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A Diferença Sexual de Butler a Lacan: Gênero, Espécie e Família

The Sex Difference from Butler to Lacan: Genre, Species and Family

RESUMO

Judith Butler está no centro do fecundo debate estabelecido entre psicanálise e estudos de gênero. A filósofa utiliza teses psicanalíticas em seu proveito. Porém, critica alguns de seus referenciais teóricos. Neste artigo, reexaminamos tais críticas à luz da teoria do Real e das fórmulas da sexuação de Lacan. Sugerimos que os apontamentos butlerianos dependem de um entendimento de ordem simbólica que identifica três instâncias: sistemas de parentesco; gêneros de relação ao falo; e modalidades de gozo. A nosso ver, esse entendimento de diferença sexual, dualista e complementar, é revisto pela teoria lacaniana da disparidade do gozo. Também sustentamos que a teoria dos discursos, na quais homem e mulher são tomados como semblantes, abrem caminhos inovadores à pesquisa da diferença sexual.

Palavras-chave:
diferença sexual; psicanálise; estudos de gênero; real

ABSTRACT

Judith Butler is in the center of the productive debate established between psychoanalysis and gender studies. The philosopher appeals to some psychoanalytic theories, but criticizes certain psychoanalytical references. In this article, we reexamine these criticisms resorting to Lacan's theory of the Real and the formulas of sexuation. We suggest that Butler's notes require an understanding of the symbolic order which identifies three instances: kinship systems; genres of relation to the phallus; and juissance modalities. In our view, this understanding of sexual difference, dualistic and complementary, is reviewed by Lacan´s theory of juissance disparity. We also argue that the theory of discourse, in which man and woman are taken as semblant, brings innovative perspectives to sexual difference research.

Keywords:
sexual difference; psychoanalysis; gender studies; real

Psicanálise e Feminismo

Judith Butler é uma filósofa de alto impacto no universo anglo-saxônico. Marcada por autores pós-estruturalistas, como Foucault, Deleuze, Derrida, e por teses da filosofia crítica alemã pós-kantiana e hegeliana, ela não deixa de travar um diálogo crítico com Lacan. Lembremos que Lacan foi um psicanalista que inspirou várias autoras da chamada segunda onda do feminismo, como Luce Irigaray, Rosi Braidotti e, mais tarde, Julia Kristeva. Ao criticar o biologismo naturalizante de Freud e valorizar a dimensão de linguagem inerente aos processos simbólicos de subjetivação e de sexualização, Lacan recolocou a psicanálise no debate, emergente nos anos 1970, sobre o caráter ético-político das identidades, dos discursos e das práticas sexuais.

Butler, principalmente nos trabalhos da década de 1990, reconhece uma forte ligação entre psicanálise e feminismo, inspirando a retomada da obra de Lacan para um novo conjunto de autoras feministas, como Jessica Benjamin, Erica Burman, e, dentro da própria psicanálise, Monique David-Ménard. Essa nova crítica à psicanálise agora voltará suas forças contra o universalismo masculino e sua reificação culturalista do simbólico, que impregna as teses dualistas do Lacan mais próximo do estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss (Campbell, 2004Campbell, K. (2004). Jacques Lacan and feminist epistemology. New York and London: Routledge.). Para Butler, a noção de gênero é problemática e não pode ser pensada sem um aporte performativo da linguagem e fora das políticas que implementam mudanças nas relações de poder que existem entre os gêneros.

Nos anos 1950, com Simone de Beauvoir, as feministas demandavam igualdade social e política com relação aos homens; nos anos 1970, a reivindicação desloca-se para o reconhecimento da sobreposição da diferença sexual à diferença de raça e classe social (Lago, 2010Lago, M. C. S. (2010). A psicanálise nas ondas dos feminismos. In C. Rial & J. M. Pedro (Eds.), Diversidades: Dimensões de gênero e sexualidade (pp. 1-23). Recuperado de http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/a_psicanalise_nas_ondas.pdf
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). No terceiro momento, no qual se insere Butler, notadamente a partir dos anos 1990, a ênfase se concentra na legitimação de novos modelos de identidade e na tentativa de definir o que poderiam ser as "políticas de gozo". Nesse momento, a teoria feminista havia conquistado relativo reconhecimento universitário, atestado pela autonomização de áreas de pesquisa como "estudos gays e lésbicos" e depois estudos queer1 1 Convencionou-se chamar de estudos queer aqueles que apontam para as estruturas de poder e de dominação que estabelecem os padrões de aceitabilidade e rejeição de identidades sexuais. A teoria queer incita que as práticas sexuais não-normativas funcionem como formas de resistência simbólicas e políticas, tencionando transformações sociais. , pela sua presença na delimitação de políticas públicas voltadas para minorias e pela organização institucional de sua militância engajada.

A teoria de Butler é original, sobretudo, por buscar investigar gênero a partir daquilo que foge à norma. Os gêneros não-inteligívies envolvem uma gramática diferente da mera transgressão, suspendem as premissas constituintes dos edifícios normativos, indicando que talvez exista uma anomalia no próprio processo social, mais vasto que a gênese de identidades e que age consensualmente na delimitação e nomeação dos gêneros. O problema não é, portanto, apenas separar o gênero das relações familiaristas, nas quais os papéis sociais são encenados, reproduzindo relações de poder e hierarquia, por meio de conflitos administrados e reificados entre paternidade e masculinidade ou entre maternidade e feminilidade. Há algo de indiscernível, inerente ao conceito de gênero, que corrompe o fundamento identitarista das relações sociais. Butler lê a psicanálise com a forte presença de Foucault e, portanto, absorve a maior parte das críticas que esse autor faz à psicanálise. No entanto, assim como em Butler, a posição de Foucault com relação à psicanálise é, no mínimo, ambígua (Dunker, 2011Dunker, C. I. L. (2011). Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: Uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo: Annablume.). É compreendida como dispositivo auxiliar do processo de psiquiatrização e, ao mesmo tempo, alternativa crítica ao silenciamento da loucura; discurso que aloca a verdade do sujeito em sua sexualidade e ao mesmo tempo herança da tradição "espiritual do cuidado de si"; única forma de pensamento, ao lado de Heidegger, a perguntar o preço que o sujeito deve pagar para poder ter acesso a verdade de seu desejo; modalidade de poder e de resistência ao controle da sexualidade, que absorve as figuras da hipótese repressiva, tais como a criança masturbadora, o adolescente perverso, a mulher naturalizada e o pai impotente, em um regime renovado de confissão pastoral-cristã.

Butler segue essa retórica da ambiguação em sua importação e crítica de conceitos, o que é muito produtivo, pois leva o leitor a se perguntar por qual das psicanálises devemos nos orientar tendo como horizonte uma clínica crítica. A dissolução da unidade dos gêneros talvez possa ser deslocada também para a dissolução dos gêneros psicanalíticos e suas famílias. Curiosamente, as noções que parecem despertar maior simpatia em Butler são aquelas que oferecem maior resistência à incorporação estruturalista lacaniana, caracterizada pelo período do retorno a Freud, de 1953 a 1963. Entre tais noções, destacamos a de pulsão. Até certo ponto, "somos dirigidos por aquilo que não conhecemos e não podemos conhecer. Esta 'pulsão' (Trieb) é precisamente o que não se reduz à biologia e nem à cultura, mas sempre o lugar de sua densa convergência" (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. New York and London: Routledge, p.15). O corpo pulsional não acata completamente as normas que impõem sua materialização em corpos-homens e corpos-mulheres. A pulsão carrega, portanto, uma potência transformadora e outra que faz resistência, o que a torna uma noção interessante aos propósitos políticos de Butler.

Por outro lado, a filósofa critica duramente conceitos fundamentais em Lacan, como o simbólico e a diferença sexual, principalmente em "Problemas de gênero" (2003/1990) e "Undoing gender" (2004), que haviam sido recebidos como um avanço desnaturalizante feito pela psicanálise. Contudo, a própria existência social da psicanálise, como prática clínica, funciona como uma espécie de prova de que a sexualidade não se submete às normas sociais que pretendem controlá-la, ou seja, uma espécie de "resistência dos materiais" de que nem tudo pode ser construído indiferentemente em termos de sexualidade. Butler pode ser considerada uma construtivista que critica o essencialismo universalizante e naturalista que recai sobre a teoria clássica de gênero. Mas ela desconfia também da soberania da plasticidade do simbólico, como advoga o pensamento sociológico liberal, como o de Guiddens, e também de sua totalização dualista e formalista como quer o estruturalismo clássico.

Espécies de Gêneros

Em Problemas de gênero (2003/1990), Butler aponta que a heteronormatividade prevalecente na contemporaneidade se assenta na concepção binária dos sexos e dos gêneros. A compulsão heteronormativa estipula ainda que caracteres sexuais anatômico-fisiológicos, as nomeações sociais de gêneros, os desejos e práticas sexuais devem ser concordantes. Os sujeitos que não se enquadram nesse sistema ideal de coerência e continuidade não correspondem a gêneros inteligíveis, masculino e feminino, sendo, consequentemente, relegados à invisibilidade e à patologia. Mais além de uma crítica à segregação de gênero, esse modelo trouxe outra novidade. Ele permite pensar a emergência de patologias, cuja variedade histórica é conhecida, como uma espécie de forçamento presumido por uma matriz identitarista da individualidade. Seguindo a trilha aberta por Foucault, Butler mostra que as patologias, particularmente as patologias "mentais", correspondem sempre a um excesso de individualização identitária de uma experiência.

Daí que se possa imaginar então uma política pós-identitária e desconstrucionista do gênero. Isso promoveria legitimidade de existência e direito de cidadania aos sujeitos que fogem à norma, não porque eles seriam espécies desviantes ou patológicas de um mesmo gênero, mas porque o desvio e a anomalia são a regra universal em termos de gênero. A universalidade das "espécies" opera, assim, um deslocamento da patologia à política. Nessa empreitada, a filósofa denuncia a instabilidade e a a-naturalidade das identidades. A coerência da identidade de gênero, seguindo a acepção lógico-categorial de Aristóteles, pela qual conhecer é incluir a espécie ao gênero, é desconstruída pelo argumento de que não há essência por trás do gênero. Poderíamos dizer que é como se a ontologia que estipula o gênero (gender), que naturaliza suas oposições horizontais, a outros gêneros, bem como determina uma hierarquia vertical, para as espécies que nele se incluem, ou nas famílias que os contém, deveria ser substituída por uma ontologia dos gêneros (genre), como matrizes literárias, compostas por performances de estilo, por escolhas pragmáticas e por exigências de recepção.

Contra a hipótese da estrutura binária estável, que sustentaria teoricamente o poder invisível que nos faz acreditar na "natureza-simbólica" dos gêneros, Butler (2003/1990)Butler, J. (2003). Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade (R. Aguiar, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. (Originalmente publicado em 1990) propõe que gênero é um ato intencional e performativo. Palavras, gestos e atos expressos reiteradamente criam a realidade dos gêneros. É como se ela estivesse percebendo aqui um antigo problema legado no interior da antropologia de Lévi-Strauss (1998/1955)Lévi-Strauss, C. (1998). Antropologia estrutural I (B. Perrone-Moisés, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. (Originalmente publicado em 1955). Como se sabe, o pai do estruturalismo analisava os diferentes sistemas simbólicos como sistemas de troca social homólogos à troca de palavras, daí sua estrutura significante. A demonstração dessa tese recorreu aos mitos e aos sistemas formais como o parentesco, a culinária, as estratégias de nomeação do pensamento selvagem, o que deixou um espaço incógnito para qual seria exatamente a relação entre o mito e o rito. O mito sempre se impõe ao rito como o roteiro de uma peça de teatro?

Observe-se que essa abertura é crucial para entender a importação da noção de estrutura por Lacan. Uma coisa é afirmar que o inconsciente possui estrutura de linguagem, que a neurose é um mito individual, que os sintomas possuem estrutura metafórica e que os desejos possuem estrutura metonímica, mas outra coisa é afirmar que a estrutura do tratamento psicanalítico pode interferir e transformar as variantes do mito, do sintoma ou do desejo. Isso porque a teorização da estrutura das formas simbólicas é algo um pouco diferente da teorização da prática clínica: ainda que a primeira possa condicionar a segunda, a primeira possui afinidade com o mito e a segunda com o rito.

É exatamente nessa conexão instável entre mitos-discursivos, que organizam a distribuição dos gêneros como identidades e ritos-práxicos, que os transformam e atualizam diferencialmente, que Butler coloca seu argumento. Atos repetidos de uma forma estilizada produzem efeito de ontologizar os gêneros auto-justificando a crença na existência de o homem ou a mulher. É assim que corpos, em si infinitamente diferentes, adquirem aparência de gêneros fixos e idênticos. Contudo, não há "agente" por trás do ato, não há estrutura pré-discursiva. O agente é construído a partir do ato. A repetição imitativa pode ocorrer como paródia, como citação ou como iteração, organizando atos performativos que criam a ilusão de substância, unidade, coerência e identidade. A ilusão de um modelo original, que não existe fora dessa repetição, explicaria o sentimento social frequentemente presente de inadequação de gênero, ou de inadequação corporal.

A Crítica de Butler à Psicanálise de Lacan

Para Butler, a psicanálise lacaniana se sustentaria na matriz heterossexual. Ao invés de contestá-la, sua estratégia teórica de fundamentação daria ainda mais força a tal matriz. Categorias psicanalíticas como ordem simbólica e diferença sexual impõem regras de inteligibilidade cultural que são tomadas como se fossem transcendentais e imunes a transformações sociais. Isso fica claro na passagem de dualismos internos à estrutura da linguagem, como significante/significado, sincronia/diacronia, fala/língua, que são articulados com a diferença sexual por meio de oposições como fálico/castrado, ativo/passivo ou falta-do-lado-do-sujeito/falta-do-lado-do-Outro.

Nesse contexto, a diferença sexual, função recalcada e recalcante, seria apenas mais um caso da diferença significante, na qual cada elemento possui valor e significação sobredeterminado por todos os outros. A ordem simbólica, como caso de dupla articulação dos sistemas simbólicos, funciona assim como sucedâneo ontológico invertido do realismo naturalista tradicional. A concepção universalista de totalidade, com seu característico ponto de negatividade, de incompletude ou de falta decidiria a instalação de uma espécie de gênero subjetivo, como estrutura não modificável. Isso dificultaria a tarefa da psicanálise para repensar arranjos culturais como novos parentescos, novos tipos de família (como a união entre homossexuais), práticas sexuais e gêneros indiscerníveis (a transexualidade, por exemplo). Sem algum tipo de renovação, o saber psicanalítico continuará pensando binariamente gênero. Desse modo, não fará mais do que reproduzir os regimes de poder e negligenciar outras formas humanas de reconhecimento.

Já em Freud (2011/1925), sexo e identidade sexual não andavam necessariamente juntos. Suas postulações sobre a formação da identidade sexual e de gênero se confundem na noção de narcisismo, assim como a modalidade preferencial de gozo se mistura com a identidade do eu e no conceito de auto-erotismo. São indícios teóricos que apontam para a descontinuidade entre sexo, gênero, desejo e práticas sexuais, tal como se evidencia na teoria de Butler (2003/1990)Butler, J. (2003). Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade (R. Aguiar, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. (Originalmente publicado em 1990). Porém, em Freud, a incoerência entre tais fatores tende a ser patologizada. São os casos de fixação pulsional, regressão a uma organização pré-genital, inversão do objeto sexual, alteração do objetivo sexual, ou escolha narcísica de objeto. Butler critica a concepção binária dos sexos na qual Freud opera e que o conduz a uma ontolologia da identidade sexual, apoiada por uma teoria da gênese natural dos gêneros.

Grosso modo, para Freud, é a partir do Édipo que o sujeito se define como homem ou mulher. A teoria lacaniana dos anos 50 ratifica tal concepção:

O complexo de Édipo tem uma função normativa, não simplesmente na estrutura moral do sujeito, nem em suas relações com a realidade, mas quanto à assunção do seu sexo (...). (...) há no Édipo a assunção do próprio sexo pelo sujeito, isto é, para darmos os nomes às coisas, aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com suas funções de mulher. A virilidade e a feminilização são os dois termos que traduzem o que é, essencialmente, a função do Édipo. (Lacan, 1999/1957-58Lacan, J. (1999). O seminário, Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário ministrado em 1957-58), p.171)

O sujeito da psicanálise se estruturaria pela matriz das relações normativas da heterossexualidade. A passagem pelo Édipo "normalizaria" e "humanizaria" o sujeito, tornando as espécies de sexualidade, de gênero e de família, como estrutura fundamental de socialização, estruturas correspondentes e comensuráveis. Os casos de incoerência, incongruência ou disparidade conduzem à ilação clínica de que o sujeito não atravessou adequadamente o Complexo Édipo. Guardadas as proporções do contra-argumento de que a psicanálise universaliza a condição patológica da sexualidade, de que a própria pulsão é perversa e múltipla do ponto de vista de suas formas, ainda assim o processo de dedução das formas clínicas parte da neurose, passa pela perversão e chega na psicose. O movimento clínico crucial que atestaria essa passagem é a localização do falo no campo do Outro, operação realizada por meio da metáfora paterna, no interior do qual o significante do Nome-do-Pai faz função fundamental. Butler (2003/1990Butler, J. (2003). Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade (R. Aguiar, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. (Originalmente publicado em 1990), 2004)Butler, J. (2004). Undoing gender. New York and London: Routledge recusa esta concepção do Complexo de Édipo, cujo desfecho é a formação de uma identificação de gênero, uma escolha de objeto e uma neurotização do desejo pela fantasia. A teoria lacaniana da constituição do sujeito é apenas um caso invertido e mais tolerante da "norma heterossexual".

No Lacan dos anos 1953-1960, a ordem simbólica, como estrutura de representações baseadas na linguagem, regula o sexo, fundando suas diferentes posições, masculina e feminina, a partir de um significante fálico. A constituição da identidade sexual depende da submissão à castração simbólica e da passagem pelo drama edípico. A diferença sexual se daria a partir da instituição do falo como significante, como representante da falta produzida pela castração. "Ser o falo" referir-se-ia à posição feminina. No homem, prevaleceria a dialética do "ter o falo" (Lacan, 1998/1958Lacan, J. (1998). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos (pp. 96-103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Comunicação feita em 1949), p.701).

Essa formulação parece se incluir perfeitamente bem como caso no qual a inteligibilidade do gênero implica enquadramento nas normas da heterossexualidade compulsória pautadas no falocentrismo. Butler recusa o postulado da binaridade dos sexos, expresso pela centralidade do falo como organizador único da sexualidade. Seu caráter ontológico, denunciado por expressões como ser, ter, falta-em-ser e por suas predicações conceituais como um significante impronunciável, constitui uma contradição intrínseca à estratégia lacaniana:

Em termos lacanianos, perguntar sobre o "ser" do gênero e/ou do sexo é confundir o próprio objetivo da teoria da linguagem em Lacan. O autor contesta a primazia dada à ontologia na metafísica ocidental e insiste na subordinação da pergunta "o que é?" à pergunta "como se institui e localiza o 'ser' por meio das práticas significantes da economia paterna?" (Butler, 2003/1990Butler, J. (2003). Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade (R. Aguiar, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. (Originalmente publicado em 1990), p.74)

O conceito lacaniano de simbólico justificaria, por meio de uma máscara lógico-formal, o caráter segregatório, valorativo e moral dos critérios de inteligibilidade normativa. "A ordem simbólica cria a inteligibilidade cultural por meio das posições mutuamente excludentes de 'ter' o falo (a posição dos homens) e 'ser' o falo (a posição paradoxal das mulheres)" (Butler, 2003/1990Butler, J. (2003). Problemas de gênero - feminismo e subversão da identidade (R. Aguiar, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. (Originalmente publicado em 1990), p.75).

O progresso cada vez mais formalista das teses de Lacan, a redução da significação a uma função lógica, por meio da incorporação das teses de G. Frege, o avanço rumo a uma teoria do poder derivada da estrutura quaternária dos discursos, simplesmente aprofundariam essa dificuldade inicial do pensamento lacaniano. E Butler conclui:

Ora, é preciso entender o drama do Simbólico, do desejo, da instituição da diferença sexual, como uma economia significante autônoma que detém o poder de demarcar e excluir o que pode e o que não pode ser pensado nos termos da inteligibilidade cultural (2003/1990, p.117-18).

Tal teorização parte do pressuposto equivocado de que há uma substância intrínseca aos gêneros, mesmo que deslocando o teor dessa substância para a linguagem e para a negatividade. O falo é concebido como uma referência universal a partir da qual as posições masculinas e femininas são dedutíveis. Obviamente, Butler vai contra as noções de diferença sexual e de simbólico propostas nesse momento da teoria lacaniana, já que alimentam a tese de que o que promove inteligibilidade seria o enquadramento nas normas da heterossexualidade compulsória.

O Impossível e o Contingente

Resta então saber, de acordo com Knudsen (2007, p.16)Knudsen, P. P. P. S. (2007). Gênero, psicanálise e Judith Butler: Do transexualismo à política (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo., se "a teoria psicanalítica permitiria incorporar novas formas de sexualidade, novos gêneros, que não se ativessem ao binarismo dominante em nossa sociedade, sem cair na patologia?". Para responder a essa pergunta, precisaríamos rever como a diferença, a negatividade e a universalidade poderiam se recombinar na produção social dos gêneros.

Gêneros ininteligíveis como a transexualidade, o travestismo, drag queens, são, antes de tudo, práticas sociais. Não são sintomas, nem desvios de uma sexualidade original e universalmente esperada. O que Butler percebe com menos clareza é que há em Lacan, desde seu início, uma crítica dos excessos da experiência identidade. Isso ocorre desde a teoria da formação do eu contida em O estádio do espelho como formador da função do eu, de 1936. Para Lacan, o caráter ontológico da identidade é uma ilusão imaginária. Depois disso, Lacan se interessará pela não-identidade do objeto da economia libidinal, chamado de objeto a, bem como pela experiência de corrosão da identidade que ele descreve com a categoria de gozo. Finamente, ele enfatizará a não identidade ontológica com seu conceito de Real, desenvolvido nos anos 1970 e decisivo para entender a sua nova teoria da sexuação.

Ora, se para Butler, identidade se opõe à diferença, sendo a diferença o conceito primário, para Lacan a diferença é secundária em relação à repetição e seus cruzamentos em termos de universalidade e existência. A pulsão, conceito tão importante para Butler, é um dispositivo de repetição, que opera em todos os modos de subjetivação: experiências de satisfação, de gozo, de trauma, de luto, de transferência, de identificação. Se levamos em conta o Seminário VII sobre a Ética da Psicanálise (1960), encontraremos um grande esforço de Lacan por articular a repetição como categoria simultaneamente lógica e moral. E a repetição, a deformação e a negação fundamentam simultaneamente gramáticas sociais de reconhecimento social e formas lógicas do desejo e do gozo. O Real em Lacan é dedutível do conceito de repetição. Lembremos que o gênero como performativo, segundo Butler, também é estritamente referido por gêneros discursivos baseados em espécies de repetição, como a paródia, a ironia, a citação e encenação. Quando um autor como Zizek (1999)Zizek, S. (1999). The ticklish subject: The absent centre of political ontology. London and New York: Verso. critica Butler por desconsiderar o registro do Real, tanto no contexto político de mudanças sociais quanto no escopo teórico da diferença sexual, o desencontro não poderia ser mais notável. Esse desencontro decorre do fato de que o Real em Lacan possui duas implementações lógico-topológicas: a primeira e mais conhecida é aquela que o articula com a modalidade do impossível. A segunda, não menos importante, mostrará que o Real para Lacan também é a contingência. Quando Butler critica Lacan, argumentando que os gêneros são performativos contingentes e que a retórica do impossível é apenas um efeito do estruturalismo transcendental, ela ignora, e é o que Zizek, - esse teórico engajado do ato contingente - quer fazê-la entender, que há em Lacan espaço justamente para incluir a pulsão como a teoria da geração da contingência. É certo que a doxa lacaniana aceitou bem melhor o Real como impossível do que o Real como contingente, assim como reduziu a teoria do ato analítico a um capítulo preparatório da teoria dos quatro discursos. Mas esses são justamente tipos de diferenças internas às psicanálises, nesse caso a psicanálise lacaniana, que Butler nos faculta perceber.

Para Butler, é justamente nas repetições performativas que pretendem materializar o corpo que algo subversivo escapa e pode vir à tona. O corpo não se presta à estabilidade e maleabilidade que o subordinariam, por completo, às normas. No corpo, a norma fracassa e, nesse fracasso, a norma aparece como contingência. Processo semelhante ao argumento de Bodies that matter (1993), no qual Butler exagera os operadores ontológicos da lógica simbólica-normativa ao extremo até que não funcionem mais como tal. Esse método, baseado no paroxismo da repetição, emerge do interior dos próprios códigos de legitimidade, abrindo espaço para estratégias de desmantelamento e reconfigurações interiores ao sistema simbólico e ao cenário social.

Zizek, em The ticklish subject (1999), argumenta que essa estratégia de abalo do simbólico teria seu potencial crítico superestimado. A subversão e as reconfigurações performativas que atingiriam o funcionamento do Outro só promoveriam mudanças parciais sem transformação da estrutura. Ao contrário, é possível que tais intervenções alimentem o funcionamento hegemônico do simbólico, fortalecendo a resistência. A reconfiguração do campo simbólico só seria proporcionada pelo ato ético, ou seja, "pela intervenção do real de um ato" (Zizek, 1999Zizek, S. (1999). The ticklish subject: The absent centre of political ontology. London and New York: Verso., p.262). Enquanto o ato da fala sustenta-se em normas simbólicas pré-estabelecidas e sobredeterminadas, entre o impossível e o necessário, o ato ético é contingente e possível, capaz de reordenar as coordenadas simbólicas pela intrusão do real. O ato implica em "correr o risco de uma suspensão momentânea do grande Outro, da rede sócio-simbólica que garante a identidade do sujeito; um ato autêntico ocorre quando o sujeito arrisca um gesto que deixa de ser coberto pelo grande Outro" (Zizek, 1999Zizek, S. (1999). The ticklish subject: The absent centre of political ontology. London and New York: Verso.,. p.264).

O ato ético, por sua imprevisibilidade, não irrompe calculadamente, nem é passível de planejamento. Para que os gêneros ininteligíveis possam ser reconhecidos em sua existência legítima, a sua identidade deve ser desconstruída. Isso abre a possibilidade de reconhecimento de uma "lacuna no Simbólico". No entanto, isso não demonstra ainda a existência de experiências que representam o fracasso da possibilidade de reconhecimento, ou seja, de experiências que ponham em evidência a limitação simbólica desse processo. A reformulação das nossas pretensões de reconhecimento, pela descoberta de que a própria faculdade de reconhecimento está sujeita à contingência no tempo e na história, ocorre por meio de atos, que antecipam ou derrogam o ordenamento atual da lei, evidenciando a ocorrência do impossível.

Sexuação

A concentração da crítica de Butler a Lacan no Simbólico revela que a filósofa opera com uma noção muito mais histórica e circunstanciada de Simbólico do que costumamos encontrar no lacanismo corrente. O Simbólico estrutural poderia ser contraposto a uma acepção mais pragmática e construtivista de Simbólico, ressignificando o estatuto teórico da diferença sexual. Segundo Zizek (1999, p.273)Zizek, S. (1999). The ticklish subject: The absent centre of political ontology. London and New York: Verso., o cerne do problema reside no fato de que Butler não teria levado em conta que, para Lacan, em seus seminários tardios, a diferença sexual nunca pode ser propriamente simbolizada ou traduzida em uma norma simbólica que fixa a identidade sexual do sujeito. O sexual começa a ser confrontado cada vez mais com o Real, de tal maneira que, em um movimento, aliás bastante butleriano, acaba por se colocar como sucedâneo do sentido e da significação, como se Lacan invertesse a ideia inicial de que toda significação é sexual, em toda sexualidade é indutora de significação. Ali onde o processo de simbolização-sexualização fracassa, fazendo ab-senso, surge o Real. A expressão diferença sexual pode então ser decomposta em diferença-Real e sexualidade-Simbólica. A diferença sexual deixa de ser uma duplicação da diferença significante e passa a ser referida a uma experiência não-identitária de gozo.

Essa ideia fica clara na noção de que os discursos, para Lacan (1968-1969), fazem uma espécie de contorno ao Real, sendo gerados pelas suas impossibilidades fundamentais: governar, educar, fazer desejar, analisar. No interior da teoria dos quatro discursos, desenvolvida entre 1966 e 1969, Lacan passa a designar o homem e a mulher como semblantes. E semblante é um lugar de discurso no qual se individualizam agentes pragmáticos de fala. Tal como personagens ou indivíduos que "parecem" como senhores de suas próprias falas, quando na verdade são falados pelo discurso no qual estão incluídos. É inegável que o conceito lacaniano de semblante, derivada da noção jakobsoniana de dominante de discurso e do dêixico na linguística da enunciação de Benveniste, é uma noção bastante próxima do que aparece na tradição anglo-saxônica de filosofia da linguagem como performativo. É, portanto, pelo real do ato, como contingência performativa, e não pelo real do discurso, como impossibilidade estrutural, que Lacan e Butler podem se aproximar.

Esse Real, como impossível de ser simbolizado, não inspira norma alguma, mas, ainda assim, precisa ser diferido de sua acepção como essência natural ou transcendente. Copjec (1994)Copjec, J. (1994). Read my desire-Lacan against the historicists. Cambridge MA and London: MIT Press. duvida que diferença sexual seja uma diferença especial, uma diferença que estabelece e cria outras diferenças, como o gênero cria suas espécies e famílias. A diferença sexual talvez pertença a um gênero diferente de diferença, quando a comparamos com a diferença de raça, a diferença cultural ou a diferença de classe social. Enquanto estas preservam a lei geral de transporte topológico de propriedades, que caracterizam os sistemas simbólicos formativos da Ordem Simbólica, a diferença sexual é uma espécie de caso particular da diferença, uma diferença sem família na qual possa ser incluída.

Copjec (1994)Copjec, J. (1994). Read my desire-Lacan against the historicists. Cambridge MA and London: MIT Press. compara as antinomias da razão e as fórmulas da sexuação de Lacan, desenvolvidas a partir de 1971. Longe da anatomia e dos papéis de gênero, a sexuação resulta das demandas lógicas do discurso. É impossível dizer porque a linguagem, esse sistema de reconhecimento de diferenças sexuais, falha. Existem, no entanto, dois modos de falhar: o modo masculino e o modo feminino. A não-estabilidade dos sexos, inclusive a sua não-identidade a si, não decorre do deslocamento dos termos nos quais a diferença sexual é significada. A sua não-inteligibilidade não decorre da infinitude da significação, permanentemente em processo. Copjec não interpreta a falha da linguagem como insuficiência para nomear um objeto pré-discursivo, mas como contradição que a linguagem carrega em si própria. O sexo coincide com essa falha e com esta contradição inevitável. Como se o sexo fosse uma identificação fracassada. É "a incompletude estrutural da linguagem, e não que o sexo seja em si mesmo incompleto" (Copjec, 1994Copjec, J. (1994). Read my desire-Lacan against the historicists. Cambridge MA and London: MIT Press., p.206). Copjec quer desubstancializar o sexo, tratá-lo como entidade vazia, enquanto Butler ainda o consagraria ao campo da linguagem:

Vinculando o sexo ao significante, ao processo de significação, Butler faz da nossa sexualidade algo que se comunica a outros. Enquanto o fato de que a comunicação, sendo um processo e, desta forma, contínuo, impede uma completa revelação do conhecimento num determinado momento, um conhecimento adicional, ainda assim, está colocado dentro do campo das possibilidades. Quando, pelo contrário, sexo é desvinculado do significante, ele se torna aquilo que não se comunica, aquilo que marca o sujeito como não podendo ser conhecido. Dizer que o sujeito é sexuado é dizer que não é mais possível ter qualquer conhecimento acerca dele ou dela. Sexo não tem outra função senão limitar a razão, remover o sujeito do campo da experiência possível ou do conhecimento puro. (Copjec, 1994Copjec, J. (1994). Read my desire-Lacan against the historicists. Cambridge MA and London: MIT Press., p.207)

Se o sexo não pertence à ordem significante, ele não pode ser desconstruído. O sentido sexual não deve ser revertido apenas em processos socais de sexualização do sentido mas, justamente, confrontado com a sua falta ou fracasso de sentido. Copjec chega a esse extremo em sua crítica a Butler:

Sexo é o que não pode ser falado pelo discurso; não é nenhum dos inúmeros significados que tentam dar conta dessa impossibilidade. Eliminado esse impasse radical do discurso, Problemas de gênero, apesar de toda sua fala sobre sexo, elimina o próprio sexo. (1994, p.211)

Butler erra justamente por circunscrever o sexo como um produto do simbólico, passível de resignificações histórico-culturais. Para Copjec (1994, p.207)Copjec, J. (1994). Read my desire-Lacan against the historicists. Cambridge MA and London: MIT Press., Lacan, ao introduzir a teoria da sexuação, seria mais subversivo que Butler. Ao pensar o sexo fora do simbólico, como incomensurabilidades entre modos de gozo, como se escreve no andar superior das fórmulas da sexuação, ele estaria derrogando o princípio do dualismo não em função de uma multitude de gêneros, mas pela impossibilidade de que os dois sexos façam um gênero. Os sexos se articulariam secundariamente com processos de subjetivação como a fantasia, a castração e o falo, como se escreve no andar inferior das fórmulas da sexuação. Segundo Knudsen, "ao se manter nesse nível de crítica, Butler teria sido deixada para trás por um Lacan, quando este saltou das identificações edípicas para as fórmulas da sexuação" (2007, p.17).

No seminário XX, ...mais, ainda (1985/1972-73), Lacan especifica a diferença sexual a partir da diferença entre o gozo masculino e o feminino. A crítica de que o dualismo se mantém porque no alto das fórmulas da sexuação, como que a dar-lhes títulos, Lacan escreve de um lado homem e de outro mulher, não se justifica. Como vimos, essas duas expressões são semblantes imaginários ou dêixicos performativos, exatamente como quer Butler. Eles definitivamente não se relacionam com as diferenças biológicas ou de gênero existentes entre homens e mulheres. A diferença sexual é não-abordável pela linguagem e, por isso, a linguagem tenta mimetizá-la. Lacan, então, recorre, nos seminários XVIII a XXI, a Frège, Cantor e Pierce, às categorias da lógica modal (necessário, contingente, possível e impossível) e da quantificação (quantificadores universal e existencial) para formalizar suas fórmulas da sexuação. No lado homem, há a proposição universal todo homem está submetido à ordem fálica em conjunção com a proposição particular negativa, há pelo menos um homem que não está submetido à ordem fálica. Esse ao menos um que escapa à lei é uma exceção necessária para que o conceito de universal se sustente. Mas ele se apresentará como um universal duplamente fraturado, tanto porque contém uma exceção subtrativa, quanto porque ele não consegue recobrir a diferença representada pelo Outro sexo. O ponto problemático das fórmulas, como apontou David-Ménard (1998)David-Ménard, M. (1998). As construções do universal: psicanálise, filosofia (C. P. Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud., é que elas são vazias sem uma antropologia de base que permita lê-las. Essa antropologia, sistematicamente evocada para explicar narrativamente o sentido das fórmulas, remete-nos a Totem e Tabu, o mito moderno proposto por Freud sobre a origem da civilização. Assim, a existência da exceção é imaginarizada na figura do pai da horda primeva no mito freudiano, sendo a identificação fracassa dos homens determinada por essa aspiração do "Um".

Do lado da mulher a proposição universal é negativa, sendo a negação incidente sobre o próprio quantificador universal e não sobre a função ou argumento que ele qualifica. Esse uso irregular da negação exprimiria o caráter não-todo e, portanto, não-todo inscritível do gozo feminino. Encontramos, assim, a referência lógico-antropológica possível ao campo não fálico, não toda a mulher está submetida à ordem fálica, ou seja, nem tudo de uma mulher está sujeito à lei do significante. A noção de não-todo estabelece algo fora do plano simbólico, sendo um operador relacional para designar o Real, assim como o não-sem que designa o Real da angústia, ou o operador ou-ou em vel, que designa o Real na fantasia. Na posição da particular afirmativa, Lacan estabelece uma dupla negação, do quantificador existencial e da função fálica: não existe mulher que não esteja submetida à ordem fálica. Não é possível encontrar ao menos uma mulher para quem a função fálica seja totalmente inoperante ou inaplicável. Isso soterra a crítica feminista trivial de que a psicanálise toma a mulher pejorativamente como um ser fora da linguagem. Não existe uma mulher que não tenha de se submeter à lei, contudo não há equivalente da exceção, como o pai da horda, no caso dos homens, o que faz com que as mulheres não formem um conjunto finito. Em termos butlerianos, a mulher se torna um gênero ininteligível. E, sem um gênero, o outro se dissolve em uma mera espécie sem par.

O aforismo lacaniano "A mulher não existe" (1985/1972-73) denota que não há um significante próprio que represente as mulheres como um conjunto em totalidade. Não há o universal das mulheres, como acontece do lado dos homens. A feminilidade não é marcada pela incompletude, mas pela inconsistência de um conjunto lógico. Diferença torna-se aqui dotada de duas propriedades novas: a indecibilidade de seu sentido e a indiscernibilidade de sua existência. De uma mulher não se deduzem as outras do conjunto, as mulheres devem ser tomadas uma a uma.

Como já foi dito, a mulher é não-toda inscrita na Ordem Simbólica, o que permite a Lacan acrescentar que "há algo a mais" (1985/1972- 1973, p.100). Esse "a mais" (en core) aponta àquilo que Lacan chama de Outro gozo - gozo para além do gozo fálico e que persegue um significante impossível de ser articulado. Contra a visão butleriana da psicanálise, as fórmulas da sexuação mostram que nem toda sexualidade é fálica ou simbolicamente ordenada, daí seu caráter plural. Para os semblantes homem e mulher, alocam-se heterossexuais, homossexuais, místicos, psicóticos, travestis etc. É porque a diferença sexual é real que ela não se fixa em identidades, que existem indeterminadas manifestações da sexualidade. Ainda assim, Butler argumenta que a diferença sexual em psicanálise se mantém refém da binaridade:

Me parece que o futuro simbólico será um no qual a feminilidade terá múltiplas possibilidades (...) para além da demanda de ser uma coisa, ou ter de ser condescendente a uma norma singular, uma norma determinada pelo falo-logocentrismo? Mas a base para se pensar a diferença sexual deve ser o binarismo para que a multiplicidade feminina emerja? Por que esta base não pode por si só se mover do binarismo em direção à multiplicidade? (2004, p.197)

Contra essa leitura butleriana da psicanálise, Copjec assevera: "de onde vem esta concepção de que a psicanálise opera nesta binaridade? Provém da ideia de que as categorias de homem e mulher são complementares, que estabelecem relações de reciprocidade e de que um depende do outro (1994, p.202)". Daí Lacan reiteradamente apontar que "A relação sexual não existe" (1985/1972-73) - heterossexista é a crença de que a relação sexual existe!

Cada lado das fórmulas descreve um diferente impasse, a função fálica produz uma falha dos dois lados, e cada um lida com ele de uma forma. Isso se evidencia a respeito do quantificador universal todo nas fórmulas da sexuação, que não atua no lado homem e no lado mulher da mesma forma. Enquanto o conjunto das mulheres é impossível, o conjunto do homem é possível com a condição de que alguma coisa seja excluída dele. Dessa forma, o conjunto dos homens é uma ilusão fomentada por uma proibição. Os conjuntos não são complementares, não formam um meta-conjunto, ou seja, um gênero com duas espécies, ou uma família com dois gêneros. A relação sexual falha por dois motivos diferentes: no plano lógico, porque é impossível; no plano antropológico, porque é proibida. Mas, ao contrário do argumento lacaniano anterior que sobrepunha o dualismo significante às duas posições relativas ao falo, aqui o Real não se articula com seus representantes ou designados semblantes. As duas falhas não fazem um todo (Copjec, 1994Copjec, J. (1994). Read my desire-Lacan against the historicists. Cambridge MA and London: MIT Press., p.234-35).

Butler com Lacan

A ênfase nos aforismos "A mulher não existe" e "A relação sexual não existe", elaborados a partir do seminário XVIII, permite pensar a diferença sexual tendo em conta o registro do Real e, consequentemente, permite perguntar pela plausibilidade de reconstruir ideias butlerianas à luz de um lacanismo renovado. Drucilla Cornell utiliza justamente o aforismo lacaniano "A mulher não existe" para pensar possíveis desdobramentos de teses de Butler. Para Cornell (1995)Cornell, D. (1995). Rethinking the time of feminism. In S. Benhabib, J. Butler, D. Cornell & N. Fraiser (Eds.), Femininst contentions: A philosofical exchange (pp. 145-157). New York and London: Routledge., Lacan pode ser útil ao feminismo porque seus aportes teóricos apontam para o reconhecimento das diferenças entre as mulheres, legitimando-as. Ele pode servir para rebater críticas feitas pelas próprias feministas a elas mesmas de que certas teorias se orientam na norma heterossexual, branca, classe média, tendo dificuldade de abarcar outros referentes, como raça, por exemplo, nas categorizações de mulher. Coincidentemente essa preocupação é expressa pela própria Butler:

Esse gesto globalizante [universalidade da identidade feminina] gerou um certo número de críticas da parte das mulheres que afirmam ser a categoria das "mulheres" normativa e excludente, invocada enquanto as dimensões não marcadas do privilégio de classe e de raça permanecem intactas. Em outras palavras, a insistência sobre a coerência e unidade da categoria das mulheres rejeitou efetivamente a multiplicidade das interseções culturais, sociais, políticas em que é construído o espectro concreto das "mulheres". (2003/1990, p. 34-35)

Segundo Cornell (1995)Cornell, D. (1995). Rethinking the time of feminism. In S. Benhabib, J. Butler, D. Cornell & N. Fraiser (Eds.), Femininst contentions: A philosofical exchange (pp. 145-157). New York and London: Routledge., é fundamental questionar o sistema simbólico que constrói o que se entende por mulher a partir de imagens ou fantasias que acabam por relegá-las à hierarquia de gênero e às normas heterossexuais. A psicanálise lacaniana é útil por apresentar instrumentos que auxiliam a crítica a essa realidade social, fornece elementos para ir além das fantasias ou imagens associadas à mulher. Cornell parece partidária da desidentificação, assim como Butler. Deve-se ir contra a proposta do fortalecimento da identidade feminina. O problema maior é como pensar o reconhecimento e legitimação das diferenças existentes dentro do universo das mulheres. O aforismo lacaniano "A mulher não existe" é interessante por fornecer o aporte teórico para essa empreitada. Não há o significante d'A mulher fixado na ordem simbólica. Nenhuma representação da mulher abarca o que sejam as mulheres, pois elas não se estabilizam como significante. A mulher surge como uma categoria intrinsecamente crítica da lógica da identidade, como queria Butler. Ficamos então entre as múltiplas identificações em Butler e nenhuma identificação em Lacan. A mulher como gênero-categórico deve ser refutada. Mulher é uma construção normativa que promove a ilusão de uma identidade de que tanto Butler quanto Lacan denunciam a precariedade. É só a partir da conceituação de que a mulher não pode existir que as construções históricas referentes às mulheres podem mudar.

O deslocamento do conceito de diferença sexual sob o prisma do registro do Real estabelece um diálogo que retorna ao que a própria Butler via no conceito freudiano de pulsão. A rejeição do essencialismo, sem a indeterminação nominalista permite combater a ideia comum de que o sexo biológico determina o gênero. Em Undoing gender (2004), Butler, recusa a tese de que o gênero é mera construção cultural. Se, em Problemas de gênero (2003/1990), ela pensava que a teoria da diferença sexual era uma teoria da heterossexualidade, agora ela tenta acomodar a diferença sexual à sua incorporação do conceito de pulsão.

Da maneira que entendo, a diferença sexual é o locus em que a questão concernente à relação do biológico ao cultural é colocada e recolocada, onde precisa ser colocada, mas não pode, estritamente falando, ser respondida. É entendido como um conceito limite. "Diferença sexual" tem dimensões psíquicas, somáticas e sociais que praticamente não desabam uma na outra, mas que nem por isso são finalmente distintas. (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. New York and London: Routledge, p.186)

A partir dessa concepção de diferença sexual, entende-se por "gênero aquela parte da diferença sexual que aparece como o social (gênero seria assim o extremo do social da diferença sexual), referente às visões construídas socialmente sobre a masculinidade e a feminilidade" (2004, p.185). Gênero traduz a diferença sexual, mas a diferença sexual não se transcreve inteiramente em diferenças de gênero. A diferença sexual não se reduz ao psíquico nem ao social. Não se sabe onde os fatores biológico, psíquico, social e discursivo começam, nem até onde vão para o estabelecimento da diferença sexual (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. New York and London: Routledge, p. 185).

Diferença sexual teria então um estatuto ontológico? Seria construída? Parcialmente construída? Apesar de Butler nunca ter estabelecido tal aproximação, a ideia de diferença sexual pulsional nos parece ser compatível com a diferença sexual real de Lacan, inassimilável pela linguagem, irredutível ao corpo e ao social. Semblante de gênero sem espécie, espécie de gozo sem família, a noção lacaniana de mulher ainda pode interessar à teoria feminista.

  • 1
    Convencionou-se chamar de estudos queer aqueles que apontam para as estruturas de poder e de dominação que estabelecem os padrões de aceitabilidade e rejeição de identidades sexuais. A teoria queer incita que as práticas sexuais não-normativas funcionem como formas de resistência simbólicas e políticas, tencionando transformações sociais.

Referências

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  • Lacan, J. (1999). O seminário, Livro 5: As formações do inconsciente Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário ministrado em 1957-58)
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2014
  • Aceito
    26 Maio 2016
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