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Resenha: sobre o livro Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut

Book Review: on the book The body taken at its word: what it says, what it wants, by Hélène Bonnaud

Bonnaud, H.. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut . Paris, France: Navarin.

Com o advento da globalização e do discurso da ciência, somados aos avanços tecnológicos, o corpo humano passou a ocupar um lugar essencial na sociedade ocidental contemporânea. Nesse contexto, propaga-se o bem-estar biopsicossocial a todos e os ideais de beleza e de felicidade são ditados pelas indústrias da moda e da boa forma. Entretanto, permanece nas entrelinhas, muitas vezes escondida, a contrapartida desse ideal: a angústia de não ser capaz de atendê-lo. A psicanálise, criada como uma prática da palavra que fornece um sentido a ser decifrado, interessa-se pela investigação dos fenômenos corporais característicos de nosso tempo, como a bulimia, a anorexia e adicções, pois a palavra toca o corpo.

É essa a ideia do fio condutor do livro Le corps pris au mot: ce qu’il dit, ce qu’il veut (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.), da psicanalista francesa Hélène Bonnaud. A presente resenha exporá criticamente esse trabalho publicado, que pode ser traduzido livremente como “O corpo tomado literalmente: o que ele diz, o que ele quer”.

Em “O corpo falado, o corpo falante”, subtítulo da introdução, é apresentado densamente o impacto social e psicológico do valor dado ao corpo, tratado como objeto de adoração e cuidados por vezes extremos, e à imagem corporal na sociedade contemporânea (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). O lado oposto da primazia da imagem é a angústia provocada ao não atender ao ideal. Assim, a autora expõe a sua tese: colocar à prova a ideia de que a psicanálise se interessa não apenas pelo inconsciente, mas também pelo corpo do sujeito. Com a apresentação e discussão de casos clínicos atendidos por Bonnaud (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.), cada um dos dez capítulos abordará um tema relacionado ao corpo e àquilo que este diz.

No capítulo Mirroir (Espelho, em português), a autora retoma a teoria do Estádio do Espelho de Jacques Lacan (1949/ 1999Lacan, J. (1999). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. Em J. Lacan, Écrits I (pp. 92-99). Paris, France: Seuil. (Original publicado em 1949)), com o intuito de relembrar que a imagem do corpo próprio é construída a partir da relação da criança com o outro na pequena infância (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). É de extrema relevância esse breve percurso teórico, pois é a partir dessa etapa da constituição psíquica que o sujeito formulará as suas primeiras identificações e entrará no campo simbólico.

No entanto, em alguns casos, essa constituição pode acontecer de maneira incompleta, como é mostrado pelas discussões clínicas ricas e detalhadas de dois pacientes (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). Em ambos os casos, existe uma falha na imagem do corpo próprio que os levou a procurar ajuda. O texto apresenta trechos dos tratamentos, resguardando sempre a identidade dos pacientes, o que forneceu uma ideia aprofundada da eficácia da psicanálise nos dois casos retratados.

O segundo capítulo aborda a questão de Manger trop, manger rien (Comer muito, comer nada, em português). Bonnaud (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.) retoma aspectos que discutem a oralidade na teoria psicanalítica, como a sucção dos seios sendo considerada uma primeira experiência de prazer (Freud, 1920/ 2010Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. Em Schwarcz (Ed.), Obras Completas, Vol. 14, História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos - 1917-1920. (P. C. de Souza, Trad., pp. 120-178). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Original publicado em 1920); Freud, 1923/ 2011Freud, S. (2011). O Eu e o Id. Em Schwarcz (Ed.), Obras Completas, Vol. 16, O eu e o id, “Autobiografia” e outros trabalhos, 1923-1925. (P. C. de Souza, Trad., pp. 09-64). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Original publicado em 1923)). De maneira clara e objetiva, é explicada a importância dessas primeiras experiências da pulsão oral no desenvolvimento infantil. É no embate contínuo entre o que Freud (1920/ 2010Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. Em Schwarcz (Ed.), Obras Completas, Vol. 14, História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos - 1917-1920. (P. C. de Souza, Trad., pp. 120-178). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Original publicado em 1920)) denominou como pulsões de vida e pulsões de morte que se encontra algumas manifestações clínicas que revelam consequências da importância da pulsão oral no psiquismo.

Como exemplos destas manifestações que revelam o maltrato ao corpo próprio, encontram-se a adicção ao álcool e outras substâncias tóxicas, bem como a addicção à alimentação, cujos grupos clínicos retratam a anorexia, a bulimia e a obesidade. Bonnaud (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.) percorre a teoria lacaniana sobre a anorexia e a bulimia para apresentar, em seguida, três casos clínicos. O desenrolar deste capítulo evidencia o trabalho efetuado por cada sujeito em análise para lidar com a sua dificuldade de ser mestre do próprio corpo e revela, também, o papel fundamental de suporte que pode exercer o psicanalista em um tratamento analítico.

O próximo capítulo, nomeado Défaillance (Falha, em português), é escrito de maneira clara e simples e aborda um assunto muito estudado na teoria psicanalítica: quando há algo mais forte que si mesmo e o corpo parece agir por si próprio. Bonnaud (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.) sublinha que, quando o sintoma se torna insuportável, o sujeito busca ajuda. É o caso dos sintomas obsessivos, cujos rituais constituem uma defesa contra a angústia, quadro clínico comumente retratado pela psiquiatria como Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).

Nessa parte do texto, há uma ideia central para o tratamento pela psicanálise: quando o paciente se queixa de que o sintoma não serve para nada, o analista considera exatamente o contrário, pois o sintoma exerce uma função (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). A autora segue com a exemplificação teórica das falhas a que o corpo está submetido, como, por exemplo, a dificuldade de retenção dos esfíncteres. Para discussão do assunto, quatro vinhetas clínicas: um paciente não consegue olhar nos olhos dos outros; uma paciente enrubesce ao falar em público; outro paciente não se mantém à vontade no trabalho; o quarto paciente se queixa de não estar em uma relação afetiva por seus sintomas obsessivos. Evidencia-se a ideia de que o corpo fala e que o sintoma existe para esconder algo que o sujeito não quer saber.

O quarto capítulo, Urgence (Urgência em português), realiza uma discussão teórico-clínica sobre as situações de urgência subjetiva, em que o nível de angústia é muito alto (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). A autora apresenta, brilhantemente, a relação entre a urgência e a angústia, que constituem um laço que gera a necessidade do sujeito tomar uma decisão. A urgência mantém viva a demanda ao Outro, enquanto a angústia, por sua vez, apaga o laço com o Outro. Para a discussão, houve os casos de uma paciente que tentou se jogar pela janela e de um paciente que sofria de crises de pânico.

O próximo capítulo, intitulado Violence (Violência, em português), aborda situações em que o corpo reage defensivamente em frente a uma intrusão, agredindo ao outro ou a si próprio (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). Nesse trecho, são tratados os casos de automutilação, em que certos sujeitos buscam não exclusivamente a destruição do corpo próprio, mas sim do sentimento de ter um corpo. A violência, como explica a autora, é uma resposta a um insuportável que surge quando a palavra é esvaziada de sentido ou o sentido que outrora a fazia se sustentar é desfeito. É o caso da vinheta clínica apresentada de uma paciente que falhou ao tentar assassinar o companheiro.

O sexto capítulo, Lésions (Lesões, em português), discute as doenças orgânicas, como a enxaqueca e o câncer, a partir da ideia de um real que se expõe no corpo e que exige do paciente uma aceitação da manifestação para continuar a viver (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). É o que se vê, por exemplo, no caso clínico de uma paciente portadora de uma doença autoimune, que busca análise por outro motivo - a morte do pai - e encontra a parceria da analista para interpretar o que lhe escapa ao controle e o que a medicina não fornece explicação.

O capítulo seguinte aborda o tema da hipocondria (Hypocondries), que consiste no medo de estar gravemente doente, ou, nos casos de psicose, de ter a certeza de ter uma doença grave (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). Retomando a discussão sobre as características da sociedade ocidental, os avanços científicos e tecnológicos expõem saberes antes conhecidos por uma minoria da população. Apesar disso, Bonnaud (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.) sublinha que a medicina ainda não é capaz de explicar todas as doenças que acometem os sujeitos, o que produz angústia, pois há o confronto com a ideia da morte. Por exemplo, a vinheta clínica de uma paciente que queria engravidar, mas sua doença genética havia paralisado os membros e músculos inferiores. Foi evidenciada a potência do desejo de um sujeito face àquilo que lhe é insuportável no que concerne ao saber sobre o corpo. A psicanálise, como é descrito ao longo de todo o livro, funciona como um apoio para enfrentar esse real que não encontra palavras para ser descrito e que convoca o sujeito - a cada um de nós - a inventar uma forma de lidar com o que pode nos paralisar.

O oitavo capítulo, nomeado Grossesse (Gravidez, em português), discute a angústia que pode ser provocada pelas mudanças no corpo de uma mulher grávida (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). Como suportar essas modificações, a autora se pergunta após apontar que muitas mulheres trazem esse questionamento para si próprias. Bonnaud (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.) evidencia que a modificação de um ideal sobre a imagem do corpo, sobretudo durante a gestação, pode ser fonte de angústias. Além disso, a autora debate, neste capítulo, a maternidade e a feminilidade. Muitas mulheres são confrontadas à mudança de estatuto de jovem e moça para mulher: há uma nova posição simbólica a ser assumida. Essa modificação complexa, como Bonnaud continua, coloca em destaque a relação da filha à mãe, pois a maternidade é transmitida à filha, sobretudo a partir das ideias que ela teve de sua própria figura materna. Os três casos clínicos apresentados e discutidos abordam a questão da feminilidade em ligação com a maternidade. O ponto de grande relevância deste capítulo é a afirmação de que a maternidade não é para todas as mulheres, pois é necessário um acordo simbólico entre o corpo físico e o corpo psíquico para aceitar uma gravidez. Pode-se refletir, a partir disto, sobre os casos de mulheres que rejeitam ou matam seus filhos recém-nascidos.

O capítulo nove, L’encore du partenaire (Em português: O ainda do parceiro ou, homofonicamente, O corpo do parceiro), aborda a clínica dos encontros amorosos (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.). A autora explica, apoiando-se na teoria psicanalítica, que não há receitas prontas para formar o casal perfeito e ser feliz sexualmente, o que é fonte das queixas da dificuldade de encontrar um parceiro ideal. Pelo contrário, é possível aprender sobre as falhas nos encontros com um percurso analítico, com objetivo de possibilitar uma convivência que não espere do parceiro completude imaginária que, como explica a autora consistentemente, apoiando-se em duas vinhetas clínicas, essa completude não existe.

No último capítulo, Événement de corps (Acontecimento no corpo, em português), Bonnaud (2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.) conclui que o corpo, mesmo com todos os avanços da tecnologia e da medicina, escapará sempre ao saber do homem. Assim, é preciso descobrir uma maneira de conviver com as angústias sem permanecer paralisado. O percurso analítico, muitas vezes longo, possibilita encontrar o significante que está fixado a um sintoma e modificar a forma de lidar com ele. Portanto, é essa a proposta de um trabalho com a psicanálise.

Por fim, esta resenha se finaliza parabenizando a autora do livro e recomendando a leitura desta obra tão rica (Bonnaud, 2015Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut. Paris, France: Navarin.) - em teoria e em apresentações de casos clínicos - para todos aqueles que se interessam pela teoria psicanalítica.

Referências

  • Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot: Ce qu’il dit, ce qu’il veut Paris, France: Navarin.
  • Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. Em Schwarcz (Ed.), Obras Completas, Vol. 14, História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos - 1917-1920 (P. C. de Souza, Trad., pp. 120-178). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Original publicado em 1920)
  • Freud, S. (2011). O Eu e o Id. Em Schwarcz (Ed.), Obras Completas, Vol. 16, O eu e o id, “Autobiografia” e outros trabalhos, 1923-1925 (P. C. de Souza, Trad., pp. 09-64). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Original publicado em 1923)
  • Lacan, J. (1999). Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je. Em J. Lacan, Écrits I (pp. 92-99). Paris, France: Seuil. (Original publicado em 1949)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2015
  • Aceito
    16 Fev 2017
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