o transtorno de leitura se relaciona a uma disfunção perceptual auditiva.

O processamento temporal é a habilidade auditiva que vem sendo apontada como a mais prejudicada das habilidades auditivas em indivíduos com problemas de aprendizagem. Ele está envolvido na percepção de mudanças rápidas, da ordem de milissegundos, do estímulo acústico ao longo do tempo e é especialmente importante, uma vez que as informações acústicas, de alguma forma, são influenciadas pelo tempo, ou seja, a sequenciação dos eventos sonoros, durações e intervalos são aspectos que integram as propriedades dos estímulos e influenciam sua percepção. Em se tratando do estímulo “fala”, as propriedades temporais são o principal contraste linguístico, e desse modo a eficiência no processamento temporal é necessária para a adequada percepção de fala (Rosen, 1992Rosen, S. (1992). Temporal information in speech: Acoustic, auditory and linguistic aspects. Philosophical Transactions of the Royal Society Biological Sciences, 336 (1278), 367-373.; Shinn, 2003Shinn, J. B. (2003). Temporal processing: The basics. The Hearing Journal, 56 (7), 52.). Segundo (Frota e Pereira 2010Frota, S., & Pereira, L. D. (2010). Processamento auditivo: Estudo em crianças com distúrbios da leitura e da escrita. Revista Psicopedagogia, 27 (83), 214-222.), a integridade dos mecanismos fisiológicos auditivos exerce um papel fundamental no processamento acústico rápido, na percepção da fala, no aprendizado e na compreensão da linguagem, sendo, consequentemente, pré-requisito na aquisição da leitura e da escrita.

Estudos transversais que verificaram a incidência de alteração no processamento temporal auditivo em grupos de disléxicos encontraram resultados que variaram entre 30 e 100% (Banai & Kraus, 2007Banai, K., & Kraus, N. (2007). Neurobiology of (central) auditory processing disorder and language-based learning disability. Em: F. E. Musiek, G. D. Chermak (Orgs.), Handbook of (central) auditory processing disorder: Auditory neuroscience and diagnosis. Singular Publishing Group, San Diego.; Ramus et al. 2003Ramus, F., Rosen, S., Dakin, S. C., Day, B. L., Castellote, J. M., White, S., & Frith, U. (2003). Theories of developmental dyslexia: insights from a multiple case study of dyslexic adults. Brain,126, 841-865.; Oliveira, 2011Oliveira, J. C. (2011). Processamento auditivo (central) em crianças com dislexia: Avaliação comportamental e eletrofisiológica. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Essa discrepância pode se dever, em parte, à heterogeneidade de instrumentos utilizados na verificação do processamento temporal auditivo e às diferenças entre as faixas etárias dos grupos estudados. Os estudos longitudinais evidenciaram que as diferenças entre os desempenhos de disléxicos e leitores típicos em testes que avaliam o processamento auditivo diminuem com o avançar da idade dos participantes.

(Hautus, Setchell, Waldie e Kirk 2003Hautus, M. J., Setchell, G. J., Waldie, K. E., & Kirk, I. J. (2003). Age-related improvements in auditory temporal resolution in reading-impaired children. Dyslexia, 9 (1), 37-45.) compararam os desempenhos de disléxicos e leitores típicos de diferentes faixas etárias em uma tarefa de detecção de intervalos breves de silêncio, que avalia a habilidade de resolução temporal auditiva. Os autores verificaram uma diferença importante na resolução temporal entre os grupos na faixa etária de 6 a 9 anos; no entanto, a partir dos 10 anos as diferenças nos desempenhos dos grupos não foram significantes.

(Boets, Vandermosten, Poelmans, Luts, Wouters e Ghesquière 2011Boets, B., Vandermosten, M., Poelmans, H., Luts, H., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2011). Preschool impairments in auditory processing and speech perception uniquely predict future reading problems. Research in Developmental Disabilities, 32 (2), 560-570.) avaliaram as habilidades auditivas temporais e a percepção de fala de 62 crianças em idade pré-escolar em três momentos: aos 5 anos (antes de iniciarem alfabetização), aos 6 anos (1º ano) e aos 8 anos (3º ano, quando já haviam recebido instrução sobre leitura e escrita por dois anos e dois meses). Metade dos participantes foi recrutada em razão do risco aumentado de apresentar problemas no aprendizado da leitura e escrita, com base no histórico familial. Os participantes que posteriormente receberam diagnóstico de dislexia (no 3º ano), antes mesmo de iniciarem processo formal de alfabetização, já demonstravam dificuldade acentuada no processamento auditivo temporal, com diferença significante em relação aos participantes que, posteriormente, não receberam diagnóstico de dislexia.

(Fischer e Hartnegg 2004Fischer, B., & Hartnegg, K. (2004). On the development of low-level auditory discrimination and deficits in dyslexia. Dyslexia, 10, 105-118.) avaliaram o processamento temporal auditivo de grupos de disléxicos e leitores típicos com idades entre 7 e 19 anos de idade. Eles observaram uma forte interação entre idade e desempenho na habilidade de resolução temporal auditiva em ambos os grupos; no entanto, a interação entre idade e desempenho na resolução temporal no grupo de disléxicos foi mais forte do que no grupo de leitores típicos. A diferença entre leitores típicos e disléxicos na resolução temporal foi bastante expressiva aos 7 anos, diminuiu consideravelmente aos 9 anos e passou a não ser significante a partir dos 12 anos.

(Prestes 2016Prestes, M. R. D. (2016). Dislexia e Alteração no Processamento Auditivo Temporal: Colocando a Alteração Perceptual Auditiva em seu Lugar. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília, Brasília.) verificou as habilidades auditivas de resolução e ordenação temporal em disléxicos e como essas variáveis se relacionavam com as habilidades de leitura, escrita e consciência fonológica. Observou-se que os disléxicos apresentavam déficits nas habilidades auditivas avaliadas, quando comparados a leitores típicos com a mesma faixa etária, e que o desempenho inferior nas habilidades de resolução e ordenação temporal auditiva esteve relacionado com uma maior ocorrência de um tipo específico de erro ortográfico, denominado trocas surdas/sonoras. Foi observado também que a maior ocorrência de outros erros ortográficos e o desempenho inferior na leitura estiveram associados a um desempenho inferior na consciência fonológica e na ordenação temporal auditiva. Com base em análise de regressão hierárquica, observou-se que o desempenho na ordenação temporal auditiva ajudou a explicar o desempenho na leitura, mesmo levando em conta as contribuições da consciência fonológica.

Percepção de fala em disléxicos

Indivíduos disléxicos apresentam déficit na discriminação fonêmica e na percepção categórica dos sons da fala (Boets et al. 2011Boets, B., Vandermosten, M., Poelmans, H., Luts, H., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2011). Preschool impairments in auditory processing and speech perception uniquely predict future reading problems. Research in Developmental Disabilities, 32 (2), 560-570.; Bogliotti et al, 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.; Noordenbos & Serniclaes, 2015Noordenbos, M. W., & Serniclaes, W. (2015). The categorical perception deficit in dyslexia: A meta-analysis. Scientific Studies of Reading, 19 (5), 340-359.; Prestes, 2016Prestes, M. R. D. (2016). Dislexia e Alteração no Processamento Auditivo Temporal: Colocando a Alteração Perceptual Auditiva em seu Lugar. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília, Brasília.; Serniclaes et al., 2004Serniclaes, W., Van Heghe, S., Mousty, P., Carré, R., & Sprenger-Charolles, L. (2004). Allophonic mode of speech perception in dyslexia. Journal of Experimental Child Psychology, 87(4), 336-361.; Vandermosten et al., 2010Vandermosten, M., Boets, B., Luts, H., Poelmans, H., Golestani, N., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2010). Adults with dyslexia are impaired in categorizing speech and nonspeech sounds on the basis of temporal cues. Proceedings of the National Academy of Sciences, 107 (23), 10389-10394.). Percepção categórica pode ser definida (Elangovan & Stuart, 2008Elangovan, S., & Stuart, A. (2008). Natural boundaries in gap detection are related to categorical perception of stop consonants. Ear and Hearing, 29 (5), 761-774.) como a mudança abrupta na percepção de uma categoria fonêmica a outra em um certo ponto ao longo de um continuum. Para Liberman, Harris, Hoffman e Griffith (1957Liberman, A. M., Harris, K. S. Hoffman, H. S., & Griffith, B. C. (1957). The discrimination of speech sounds within and across phoneme boundaries. Journal of Experimental Psychology, 54, 358-368.), a percepção categórica vem a ser o grau em que as diferenças acústicas entre variantes do mesmo fonema são menos perceptíveis do que as diferenças da mesma magnitude acústica entre dois fonemas diferentes.

Segundo (Liberman e cols. 1957Liberman, A. M., Harris, K. S. Hoffman, H. S., & Griffith, B. C. (1957). The discrimination of speech sounds within and across phoneme boundaries. Journal of Experimental Psychology, 54, 358-368.), a percepção de fala ocorre, em algum nível, de forma categórica, ou seja, parte das informações acústicas dos estímulos de fala são ignoradas em favor de rótulos categóricos discretos. Desse modo, a percepção categórica é adaptativa, uma vez que favorece a classificação rápida de eventos transientes, como a sucessão dos fonemas durante a fala, ao permitir ignorar informações do estímulo que são irrelevantes (Bogliotti et al., 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.). Para (Hoonhorst et al. 2011Hoonhorst, I., Medina, V., Colin, C., Markessis, E., Radeau, M., Deltenre, P., & Serniclaes, W. (2011). Categorical perception of voicing, colors and facial expressions: A developmental study. Speech Communication, 53 (3), 417-430.), por meio da transformação das sensações em representações discretas, a percepção categórica constitui um modo econômico de processar o fluxo das informações presentes no meio.

É característico dos sistemas perceptuais humanos agrupar estímulos em categorias cognitivamente eficientes, facilitando o armazenamento e a evocação de informação. Ignoramos variações irrelevantes, para nos centrarmos naquilo que define o objeto em relação a outros (Tristão & Feitosa, 2003Tristão, R. M., & Feitosa, M. A. G. (2003). Percepção da fala em bebês no primeiro ano de vida. Estudos de Psicologia, 8 (3), 459-467.). As autoras afirmam que a percepção categórica é um fenômeno de constância ou normalização perceptual, e seu mecanismo complexo capacita um indivíduo a reconhecer fonemas consistentemente, a despeito da grande variabilidade nos parâmetros acústicos cruciais.

Diferentes estudos (Serniclaes et al., 2001Serniclaes, W., Sprenger-Charolles, L., Carré, R., & Démonet, J. F. (2001). Perceptual discrimination of speech sounds in dyslexics. Journal of Speech Language and Hearing Research, 44, 384-399.; Serniclaes et al., 2004Serniclaes, W., Van Heghe, S., Mousty, P., Carré, R., & Sprenger-Charolles, L. (2004). Allophonic mode of speech perception in dyslexia. Journal of Experimental Child Psychology, 87(4), 336-361.) sugerem que crianças disléxicas são menos categóricas que leitores típicos no modo de perceber contrastes fonéticos; disléxicos apresentam prejuízo na discriminação entre fonemas de diferentes categorias fonéticas e são mais “habilidosos” para discriminar variantes acústicas do mesmo fonema. Isso significa que as distinções entre categorias são menos bem definidas e a estrutura interna das categorias são menos coerentes.

Diversos estudos foram desenvolvidos com o objetivo de verificar se a alteração na percepção categórica da fala apresentada por disléxicos poderia ser uma mera consequência do nível de leitura (Boets et al., 2011Boets, B., Vandermosten, M., Poelmans, H., Luts, H., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2011). Preschool impairments in auditory processing and speech perception uniquely predict future reading problems. Research in Developmental Disabilities, 32 (2), 560-570.; Bogliotti et al., 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.). Para tanto, os disléxicos foram comparados a controle pareados em nível de leitura. Os estudos evidenciaram que o déficit na percepção de fala também era observado quando os disléxicos eram comparados a indivíduos pareados pelo nível de leitura. Além disso, estudos longitudinais observaram déficit na percepção categórica da fala antes do início da alfabetização em indivíduos que posteriormente foram diagnosticados como disléxicos (Boets et al., 2011Boets, B., Wouters, J., Van Wieringen, A., & Ghesquière, P. (2007). Auditory processing, speech perception and phonological ability in pre-school children at high-risk for dyslexia: A longitudinal study of the auditory temporal processing theory. Neuropsychologia, 45 (8), 1608-1620.).

Há duas teorias principais sobre o déficit na percepção categórica apresentado pelos disléxicos. A primeira atribui à alteração no processamento temporal auditivo a causa do déficit perceptual e baseia-se na Teoria do Déficit Auditivo da dislexia. Segundo essa visão, a base do distúrbio específico de leitura seria um déficit em um nível mais elementar da percepção auditiva (o processamento auditivo temporal) que prejudicaria a percepção de fala e, por sua vez, a construção das representações fonológicas (Vandermosten et al., 2010Vandermosten, M., Boets, B., Luts, H., Poelmans, H., Golestani, N., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2010). Adults with dyslexia are impaired in categorizing speech and nonspeech sounds on the basis of temporal cues. Proceedings of the National Academy of Sciences, 107 (23), 10389-10394.). A segunda seria a Teoria Alofônica, que explica o déficit na percepção categórica da fala como um modo não convencional de percepção de fala, baseado na percepção alofônica, ou seja, os disléxicos perceberiam a fala com base no uso de alofones e não de fonemas, como ocorre comumente nos leitores típicos. Os alofones são variações contextuais (manifestações fonéticas) dos fonemas. As representações fonológicas não incluem os alofones, baseiam-se apenas nas propriedades contrastivas (Cristófaro-Silva, 2002Cristófaro-Silva, T. (2002). Descartando fonemas: A representação mental na fonologia de uso. Em: D. Hora, & G. Collischon. Teoria linguística: Fonologia e outros temas. João Pessoa: Editora Universitária.). Segundo essa teoria, o modo atípico de percepção de fala seria a causa direta da dislexia.

O déficit na percepção categórica reflete uma alta capacidade de discriminação de diferenças não funcionais entre estímulos. Essas diferenças são de natureza alofônica no sentido em que correspondem a distinções que são meras variantes contextuais de fonemas na língua de interesse, sendo fonêmica em outros idiomas (Bogliotti et al., 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.). Essa alta discriminabilidade também é observada em crianças na etapa pré-lingual; no entanto, esse modo de percepção é normalmente reorganizado, sobretudo no primeiro ano de vida, tornando-se especializado na língua a que o falante é exposto.

Os bebês nascem com habilidade para distinguir contrastes fonéticos universais, que independem da língua materna (ou nativa), apesar de não fazerem todas as distinções fonéticas usadas na língua adulta. (Eimas, Siqueland, Jusczyk e Vigorito 1971Eimas, P. D., Siqueland, E. R., Jusczyk, P., & Vigorito, J. (1971). Speech perception in infants. Science, 171 (3968), 303-306.) analisaram a habilidade de discriminação entre estímulos de um continuum /ba-pa/, com base no padrão de sucção de bebês com 1 e 4 meses de vida. Constataram que os bebês diferenciaram os estímulos conforme os adultos. Consistentemente, (Eimas 1975Eimas, P. D. (1975). Auditory and phonetic coding of the cues for speech: Discrimination of the [rl] distinction by young infants. Perception & Psychophysics, 18 (5), 341-347.) observou que bebês de diferentes línguas maternas discriminavam continua perceptuais de modo semelhante. O pesquisador interpreta que a organização perceptiva observada em bebês faz parte da composição biológica, sendo uma característica da própria sensibilidade auditiva. As fronteiras fonéticas estão ancoradas nos limiares psicoacústicos.

Essa capacidade de distinção de contrastes fonéticos pode tanto ser aprimorada, ou neutralizada, dependendo da relevância dos contrastes presentes no ambiente linguístico do ouvinte. Com o avançar da idade (e o aumento da experiência linguística), a percepção de fala assume um modo especializado nos contrastes presentes no ambiente linguístico a que o bebê está exposto. As predisposições para distinção de todas as categorias fonêmicas do mundo costumam ser desativadas com o avançar da idade, e o desenvolvimento da percepção especializada na língua materna normalmente se completa por volta dos 9 anos de idade (Hoonhorst et al., 2011Hoonhorst, I., Medina, V., Colin, C., Markessis, E., Radeau, M., Deltenre, P., & Serniclaes, W. (2011). Categorical perception of voicing, colors and facial expressions: A developmental study. Speech Communication, 53 (3), 417-430.).

Os bebês em fase pré-lingual são considerados percebedores universais, ou seja, percebem as categorias que definem as classes fonéticas nas línguas de todo o mundo (Kuhl, 2004Kuhl, P. K. (2004). Early language acquisition: Cracking the speech code. Nature Reviews Neuroscience, 5 (11), 831-843.; Tristão & Feitosa, 2003Tristão, R. M., & Feitosa, M. A. G. (2003). Percepção da fala em bebês no primeiro ano de vida. Estudos de Psicologia, 8 (3), 459-467.). De acordo com (Kuhl 2004Kuhl, P. K. (2004). Early language acquisition: Cracking the speech code. Nature Reviews Neuroscience, 5 (11), 831-843.), as habilidades auditivas mais básicas estão relacionadas à fronteira fonética; essa associação não é casual e sim reflete o fato de os bebês perceberem uma descontinuidade natural em um ponto do continuum. As fronteiras fonêmicas mudam com a idade (e exposição ao ambiente linguístico), de categorias predispostas regidas por processos automáticos para uma percepção de fala sensível ao contexto e, portanto, regida por processos conscientes (Serniclaes, 2011Serniclaes, W. (2011). Percepción alofónica en la dislexia: Una revisión. Escritos de Psicología, 4(2), 25-34.; Serniclaes et al., 2004Serniclaes, W., Van Heghe, S., Mousty, P., Carré, R., & Sprenger-Charolles, L. (2004). Allophonic mode of speech perception in dyslexia. Journal of Experimental Child Psychology, 87(4), 336-361.).

Segundo a Teoria da Percepção Alofônica, um modo atípico de percepção é persistente nos disléxicos. (Noordenbos e Serniclaes 2015Noordenbos, M. W., & Serniclaes, W. (2015). The categorical perception deficit in dyslexia: A meta-analysis. Scientific Studies of Reading, 19 (5), 340-359.) especulam que a reorganização da representação fonológica não ocorre na mesma extensão em disléxicos por razões genéticas, e o modo alofônico de percepção de fala é, provavelmente, uma das causas da dislexia. Para os autores, a percepção alofônica não permite o correto estabelecimento das relações grafo-fônicas mesmo em sistemas alfabéticos perfeitamente transparentes, ocasionando uma perturbação importante do desenvolvimento da linguagem escrita. Segundo (Bogliotti e cols. 2008Bogliotti, C., Serniclaes, W., Messaoud-Galusi, S., & Sprenger-Charolles, L. (2008). Discrimination of speech sounds by children with dyslexia: Comparisons with chronological age and reading level controls. Journal of Experimental Child Psychology, 101 (2), 137-155.), a permanência da discriminação de características fonéticas irrelevantes para a fonologia da língua materna ocorre, possivelmente, em consequência do desenvolvimento perceptual atípico na primeira infância.

A percepção de variantes alofônicas durante o início do processo de aquisição da leitura e escrita tem implicações importantes, uma vez que revela a fraqueza ou até a total ausência de representações em nível de fonemas (Serniclaes et al., 2004Serniclaes, W., Van Heghe, S., Mousty, P., Carré, R., & Sprenger-Charolles, L. (2004). Allophonic mode of speech perception in dyslexia. Journal of Experimental Child Psychology, 87(4), 336-361.). Essa ausência de representações fonêmicas prejudicaria a compreensão da regularidade das relações biunívocas, interferindo no estabelecimento das relações grafemas-fonemas, mesmo nos sistemas ortográficos mais transparentes. Os autores ressaltaram que o efeito deletério da percepção alofônica na leitura e na escrita não necessariamente prejudica a compreensão da fala, uma vez que esta não envolve fundamentalmente os fonemas como unidades de análises. O acesso ao léxico mental é concebível com base em representações alofônicas, embora estas sejam mais demandantes, uma vez que exigem o processamento de grande quantidade de informações redundantes.

Para a Teoria do Déficit Auditivo, o déficit na percepção de fala apresentado pelos disléxicos é secundário a um déficit mais fundamental no processamento auditivo. Essa proposição está ancorada em evidências de que o déficit em percepção categórica não é exclusivo de estímulos linguísticos (Boets et al, 2011Boets, B., Vandermosten, M., Poelmans, H., Luts, H., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2011). Preschool impairments in auditory processing and speech perception uniquely predict future reading problems. Research in Developmental Disabilities, 32 (2), 560-570.; Vandermosten et al., 2010Vandermosten, M., Boets, B., Luts, H., Poelmans, H., Golestani, N., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2010). Adults with dyslexia are impaired in categorizing speech and nonspeech sounds on the basis of temporal cues. Proceedings of the National Academy of Sciences, 107 (23), 10389-10394.).

Com o objetivo de verificar se o déficit no processamento auditivo apresentado por disléxicos é específico da percepção de fala ou pode ser reduzido a uma alteração mais básica e geral do processamento acústico, (Vandermosten e cols. 2010Vandermosten, M., Boets, B., Luts, H., Poelmans, H., Golestani, N., Wouters, J., & Ghesquière, P. (2010). Adults with dyslexia are impaired in categorizing speech and nonspeech sounds on the basis of temporal cues. Proceedings of the National Academy of Sciences, 107 (23), 10389-10394.) analisaram a percepção de estímulos verbais e não verbais em uma amostra de 31 adultos disléxicos e 31 leitores típicos. Foi realizada uma tarefa de identificação do continuum /ba-da/ e uma tarefa de identificação de estímulos não verbais com complexidade espectral semelhantes ao continuum /ba-da/. Os autores constataram que o déficit perceptual auditivo apresentado pelos disléxicos não era específico do processamento de estímulos de fala, uma vez que também foi observado na percepção de estímulos não verbais, fornecendo evidências que corroboram a hipótese de que subjacente ao déficit na representação dos sons da fala apresentado pelos disléxicos, há uma alteração mais fundamental no processamento auditivo.

A Contribuição das Evidências sobre Alterações no Processamento Auditivo e na Percepção de Fala em Disléxicos para Teorias Explicativas da Dislexia

Os achados sobre alteração no processamento auditivo e na percepção de fala e suas relações com a leitura, escrita e consciência fonológica adquirem diferentes interpretações em função dos pressupostos teóricos, como examinaremos a seguir.

A teoria fonológica considera que a dislexia é causada direta e especificamente por esse déficit fonológico. Apesar de amplamente aceita, essa teoria é criticada por desconsiderar os consistentes achados de alteração perceptual, como o déficit no processamento auditivo em disléxicos. O déficit perceptual auditivo apenas coexistiria com a dislexia, não fazendo parte de sua gênese, nem interferindo em sua sintomatologia.

Existem algumas razões que nos levam a questionar se seria possível uma alteração no processamento auditivo não interferir na construção das representações fonológicas, sobretudo se essa alteração acomete o período crítico para o desenvolvimento de linguagem, nos primeiros anos de vida. Uma razão que pode ser apontada é a vasta evidência de déficits na linguagem oral e escrita em indivíduos que apresentam alteração no processamento auditivo. Dentre essas evidências, podemos destacar os estudos longitudinais em crianças que apresentavam alteração auditiva na primeira infância em decorrência de um quadro de otite crônica (por exemplo, Ruben, 1999Ruben, R. J. (1999). Persistency of an effect: otitis media during the first year of life with nine years follow-up. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology, 49, S115-S118.).

A inconsistência e a alteração na estimulação do sistema auditivo periférico nos três primeiros anos de vida, em razão do quadro crônico de otite, levam a uma estimulação sonora também inconsistente do sistema nervoso auditivo central, comprometendo o desenvolvimento das habilidades auditivas, e a construção das representações fonológicas (Luotonen et al., 1998Luotonen, M., Uhari, M., Aitola, L., Lukkaroinen, A. M., Luotonen, J., & Uhari, M. (1998). A nation-wide, population-based survey of otitis media and school achievement. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology, 43, 41-51.). Apesar de ocorrer remissão do quadro infeccioso ainda na primeira infância, a alteração no processamento auditivo permanece e tem efeitos deletérios e persistentes nas representações fonológicas e na aquisição da leitura e escrita. Essa evidência se destaca pela alteração no processamento auditivo ser de origem sensorial, não podendo ser interpretada como decorrente de um atraso na maturação do sistema nervoso. Desse modo, as dificuldades na leitura e na escrita estariam diretamente ligadas às dificuldades perceptuais no processamento de estímulos acústicos.

As alterações no processamento auditivo e na representação fonológica se relacionam pelo fato de a experiência auditiva ser a via sensorial habitual que permite às crianças adquirirem as representações fonológicas necessárias à aprendizagem da leitura e da escrita (Morais, 2009Morais, J. (2009). Representações fonológicas na aprendizagem da leitura e na leitura competente. Em: Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, XXIV. Lisboa: APL, 7-21.). Existem evidências de que o treinamento musical (que não envolve estímulos linguísticos, mas demanda considerável processamento temporal) promove não apenas o aprimoramento das habilidades auditivas, mas também do domínio linguístico (Eugênio, Escalda & Lemos, 2012Eugênio, M. L., Escalda, J. L., & Lemos, S. M. A. (2012). Desenvolvimento cognitivo, auditivo e linguístico em crianças expostas à música: Produção de conhecimento nacional e internacional. Revista CEFAC, 14 (5), 992-1003.). Assim sendo, a construção dessas representações pode ser prejudicada por uma inabilidade no processamento auditivo das pistas acústicas relevantes para a diferenciação entre os fonemas.

Além da alteração no processamento auditivo temporal, são crescentes as evidências de alteração na percepção de fala em grupos de disléxicos, sobretudo em tarefas de identificação e discriminação fonêmica, como a identificação e discriminação de fonemas que se diferenciam apenas pelo traço de sonoridade (Noordenbos & Serniclaes, 2015Noordenbos, M. W., & Serniclaes, W. (2015). The categorical perception deficit in dyslexia: A meta-analysis. Scientific Studies of Reading, 19 (5), 340-359.). Para a discriminação durante a produção da fala desses pares de fonemas não é possível o uso de pistas visuais, uma vez que visualmente esses pares são semelhantes em topografia de articulação. Em vista disso, dificuldades na codificação e decodificação gráfica dos fonemas surdos/sonoros poderiam estar relacionadas a uma dificuldade na percepção auditiva das pistas relevantes para a discriminação desses fonemas.

Segundo Russo & Behlau (1993), o fator de maior relevância para a discriminação do traço de sonoridade nos fonemas plosivos é o tempo de início de sonorização (VOT). Existem evidências de que a percepção das pistas temporais que determinam os fonemas como surdos ou sonoros depende de uma habilidade bem desenvolvida de resolução temporal auditiva (Elangovan & Stuart, 2008Elangovan, S., & Stuart, A. (2008). Natural boundaries in gap detection are related to categorical perception of stop consonants. Ear and Hearing, 29 (5), 761-774.). Desse modo, é possível hipotetizar que as trocas surdas/sonoras sejam uma manifestação da alteração no processamento temporal auditivo. Essa hipótese é fortalecida pelas evidências de que esse tipo de erro ortográfico ocorre com maior frequência tanto em surdos oralizados quanto em disléxicos (Zoubrinetzky et al., 2014Zoubrinetzky, R., Bielle, F., & Valdois, S. (2014). New insights on developmental dyslexia subtypes: heterogeneity of mixed reading profiles. PloS One, 9 (6), e99337.), indivíduos cuja alteração no processamento temporal auditivo está bem documentada.

De acordo com a Teoria Alofônica as manifestações na leitura e escrita nos quadros de dislexia, como as trocas surdas/sonoras, decorreriam de uma alteração no desenvolvimento da percepção de fala resultante de uma falha na integração das características alofônicas em características fonêmicas. Desse modo, os disléxicos perceberiam a fala em unidades alofônicas, em vez de fonemas, o que é denominada percepção alofônica. Essa não percepção de fonemas prejudicaria a compreensão sobre o princípio alfabético.

Conforme (Serniclaes e cols. 2004Serniclaes, W., Van Heghe, S., Mousty, P., Carré, R., & Sprenger-Charolles, L. (2004). Allophonic mode of speech perception in dyslexia. Journal of Experimental Child Psychology, 87(4), 336-361.), a Teoria Alofônica se diferencia da Teoria Fonológica por postular que a alteração na representação dos sons da fala decorre de falha na desativação das categorias fonéticas que não são relevantes para a percepção dos fonemas presentes no ambiente linguístico e que estão predispostas ao nascimento. Em contraste com a Teoria Alofônica, a Teoria do Déficit Auditivo postula que a dificuldade no processamento dos estímulos de fala está relacionada a uma insensibilidade na detecção das pistas acústicas relevantes para diferenciações mais complexas do que a distinção entre categorias predispostas ao nascimento.

Os bebês nascem com habilidade para distinguir contrastes fonéticos universais que independem de sua língua materna, apesar de não fazerem todas as distinções fonéticas usadas na língua adulta. Essa organização perceptual observada em bebês é uma característica própria da sensibilidade auditiva, e está ancorada nos limiares psicoacústicos (que são as fronteiras fonéticas). Com a experiência linguística e o desenvolvimento das habilidades perceptuais auditivas, os bebês passam a perceber contrastes fonêmicos presentes em sua língua materna, e para tanto é necessário um maior refinamento da habilidade perceptual, uma vez que a percepção das fronteiras fonêmicas adquiridas com a experiência linguística demanda uma análise refinada do estímulo acústico.

Segundo (Serniclaes 2011Serniclaes, W. (2011). Percepción alofónica en la dislexia: Una revisión. Escritos de Psicología, 4(2), 25-34.), a aquisição da fronteira fonêmica requer o processamento da ordem temporal dos dois eventos, e é intrinsecamente mais complexa do que os limites universais. Segundo a Teoria Alofônica, a falha no acoplamento entre as fronteiras é a causa da dislexia, e não é secundária a uma alteração no processamento de estímulos acústicos, nem a um déficit no processamento fonológico.

Conclusões

O presente estudo teve como objetivo discutir as Teorias Explicativas da Dislexia (Fonológica, Alofônica e do Déficit Auditivo) com base nos achados sobre as alterações no processamento auditivo e na percepção de fala em disléxicos. A compreensão do quadro subjacente a esse transtorno, altamente prevalente, é de grande relevância, uma vez que permite a identificação precoce dos indivíduos com indicadores de risco para dislexia, além de auxiliar no processo diagnóstico e no planejamento das estratégias de intervenção precoce com base em evidências científicas.

Acreditamos que uma dificuldade muito importante no processamento auditivo dos sons da fala seja capaz de comprometer a construção das representações fonológicas levando à dificuldade no estabelecimento da relação grafofônica. Por outro lado, questionamos se a alteração perceptual auditiva por si só seria capaz de comprometer as habilidades fonológicas a ponto de originar um quadro de dislexia. Nesse âmbito, os achados de alteração no processamento auditivo em indivíduos não classificados como disléxicos no estudo de (Prestes 2016Prestes, M. R. D. (2016). Dislexia e Alteração no Processamento Auditivo Temporal: Colocando a Alteração Perceptual Auditiva em seu Lugar. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília, Brasília.) são bastante informativos, por constatarem que a alteração no processamento auditivo por si só não é suficiente para causar a dislexia.

Uma alteração no processamento auditivo pode comprometer a construção das representações fonológicas. A reflexão sobre os sons da fala, todavia, com base em elementos pouco consistentes, não impediria, necessariamente, a capacidade de operar mentalmente esses elementos, como realizar separações de sílabas, transpor sílabas e excluir sílabas de palavras. O déficit nas habilidades fonológicas apresentado pelos disléxicos extrapola a representação mental dos sons da fala, comprometendo outras capacidades fonológicas, como a capacidade de nomeação rápida. Para ocasionar tal comprometimento nas habilidades cognitivas, a inconsistência na representação fonológica deveria ser tamanha a ponto de comprometer a diferenciação entre os fonemas, o que provavelmente também seria fortemente manifestado na fala. Apesar das evidências de que os disléxicos que apresentam alteração no processamento temporal auditivo também apresentam comprometimento da linguagem oral (Tallal, 1980Tallal, P. (1980). Auditory temporal perception, phonics and reading disabilities in children. Brain and Language, 9,182-198.), é mais provável que a dislexia seja multifatorial e inclua um déficit cognitivo relacionado à capacidade de reflexão metalinguística e um déficit no processamento temporal auditivo, que contribui para o agravamento da sintomatologia.

A habilidade de reflexão metalinguística (como habilidade cognitiva) pode ser a ferramenta usada pelos leitores típicos que apresentam alteração no processamento temporal auditivo para o bom desenvolvimento das representações fonológicas. Ou seja, os indivíduos que apresentam capacidades linguísticas bem desenvolvidas podem se valer dessas habilidades para superar possíveis efeitos deletérios da alteração no processamento auditivo na percepção de fala e na construção das representações fonológicas.

Nos indivíduos que apresentam déficits perceptuais auditivos e déficits nas habilidades fonológicas, ocorre um comprometimento da construção das representações mentais dos sons da fala, que potencializa a dificuldade na reflexão sobre estes sons mal representados. O déficit no processamento de estímulos acústicos, associado a um déficit cognitivo linguístico, pode prejudicar a capacidade de reflexão metalinguística pela carência de elementos para sua consolidação, levando ao quadro de dislexia.

Nem a Teoria Fonológica nem a Teoria do Déficit Auditivo contemplam a integração dos déficits no processamento fonológico e auditivo como sendo diferentes fatores que interagem na gênese da dislexia. A Teoria Fonológica contesta a influência da alteração perceptual auditiva na sintomatologia da dislexia e a Teoria do Déficit Auditivo postula que o déficit no processamento fonológico é um déficit secundário, causado diretamente pelo déficit perceptual auditivo.

A Teoria Alofônica entende a dislexia como sendo causada por um déficit na percepção de fala e, nesse sentido, seu arcabouço teórico também se relaciona à Teoria do Déficit Auditivo, por ambas partirem do princípio de que a alteração na percepção de fala levaria ao déficit na construção das representações fonológicas e nas habilidades fonológicas. Essas teorias, no entanto, diferem quanto às concepções sobre a causa do déficit na percepção de fala. Segundo a Teoria do Déficit Auditivo, a causa da dislexia é o déficit mais elementar no processamento de estímulos acústicos. Para a Teoria Alofônica, é uma falha no acoplamento entre categorias fonéticas predispostas ao nascimento que impede a percepção dos fonemas.

Desse modo, apesar de as três teorias contribuírem para a compreensão da dislexia, elas apresentam problemas por postularem o determinismo de um único déficit e a dissociação entre os diferentes déficits observados nos disléxicos. Apesar de as teorias do déficit auditivo e da percepção alofônica contemplarem o déficit no processamento fonológico (e nesse sentido não incorrem no erro da dissociação entre os déficits), ambas veem esse déficit como secundário a um déficit mais elementar. Nem a dificuldade no processamento auditivo, nem a falha no acoplamento entre as categorias fonéticas predispostas são capazes de explicar totalmente as dificuldades fonológicas apresentadas pelos disléxicos.

Acreditamos que a dislexia é um distúrbio multifatorial, com uma gama de sintomas comportamentais associados que não podem ser explicados por um único déficit. O déficit apresentado pelos disléxicos não é puramente linguístico, como enunciado na teoria fonológica, nem causado diretamente pela alteração perceptual auditiva, como prevê a teoria do déficit auditivo. Ambos os fatores interagem e são indissociáveis na explicação da sintomatologia observada no transtorno de leitura e escrita. Isso recomenda esforços para a construção de uma Teoria Integradora para explicar a dislexia.

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    Apoio: PROAP/CAPES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2016
  • Aceito
    25 Out 2016
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