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O que pode o corpo de uma criança autista?

RESUMO

A Fenomenologia da Vida de Michel Henry nos permite entender a interpretação verbal com crianças autistas como uma ferramenta indispensável para criar a relação de transferência na terapia psicanalítica. Segundo Henry, os princípios de reafirmação e conforto da Intencionalidade como doadores de sentido protegem o sujeito contra o outro. A interpretação tem a pretensão de ocupar um local constitutivo, atribuindo significado ao comportamento da criança, com uma tendência a se aproximar da criança com conhecimento dedutivo e apriorístico. A interpretação verbal é discutida como um princípio reafirmador e calmante para o psicanalista, uma vez que é um princípio intencional, que é doador de sentido. O corpo de uma criança autista pode permitir que o psicanalista o experimente como puro fenômeno de afeição.

Palavras chaves:
terapia psicanalítica; fenomenologia da vida; autismo

ABSTRACT

Michel Henry's Phenomenology of Life allows us to understand verbal interpretation with autistic children as an indispensable tool to create the transference relationship in psychoanalytic therapy. According to Henry, the reassuring and comforting principles of Intentionality as donors of sense protect the subject against the other. The interpretation would have the pretension of occupying a constitutive place through the assignment of meaning to the behavior of the child, tending to approach the child through deductive and aprioristic knowledge. Verbal interpretation is discussed as a reassuring and calming principle for the psychoanalyst, since this principle is intentional, and it is a donor of sense. The body of an autistic child may enable the psychoanalyst to experience it as pure phenomenon of affection.

Keywords:
Psychoanalytic therapy; Phenomenology of Life; autism

Melanie (Klein 1930Klein, M. (1930/1996). A importância da formação do símbolo no desenvolvimento do ego. In M. Klein (1921-1945), Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos. RJ: Imago, 249-264.) retratou na terapia psicanalítica o encontro com uma criança que não estabelece contato afetivo com os outros, não brinca e não representa simbolicamente a realidade, com o caso do Pequeno Dick. Segundo a autora, o psicanalista precisa fazer interpretações orais, mesmo se surgirem de ações pouco representativas de uma criança ensimesmada, que não fantasia a realidade. À época, Klein declarou categoricamente: "Senti compelida a fazer minhas interpretações com base em meu conhecimento geral, já que as representações do material de Dick eram relativamente vagas" (Klein, 1930Klein, M. (1930/1996). A importância da formação do símbolo no desenvolvimento do ego. In M. Klein (1921-1945), Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos. RJ: Imago, 249-264.: 73). Segundo a psicanalista, uma criança inibida por detalhes de seu próprio comportamento pode revelar o simbolismo, permitindo que o psicanalista interprete de modo que, neste caso, a relação de transferência que caracteriza a relação psicanalítica com a criança é criada.

A aplicação do método de interpretação freudiano com uma criança autista foi elaborada na psicanálise pelo caso clínico do pequeno Dick. A ação de interpretar ganhou uma nova vertente, ou seja, extrair e dar sentido aos comportamentos e sons emitidos por uma criança que não cria fantasias. Assim, Klein promoveu uma modificação significativa na ação interpretativa (deutung) ou, melhor dizendo, na terapia psicanalítica, como Freud definiu. O resultado desta perspectiva é que a interpretação não explicaria o significado inconsciente transformado pelos mecanismos psíquicos, mas teria a pretensão de ocupar um lugar constitutivo por meio da doação de significado ao comportamento da criança.

A palavra alemã "deutung" usada por (Freud 1900/1980Freud, S. (1900). A Interpretação dos sonhos. E.S.B., V, 4 e 5, 1980.) foi traduzida como interpretação e, inicialmente, foi usada para traduzir, explicar e revelar os significados ocultos dos sonhos a partir de símbolos e livres associações. Segundo (Mezan 1986Mezan, R. (1986). Freud, pensador da cultura. SP: Brasiliense.), deuten significa tornar claro o que parece confuso ou obscuro e, ao mesmo tempo, revelar a lógica, mostrando as conexões do que está sendo interpretado como o conjunto da vida psíquica da pessoa. Neste sentido, o psicanalista tem sido comparado a um arqueólogo ou um detetive.

Outra vertente aberta por Klein tem a ver com a interpretação na relação de transferência. A psicoterapia de Dick demonstrou que, mesmo com uma criança ensimesmada, o psicanalista pode criar a relação de transferência por meio da interpretação verbal desde o início do tratamento. O psicanalista extrai o valor simbólico das vagas representações da criança, interpretando a angústia pouco simbolizada. Klein não parou na primeira fase da interpretação: traduzir o material simbólico (sonhos e livres associações) que os pacientes trazem. Como Dick não jogava qualquer tipo de jogo, Klein previu uma interpretação. Ao dizer que as representações do material de Dick eram relativamente vagas, Klein começou a ouvir a si mesma e interpretar a partir de uma ação dedutiva, que resultou de conhecimento previamente adquirido, diante da ausência de material clínico representativo sobre o paciente.

Com Klein, a interpretação (deuten) se aproximou da ideia de constituir sentido ao invés da ideia de traduzir. Klein sentiu-se “compelida” a interpretar, mesmo na ausência de material clínico vindo exclusivamente da criança. A proposta kleniana dá ao psicanalista a capacidade não apenas de ser um tradutor e intérprete de um texto estrangeiro apresentado pelo paciente, mas a habilidade de ser quem oferece significado a comportamentos não simbólicos de uma criança. Esta proposta fere a ética do encontro, porque traz significado resultante do conhecimento apriorístico. De um ponto de vista epistemológico, estaríamos passando de uma perspectiva indutiva, contida nos ensinamentos de Freud, para outra perspectiva que é principalmente dedutiva.

O paradigma da interpretação pós-Klein

A fórmula kleiniana - contextualizada em diversas psicanálises atuais - produziu diferentes formas de interpretação nas últimas décadas, a saber: interpretação do jogo (Klein, 1932Klein, M. (1932). The psycho-analysis of children. Londres, Hogarth.); interpretação das figuras e objetos autistas (Tusting, 1972Tustin, F. (1972). Autismo e psicose infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1976.; Meltzer, 1975Meltzer, D. (1975). Org. Explorations dans le monde de l’autisme. Tradução: G. Haag et al., Paris: Payot, 1980.; Haag, 1985Haag, G. (1985). De l’autisme à la schizophrénie chez l’enfant. Topique, V. 36, pp. 47-66.; Ogden, 1989Ogden, T. (1989). On the concept of an autistic-contiguous position. International Journal of Psychoanalysis, 70 (1), 127-140.) e interpretação e tradução dos significantes (Lefort, 1980Lefort, R. Lefort, R. (1980). Naissance de L’Autre. Paris: Seuil.; Jerusanlinsky, 1988Jerusalinsky, A. (1988). Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre, Artes Médicas.; Laznik-Penot, 1995Laznik-Penot, M.-C. (1995). Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. Translation: Mônica Seincman. SP: Escuta, 1997.). Como podemos ver, a característica da interpretação verbal necessária permaneceu como um modelo técnico psicanalítico para estabelecer a relação de transferência com uma criança ensimesmada. Neste horizonte de trabalho, há um projeto onde a expressão verbal é vista como o campo legítimo da práxis psicanalítica. No entanto, esta perspectiva é problemática quando o paciente não tem a possibilidade de fazer uso da linguagem verbal, como o caso de Dick, relatado por Klein, ou em uma criança autista. Nestes casos, a literatura psicanalítica mostra um tipo de prática clínica onde o psicanalista tende a abordar o paciente com conhecimentos dedutivos e apriorísticos. Esta prática poderia ser usada como um princípio reafirmador em um encontro onde o psicanalista evitaria o “não conhecimento” inerente a todas as atividades na situação clínica? O apego à expressão verbal estaria a serviço da manutenção da identidade psicanalítica do profissional? Haveria uma identificação imaginária com o criador da psicanálise por meio da apreciação da expressão verbal nestes casos?

A perspectiva interpretativa como doadora de sentido parece não ser somente uma prerrogativa dos psicanalistas kleinianos. Também encontramos orientação semelhante em outros aspectos da terapia psicanalítica. Alguns autores da atual clínica lacaniana sugerem que o lugar do psicanalista é o de alguém que, juntamente com a criança autista, “prevê um sujeito que surge” por meio de uma “proposta de interpretação” para o estabelecimento da relação de transferência. (Laznik-Penot 1995Laznik-Penot, M.-C. (1995). Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. Translation: Mônica Seincman. SP: Escuta, 1997.) afirma que:

O trabalho psicanalista com uma criança autista é feito da perspectiva oposta da cura psicanalista clássica: o objetivo do analista não é interpretar os fantasmas de um sujeito no inconsciente já constituído, mas permitir o advento do sujeito. O psicanalista é o intérprete no sentido de tradutor de uma língua estrangeira e, ao mesmo tempo, um tradutor com relação à criança e aos pais. (p. 11)

Com uma “proposta interpretativa” (Jerusalinsky, 1999Jerusalinsky, A. (1999). O autista diante da palavra: um caso supervisionado. Estilos da clínica. V.4, n.7, SP: USP, pp. 108-120.), o sujeito pode surgir como um ser falante. Este corte é essencial para discutir a ética do encontro com uma criança que não fala. Colocada como um sujeito emergente, toda a prática se concentra em fazê-la falar. Neste contexto, o sujeito nasce pelo menos duas vezes: uma vez como organismo vivo e outra vez como um sujeito falante. Um fator humano seria uma coisa pré-ontológica, que precisa encontrar sua finitude adotando a prótese da linguagem.

Iniciando com a noção de Henry sobre os princípios de reafirmação e conforto das ciências naturais, a urgência de interpretar estaria a serviço da necessidade do psicanalista de pertencimento relativo a suas escolas de psicanálise, a despeito da psicoterapia baseada em encontros. A mesma crítica feita às ciências naturais também pode ser discutida na área de psicanálise, desde que o psicanalista se ofereça como doador de um sentido apriorístico à criança autista.

Com sua Filosofia da Vida, Michel Henry (1922-2002) traz uma importante contribuição à discussão destas questões. Por meio de seu conceito de Pura Fenomenologia, ele sugere que é na materialidade do fenômeno - como ocorre originalmente na pessoa - que ocorre uma provável abertura para o outro. Segundo o autor, o primeiro momento de um relacionamento entre uma pessoa e a outra não é a de uma intenção de doar sentido, tranqüilizando seus próprios temores, já que precisa da vulnerabilidade originária não patológica que constitui o fator humano. O afeto pode surgir e se anunciar a partir desta vulnerabilidade originária.

A noção de vulnerabilidade originária da Fenomenologia da Vida de Henry pode ser reconhecida na terapia psicanalítica com uma criança autista com base nos ensinamentos de Ferenczi e, principalmente, de Winnicott. Inspirado pela terapia psicanalítica das crianças, (Ferenczi 1921/1992Ferenczi, S. (1921). Prolongamentos da ‘técnica ativa’ em psicanálise. Sándor Ferenczi: Obras Completas. Psicanálise III. Tradução: Álvaro Cabral. SP: Martins Fontes, 1992, p. 109-25.) adaptou a técnica psicanalítica para permitir o tratamento de “casos difíceis”. Segundo ele, é necessário “introduzir mudanças significativas à técnica de psicoterapia de adultos, quase sempre no sentido de atenuar o rigor técnico habitual” (p. 70). Da mesma forma, para tratar pacientes com traumas que evoluem para psicopatologia, (Ferenczi 1928/1992Ferenczi, S. (1928). A elasticidade da técnica psicanalítica. Sándor Ferenczi. Obras Completas, Psicanálise III. Tradução: Álvaro Cabral. SP: Martins Fontes, 1992, p.25-36.) e (Winnicott 1967/2007) defenderam a necessidade de estabelecer a técnica psicanalítica além da interpretação verbal.

Segundo Ferenczi, é essencial que o psicanalista atue por meios plásticos e se permita ceder às tendências do paciente (Ferenczi, 1928/1992Ferenczi, S. (1928). A elasticidade da técnica psicanalítica. Sándor Ferenczi. Obras Completas, Psicanálise III. Tradução: Álvaro Cabral. SP: Martins Fontes, 1992, p.25-36.), adaptando-se ao ritmo do paciente ao invés de encaixar o paciente na rigidez da técnica clássica. (Winnicott 1971Winnicott, D. W. (1971). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.) afirmou que o terapeuta precisa se render ao absurdo, à não forma e atemporalidade para estabelecer o relacionamento clínico com pacientes difíceis.

Seguindo o pensamento de Wainscot, (Safra 1999Safra, G. (1999). A face estética do self: teoria e clínica. Tese (Qualificação). Instituto de Psicologia. USP.) considera a expansão da situação clínica por meio do entendimento do sofrimento humano como uma cristalização da esperança, ou seja, posicionando-se diante da dor do paciente de forma a sustentar o futuro deste paciente. No caso de Ricardo, onde a experiência estética (sons) é usada na sessão como o local do evento, Safra afirma que:

“Estamos diante dos fenômenos que iniciam o sujeito na experiência de ser para que consiga existir como um ser humano. Repetir o perfil sólido que ele emitiu foi ecoar a singularidade de sua existência. Um fato terrível é fazer um som que nunca será ecoado por outro ser humano, o que significa se perder em espaços infinitos, aniquiladores de qualquer vida psíquica”. (p. 31)

Com Ferenczi, Winnicott e Safra podemos entender como as ações terapêuticas podem existir além dos princípios encorajadores da interpretação verbal como doador de sentido. Vivenciar o caos do absurdo com um paciente através da ação do terapeuta ecoando os sons de uma criança que não representa a realidade seria, na linguagem de Henry, vivenciar a vulnerabilidade originária por meio da qual o afeto pode surgir e se anunciar.

A apresentação originária do ser humano ocorre por meio do afeto, pelo corpo vivo presente em sua materialidade aberta ao outro. As figuras estéticas são desenhadas pelo corpo, ou seja, movimentos plásticos que buscam o corpo do outro em uma comunicação que antecede as palavras. Henry afirma:

O corpo real é o corpo vivo, o corpo onde estou colocado, que nunca vejo e que é um pacote de poderes - eu posso, eu consigo pegar com minha mão - e desenvolvo este poder de dentro, fora do mundo. É uma realidade metafisicamente fascinante, porque tenho dois corpos: o visível e o invisível. O ser do corpo é subjetivo; é imanência absoluta; é transparência absoluta. O corpo interno que eu sou e que é meu corpo real é o corpo que vive; é com este corpo que eu realmente ando, pego, seguro e estou com os outros. (Henry, 2002Henry, M. (2002). Auto-donation. Entretiens et conférences, Éditions Prétentaine., p. 156)

Com esta abordagem, (Tafuri 2003Tafuri, M. I. (2003). Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento psicanalítico da criança autista. Brasília: ABRAFIPP.) apresentou o caso de Mary na dissertação de doutorado chamada "De sons à palavra: explorações do tratamento psicanalítico com a criança autista". Tratava-se de um caso clínico paradigmático no primeiro encontro, caracterizado pela ausência de interpretações verbais no início do tratamento nos anos 90.

Revisitando o caso de Maria

O primeiro encontro com Maria, uma criança autista de três anos de idade, foi caracterizado por um fenômeno delicado: a criança emitia sons altos e estridentes com uma sonoridade estranha. Os sons pareciam metálicos e não tinham o som da voz humana. No entanto, o som mudava totalmente quando, inesperadamente, a criança começava a girar as mãos em frente a seu rosto, rápida e levemente. Ela parecia hipnotizada por si mesma. Nesses momentos, sua voz era mais melodiosa e seguia o ritmo de seu corpo. Sentada no chão, ela balançava o corpo para trás e para frente em um ritmo cadenciado, como se estivesse sentada em uma cadeira de balanço invisível. O estado de prazer que Maria apresentava era visível e atraente. Havia ritmo, melodia e a expressão de um estado psíquico calmo. No entanto, a criança estava totalmente absorta em suas próprias sensações.

Em outros momentos, Maria corria na ponta dos pés de um lado para o outro, sem explorar os objetos do consultório. Essas corridas, sem olhar para os objetos ou para a psicanalista, eram acompanhadas de sons metálicos e estridentes, como se ela estivesse em estado de sofrimento psíquico. De repente ela entrava em estado de estresse, se mordendo, batendo a cabeça nas paredes e sem aceitar consolo de ninguém, nem mesmo dos pais que estavam presentes.

No primeiro encontro com Maria, a psicanalista lembrou a imagem de um beija-flor. Maria pulava na ponta dos pés de forma ágil e muito rápida, no mesmo lugar, em frente a um objeto. Ela encarava o objeto de forma insistente e interessada e, ao mesmo tempo, balançava as mãos e braços como se quisesse voar. Os sons ficavam mais estridentes e, de vez em quando, ela colocava a ponta dos dedos no objeto que estava encarando, de forma rápida e fugaz. Maria não apoiava o corpo em objeto algum. Parecia um beija-flor tocando uma flor apenas com o bico, mantendo seu corpo suspenso no ar movendo as asas rapidamente.

A partir da imagem do beija-flor, a psicanalista percebeu onde Maria se colocou naquele primeiro encontro. Na realidade, não havia um isolamento radical em relação aos objetos da realidade. Ela tocava os objetos com a ponta dos dedos com fugacidade e, aparentemente, de uma forma não obrigatória. No entanto, era possível perceber que havia uma escolha e algum interesse e, algumas vezes, um verdadeiro prazer em tocar alguns objetos. A forma como Maria entrava em contato com a realidade de repente veio à mente da psicanalista através da imagem de um beija-flor. Era uma bela imagem que foi determinante para a psicanalista repensar o lugar ocupado por ela na relação de transferência com Maria.

Naquele primeiro encontro, houve a presença de uma primeira comunicação que surgiu da criatividade primária (Winnicott, 1951Winnicott, D. W. (1951). Transitional objects and transitional phenomena. Through paediatrics in psychoanalysis. Collected papers. London: Karnac Books, 1992.) de um sujeito em estado de sofrimento. Portanto, não era necessário prever um sujeito que emergiria através das propostas interpretativas. Maria estava presente por meio dos sons, maneirismos e delicados toques nos objetos. Era um corpo aberto e angustiado em busca do entendimento do corpo do outro, a presença de não conseguir ser nomeada, porém terapeuticamente bem-vinda pela ação da psicanalista ecoando os sons produzidos pela criança, independentemente de quanto parecessem anárquicos. Diferentemente de traduzir ou decodificar os sons de Maria, a psicanalista começou a vivenciar os sons e maneirismos sem decodificar, traduzir ou interpretar.

Neste sentido, a voz da psicanalista teve um papel primordial na evolução do tratamento da criança. Maria começou a brincar com os sons, criando a relação de transferência com a psicanalista na ausência de interpretações verbais. Segundo Freud, espera-se que o psicanalista tenha um estado fundamental de disponibilidade, um pathos em relação ao outro. É uma abertura para o outro, quem quer que seja este outro, falante ou não falante. Neste sentido, a terapia psicanalítica nos leva à natureza do encontro além das interpretações verbais. No processo de abertura para o encontro com o outro, é necessário fazer algumas perguntas: o que pode o corpo de uma criança autista para além da interpretação verbal do psicanalista?

O que pode ***o corpo de uma criança autista

Segundo as noções de Henry trazidas por Florinda (Martins 2010Martins, F. (2010). O que pode um corpo? In F. Martins & A. Pereira (Orgs) Michel Henry: Contribuições em Língua Portuguesa para um projeto internacional de investigação em rede (pp. 11-26). Lisboa: Universidade Católica Ed., 2014Martins, F. (2014). Fenomenologia da Vida: o que pode um sentimento? In A. E. G. Antúnez. F. Martins & M. V. Ferreira (Orgs) Fenomenologia da Vida de Michel Henry. Interlocuções entre filosofia e psicologia. SP: Escuta.) é possível revisitar o texto original da psicanalista de Maria e identificar os princípios de reafirmação e conforto das interpretações verbais:

As interpretações surgiram em minha mente de uma forma tão insistente e automática que não me deixaram experimentar o isolamento no qual Maria me colocou. Na realidade, meus pensamentos serviram para preencher meu mundo interior, porque eu me sentia extremamente só na presença daquela criancinha. E eu tentei explicar para mim mesma as reações de Maria, entrei em contato com um conhecimento que só me deu uma segurança ilusória: entender o comportamento ensimesmado dela. Conclui que precisava de outro tipo de conhecimento para viver aquele comportamento ensimesmado - que surgiu de minhas impressões sobre a criança - e não o conhecimento advindo das interpretações explicativas produzidas em minha mente de forma praticamente automática. (Tafuri, 2003Tafuri, M. I. (2003). Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento psicanalítico da criança autista. Brasília: ABRAFIPP.:34)

Desde o primeiro encontro, a psicanalista começou a ecoar os sons de Maria, sem olhar diretamente para ela, com se estivesse procurando Maria. Ela se fez existir nos sons produzidos de forma anárquica. Segundo os ensinamentos de (Winnicott 1971Winnicott, D. W. (1971). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.) e (Safra 1999Safra, G. (1999). A face estética do self: teoria e clínica. Tese (Qualificação). Instituto de Psicologia. USP.), os sons de Maria continham a criatividade primária de uma criança ensimesmada em um mundo que não tinha sensações. Segundo Henry, era na materialidade do fenômeno - os sons ecoados pela psicanalista - que o afeto conseguia se anunciar e se tornar comunicação: experiência intercorpórea. Maria começou a colocar as costas das mãos na boca da psicanalista durante as sessões. Aos poucos, começou a olhar e colocar o dedo indicador na boca da psicanalista. Era como se ela estivesse buscando os sons na boca da outra. Para a psicanalista, a criança parecia tão frágil e sensível ao outro que até mesmo as palavras poderiam ser invasivas e muito difíceis para ela. Conversar com ela seria como tocá-la com palavras. Ela era muito frágil para ser tocada sem primeiro permitir encontrar o outro com seu ser corpóreo. Maria precisava encontrar o outro sem ser invadida pela presença excessiva daquele outro. A psicanalista precisaria estar lá para ser encontrada (Tafuri, 2012Tafuri, M. I & Safra, G. (2012). O lugar do psicanalista com uma criança autista: estar lá para ser encontrado. Psicologia clínica e cultura contemporânea. Terezinha de Camargos Viana (Org) e cols., Brasília: Liber Livro Editora Ltda, 323-340.). Portanto, as interpretações verbais foram adiadas.

Após um tempo que Maria explorou o corpo da psicanalista, houve um fato impressionante e organizador do ambiente. A criança começou a esperar que a psicanalista a imitasse. Este fato constituiu um conjunto de sons no relacionamento de transferência estabelecido na ausência das interpretações verbais, que foi uma expectativa caracterizada pelos gestos corporais. Se a psicanalista não a imitasse, Maria demonstrava angústia. Ela começava a se morder, arranhando a psicanalista ou gritando desesperadamente. O jogo de sons começou a se tornar mais elaborado. O sofrimento relativo à expectativa foi substituído por um jogo delicado. A criança começou a brincar de esconde-esconde, esperando a imitação dos sons por parte da psicanalista. Ela se escondia sob a mesa, emitia os sons e esperava! O rosto de Maria começou a demonstrar alegria e prazer em ser encontrada. A psicanalista começou a ecoar os sons da criança, acrescentando o gesto do encontro que acontecia. Quando a psicanalista ouvia os sons de Maria, ela emitia os sons procurando por ela em diferentes lugares da sala, atrás da porta, no banheiro, etc. Então, ela olhava em baixo da mesa e mostrava grande prazer em encontrá-la, mudando a entonação dos sons habituais para o som de “Encontrei você!”.

Neste contexto de jogo de sons, Maria começou a olhar para a psicanalista e permitiu ser abraçada fisicamente, produzindo os primeiros rabiscos e as primeiras palavras. A psicanalista começou a interpretar as primeiras representações gráficas e verbais da criança e a psicoterapia continuou até Maria entrar para a universidade, aos 22 anos de idade.

Considerações Finais

O corpo de uma criança autista pode permitir a abertura para o outro se for vivenciado como uma pura fenomenologia do afeto. Por outro lado, a criança examinada, interpretada ou decodificada pelo outro na fenomenologia da representação está fadada à mudez. Nesta situação, a palavra tem uma característica invasiva e potencialmente traumática. Uma proposta interpretativa que preceda qualquer enunciação de uma criança parecer ser um princípio reafirmador e confortante para a preservação de uma técnica que só tem valor para o psicanalista como um elemento que corrobora sua identidade. A abertura para o outro, quem quer que seja este outro, significa escapar do campo de deduções e do colonialismo do ser do outro, como visto nos casos de Ricardo (Safra, 1999Safra, G. (1999). A face estética do self: teoria e clínica. Tese (Qualificação). Instituto de Psicologia. USP.) e Maria (Tafuri, 2003Tafuri, M. I. (2003). Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento psicanalítico da criança autista. Brasília: ABRAFIPP.). Quando o corpo de uma criança autista é lido e abordado com uma concepção preexistente, o psicanalista coloca a criança em uma rede significativa, cuja consistência é dada pela teoria do psicanalista, e que leva ao encerramento em um conjunto de significados preexistentes. Neste caso, a única coisa que o psicanalista faz é prever em relação ao outro, inserindo a criança em categorias predefinidas de linguagem. O psicanalista que propõe uma interpretação insere a criança em diversas redes, prevendo e constituindo uma lógica ainda inexistente para a criança.

Tanto Ricardo quanto Maria como seres de som não podiam ser decodificados, traduzidos ou interpretados verbalmente. A única coisa que o psicanalista pode fazer é “estar lá para ser encontrado" (Tafuri & Safra, 2012Tafuri, M. I & Safra, G. (2012). O lugar do psicanalista com uma criança autista: estar lá para ser encontrado. Psicologia clínica e cultura contemporânea. Terezinha de Camargos Viana (Org) e cols., Brasília: Liber Livro Editora Ltda, 323-340.). Desde o primeiro encontro, Maria esteve presente por gestos e sons que expressavam a “criatividade primária” (Winnicott, 1951Winnicott, D. W. (1951). Transitional objects and transitional phenomena. Through paediatrics in psychoanalysis. Collected papers. London: Karnac Books, 1992.). Nas palavras de (Henry 2000/2001Henry, M. (2001). Encarnação: por uma filosofia da carne. Lisboa: Círculo de Leitores.):

A vida se experimenta como um pathos. É Afetividade originária e pura, uma Afetividade que chamamos de transcendental porque, na verdade, torna possível a própria experiência, sem distância no sofrimento inexorável e na passividade insuperável de uma paixão. É nesta Afetividade e como Afetivo que ocorre a autorrevelação da vida. (p. 66)

O psicanalista deve seguir a ética de um encontro delicado que, seguindo os sons e maneirismos da criança, se apresenta a ele como um corpo vivo a ser encontrado.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2016
  • Aceito
    13 Dez 2016
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