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Tornar-se Pai: A Paternidade como Inscrição Subjetiva da Finitude

Becoming a Father: Parenthood as a Subjective Inscription of Finitude

Resumo

Este estudo investigou a experiência subjetiva da paternidade em dois momentos do desenvolvimento, no sexto mês e ao final do segundo ano de vida da criança. Participaram do estudo três pais primíparos, com idade de 30 a 45 anos e escolaridade de ensino superior. Utilizou-se um delineamento de estudo de caso coletivo, de caráter longitudinal, em que os pais responderam a entrevistas nos dois momentos propostos. As entrevistas foram analisadas com base na teoria psicanalítica. Os resultados corroboraram a expectativa de que tornar-se pai estaria associado à inscrição subjetiva da finitude. Esse processo indica um movimento intrínseco à paternidade, exigindo renúncias e lutos dos pais, movimento que permitiu o bebê ser tomado como objeto de desejo paterno.

Palavras-chave:
relações pais-criança; paternidade; teoria psicanalítica

Abstract

This study aimed to investigate the subjective experience of fatherhood at two moments of the baby’s development, on the sixth month and at the end of the second year of the child's life. We used a longitudinal multiple case study design. Three primiparous fathers took part in this study. Data were collected on the sixth month and at the end of the second year of the child's life. Each father answered an interview and their responses were analysed based on psychoanalytic theory. Becoming a father was associated with the subjective inscription of finitude, demanding resignations and grief by the fathers, a process that allows the baby to be taken as the object of paternal desire.

Keywords:
parent child relationship; fatherhood; psychoanalytic theory

Questões sobre a paternidade têm sido investigadas por autores de diversas perspectivas teóricas, entre essas a psicanálise, a partir da qual se embasa o presente estudo. Desse modo, baseando-se no referencial psicanalítico, considera-se que a transição para a paternidade abarca diversas dimensões na vida de um homem, incluindo uma experiência subjetiva referente a aspectos subjetivos conscientes e inconscientes associados ao processo de vir a ser pai (Houzel, 2004Houzel, D. (2004). As implicações da parentalidade. In L. Solis-Ponton (Org.), Ser pai, ser mãe, parentalidade: Um desafio para o terceiro milênio (pp. 47-52). São Paulo: Casa do Psicólogo.).

Nesse cenário, Freud (1914/2004Freud, S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (Vol. 1, pp. 95-131). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1914)) considerou que o amor parental pelo filho possibilita que seja atribuída à criança toda sorte de perfeição, bem como sejam ocultados todos os seus defeitos, por conta do ressurgimento daquilo que ele descreveu como narcisismo. A respeito disso, segundo Lacan (1981/2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar . (Original publicado em 1981)), antes do bebê voltar-se para objetos exteriores, existiria um período de autoerotismo primordial. No desenvolvimento psicossexual, o narcisismo sucede ao autoerotismo, permitindo que os investimentos pulsionais tomem o eu como objeto. No entanto, para Freud (1914/2004Freud, S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (Vol. 1, pp. 95-131). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1914)), as exigências da realidade impõem ao indivíduo o abandono desse narcisismo primário, sendo por meio do filho que o narcisismo parental pode ressurgir. Nesse sentido, as atitudes parentais afetuosas com seus bebês são uma reprodução, bem como uma revivência do narcisismo infantil há muito tempo abdicado.

O comovente amor parental espera que o filho satisfaça os desejos e sonhos nunca alcançados por sua mãe e pai, sendo a criança uma possibilidade de realização dos ideais infantis abandonados por seus genitores. Esses tendem a dispensar o bebê das obrigações impostas pelas aquisições culturais que eles tiveram que acatar durante a vida. Ao filho, é outorgado melhor sorte que os genitores, não devendo ser submetido às mesmas restrições que esses tiveram que passar. Com efeito, o bebê torna-se o novo centro do mundo, aquilo que Freud (1914/2004Freud, S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (Vol. 1, pp. 95-131). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1914)) chamou de “His Majesty the Baby”.

Ao encontro disso, Rodulfo (1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.) compreendeu que, com a chegada de uma criança, comumente essa é significada como podendo conseguir tudo o que seus genitores não conseguiram. Esse fenômeno é chamado de falicização, ou seja, transferência de intenso narcisismo, cessão de libido narcisista, possibilitando uma alteração do destino narcísico parental. É apenas quando o bebê é falicizado que ele pode estruturar-se subjetivamente e tornar-se sujeito, visto que esse aspecto implica que o bebê é marcado pelo desejo parental. Além disso, Rodulfo (1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.) ressaltou que a falicização do bebê não se restringe às mães, sendo que os pais1 1 Ainda que em português o termo pais refira-se tanto ao pai quanto à mãe, no presente estudo o termo será empregado apenas para se referir ao genitor masculino, enquanto os termos pai(s) e mãe(s) e genitores serão utilizados para se referir a ambos. também realizam essa operação simbólica.

Nesse contexto, o autor esclareceu que usualmente, com o nascimento de um filho, os pais podem passar por dificuldades, uma vez que a falicização demanda do homem desinvestir de si, especialmente no que se refere ao lugar de bebê maravilhoso e imortal que ocupava frente ao desejo de seus próprios genitores. Assim, conceder o estatuto fálico ao filho pode ser experienciado como uma perda, produzindo lutos, havendo, com isso, uma relação entre a inscrição subjetiva como pai e a morte. De modo semelhante, Penot (1991Penot, L. (1991). Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional: Quando a alienação faz falta. In M. Penot (Org.), O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas (pp. 31-48). Salvador: Ágalma.) assinalou que é necessário que tanto o pai, como a mãe possam olhar para a criança e investi-la libidinalmente. Para essa autora, é apenas quando aquele que olha o bebê e o toma como aquilo que lhe falta, isto é, como objeto de desejo, que a criança pode ser falicizada, sendo situada nesse olhar como o objeto perdido.

Na mesma perspectiva, Leclaire (1977Leclaire, S. (1977). Mate-se uma criança. Rio de Janeiro: Zahar .) destacou que a primeira morte que é imposta a todos é a da representação narcísica primária, isto é, a representação da criança maravilhosa, aquela que vem a fim de realizar os anseios e desejos daqueles que a conceberam. Para esse autor, a vida apenas é possível pela sucessiva morte dessa representação, a qual, no entanto, é impossível de se realizar totalmente, na medida em que é uma representação inconsciente e, portanto, indelével. Com isso, cabe a cada pessoa a tarefa de matar e realizar o luto da criança maravilhosa que poderia ter sido, isto é, haver-se com a sua própria castração.

Esses aspectos foram contemplados por Chevalerias (2005Chevalerias, M. P. (2005). O homem, o filho, o amante: As diferentes figuras do pai em torno do nascimento. In M. D. Moura (Org.), Psicanálise e hospital - Novas versões do pai: Reprodução assistida e UTI-4 (pp. 21-32). Belo Horizonte: Autêntica/FCH-FUMEC.) em seu estudo realizado com um pai primíparo, no qual foi investigado o processo de tornar-se pai. Os relatos indicaram que a paternidade convocou o homem a reaver as suas diferentes posições psíquicas. O conjunto dos dados examinados revelou que, ao tornar-se pai, o caso analisado passou por uma perda de seu estado infantil, havendo-se com sua condição de mortal. Assim, entende-se que o acesso à condição de pai pode levar o homem a um questionamento sobre seus investimentos psíquicos, demandando dele encontrar um novo equilíbrio para sua vida pulsional.

Ao encontro dessas ideias, Hurstel (1999Hurstel, F. (1999). As novas fronteiras da paternidade. Campinas: Papirus.) afirmou que uma pessoa somente pode ocupar um lugar simbólico na cadeia intergeracional, sendo que, ao tornar-se pai, é necessário haver uma permutação simbólica. Apesar de permanecer filho de seu próprio pai, o novo pai precisa passar adiante o seu lugar, ocupando o lugar no qual sua mortalidade está inscrita, uma vez que passou a ser apenas um elo transitório, deixando de ser o fim da cadeia intergeracional. Com isso, a permutação simbólica impõe renúncias e um processo de luto ao pai (Hurstel, 1999Hurstel, F. (1999). As novas fronteiras da paternidade. Campinas: Papirus.). Essa mesma autora, em um estudo posterior (Hurstel, 2006Hurstel, F. (2006). “L'annonce faite au mari” ou les trois temps du “devenir père”. Adolescence, 24(55), 79-89.), acompanhou o caso de um pai que estava às voltas com os impasses associados à espera de seu primeiro filho. Nesse caso, o complexo trabalho psíquico de tornar-se pai também foi associado à finitude e ao remanejamento pulsional. Por sua vez, o sofrimento advindo desse remanejamento, como ilustrado neste estudo, pode ser inclusive recalcado e denegado (Hurstel, 2006Hurstel, F. (2006). “L'annonce faite au mari” ou les trois temps du “devenir père”. Adolescence, 24(55), 79-89.).

A respeito disso, conforme Freud (1925/2007Freud, S. (2007). A Negativa. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. III., pp.146-157). Rio de Janeiro: Imago . (Original publicado em 1925)), a denegação (Verneinung) consiste, essencialmente, numa operação de negação de um representante ideativo recalcado, permitindo com que esse tenha acesso à consciência. Com isso, o conteúdo recalcado torna-se acessível de modo estritamente intelectual, permanecendo separado de seu conteúdo afetivo. Acerca disso, conforme Hyppolite (1966/1998Hyppolite, J. (1998). Comentário sobre a Verneinung de Freud. In J. Lacan, Escritos(pp. 843-902). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1966)), o eu, por meio de uma fórmula negativa, procura deter o inconsciente, no entanto, nesse não há negação.

Cabe, ainda, ressaltar que, tradicionalmente, poucas investigações dedicaram-se à problemática do tornar-se pai, existindo uma carência de estudos a respeito dessa temática. Particularmente, no tocante aos aspectos subjetivos da paternidade, os estudos são ainda mais incipientes (Jager & Bottoli, 2011Jager, M. E., & Bottoli, C. (2011). Paternidade: Vivência do primeiro filho e mudanças familiares. Psicologia: Teoria e Prática, 13(1), 141-153. ; Houzel, 2004Houzel, D. (2004). As implicações da parentalidade. In L. Solis-Ponton (Org.), Ser pai, ser mãe, parentalidade: Um desafio para o terceiro milênio (pp. 47-52). São Paulo: Casa do Psicólogo.). Isso também acontece no contexto brasileiro, embora a experiência subjetiva da paternidade tenha sido pesquisada em algumas situações e etapas do desenvolvimento dos filhos.

Por exemplo, um desses estudos investigou a transição da paternidade de 20 pais, da gestação ao segundo mês de vida do bebê (Krob, Piccinini, & Silva, 2009Krob, A., Piccinini, C. A., & Silva, M. R. (2009) A transição para a paternidade: Da gestação ao segundo mês de vida do bebê. Psicologia USP, 20(2), 269-291.). Os pais relataram sentimentos ambivalentes sobre a experiência da paternidade, expressando algumas dificuldades diante das mudanças e adaptações que o processo de tornar-se pai os convocava. Já o estudo de Gonçalves, Guimarães, Silva, Lopes e Piccinini (2013Gonçalves, T. R., Guimarães, L. E., Silva, M. R., Lopes, R. C. S., & Piccinini, C. A. (2013). Experiência da paternidade aos três meses do bebê. Psicologia: Reflexão e Crítica, 26(3), 599-608.), investigou a experiência da paternidade em 38 pais primíparos aos três meses de vida de seus filhos. Os resultados ressaltaram ocorrer certo remanejamento psíquico com os participantes ao longo dos três primeiros meses de vida do filho. Os resultados também revelaram que os pais procuravam equilibrar as perdas e ganhos decorridos da paternidade, redimensionando a vida afetiva de modo a incluir o filho.

No estudo de Cherer, Ferrari e Piccinini (2016Cherer, E. Q., Ferrari, A. F. & Piccinini, C. A. (2016). A amamentação e o desmame no processo de tornar-se pai. Estilos da Clínica, 21(1), 12-29.), os aspectos subjetivos do tornar-se pai foram investigados particularmente em relação à amamentação e ao desmame do filho. O caso investigado ilustrou alguns dos elementos colocados pela psicanálise sobre a experiência paterna enquanto terceiro na relação mãe-bebê. A fim de investir o bebê falicamente, o pai daquele estudo rivalizava com sua esposa no tocante à criança. No entanto, a relação corporal mãe-bebê, evidenciada essencialmente pela amamentação, dificultava a inserção paterna enquanto terceiro.

A partir desses aspectos, pode-se compreender que embora a paternidade possa estar associada à assunção da virilidade e da realização de identificações com seu próprio pai, essa também pode ser experienciada como uma crise, o que foi nomeado por De Neuter (2001De Neuter, P. (2001). Malaises et mal-être dans la paternité. Cliniques Méditerranéennes, 63, 49-69.) de mal-estar na paternidade. Para esse autor, os reposicionamentos psíquicos exigidos de um homem ao tornar-se pai podem afetá-lo em diversos aspectos de sua vida. Com efeito, a paternidade provoca muitas mudanças naqueles que a vivenciam (Krob et al., 2009Krob, A., Piccinini, C. A., & Silva, M. R. (2009) A transição para a paternidade: Da gestação ao segundo mês de vida do bebê. Psicologia USP, 20(2), 269-291.). É a partir dessas questões teóricas que o presente estudo foi delineado, tendo como objetivo investigar a experiência subjetiva da paternidade. Em particular, examinou-se o processo de tornar-se pai como inscrição subjetiva da finitude em dois momentos do desenvolvimento, no sexto mês e ao final do segundo ano de vida da criança.

Método

Participantes

Participaram deste estudo três pais que estavam passando pela primeira experiência da paternidade, os quais tinham idades entre 30 e 45 anos, com escolaridade de nível superior, dois profissionais liberais e um professor universitário. Os filhos nasceram a termo, sendo um menino e duas meninas, que residiam com mãe e pai. As mães tinham idades entre 29 e 33 anos, com escolaridade de nível superior e trabalhavam ou estudavam fora de casa. Todos os participantes foram selecionados de um estudo maior2 2 “Impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo infantil: estudo longitudinal do sexto mês de vida do bebê ao final dos anos pré-escolares” - CRESCI (Piccinini, Becker, Martins, Lopes, & Sperb, 2012). , que ainda está em andamento. Para fins do presente estudo, foram utilizados os três primeiros casos, acompanhados pelo primeiro autor e que ofereciam uma boa oportunidade de aprendizado (Stake, 1994Stake, R. E. (1994). Case Studies. In N. Denzin & Y. Lincoln (Eds.), Handbook of Qualitative Research (pp. 236-247). Londres: Sage.) sobre o tema investigado. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Protoc. N° 2010070) e pelo Comitê de Ética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Protoc. N° 100553).

Delineamento, Instrumentos e Procedimentos

Foi utilizado um delineamento de estudo de caso coletivo (Stake, 1994Stake, R. E. (1994). Case Studies. In N. Denzin & Y. Lincoln (Eds.), Handbook of Qualitative Research (pp. 236-247). Londres: Sage.), de caráter longitudinal, com entrevistas aplicadas aos pais em dois momentos do desenvolvimento, no sexto mês e ao final do segundo ano de vida da criança A primeira entrevista, denominada Entrevista sobre a gestação, parto e a paternidade (Núcleo de Infância e Família da Universidade do Rio Grande do Sul [NUDIF], 2011aNúcleo de Infância e Família da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (2011a). Entrevista sobre a gestação, o parto e a paternidade (Instrumento não publicado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), aborda longamente o processo de tornar-se pai, assim como a experiência subjetiva da paternidade, desde a descoberta da gravidez, até o momento da aplicação. Ela é constituída de sete blocos de questões, que investigam diversos temas, tais como a gravidez, o parto, os primeiros dias com o bebê, o dia-a-dia com o filho, a experiência de ser pai e a companheira como mãe. Já a segunda entrevista, denominada Entrevista sobre a paternidade (NUDIF, 2011bNúcleo de Infância e Família da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (2011b). Entrevista sobre a paternidade (Instrumento não publicado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.), trata-se da mesma entrevista descrita acima utilizada no sexto mês de vida do bebê, com as devidas adaptações para esse momento do desenvolvimento da criança. Para o presente estudo, recorreu-se também à Ficha de Dados Demográficos da Família (NUDIF, 2011cNúcleo de Infância e Família da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (2011c). Ficha de dados demográficos da família (Instrumento não publicado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), usada para caracterizar os participantes 3 3 Outros instrumentos foram usados com as famílias nesses dois momentos, com parte do Projeto CRESCI, detalhado em Piccinini et al. (2012). . As entrevistas foram realizadas pelo primeiro autor deste estudo, sendo gravadas em meio digital e transcritas posteriormente na íntegra.

Resultados e Discussão

Os relatos paternos foram analisados a partir da teoria psicanalítica, com vistas a investigar a experiência subjetiva da paternidade. Em particular, examinou-se o processo de tornar-se pai como inscrição subjetiva da finitude em dois momentos do desenvolvimento, no sexto mês e ao final do segundo ano de vida da criança. O procedimento de análise dos dados abrangeu a escuta do áudio em conjunto com a leitura do material transcrito, possibilitando melhor análise das verbalizações, de possíveis lapsos na fala, silêncio e incongruências que colaborassem para as interpretações dos autores. Especificamente, essa análise buscou não estar circunscrita aos conteúdos manifestos nos relatos dos pais, mas procurou ir além dos conteúdos conscientes, abarcando também aspectos subjacentes, por meio daquilo que Lacan (1975/2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar . (Original publicado em 1975)) chamou de “ler nas entrelinhas”.

A respeito disso, entende-se que é próprio do campo psicanalítico compreender que o discurso se desenvolve no registro do erro, do desconhecimento e da denegação, possibilitando, com isso, a irrupção da verdade subjacente (Lacan, 1975/2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar . (Original publicado em 1975)). Desse modo, foi por meio de uma escuta psicanalítica dos relatos que foi realizada a análise, considerando-se as eventuais formações do inconsciente e dos posicionamentos subjetivos revelados na linguagem, tudo isso embasado em uma reflexão da teoria psicanalítica.

Tomando por base esses pressupostos, apresenta-se a seguir, separadamente, as análises de cada um dos três casos que participaram do estudo, sendo ilustradas com as falas dos próprios pais4 4 Na dissertação de mestrado da qual o presente estudo deriva, são apresentados inúmeros outros exemplos dos relatos dos pais, os quais não foram incluídos no presente artigo, para reduzir sua extensão. Algumas falas também foram editadas aqui, tendo em vista as limitações editoriais, sem que isso comprometesse seu sentido original. . Ao final de cada caso será feita uma breve discussão, com uma síntese da compreensão dinâmica do caso, quando serão discutidas as particularidades de cada um dos pais. Por fim, será apresentada uma discussão geral dos resultados com base na literatura, destacando-se particularidades e semelhanças entre os casos.

Caso 1: Rodrigo5 5 Todos os nomes são fictícios, visando preservar a identidade dos envolvidos.

Rodrigo tinha 30 anos, era pós-graduado e foi entrevistado quando seu filho tinha seis meses e dois anos e um mês de idade. Ele e sua esposa se conheciam há 10 anos, no entanto, eram namorados há quase dois quando Rodrigo descobriu que ela estava grávida. A notícia da gestação foi recebida com surpresa e descrita como muito turbulenta. Rodrigo diz ter experimentado uma miscelânea de sentimentos ao descobrir que iria ser pai, ficando primeiramente apreensivo e nervoso. Conforme ele, o relacionamento com sua até então namorada mudou profundamente com a gravidez, à medida que passaram a morar juntos e a ter uma união estável. Assim, Rodrigo relatou que seu filho foi recebido num contexto de muito amor que, entretanto, demandou muito esforço dele e da mãe do bebê.

Com a gestação e o nascimento, Rodrigo contou ter passado por alterações nos mais diversos âmbitos de sua vida. Relatou o que seria, segundo ele, seu lugar de homem e de pai, os quais foram relacionados às atividades de apoiar a mãe, assim como de cuidar diretamente do bebê. Além disso, entende-se que Rodrigo foi convocado a passar por uma alteração de seu posicionamento subjetivo na cadeia intergeracional, pois, ainda que não fosse mais uma criança, ele se via convocado a ceder esse lugar: “Eu nunca tive contato com criança assim na minha família. Sempre eu era a criança da família”.

Nesse cenário, Rodrigo relatou como ele havia pensado sua paternidade antes do nascimento do bebê: “Eu imaginava que eu teria dificuldade. Mas eu acho que eu assimilei bem rápido, aquela coisa, eu acho do instinto paterno”. Entretanto, ao longo de seus relatos, Rodrigo expressou, por diversas vezes, ter passado por dificuldades ao tornar-se pai, associando a paternidade a uma responsabilidade, apesar de esforçar-se em apresentar aspectos que evidenciassem seu êxito e felicidade.

Ainda que em alguns momentos tenha exposto sentir-se feliz com a paternidade, Rodrigo, por diversas vezes, discorreu sobre as dificuldades em conciliar seus interesses pessoais e as novas responsabilidades adquiridas: “Bah! É complicado assim, é tudo muito corrido. Alguns hábitos assim, tu acaba jogando pra bobagem”. Desse modo, tornar-se pai e desempenhar os papéis parentais foi, para Rodrigo, caracterizado como uma responsabilidade, difícil, sobretudo nos primeiros meses. Esse processo demandou de Rodrigo ter que renunciar de atividades pessoais que lhe eram importantes, como o lazer, o descanso e os estudos.

Nos primeiros meses de vida de seu filho, Rodrigo ainda estava realizando um curso de pós-graduação e, com o nascimento do bebê, percebeu sua rotina de estudos afetada:

Eu estou fazendo uma especialização agora, fazendo a monografia, eu acabei no último dia assim pra enviar pro meu orientador. E eu até pensei assim ‘bah em outras épocas eu jamais teria feito isso’ (...) só agora que eu fiz a última prova, porque eu perdi o prazo. Coisas que eu com certeza não vou culpar o [filho] por isso, mas com certeza foi a rotina que fez com que eu esquecesse disso, porque em outra situação eu não teria esquecido.

Apesar de ter esquecido suas obrigações acadêmicas, à medida que preteria as demais atividades em favor do seu filho, Rodrigo não se esqueceu de associar esses ocorridos ao bebê. Na concepção de Rodrigo, ele não teria terminado sua monografia no último dia, assim como perdido o prazo de sua prova final em outro contexto. Com isso, compreende-se que a experiência da paternidade afetou a dinâmica com que Rodrigo estabelecia seus afazeres, dificultando sua organização. Além disso, ele implicitamente indicou que esses inconvenientes referentes à administração de seu tempo eram devidos à paternidade, os quais, em última análise, foram ocasionados por esse novo integrante familiar, a saber, o bebê. Entretanto, explicitamente, Rodrigo procurou não culpar seu filho, ainda que de modo denegatório o fizesse em seu relato.

Nessa perspectiva, Rodrigo prosseguiu discorrendo sobre o processo de adaptação à responsabilidade de ser pai apresentada por ele:

Eu estou me adaptando assim a essa coisa mais louca. Eu tô criando alguns mecanismos pra isso, meu outlook, minha visão de tudo. E assim vai, é mais uma questão de adaptação assim. Não posso chegar e dizer ‘bah tá bem pior do que era’, tá diferente.

Embora não tenha conseguido afirmar de modo manifesto que passou por mudanças que o fizeram avaliar sua vida como estando pior, Rodrigo o fez implicitamente. A paternidade demandou novos posicionamentos, os quais tiveram que ser forjados gradualmente, conforme a sua própria experiência. Com isso, a vinheta anterior indicou que, para Rodrigo, após o nascimento do bebê, sua qualidade de vida diminuiu. No entanto, ele expôs sua impossibilidade em assumir esse estado de insatisfação, o qual apenas pôde ser expresso de modo implícito e por meio do mecanismo da denegação.

Por sua vez, na entrevista realizada quando o filho tinha dois anos e um mês de idade, de modo semelhante aos seis meses do bebê, Rodrigo discorreu sobre a notícia da gestação, relatando ter passado por um momento surpreendente e importante, tendo ficado em estado de choque. Segundo ele, na manhã seguinte após o dia em que recebeu a notícia de sua companheira, ele sentiu-se diferente, como se fosse outra pessoa: “No outro dia acordei e sei lá, assim, parecia outra pessoa. Tranquilo, feliz, sempre quis ter ele. Assim, nunca ‘ah, não queria ter esse filho’, eu sempre quis tê-lo”.

Passados quase três anos do recebimento dessa notícia, percebe-se o quanto ela ainda repercutia em Rodrigo. De modo análogo, quando procurou não culpar o bebê sobre as dificuldades em sua rotina, assim como não admitiu que sua qualidade de vida tivesse diminuído, pode-se pensar que Rodrigo denegou não querer ter esse filho. Isto é, Rodrigo pode ter negado em seu discurso conteúdos que lhe eram penosos, desvinculando o afeto associado a esses. Esse caráter de negação de elementos indesejáveis, os quais possibilitam que esses conteúdos se manifestem na fala é, segundo Freud (1925/2007Freud, S. (2007). A Negativa. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. III., pp.146-157). Rio de Janeiro: Imago . (Original publicado em 1925)), efeito do próprio processo de denegação.

Apesar de ter o tempo com o bebê limitado por suas atividades profissionais, Rodrigo relatou que sentiu que, ao tornar-se pai, ocorreram muitas mudanças em sua vida, na medida em que o lazer e outras atividades tinham sido afetadas pela paternidade: “Na minha vida [mudou] muita coisa. A paternidade faz com que tu, o ritmo de vida que eu levava, eu tive que abrir mão de muita coisa”. A respeito disso, ele relatou que anteriormente costumava se encontrar muito com seus amigos em festas e jogos de futebol, atividades que tiveram que ser preteridas em função da nova configuração de sua vida, situação essa que não o agradou: “Isso pra mim é ruim, assim, de ter que aceitar, mas faz parte”.

Além disso, como indicado por Rodrigo diversas vezes, foi o nascimento do bebê que provocou a constituição dessa nova família, a qual não fazia parte dos seus planos naquele momento, demandando dele um novo posicionamento: “Antes eram outros compromissos, mas eu sempre tive a rotina meia louca assim né, em termos de tempo pra fazer as coisas. Só que antes era com coisas minhas e agora é com questões mais nossas”. Com a paternidade, a prioridade foi retirada das atividades pessoais, sendo colocada essencialmente na criança e nos cuidados que ela demandou. Além de relatar sempre ter tido uma rotina de trabalho intensa, Rodrigo contou passar a ter muitas outras atividades em função do bebê, expressando seu cansaço e necessidade de descanso: “Até porque, esse ritmo meu, se não tem descanso, uma hora o corpo acusa”.

Desse modo, para Rodrigo, a maior dificuldade concentrou-se nos momentos iniciais, sendo que, gradualmente, ele foi passando por mudanças internas, tornando-se pai e ocupando seu posicionamento parental. Esse processo, no entanto, foi promotor de sofrimento, diante do qual ele formulou recursos lenitivos: “Desde o ano passado, eu comecei a fazer jiu-jitsu, ao meio-dia, que é o horário que eu digo que eu sou dono do meu nariz, que é o único horário em que eu me governo”. Nesse contexto, Rodrigo expôs a experiência ambivalente em ser pai, a qual foi marcada por renúncias: “É divertido, às vezes é estressante. É uma mescla de sentimentos, eu acho que tudo no seu tempo assim né. E eu acho que eu já consegui lidar com essa situação de ter que abrir mão das minhas coisas”.

De modo semelhante ao referido por ele aos seis meses de seu filho, a experiência da paternidade foi relatada como tendo aspectos prazerosos, no entanto, permaneceu associada essencialmente à responsabilidade: “Bem, feliz, alegre e com muita responsabilidade. Todo mundo fala isso né, mas enquanto tu não é pai, tu não tem noção do que é, mas realmente, é uma função, digamos assim, que exige muita responsabilidade”.

Analisados conjuntamente, os relatos de Rodrigo indicam que as considerações sobre sua experiência subjetiva da paternidade foram, sobretudo, associadas aos remanejamentos e, por conseguinte, renúncias que ele se sentiu convocado a realizar. Com efeito, ele passou por diversas reestruturações em sua vida, desde as mais evidentes, concernente a morar com sua companheira, até os reposicionamentos subjetivos. Embora tenham expressado satisfação com a paternidade, os relatos de Rodrigo eram permeados por ambivalência, expressando o seu desconforto com as mudanças, visto que a paternidade o exigiu estruturar uma nova casa, bem como ser responsável pela criação de seu filho.

A sucessão dessas repercussões, ainda que implicitamente, foi associada a um decréscimo na qualidade de vida, o que pode ter motivado Rodrigo, de forma denegatória, a culpar seu filho por esse novo cenário. Até então, Rodrigo era a criança da família, tendo que renunciar muito de suas atividades e interesses pessoais em favor do filho. Desses elementos, depreende-se que, nesse caso, está em questão o processo de ceder um certo posicionamento infantil ao filho, lugar esse associado a privilégios. Distintamente, é a nova inscrição a que Rodrigo demonstrava ser convocado, a qual estava relacionada a restrições e limitações. Em outras palavras, ao investir subjetivamente em seu filho e tornar-se pai, Rodrigo deixara de ser a criança maravilhosa, inscrevendo-se subjetivamente numa outra posição que o fazia haver-se com diversas imposições da vida e com sua finitude.

Caso 2: Danilo

Danilo tinha 36 anos, ensino superior completo e foi entrevistado quando sua filha tinha seis meses e um ano e oito meses. A primeira entrevista foi realizada individualmente com Danilo, enquanto que a segunda foi feita na presença de sua filha. Ele estava com sua companheira há seis anos no momento da primeira entrevista. Na primeira entrevista, aos seis meses de sua filha, Danilo contou terem ocorrido diversas mudanças em sua vida desde o nascimento do bebê: “Mudou bastante coisa, né (risos). Primeiro assim, as coisas que a gente gostava de fazer, a gente praticamente não consegue mais fazer”. Especificamente, quanto às mudanças ocorridas em si, ele relatou existirem maiores responsabilidades com a paternidade, dedicando-se mais ao trabalho, pensando mais acerca do futuro e em continuar seus estudos: “Quando virei pai eu fiquei mais assim, como é que pode dizer (...) eu fiquei mais pensando no futuro né, em ter um planejamento melhor, assim né. Um pouco mais responsável”.

Entre essas mudanças, Danilo contou ter se preocupado durante o período gestacional se ele seria um bom pai. Esse questionamento permaneceu consigo ao longo dos seis primeiros meses. Nesse momento, Danilo ainda indagava sobre como seria sua paternidade, tendo relatado que seria um bom pai futuramente, apesar de provavelmente não acompanhar sua esposa e filha como supostamente deveria: “Eu tenho certeza que eu vou ser um bom pai, talvez eu não acompanhe do jeito que eu tenha que acompanhar, ajudar ali a [esposa] assim. Mas em relação à [filha], se precisar eu faço qualquer coisa”. Em contrapartida, Danilo queixou-se que a paternidade tornou a sua vida complicada, que a casa estava bagunçada, que sua esposa permanecia o dia cuidando da filha e que quando chegava em casa, ele cuidava da filha, liberando a esposa para realizar alguns afazeres domésticos, afirmando com isso: “A vida mudou de cabeça pra baixo”.

Esses relatos revelam que a paternidade para Danilo foi experienciada como algo que o exigia muito, implicando em renúncias no tocante à sua esposa, à organização do lar e ao tempo dedicado a suas próprias atividades de lazer. Enfim, demandou-lhe um remanejamento de seus investimentos e uma nova organização em sua vida como um todo:

Eu tô sentindo falta... eu gostava de filme, gostava de sair com a [esposa] pra jantar, pra uma festa que a gente sempre saía, na casa dos amigos, comer um churrasco. Gostava de chegar em casa, de ficar sem fazer nada, ficar um pouco sem fazer nada, assim. Gostava de dormir, não consigo mais dormir.

Nesse contexto, o temor de Danilo de não se tornar um bom pai pode estar associado a sua dificuldade em renunciar a coisas que gostava de fazer, isto é, à organização que costumava desfrutar em sua vida, abrangendo também seus posicionamentos subjetivos. Em alguma medida, a paternidade o convocava a aceitar as limitações e exigências da vida, das quais sua filha seria preservada ainda que inicialmente. Por conseguinte, o dilema de Danilo situou-se em que medida ele deveria se doar para sua filha, o que, segundo sua perspectiva, o tornaria um bom pai: “Eu sinto dificuldade de cansaço só (risos). Se não tivesse o cansaço, eu poderia ser muito melhor pai. Eu sei que eu poderia largar tudo de mão e ser exclusivo da [filha], mas não consigo fazer isso”.

Reconhecendo não conseguir entregar-se totalmente à sua filha, Danilo preservou parcialmente investimentos em si e em outros interesses, sendo que essa renúncia, ao lugar de uma suposta perfeição parental, possibilitou a ele deparar-se com suas próprias falhas e limitações. Tornar-se pai estava associado a conceder um lugar privilegiado à sua filha, o que, por sua vez, o inscrevia em um novo posicionamento que o convocava a renunciar a seus interesses, perceber-se enquanto limitado e finito. Embora tenha sido difícil para Danilo ceder esse lugar à sua filha, ele transitava rumo a esse novo posicionamento. Com isso, a paternidade de Danilo, aos seis meses da filha, foi experienciada de modo ambivalente, tendo ele se satisfeito em sua filha ao investi-la falicamente e, simultaneamente, sofrido em renunciar parte de seus demais interesses. Configuração essa que remanejava seus investimentos psíquicos: “Ao mesmo tempo que eu tô gostando de ser pai, eu tô assim... eu não tô gostando da vida que eu tô levando”.

Na segunda entrevista, realizada juntamente com sua filha de um ano e oito meses, Danilo relatou que a paternidade estava sendo mais prazerosa que na entrevista anterior, apesar de ainda implicar em dificuldades, na medida em que permanecia associada a renúncias: “Tá sendo bom né. Estou gostando cada vez mais, apesar da dificuldade né. Tu tem que abdicar de algumas coisas, mas em geral eu tô gostando. Eu não, não me arrependo assim de ter sido pai”. Entretanto, a partir desse relato, pode-se pensar que Danilo procurou negar seu arrependimento em ter se tornado pai. Para tanto, esse conteúdo, que seria indesejável conscientemente, apenas sobreveio em seu relato juntamente com uma partícula negatória, isto é, por meio do “não”. Em outras palavras, foi apenas antecipado pelo “não” que esses elementos puderam ser manifestos, dissociando-se de seu conteúdo afetivo e possibilitando a irrupção de tal conteúdo.

De modo semelhante aos relatos da primeira entrevista, o tornar-se pai, para Danilo, esteve associado à cessão de libido narcisista à sua filha, o que tornou a sua experiência da paternidade um processo penoso. Nesse contexto, Danilo relatou que a paternidade estava sendo mais difícil do que ele imaginava:

Mais difícil né (risadas). É porque até o cara ser pai, o cara acha que tudo é fácil né, olha pros outros. Mas depois que é [pai], é mais difícil. A tua vida daí é... a vida dela em primeiro lugar né, a tua já não vale mais (risada), a tua não tem mais. É tudo em função dela, mas é bom!

Assim, Danilo estabeleceu a relação entre o valor concedido à vida de sua filha e a sua, na medida em que investir falicamente em sua filha implicava em desinvestir diretamente de si, cedendo a ela a relevância que outrora ele desfrutava. Esse processo, de algum modo, surpreendeu Danilo, pois ele não esperava que a paternidade exigisse tantas abdicações em favor da filha: “Eu pensava que a minha vida ia continuar a mesma coisa assim. Só que, claro, eu sabia que ia mudar né, mas assim, agora já não durmo mais, durmo pouco”. Com isso, a paternidade efetivamente passou a ser o centro de sua vida, deslocando os demais âmbitos para uma posição menos privilegiada: “A rotina de ser pai agora é prioridade né. Então a tua rotina pessoal é quando sobra um tempinho”.

Especificamente quando questionado a respeito de como se sentia no que concerne à paternidade no momento da segunda entrevista, Danilo afirmou: “Eu me sinto neste momento muito bem! Acho que ainda poderia melhorar, mas eu me sinto, acho que eu sou um bom pai”. Diante dessa sua fala, pode-se se pensar em uma dupla insatisfação, a saber que a experiência da paternidade poderia ser melhor, assim como ele enquanto pai. Apesar de Danilo considerar-se um bom pai, ele retomou sentir-se em falta com a sua paternidade, sendo, em seguida, questionado acerca desse aspecto e assim respondido: “Poderia ser mais ativo, se eu fosse mais jovem (...) eu achei que eu poderia, teria mais pique assim, mas não tenho tanto”. Com isso, Danilo expressou acreditar ser diferente a paternidade na faixa dos vinte anos de idade do momento em que ele vivia, com seus trinta e seis anos. Afirmou sentir-se cansado e que sua maior dificuldade enquanto pai era precisar de mais paciência com sua esposa e sua filha, tendo ainda se descrito como um pai “nota sete”.

Analisados conjuntamente, os relatos de Danilo estavam relacionados especialmente ao reposicionamento subjetivo que a paternidade o demandou. Como pai, Danilo passou por um processo de desinvestir diretamente em si, para que, com isso, pudesse tomar a filha nesse lugar privilegiado que ele outrora desfrutou. Esse movimento e remanejamento não ocorreram sem sofrimento, sendo expresso, de modo manifesto, por meio das ambivalências quanto à experiência da paternidade. Nessa perspectiva, em sua fala, Danilo utilizava-se em grande parte do humor, modo pelo qual aparentemente procurava tornar mais anódino os lutos contidos em seu relato. Isso ocorreu, em especial, na segunda entrevista, a qual foi realizada estando sua filha presente. Assim, por diversas vezes, ao responder os questionamentos, ele se dirigia à filha e, em tom de humor, indicava que as decisões de sua vida passavam sempre por ela.

Caso 3: Guilherme

Guilherme tinha 45 anos e era pós-graduado, ele foi entrevistado quando sua filha tinha seis meses e um ano e seis meses. Ele e sua companheira se relacionavam há oito anos no momento da primeira entrevista. Referindo-se aos seis meses de convívio com sua filha, ele não associou a paternidade a grandes mudanças, apesar de ter relatado passar a possuir um maior senso de responsabilidade. Sua avaliação esteve relacionada ao seu emprego, pois Guilherme era professor universitário e sentia-se seguro em ter estabilidade financeira.

Diante disso, apenas contou dedicar menor tempo ao seu trabalho, bem como evitar viajar, a fim de que pudesse fazer parte do dia a dia de sua filha. Entretanto, ele também discorreu que sua produtividade no trabalho havia diminuído. Para Guilherme, sua produção profissional estava associada a ganhos pessoais, dos quais ele estaria, em parte, renunciando em favor de sua filha:

[A produção no trabalho] era uma coisa muito mais de retribuição pessoal, porque do lado financeiro não faz diferença nenhuma né, então era muito mais pessoal (...) então a produção caiu um pouquinho, mas nada que comprometa, mesmo tendo caído, ainda está acima do suficiente, mas eu não tô nem um pouco chateado com isso, porque tem a retribuição que é a convivência com a [filha] né, digamos assim.

A partir de seu relato, pode-se compreender que, implicitamente, Guilherme chateava-se em desfrutar menos intensamente de seu prazer com suas produções no trabalho, o que, por sua vez, suscitava a expectativa de que sua filha o proporcionasse uma satisfação semelhante, substituindo os ganhos narcísicos perdidos.

Embora reconhecesse as renúncias feitas, Guilherme relatou ter conseguido equilibrar ser pai com suas atividades profissionais: “Diminuiu um pouco a produtividade de artigos que eu escrevo ou a dedicação que eu dou pros meus alunos (...), [mas] eu acho que eu consigo dar conta das duas coisas”. Para ele, era importante haver uma conciliação entre a paternidade e o trabalho, pois ambos lhe proporcionavam satisfação e ganhos, desejando obter, inclusive, a compreensão futura de sua filha:

Fazer um balanço bom, entre a dedicação com a [filha] e a vida profissional daqui pra diante, porque eu acho que ela vai esperar isso, que ela possa se orgulhar dos pais, possa dizer ‘meu pai é um bom profissional, meu pai fez alguma coisa, meu pai contribuiu pra sociedade’.

Outro aspecto relatado por Guilherme foi o fato de que, desde a gravidez, ele e sua esposa passaram a sair menos, diminuindo as programações sociais: “Essa convivência social na gravidez mudou e agora totalmente, né. A vida social, assim, diminuiu muito”. As atividades que eram realizadas em casa, como os jantares e outros momentos do casal, também passaram por modificações, havendo uma mudança da relação conjugal entre ele e sua esposa: “Antes a gente dava atenção só um pro outro, agora tem a [filha], que eu acho que é quem ganha mais atenção, tanto minha, como dela [esposa]”.

Com isso, a vida de casal passou por uma reorganização, a partir da qual a filha tomou prioridade para Guilherme: “Mudou o foco para a bebê, mas digamos, o meu foco era muito mais nela [esposa], porque não tinha criança”. Grande parte dos investimentos psíquicos que estava no relacionamento do casal passou a ser direcionado à filha, que desde então regulava a dinâmica entre Guilherme e sua esposa: “Ela [filha] tem os horários dela, então a gente tem que se adaptar aos horários dela”.

Nesse cenário, Guilherme contou que os momentos dedicados apenas para ele e sua esposa diminuíram: “A gente nunca mais teve nós dois totalmente sozinhos (...), o tempo que nós ficamos completamente sozinhos diminuiu muito drasticamente”. Ao tomar sua filha como prioridade e desinvestir na relação amorosa com sua esposa, Guilherme implicitamente expressou sentir-se culpado, ainda que de forma denegatória: “Eu não diria talvez que eu me sinto culpado, digamos assim. Eu diria um pouco de preocupação assim, que de repente ter desviado um pouco da atenção que era pra minha esposa, ter desviado pra [filha]”.

Diante disso, tornar-se pai era experienciado por Guilherme como um desvio do seu trabalho e da relação com sua esposa, o que parecia ser ambivalente para ele, uma vez que investir em sua filha era vivido às custas de um desinvestimento, tanto dele e de seu trabalho, como de sua esposa e da relação conjugal.

Apesar de acreditar ser melhor que sua filha permanecesse apenas sob os cuidados parentais, Guilherme argumentou ser necessário liberar a si e, especialmente, sua esposa para dedicarem-se às suas atividades pessoais e ao trabalho: “Em função disso, pra liberar, principalmente pra [esposa], porque a carga pra mim é bem melhor, bem menor, a carga pra mim é bem menor”. A partir desse ato-falho, presente no relato de Guilherme, pode-se supor que sua carga era “menor” e ainda considerada como “melhor”.

Com efeito, existiam diferenças entre os lugares ocupados por ele e sua esposa frente ao bebê: “A carga, eu entendo, é bem maior pra mãe, então eu tento ajudar, mas pra algumas coisas, pra dar de mamar é a [esposa], não tem muito que eu possa fazer”. Embora Guilherme tenha relatado ser muito atencioso com sua esposa e assumir diversos cuidados com sua filha, seu envolvimento era “menor” quando comparado à sua esposa, diferenciando-se, sobretudo, de seu modo de se relacionar com a filha: “Eu sou mais de mimar a [filha], mais de encher ela de beijo e carinhos. Talvez é até meio estranho, porque eu sou homem, ela [esposa] é mulher”.

Na segunda entrevista, quando sua filha tinha um ano e seis meses, Guilherme discorreu que a paternidade tomava um espaço muito grande em sua vida, impossibilitando que ele trabalhasse nos horários que estava em casa:

Eu diria assim, que a rotina de pai tomou conta de um espaço muito grande (...) dar uma trabalhadinha agora não tem mais isso né. Isso não existe mais, mas digamos, eu já me resignei né, não resignar, mas já me adaptei, já aceitei mais do que resignar.

A paternidade o ocupava em quase todos os momentos fora do trabalho, limitando as demais atividades pessoais: “Então é uma rotina bastante grande a rotina de pai, o que eu não vou dizer que é ruim”. Com isso, de forma mais intensa que na primeira entrevista, a paternidade passou a ser relatada por Guilherme como essencialmente tomando muito de sua vida, impondo-lhe limitações, as quais eram vivenciadas por ele por meio de adaptações e resignações.

Embora ele procurasse demonstrar domínio sobre a situação, Guilherme expressou ter que aceitar as imposições advindas com a paternidade, a respeito das quais é plausível se supor que eram implicitamente vivenciadas como sendo ruins. Apesar disso, como na entrevista anterior, Guilherme afirmou estar conseguindo conciliar a paternidade com os demais interesses pessoais, uma vez que ser pai para ele esteve associado à satisfação e a ganhos narcísicos: “Eu acho que eu lidei bem, porque sinceramente eu gosto bastante da rotina de pai, não me importo, muito pelo contrário”.

Além disso, quando discorria acerca da rotina com sua filha, Guilherme relatou que ele e sua esposa assumiam todos os cuidados com o bebê, embora existissem algumas tarefas em que um dos cônjuges se ocupasse predominantemente. Tipicamente ele era responsável por dar banho e, em seguida, sua esposa por dar a mamadeira para a filha. Entretanto, como indicado por Guilherme, às vezes o casal invertia: “Daí eu coloco ela [filha] no berço e aí a gente começa a trabalhar em função da janta, mas pode um pouco inverter os papais, algumas vezes a minha esposa entra com ela no banho, aí eu vou vestir ela”. Com isso, pode-se pensar que, em alguns momentos, Guilherme desejava ocupar o lugar de sua esposa, trocando de lugar com ela, como indicado por seu ato-falho “trocando os papais”.

Analisando-se conjuntamente os relatos de Guilherme, pode-se compreender que, ao tornar-se pai, Guilherme passou por um processo de investir libidinalmente em sua filha, demandando um remanejamento pulsional de sua parte. Acerca disso, ele discorreu que devido à sua filha ele não conseguia mais trabalhar com o mesmo ritmo anterior, tendo diminuído seu investimento no trabalho e, por conseguinte, em suas produções acadêmicas. De forma semelhante, ocorreram mudanças na vida de casal, na qual o bebê passou a ser prioridade. Assim, com o nascimento, sua filha passou a ser seu “foco”, ganhando prioridade em relação à esposa. Essas mudanças foram associadas por Guilherme como sendo um desvio da relação, outrora estabelecida com sua esposa.

Além disso, a sua parte na parentalidade foi considerada “melhor”, visto que foi menos afetado em seu trabalho do que sua esposa, além de poder trocar de papéis e às vezes assumir um posicionamento mais materno frente ao bebê. A relação com sua filha foi considerada um “desvio” da sua relação conjugal, evidenciando o caráter incestuoso presente também na relação pai-bebê, uma vez que a filha era tomada como seu objeto de desejo ao ser falicizada por Guilherme.

Diante disso, esse pai evocou as mudanças ocorridas na intimidade do casal, visto o posicionamento da filha frente a ele e à sua esposa. Frente a esses elementos, considera-se que, ainda que Guilherme procurasse apaziguar os efeitos da paternidade em seu relato, foi propriamente por meio de um decréscimo dos investimentos em si, em seu trabalho e na relação conjugal que sua filha pôde ser falicizada por ele. Esse pai também demonstrou obter ganhos narcísicos na sua paternidade, aspecto esse que aparentava minimizar os efeitos da nova inscrição de Guilherme enquanto pai e, por sua vez, não mais como seu “foco”.

Considerações Finais

Este estudo investigou a experiência subjetiva da paternidade, tendo evidenciado, a partir dos três casos analisados, que a paternidade esteve, essencialmente, associada ao trabalho paterno em ceder o investimento narcísico ao filho que nasceu, sendo imposto, com isso, um reposicionamento subjetivo dos pais. Esses aspectos foram expressos nas modificações das atividades, reorganização dos horários dedicados aos interesses estritamente pessoais, mudanças na relação conjugal, entre outras alterações, a fim de que os pais pudessem se ocupar dos bebês.

Particularmente, o pai do Caso 1 (Rodrigo), ainda que encontrasse no filho satisfação, obteve grandes dificuldades nesse processo, as quais pareciam ser influenciadas pelos acontecimentos que a paternidade provocara, entre esses, a mudança no relacionamento com a mãe do bebê, bem como o fato de passar a ser pai. Ele relatou ser a criança da família antes de ser pai. Efetivamente, ao tornar-se pai, Rodrigo foi convocado a deixar de ser a criança da família, cedendo esse lugar de perfeição e imortalidade narcísica ao seu filho (Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977). Mate-se uma criança. Rio de Janeiro: Zahar .).

A respeito disso, compreende-se que é apenas por meio do assentimento de suas próprias falhas e finitude que se pode conferir ao filho o estatuto fálico do qual se foi renunciado (Rodulfo, 1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.). Apesar disso, Rodrigo repetidamente expressou a necessidade de ter tempo para suas próprias tarefas. Desse modo, o jiu-jitsu e as atividades de lazer que Rodrigo fazia, quando seu filho tinha dois anos, se assemelhavam em função do que foi descrito por Freud (1930/2012Freud, S. (2012). O mal-estar na cultura (Renato Zwick, trad.). Porto Alegre: L&PM. (Original publicado em 1930)) como recursos lenitivos, os quais são indispensáveis, a fim de se suportar os sofrimentos da vida. Esses aspectos podem ser pensados como intrínsecos à paternidade, isto é, assumir a responsabilidade por uma nova vida conduz o homem a se deparar com suas próprias condições enquanto mortal (Chevalerias, 2005Chevalerias, M. P. (2005). O homem, o filho, o amante: As diferentes figuras do pai em torno do nascimento. In M. D. Moura (Org.), Psicanálise e hospital - Novas versões do pai: Reprodução assistida e UTI-4 (pp. 21-32). Belo Horizonte: Autêntica/FCH-FUMEC.).

Semelhantemente, no Caso 2 (Danilo) o pai também indicou passar por esse processo. Ele tornou-se mais responsável, assim como passou a pensar mais no futuro, visto que tornar-se pai está associado a realizar um investimento narcísico para o futuro (Freud, 1900/1990). Apesar disso, conforme salientado por Rodulfo (1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.), esse investimento narcísico realizado pelos pais pode ser experienciado também como um luto. Desse modo, Danilo relatou não poder mais realizar muitas das atividades que gostava, passando a ser responsável por prover e cuidar da sobrevivência de sua filha, o que se organizava em detrimento de muitos de seus interesses pessoais.

Para Danilo, a paternidade foi promotora de intensas mudanças, o que era experienciado de modo ambivalente, visto que a paternidade era simultaneamente fonte de satisfação e de sofrimento (Hurstel, 2006Hurstel, F. (2006). “L'annonce faite au mari” ou les trois temps du “devenir père”. Adolescence, 24(55), 79-89.). Ter uma filha e advir à condição de pai parece ter conduzido Danilo a um remanejamento libidinal (Parseval, 1986Parseval, G. D. (1986). A parte do pai (T. C. Stummer, trad.). Porto Alegre: L&PM.), sendo que ele se questionou acerca de seus investimentos psíquicos e, desse modo, reorganizou sua vida pulsional. Sua filha passou a receber intensos investimentos narcísicos, fazendo com que Danilo sofresse em desinvestir de si e passasse a deparar-se mais com suas próprias limitações (Chevalerias, 2005Chevalerias, M. P. (2005). O homem, o filho, o amante: As diferentes figuras do pai em torno do nascimento. In M. D. Moura (Org.), Psicanálise e hospital - Novas versões do pai: Reprodução assistida e UTI-4 (pp. 21-32). Belo Horizonte: Autêntica/FCH-FUMEC.).

Assim, é plausível pensar que Danilo desinvestiu de sua representação como criança maravilhosa para poder oferecer esse lugar ao bebê (Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977). Mate-se uma criança. Rio de Janeiro: Zahar .), movimento esse que lhe era sofrido e, em alguma medida, relacionava-se ao seu temor em não ser um bom pai. No entanto, como expressado por ele, era impossível desfazer-se totalmente desse investimento em si.

De acordo com Leclaire (1977Leclaire, S. (1977). Mate-se uma criança. Rio de Janeiro: Zahar .), a representação da criança maravilhosa seria indelével, convocando o indivíduo constantemente a matá-la, ainda que nada efetivamente o faça, uma vez que essa morte implicaria na própria morte do sujeito. De fato, Freud (1917/2004Freud, S. (2004). Luto e Melancolia. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. 1, pp. 99-122). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1917)) afirmou que o ser humano não desocupa de bom grado de uma posição libidinal uma vez ocupada. Desse modo, com o reposicionamento subjetivo ocasionado pela renúncia de permanecer a criança maravilhosa, Danilo deparava-se com suas próprias limitações, frustrando-se por não gozar mais desse lugar.

Nesse sentido, Danilo se descreveu como um “pai nota sete”, apresentando falhas, as quais também foram essenciais para a falicização da filha, isto é, a ela foi conferido o estatuto fálico (Rodulfo, 1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.). Com efeito, foi por meio desse movimento de não perfeição que Danilo cedeu esse lugar de majestade à filha, possibilitando com que ele a investisse libidinalmente e a tomasse como a criança magnífica (Penot, 1991Penot, L. (1991). Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional: Quando a alienação faz falta. In M. Penot (Org.), O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas (pp. 31-48). Salvador: Ágalma.). Assim sendo, as renúncias associadas à paternidade e às limitações como pai caracterizaram a experiência subjetiva da paternidade de Danilo.

Esses aspectos podem ser pensados, neste estudo, como fundamentais do homem ao tornar-se pai, visto que, distintamente de um ideal, Danilo sentiu-se aquém em sua paternidade e foi insuficiente à sua filha, ou seja, expressou também ser marcado pela castração (Hurstel, 1999Hurstel, F. (1999). As novas fronteiras da paternidade. Campinas: Papirus.), aspectos que também podem ser pensados como pertencentes aos demais casos. Desse modo, para que os pais deste estudo pudessem tomar seus filhos como objeto fálico, foi necessário que eles se deparassem com suas limitações e finitudes, tendo o narcisismo primário, do qual eles desfrutaram outrora, repousado em seus filhos, os quais eram preservados, ainda que inicialmente, das exigências que a vida impõe, aludindo àquilo que Freud (1914/2004Freud, S. (2004). À guisa de introdução ao narcisismo. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (Vol. 1, pp. 95-131). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1914)) chamou de “sua majestade o bebê”.

Por sua vez, o Caso 3 (Guilherme), em seu relato, minimizou os efeitos desse processo, ainda que tenha indicado ter de renunciar de outros interesses, como a produção acadêmica e a relação conjugal, a fim de que pudesse investir no bebê. Todavia, conteúdos contraditórios surgiam por meio dos atos-falhos e do discurso denegatório. Dessa forma, os pais além de expressarem o desconforto frente à reorganização de seus posicionamentos subjetivos, também experienciaram sofrimento, o qual se traduziu nos seus relatos, especialmente por denegação (Freud, 1915/2006Freud, S. (2006). O Inconsciente. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Vol. II., pp.13-74). Rio de Janeiro: Imago . (Original publicado em 1915)).

Assim, os pais quando associavam seus filhos a aspectos negativos, bem como os responsabilizavam por problemas ocorridos após a paternidade, traziam elementos de negação em seus relatos, isto é, negavam o representante ideativo, dissociando-o do conteúdo afetivo, possibilitando, com isso, a irrupção desses aspectos. Pode-se compreender que as estruturações dos discursos construídos por denegação expressaram a ambivalência experienciada por esses pais, o que, nesse contexto, segundo Bydlowski (2000Bydlowski, M. (2000). La dette de vie - Itinéraire psychanalytique de la maternité. Paris: PUF.), é um meio de se tomar conhecimento dos conteúdos recalcados.

Desse modo, essencialmente, pôde-se constatar, a partir dos casos estudados, que este estudo evidenciou a relação existente entre a inscrição subjetiva como pai e a morte, visto que foi através do remanejamento psíquico, por meio do qual o pai deixa de tomar a si como criança maravilhosa e imortal, que esses pais puderam ceder esse lugar de imortalidade e perfeição ao filho (Lacan, 1981/2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar . (Original publicado em 1981); Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977). Mate-se uma criança. Rio de Janeiro: Zahar .; Rodulfo, 1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.). Efetivamente, ao tornar-se pai, o homem deve ceder seu posicionamento simbólico ao filho, passando a ocupar o lugar no qual sua mortalidade está inscrita, processo esse experienciado por meio de renúncias e lutos (Hurstel, 1999Hurstel, F. (1999). As novas fronteiras da paternidade. Campinas: Papirus.). Além disso, esse remanejamento somente pode se efetuar à medida que que o pai seja marcado pela castração, sendo o filho tomado como seu objeto de desejo (Penot, 1991Penot, L. (1991). Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional: Quando a alienação faz falta. In M. Penot (Org.), O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas (pp. 31-48). Salvador: Ágalma.; Lacan, 1957/1995Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1957) ). Nesse cenário, o bebê pode ser falicizado, conferindo-se atributos para além dos quais ele realmente possui (Rodulfo, 1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas.).

Desse estado de coisas, compreende-se que a paternidade, para além de seus possíveis ganhos, inclui também um processo que implica em aspectos difíceis de serem experienciados pelos pais. Há uma inscrição subjetiva da finitude que ocorre por meio da mudança de posição na cadeia intergeracional, cedendo ao filho um lugar privilegiado, por meio da transferência de intensa libido narcisista. Aspecto esse que, por sua vez, convoca aquele que passa a ser pai a passar por lutos e renúncias, inclusive de certos posicionamentos infantis. Tornar-se pai, diante disso, também é haver-se com suas limitações e falhas, isto é, com sua própria castração.

Tais questões precisam ser consideradas pelo analista que escuta os homens nesse percurso. Evidentemente, entre as eventuais limitações deste estudo, pode-se considerar que as análises realizadas não abrangeram todos os aspectos presentes na experiência subjetiva desses pais, assim como se tratam de construções passíveis de serem reelaboradas por meio de novas reflexões e associações teóricas. Com isso, evidencia-se a importância de que novos estudos possam dedicar-se a esses aspectos com outros pais, seja em contextos semelhantes ou distintos

Referências

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  • 1
    Ainda que em português o termo pais refira-se tanto ao pai quanto à mãe, no presente estudo o termo será empregado apenas para se referir ao genitor masculino, enquanto os termos pai(s) e mãe(s) e genitores serão utilizados para se referir a ambos.
  • 2
    Impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo infantil: estudo longitudinal do sexto mês de vida do bebê ao final dos anos pré-escolares” - CRESCI (Piccinini, Becker, Martins, Lopes, & Sperb, 2012Piccinini, C. A., Becker, S. M. S., Martins, G. D. F., Lopes, R. C. S., & Sperb, T. M. (2012). Impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo infantil: Estudo longitudinal do sexto mês de vida do bebê ao final dos anos pré-escolares - CRESCI (Projeto de pesquisa não publicado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.).
  • 3
    Outros instrumentos foram usados com as famílias nesses dois momentos, com parte do Projeto CRESCI, detalhado em Piccinini et al. (2012Piccinini, C. A., Becker, S. M. S., Martins, G. D. F., Lopes, R. C. S., & Sperb, T. M. (2012). Impacto da creche no desenvolvimento socioemocional e cognitivo infantil: Estudo longitudinal do sexto mês de vida do bebê ao final dos anos pré-escolares - CRESCI (Projeto de pesquisa não publicado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.).
  • 4
    Na dissertação de mestrado da qual o presente estudo deriva, são apresentados inúmeros outros exemplos dos relatos dos pais, os quais não foram incluídos no presente artigo, para reduzir sua extensão. Algumas falas também foram editadas aqui, tendo em vista as limitações editoriais, sem que isso comprometesse seu sentido original.
  • 5
    Todos os nomes são fictícios, visando preservar a identidade dos envolvidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2015
  • Revisado
    18 Jul 2016
  • Aceito
    02 Fev 2017
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