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Um Esforço de Condansação: Pina, Lacan e uma Questão de Escrita

Resumo

A proposta deste artigo é aproximar a noção de letra como litoral, tal como forjada por Jacques Lacan em seu texto Lituraterra (1971/2003), das danças/montagens da artista e coreógrafa alemã, Pina Bausch. Para tal, constrói-se um percurso do significante à letra no ensino de Lacan, bem como uma análise do processo criativo das montagens de Pina, visando ao que parece se apresentar ali como fora de sentido; fora do que a linguagem pode recobrir, do que se pode dizer e produzir significações. Assim, pretende-se fazer uma costura entre os referidos conceitos psicanalíticos e os fragmentos que se apresentam nas produções bauschianas, a fim de encontrar um recurso possível de transmissão sobre a letra.

Palavras-chave:
Jacques Lacan; Pina Bausch; letra; litoral; gestos

Abstract

The present article intends to articulate the notion of letter as littoral, as forged by Jacques Lacan in his textLituraterre, with the German artist and coreographer Pina Bausch’s dances and plays. We go from the signifier to the letter in Lacan's teachings and proceed with an analysis of the creative process of Pina Bausch's works, aiming to that which seems to present itself as having no sense, as something out of language’s reach; out of what one can say and tell within a field of multiple meanings. Thus, we intend to sew those psychoanalytic concepts to the fragments appearing in Bausch’s productions in order to achieve a further grasping and understanding of the concept of letter in Lacan.

Keywords:
Jacques Lacan; Pina Bausch; letter; littoral; gestures

Introdução

Este artigo parte da hipótese de que encontramos nas obras da artista e coreógrafa alemã Pina Bausch, na maneira como os gestos são articulados em suas montagens a partir de um processo criativo específico, uma dimensão de fora de sentido, que se apresenta naquela experiência e parece ressoar com alguma coisa que a psicanálise tenta cernir. Essa dimensão aparece na medida em que a linearidade de uma narrativa não se mostra como predominante nessas montagens, diferentemente das peças de balé clássico, por exemplo, em que um sentido bem montado parece ser o fio condutor.

A dimensão de um fora de sentido na psicanálise, com Jacques Lacan, remete-nos àquilo que, no encontro de um corpo com a linguagem, não é recoberto por ela, pelo simbólico, pelo significante; ou seja, àquilo que se encontra nos limites da linguagem, índice do que Lacan nomeou como real. Esse tema permeia todo seu ensino, mas o que nos interessará para formalizarmos nossa hipótese será uma das maneiras que ele encontrou para falar desse registro do real - não acessível de outro modo, senão pelo simbólico -, a noção de letra. A letra nos ajudará a pensar a dimensão de um não sentido nas montagens de Pina e, mais do que isso, apostamos que suas montagens nos servirão como um bom recurso para o estudo desse conceito.

Ainda outra escolha será feita. A letra aparece de diversas maneiras no ensino de Lacan, podendo ser entendida como o próprio significante, como o objeto a ou, ao fim de seu ensino, como litoral. Nossa escolha será por essa terceira vertente, tal como ela aparece no texto Lituraterra, em 1971/2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan (2003).Outros escritos(pp. 15-25). Jorge Zahar. (Original work published 1971)., entendendo que nele, recorrendo à caligrafia japonesa, Lacan forja um conceito para se referir a um espaço limítrofe entre saber e gozo. De outro modo, ele nos apresenta ao litoral como espaço em que se fisga algo do real sem se tornar significante, mas de modo material e não mais inapreensível ou inefável. A letra aparece como um conceito difícil de ser apreendido e não menos imprescindível para que se sustente o que se consolidou como a práxis lacaniana. Desse modo, julgamos relevante tentar articular mais um recurso que sirva à transmissão da noção de letra, seguindo os passos de Lacan na caligrafia, apostando em um encontro com a literalidade e materialidade nos passos de Pina Bausch.

Na caligrafia, veremos, há um gesto que conta. Há uma singularidade que é apreendida em sua materialidade. O gesto do calígrafo escreve uma letra que comporta uma dimensão que não serve à comunicação e, no entanto, imprime-se. Sem prescindir do significante, porque não se pode dizer de alguma coisa fora da ordem do significante, realiza-se, no litoral, um efeito de real. Esse é o efeito da letra-litoral.

É esse efeito de letra que supomos poder encontrar nas montagens com os gestos de Pina Bausch. Seu processo criativo parece ilustrar isso de modo que nos ensina sobre a teoria lacaniana. Ela recolhia gestos e palavras de seus bailarinos, das cidades em que se apresentavam e da cultura e fazia um recorte, com o qual montava uma peça de fragmentos superpostos, colados; era mais uma costura ou bricolagem do que uma história bem encadeada. Esses fragmentos se transformavam em montagem a partir do que chamava de uma operação-redução.

Essa operação-redução é, também, o nome que Jacques-Alain Miller utiliza em O osso de uma análise (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998).) para forjar um conceito que descreve a operação em que consiste o percurso de uma análise. Não forçaremos uma superposição entre as duas operações, mas extrairemos os pontos de contato entre elas que parecem sustentar nossa aproximação entre a letra e o que se produzia da operação de Pina. Numa análise, deparamo-nos com uma redução da série de significantes que se repetem, de modo que, ao fim daquela relação de transferência, pode se produzir algo inédito que, tal como a letra do calígrafo, não comunica, mas se imprime nessa zona litoral que examinaremos neste artigo. O neologismo, por exemplo, pode ser uma forma sob a qual aparece uma invenção ao fim dessa operação-redução analítica. Uma palavra-invenção fora da série, mas também dentro, porque opera no jogo dos significantes.

As montagens de Pina também nos remetem a esse efeito de neologismo como resultado da redução em questão. Veremos que ela não prescinde da articulação significante, porque, como dissemos, não podemos chegar a dizer de um real senão pelas lentes do simbólico. Os significados, portanto, também aparecem nesse jogo, mas com um caráter muito mais provisório do que predominante, como nas peças de balé clássico. Assim é que supomos poder visualizar em suas montagens os três níveis - significante, significado e letra -, sendo o terceiro o que pretendemos privilegiar nesse artigo.

Tomaremos a obra dessa artista como estrutura e não como conteúdo, seguindo a orientação que Lacan nos aponta em sua leitura de Hamlet, no Seminário O desejo e sua interpretação (Lacan,1958-1959Lacan, J. (2008) O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1958-59).). O psicanalista deve se interessar pelo “valor de estrutura” de uma obra, tomando-a como um “modo de discurso”:

“O modo como uma obra nos toca, e nos toca precisamente da maneira mais profunda, ou seja, no plano do inconsciente, decorre de sua composição, de seu arranjo. (...) Quero dizer que, ao contrário do que se pensa, não é do inconsciente do poeta que se trata. Este inconsciente, sem dúvida, revela sua presença por alguns traços na obra que não são premeditados, elementos de lapsos, elementos simbólicos não percebidos pelo poeta, mas não é para isso que se volta nosso principal interesse. (...) A obra vale por sua organização, pelo que instaura de planos superpostos, em cujo interior pode encontrar lugar a dimensão própria da subjetividade humana.” (Lacan, 1958-1959Lacan, J. (2008) O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1958-59)., p. 295 e 296).

Isso norteia de modo muito preciso a delimitação do campo que nos servirá na pesquisa - a saber, o campo dos gestos, movimentos, fragmentos, apresentados por Pina em planos superpostos, a que Lacan se refere na passagem acima. É isso que nos permitirá buscar aí ressonâncias com a letra.

Com isso, para chegarmos a nossa hipótese, perscrutaremos o caminho que Lacan fez da ordem significante à letra. Teceremos uma costura entre dois campos - a dança e a psicanálise -, pelas perspectivas de um autor e uma coreógrafa que se lançaram nesse fora de sentido e parecem ter encontrado uma concretude para ele, o que nos permite articular um modo de dizer sobre isso. Faz-se importante também salientar que a leitura que se fará do trabalho de Pina Bausch é apenas um modo de fazê-lo, entre tantos que seriam possíveis, segundo o viés do pesquisador. Nossa direção neste artigo, assim, não será uma leitura de Pina a partir da psicanálise, mas “o que Pina pode nos ensinar sobre a letra?”.

Pina

Philippine Bausch, ou Pina Bausch, como ficou conhecida, foi uma coreógrafa alemã consagrada pelas obras que apresentou com sua companhia Tanztheatre Wuppertal. Nasceu em 1940, na cidade de Solingen, na Alemanha. Segundo seu relato em discurso proferido em 2007, intitulado “What moves me”, foi no ambiente de música, fala e entra e sai de pessoas que surgiram as primeiras experiências com a dança, no restaurante de seus pais. Isso tudo, ela diz, foi levado aos palcos, junto com o perigo indizível da guerra que aterrorizava a época. Aos 14 anos de idade, começou a seguir Kurt Joos, criador da dança-teatro que, inspirada em Rudolf Von Laban, tentava libertar a dança dos padrões do balé clássico. Iniciou sua formação na Alemanha onde, após longo percurso - com experiências em Julliard, em Nova Iorque, junto aos maiores nomes da dança moderna -, em 1973, foi convidada a dirigir a companhia de dança da Ópera de Wuppertal, que logo se tornou, sob sua direção, o Tanztheater Wuppertal, em referência às origens de Laban e Joos (Cypriano, 2005Cypriano, F. (2005) Pina Bausch. Cosac Naify.). Em meio à forte resistência por parte dos bailarinos e espectadores frente ao que de subversivo aparecia com as criações de Pina, entre horror e senso de humor emergia o que ali havia de invenção genial. Seu método partia de palavras soltas, recolhidas do mundo e de seus bailarinos, enlaçadas pelo movimento coreografado que não formava uma gestalt, uma boa forma, como no balé clássico. No processo criativo de uma peça, Pina endereçava perguntas a seus bailarinos e as respostas eram seu material. Em entrevista a Christopher Bowen, Pina diz:

"Normalmente eu faço uma pergunta e eles pensam sobre ela, e quando estão prontos, eles me mostram alguma coisa. Mas eles então praticam o que me mostraram, e peço a todos que escrevam o que fizeram. Nós coletamos todo o material, e às vezes depois de semanas eu pergunto, ‘você consegue fazer isso? Mostre-me de novo’.” (Climenhaga, 2013Climenhaga, R. (2013) The Pina Bausch Sourcebook. New York: Routledge Taylor and Francis Group .; p. 100; tradução livre).

Vemos que, a partir de elementos únicos e singulares, ela produzia uma coreografia, que se repetia e se reproduzia. Não se trata, portanto, de um improviso ou uma suposta dança “livre”. Há uma montagem de narrativa da qual Pina parece saber não poder abrir mão, e que torna possível que aconteçam peças precisas, com marcações, tempo, música, entre outros. Mas a maneira como aparecem os recortes de palavras, nos gestos e movimentos - ou seja, essa montagem - é o que nos interessa aqui. Por mais que haja produções possíveis de sentido, o que parece mais forte em suas peças é um estilo de discurso, uma “não linearidade”. São fragmentos, muitas vezes colados ou superpostos, mais do que articuláveis.

É o que diz Anne Cattaneo a respeito de uma controversa montagem que Pina Bausch fez da peça Macbeth¸ de Shakespeare:

“Em vez de apresentar uma produção de Macbeth, Bausch organizou sua performance em torno de fragmentos do texto da peça, apresentando imagens de manipulação feminina e poder e desamparo masculinos. A performance foi interrompida e teve que terminar depois da primeira meia hora.” (Cattaneo, 1984/2013Cattaneo, A. (2013) Pina Bausch: “You can always look at it the other way around”. In Climenhaga, R. (org.). The Pina Bausch Sourcebook: the making of tanztheater. New York: Routledge Taylor and Francis Group. (Original work published 1984)., p. 82, tradução livre).

Cattaneo nos mostra, nesse exemplo, que essa estrutura de fragmentos promove um encontro com uma opacidade que abala, em certa medida, um saber mais ou menos estável - no caso, o saber literário prévio sobre a referida peça de Shakespeare. O conteúdo das imagens - manipulação feminina, poder e desamparo masculinos - é a mensagem inevitável que a montagem carrega. É o corpo da montagem, no entanto, em sua materialidade - fragmentos de texto - que nos parece ser a marca forte de Pina Bausch.

Na relação com os bailarinos, na maneira como estabelecia um espaço de invenção, Pina parecia saber que há um saber que não se sabe. É assim que Lacan define o inconsciente em seu Seminário 20, Mais, ainda (1972-73Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Jorge Zahar. (Original work published 1972-73).): aquilo que marca o corpo, os ossos, os movimentos: uma certa maneira do pé pisar o chão, da mão alcançar o objeto, da boca se mover enquanto fala. Marcas que não são exatamente comportamentos representáveis. Para isso, ela diz, trata-se de encontrar uma linguagem:

“É preciso encontrar uma linguagem com palavras, com imagens, movimentos, estados de ânimo, que faça pressentir algo que está sempre presente. Esse é um saber bastante preciso. (…) é um saber preciso que todos temos, e a dança, a música etc. são uma linguagem bem exata, com que se pode fazer pressentir esse saber. Não se trata de arte, tampouco de mero talento. Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida. E, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas daquilo que talvez possa se tornar arte.” (Bausch, 2000Bausch, P. (2000) Dance, senão estamos perdidos. Caderno Mais! Folha de S. Paulo, São Paulo. ; p. 11).

Podemos ler nessa passagem que há um lugar possível na arte para a escrita dessa marca que não se sabe, no sentido do conhecimento, mas que pode se fazer “pressentir”, nas palavras de Pina. Esse lugar pode ser o que Lacan vai definir com o litoral.

As criações bauschianas nos defrontam com um corpo que parece se aproximar mais do corpo pulsional, de Freud, do que do corpo biológico, útil, que serve às funções orgânicas. Isso porque esse saber que não se sabe é escrito no corpo, como veremos, no corpo pulsional, ou seja, marcado pelo gozo. Lembremo-nos da peça Café Müller (1978Bausch, P. (1978) Müller Café. Wuppertal.), em que, em uma das cenas emblemáticas, um casal tenta encaixar o corpo de um ao outro, mas vem um terceiro que os desmonta, ao que eles tentam se remontar e assim sucessivamente. Em vez de tomarmos a cena pelos inúmeros sentidos que poderíamos produzir, pensemos na pura repetição que acontece ali. Os movimentos e gestos se repetem tantas vezes que, num lapso de tempo, qualquer significado se esvazia, de forma tal que o impossível dessa montagem é quase a única coisa que fica. Os sentidos são provisórios, é o que nos mostra Pina, e o que resta disso é onde queremos chegar com ela.

Cattaneo nos diz se tratar de uma “operação-redução”, citando uma fala de Pina durante um ensaio: “Reduzir sem diminuir. A linguagem também. Muitas das palavras e frases se tornaram supérfluas. Aparecem imagens em seu lugar” (Cattaneo, 1984/2013Cattaneo, A. (2013) Pina Bausch: “You can always look at it the other way around”. In Climenhaga, R. (org.). The Pina Bausch Sourcebook: the making of tanztheater. New York: Routledge Taylor and Francis Group. (Original work published 1984)., p. 86; tradução livre).

Em O osso de uma análise, Jacques-Alain Miller (1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998).) propõe um novo conceito que diz respeito ao percurso de uma análise, ao qual ele nomeia, justamente, de “operação-redução”. Sem pretensão de fazê-la equivaler à operação de redução envolvida no processo criativo de Pina, parece-nos que essa coincidência na nomeação das operações pode ajudar na articulação a que visamos neste trabalho. O conceito de operação-redução proposto por Miller é uma tentativa bem sucedida de dar conta daquilo que se articula em uma análise “entre a vertente significante e a do gozo” (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 10). Ele descreve a passagem que pode se dar na operação analítica em relação ao saber. Uma redução que implica uma passagem do significante ao gozo, a um “saber haver-se aí” (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p.12). Retornaremos a esse conceito ao final do trabalho, pois ele ficará mais claro quando tivermos abordado a teoria dos significantes e a letra, em Lacan.

Até aqui, temos uma montagem que resulta de uma redução e conta com os corpos, do lado da pulsão e, portanto, uma montagem com as palavras e imagens. Nisso, ainda, uma dimensão que, supomos, poderemos tatear com o conceito de letra. Montaremos, então, um percurso em Lacan, do significante à letra, para pensarmos essa dimensão sobre a qual apostamos que as peças de Pina podem nos ensinar.

Significante e significado

A invenção freudiana de um dispositivo de fala e a teoria sobre os sonhos constituem a premissa fundamental sobre a qual se apoia a teoria lacaniana dos significantes. A fala é o instrumento de que dispõe o analista, de onde ele recebe do analisante “seu enquadre, seu material e até o ruído de fundo de suas incertezas” (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 497) e deverá ser tomada como um texto. Lacan aborda esse texto ao longo de seu ensino pelo par significante e significado, mas também por uma terceira via que, por ora, apenas apontaremos para sua existência e nos remete ao plano da singularidade, da letra.

O plano dos significados, dos sentidos e das representações foi amplamente explorado por Freud e situado em relação à consciência e ao inconsciente. Ainda na teoria freudiana, contudo, esse plano já não dava conta de tudo que aparecia nas investigações teórico-clínicas. Os textos freudianos deixam sempre entrever pontos que escapam às elaborações de sentido e significação e aparecem na experiência de uma análise. O umbigo do sonho, por exemplo, deixava em aberto, para Freud, um irrepresentável, um ponto insondável de esgotamento de sentido (Freud, 1900/2006Freud, S. (2006) “A interpretação dos sonhos”, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. 5. Rio de Janeiro: Imago (Original work published 1900).). São, contudo, os sentidos, as ficções, o único meio de que dispomos para chegar a fisgar o que desse insondável não se encontra “para-além do discurso”, mas nas próprias palavras (Lacan, 1953/1998bLacan, J. (1998b) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Em: J. Lacan, Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Original work published 1953). , p. 255). Assim, não renunciamos ao sentido, mas, se não nos encontrarmos fiados a ele, podemos chegar a construir um modo, talvez um estilo que se assente na borda desse fora de sentido. Os sentidos, então, são da ordem do imaginário. Os significantes, tal como Lacan os toma e modifica da teoria do linguista Ferdinand de Saussure, serão as marcações simbólicas desses sentidos; os pontos de gravidade que balizam a ordem dos significados em uma cadeia articulada de significantes.

Em 1960, Lacan vai dizer que, na operação de entrada de um ser na linguagem, o Outro - que podemos entender como a cultura, o campo simbólico que ordena o mundo, ou a própria linguagem - é lugar “prévio do puro sujeito do significante” (Lacan, 1960/1998eLacan, J. (1998e). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan, Escritos (pp. 807-842). Jorge Zahar. (Original work published 1960), p. 821). É o dito do Outro que constitui um campo possível de existência na linguagem, na ordem dos significantes. “O dito primeiro decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua obscura autoridade” (Lacan, 1960/1998eLacan, J. (1998e). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan, Escritos (pp. 807-842). Jorge Zahar. (Original work published 1960), p. 822). Desse dito, aquilo que há de mais enxuto, que não é conteúdo, nem atributo, constitui o que Lacan chamou de traço unário (Lacan, 1960/1998eLacan, J. (1998e). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan, Escritos (pp. 807-842). Jorge Zahar. (Original work published 1960), p. 822). O ser já nasce imerso nos significantes do Outro prévio, uma vez que é falado pelo Outro antes mesmo de nascer. É a partir desse banho de significantes que se faz um traço que, por sua vez, orienta o modo como aquele ser vai se arranjar com o mundo, com esses significantes que o precedem. Veremos mais adiante que esse traço faz um corpo erógeno, constituído na dimensão do gozo e do desejo.

A constituição de um corpo como unidade, então, só pode se dar a partir do Outro que o precede. Conforme a teoria lacaniana do Estádio do Espelho (Lacan, 1949/1998aLacan, J. (1998a). O estádio do espelho como formador da função do eu. Em J. Lacan, Escritos (pp. 96-103). Jorge Zahar. (Original work published 1949).), o ser mergulhado na linguagem vê no espelho alguma coisa que não existe sem o Outro. A unidade egoica se constitui a partir de uma assunção de certeza, sempre vinculada ao que fica como pergunta essencial: o que o Outro, que me olha, quer de mim? Esta, de todo modo, será sempre uma pergunta sem resposta correspondente.

Isso é paradigmático da não correspondência entre significante e significado na constituição do corpo; o significante é ambíguo. O Outro ou o significante do Outro não responde de modo simétrico à unidade egoica que se forma no espelho, persistindo, assim, sempre um furo. O corpo se constitui na ambiguidade do significante, furo, e na imagem que se fixa no espelho e forma o eu ideal, enganchado a todas as significações que o “eu” virá a produzir (Lacan, 1960/1998eLacan, J. (1998e). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In J. Lacan, Escritos (pp. 807-842). Jorge Zahar. (Original work published 1960), p. 823).

Temos, então, significante como furo e significado como imagem, constituindo um corpo. Veremos que sem o terceiro elemento, a letra, um corpo não se sustenta. Articulada aos outros dois elementos, é limítrofe, borda ou litoral; faz com que seja impossível outra coisa que não as possibilidades delimitadas pelo jogo entre a consistência da imagem, o furo do significante e a singularidade própria da letra.

Teoria dos significantes

Cabe examinar um pouco mais a fundo as noções de significante e significado introduzidas anteriormente. O que Lacan nos ensina sobre significante e significado, tal como forjou a partir da teoria de Saussure? Para o linguista, o significante está colocado sobre o significado, com uma barra entre eles que resiste à significação (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 500). Michel Arrivé situa o que, para ele, seria a principal divergência entre Saussure e Lacan:

“Em Saussure há, fundamentalmente, uma teoria do signo; a teoria do significante integra-se nessa teoria do signo: sem signo, não há significante (nem significado). Em Lacan, as coisas são bem diferentes. Até que há, marginalmente, uma teoria do signo. Mas ela não se articula com a teoria do significante: significante (e significado) de um lado, signo de outro estão disjuntos.” (Arrivé, 1986/2001Arrivé, M. (2001). Linguística e psicanálise. Edusp (Original work published 1986)., p. 98).

O signo saussuriano faz uma unidade entre significante e significado, como se houvesse um correspondente para o outro. Arrivé diz, ainda, sobre o ponto em que Lacan rompe com Saussure:

(...) a elipse que encerra os esquemas saussurianos desapareceu assim como as duas flechas de sentidos opostos que têm por função, em Saussure, figurar a relação de pressuposição recíproca entre os dois termos. A elisão desses dois elementos do esquema deve ser posta com o deslizamento do significado sobre o significante, se o significado está encerrado com o significante dentro de uma célula, (...) ele não pode “deslizar”. (Arrivé, 2001Arrivé, M. (2001). Linguística e psicanálise. Edusp (Original work published 1986)., p. 106).

É assim que Lacan se distancia de Saussure, eliminando qualquer unidade possível entre significante e significado, e extrai aquilo que é o cerne de suas teorias sobre as relações entre os dois:

“(...) que nenhuma significação se sustenta a não ser pela remissão a uma outra significação: o que toca, em última instância, na observação de que não há língua existente à qual se coloque a questão de sua insuficiência para abranger o campo do significado, posto que atender a todas as necessidades é um efeito de sua existência como língua.” (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 501).

O significante, portanto, não pode representar um significado apenas. Os deslizamentos de significados remetem necessariamente aos deslizamentos dos significantes. Essa impossível univocidade - ou seja, a possibilidade de equívoco que caracteriza as línguas humanas - é o caminho que pode nos levar a apostar numa ordem de não sentido no discurso, por mais deslizamentos de sentidos que ele comporte. Essa aposta é muito cara à psicanálise lacaniana, pois, com ela, sustentam-se os pilares de uma prática que pode se distanciar de uma clínica das significações infinitas.

Da maneira como Lacan toma a teoria saussuriana, o significante é aquilo que dá lugar ao significado, embora não haja correspondência alguma entre os dois (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 503).

Na constituição da linguagem, os significantes se articulam em cadeia ou rede, visto que um sempre remete a outro. É a partir dessa articulação que se darão as significações. Será constituído, assim, o deslizamento dos significados sobre os significantes, amarrados pelo que Lacan chamou de pontos-de-basta (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 506)4 4 Não explicitaremos neste artigo a teoria lacaniana sobre o Nome-do-Pai, em que Lacan cunha tal expressão pontos-de-basta. No prosseguimento da pesquisa, contudo, teremos um espaço para fazê-lo. .

Isso tudo aponta para a revelação que Lacan sublinha: o ser na linguagem se serve da língua comum para expressar alguma coisa que, em todo caso, será completamente diferente daquilo que seu semelhante expressa (Lacan,1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 508). Isso porque, de todo modo, a ordem fechada em que se articularão os significantes para alguém se fundará sobre uma marca única e singular - talvez a letra -, de acordo com a maneira como aquele ser de fala se apropriará do Outro, e constituirá um modo próprio e intransponível de ler o mundo.

Lacan retoma “A interpretação dos sonhos” (Freud, 1900/2006Freud, S. (2006) “A interpretação dos sonhos”, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. 5. Rio de Janeiro: Imago (Original work published 1900).) de Freud para situar ali o que, na leitura lacaniana, aponta para o valor significante das imagens e não para o significado. Quando Freud fala da “ambiguidade verbal” no sonho (Freud, 1900/2006Freud, S. (2006) “A interpretação dos sonhos”, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. 5. Rio de Janeiro: Imago (Original work published 1900)., p. 670), ele mostra que uma palavra que aparece nas associações do sonhador serve de diversas maneiras, em vários ramos da cadeia associativa. Uma palavra enoda os deslizamentos de associações para além de um sentido. Nessa direção que Freud nos coloca, o analista pode se distanciar da decifração, que é vinculada ao imaginário e em nada presta ao real, a não ser por mascará-lo.

Lacan toma o trabalho dos sonhos como homólogo à função do discurso, sendo apenas formas distintas de apresentação do real. As articulações em jogo, ele nos diz, são, essencialmente, uma questão de escrita, e seguem as leis do significante (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 515). É assim que Lacan entende que Freud privilegiou o significante, ainda que não dispusesse do recurso da linguística para, com ela, poder seguir nessa direção (Lacan, 1957Lacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 517).

Desse modo, para Lacan, trata-se de analisar o texto e não o conteúdo, o imaginário. Para o imaginário, temos o eu, um engodo (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 524). Ora, se não é o eu o senhor de sua própria casa, “qual é, pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?” (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 528). Trata-se de alguma coisa que não pode ser atingida pelo conhecimento, mas que vibra o corpo do ser falante (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 531).

A letra

De que letra se trata nesse texto, nesse corpo que é um escrito fora do conhecimento? Em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). ), Lacan aborda o conceito da letra de modo que, por vezes, entendemos que ela coincide com o significante. A máxima lacaniana de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem aparece nesse texto apontando para a letra como o indicador dessa estrutura do inconsciente. No entanto, não é essa a dimensão da letra a que visamos chegar. Desse texto, extrairemos as duas direções sobre a letra que ele nos fornece, de início: ela deve ser interpretada literalmente e é “suporte material” (Lacan, 1957/1998cLacan, J. (1998c). A instância da letra no inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 496-533). Jorge Zahar. (Original work published 1957). , p. 498) do significante.

Vimos que nos colocamos no caminho da letra se situarmos as articulações significantes como uma questão de escrita. O plano da letra é, então, um plano material, literal, não é inefável. Veremos que a letra é um modo que Lacan encontrou para uma apreensão da singularidade ou de se enganchar o real5 5 Lacan também encontrou outros caminhos para isso, dentre os quais, o sinthoma - Seminário 23 O sinthoma (1975-76) - e o objeto a - Seminário 10 A angústia (1962-63) -, mas aqui nos ateremos às investigações que concernem à letra. .

Nossa escolha de viés sobre a letra no ensino de Lacan é a que ele nos apresenta em seu texto Lituraterra (Lacan, 1971/2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan (2003).Outros escritos(pp. 15-25). Jorge Zahar. (Original work published 1971).), a letra como litoral. Nesse texto, Lacan relata sua experiência em um avião que sobrevoava as planícies da Sibéria, em que se formavam alguns cursos d’água, vistos apenas num dado momento de reflexão ali da luz do sol. Essa imagem lhe serve para situar a letra como espaço-limite entre territórios, entre saber e gozo. A letra como presença do real, escrita no corpo. (Lacan, 1971/2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan (2003).Outros escritos(pp. 15-25). Jorge Zahar. (Original work published 1971)., p. 19).

O fato de haver um ser falado e falante o insere numa linguagem que se constitui daquilo que o ser se apropria singularmente da língua e a letra é a portadora, digamos assim, dessa singularidade, no nível material de escritura que se faz no corpo por aquilo que o vibra; “a letra é habitada por quem fala” (Lacan, 1971/2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan (2003).Outros escritos(pp. 15-25). Jorge Zahar. (Original work published 1971)., p. 19). Só podemos ler as nomeações advindas do Outro a partir de um modo especial de leitura do mundo, inscrito pela letra, que remonta aos pedaços que fazem o traço unário no corpo. É na escrita como “artefato que habita a linguagem” (Lacan, 1971/2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan (2003).Outros escritos(pp. 15-25). Jorge Zahar. (Original work published 1971)., p. 23) que podemos dizer de uma letra precipitada do encontro do corpo com a língua.

Encontramos no texto Tomar o corpo ao pé da letra ou como falar do corpo? (Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977) Psicanalisar. Perspectiva.), de Serge Leclaire, alguns esclarecimentos sobre a letra. O corpo erógeno, ele nos diz, só o é na medida em que é ordenado numa dimensão de gozo (Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977) Psicanalisar. Perspectiva., p. 54), o que só se estabelece a partir do traço unário que vem do Outro. “Os termos marca, fixação, são necessariamente utilizados para descrever a instauração e sobretudo a persistência quase indelével da erogeneidade em um ponto do corpo” (Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977) Psicanalisar. Perspectiva., p. 59). E o que singulariza o modo como um corpo se erogeniza? O autor nos diz que é, justamente, a entrada do gozo. No intervalo entre o apelo ao Outro e a satisfação parcial, realiza-se a dimensão do gozo, que fixa de modo singular uma parte do corpo como fonte erógena; abre-se uma “cratera de gozo” (Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977) Psicanalisar. Perspectiva., p. 60), onde se inscreve uma letra.

Segundo o autor, então, como podemos constatar, a letra é algo que fixa o gozo. O efeito disso é a produção de um modo singular de se gozar, um movimento vivo em torno dessa singularidade, desse gozo escrito no corpo por uma letra.

“(...) o corpo físico, em sua superfície e densidade, é oferecido ou resiste, suporta em todo caso a inscrição-incisão erógena do mesmo modo que a página do livro sustenta e faz aparecer - em certo sentido, constitui - a letra que nela se inscreve.” (Leclaire, 1977Leclaire, S. (1977) Psicanalisar. Perspectiva., p. 63).

Esse texto nos serve para ressaltar que é da escrita que se trata no plano da letra e que a letra tem a ver com o corpo na sua dimensão de gozo. A propósito do que faz um corpo ser um corpo de gozo, ou seja, um corpo vivo, e as implicações disso para uma análise - mais precisamente, para o fim de uma análise, como veremos adiante -, voltamos agora ao seminário de Jacques-Alain Miller, O osso de uma análise (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998).), que também nos fará reencontrar as operações que tentamos cernir aqui, na psicanálise e na dança de Pina Bausch, com a letra.

O osso de uma análise é como Miller nomeia nesse texto aquilo com que nos encontramos repetidamente, sempre, quase no mesmo lugar, que tende a se evidenciar quando nos submetemos ao dispositivo analítico. Em sua metáfora, é a pedra no caminho, de Carlos Drummond de Andrade. Há sempre uma pedra no caminho, cuja posição em uma análise não é a de obstáculo a ser ultrapassado, mas mais de um osso, que não cede, a ser esculpido. A operação-redução é o que está em jogo nesse trabalho artesanal, propõe Miller (1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p.32).

E o que, exatamente, essa operação reduz? Para que ela ocorra, é preciso, primeiramente, que se escute as repetições na fala que traz o analisante (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 36). É na repetição que se pode encontrar uma constante, uma série de significantes que começam a rodear um mesmo ponto, equivocando-se em seus sentidos e, assim, vão se reduzindo. “O tratamento faz, com efeito, parecer que os enunciados do sujeito convergem para um enunciado essencial” (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 36 e 37).

Esses dois primeiros tempos da redução - a repetição e a convergência para um ou alguns enunciados - são, em última instância, o encontro com o fato de que o corpo é “efeito da marca significante” (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 37). Há, ainda, um terceiro tempo, que é o encontro com “o osso dessa máquina significante, o resíduo impossível do funcionamento da repetição” (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 52). Isso que sempre escapa à articulação significante, que emerge da redução simbólica e não cabe nas sentenças que vão se lapidando em análise, remete-nos ao plano de contingência, diz Miller. Não vamos nos deter aqui no que Lacan fala da contingência em relação ao impossível, possível e necessário, em seu Seminário 19 (Lacan, 1971/2012Lacan, J. (2012).O seminário, livro 19: ou pior. Jorge Zahar . (Original work published 1971-1972)). Basta, por ora, que compreendamos o que Miller quer nos dizer ao nos introduzir a esse plano:

“Quer dizer que, quando nos perguntamos por que tal termo tem tal valor no psiquismo de um sujeito, somos sempre remetidos à contingência, à contingência de uma história particular, justamente a alguma coisa que, nos tempos de Lacan, cessa de não se escrever. Desde que nos perguntamos por que, para tal sujeito, tal significante tem um valor fundamental, não podemos deduzir, aí estamos diante de uma contingência, isto é, diante de alguma coisa que foi encontrada e que poderia ter sido de outra maneira, enquanto nesse nível só pôde ser assim.” (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 55)

É o encontro contingente do corpo com o significante que produz um modo de gozar e é o encontro com esse modo particular de gozo que uma análise pode promover. Em suma, na operação analítica, a fala, como instrumento, é a experiência quase palpável de que os sentidos são redutíveis aos significantes, de modo que, se levada às últimas consequências, é com o corpo marcado pelo significante, ou com o corpo na dimensão do gozo, no plano de contingência que alguém terá que se haver ao fim de uma análise.

Temos, então, o corpo do gozo, que só o é na articulação com o significante, e aquilo que remete à contingência dessa articulação, o resto. É aí que se acrescenta alguma coisa à redução, pois, senão, poderíamos facilmente cair em um relativismo e concluir que uma análise é um processo de puramente assumir que há um resto irredutível, um exercício de conformação. A operação de uma análise é, no entanto, um trabalho que esculpe alguma coisa, como diz Miller, que produz, ou melhor, leva a uma montagem, resultado da redução.

Isso que não cede é o sintoma; “o significante, como tal, se refere ao corpo, e essa referência se faz sob a modalidade do sintoma” (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p.85). O sintoma é o que se produz do fato do significante incidir sobre o corpo como gozo e é ele mesmo, o sintoma, o osso de uma análise (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 90). O fim da operação analítica

“(...) quer dizer que o sintoma, temos que viver com ele, que devemos, como se diz em francês, faire avec, quer dizer, que devemos haver-nos com ele. Dizer que se chega a se identificar com o sintoma significa que eu sou tal como eu gozo. (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 90).

Como podemos extrair consequências disso para nosso tema da letra e, mais ainda, o que supomos aparecer disso na Pina Bausch? Esse plano da redução analítica que Miller aborda pelo sintoma é o plano da redução ao real (Miller, 1998/2015Miller, J-A. (2015) O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. [The bone of an Analysis] Zahar (Original work published 1998)., p. 53) e pensamos ser também dessa redução que se trata na apresentação da letra-litoral. Sendo o fim de uma análise, para Miller, um trabalho de montagem com os restos, um trabalho do significante ao gozo, e estudando o processo criativo bauschiano e sua operação-redução própria, podemos dizer de um “fazer com” a letra nas montagens de Pina? Inversamente e mais precisamente: podemos dizer que as montagens de Pina nos ensinam sobre um “fazer com” a letra? A letra traz para o plano material, o plano da escrita, a singularidade que está em jogo nesse artifício de um “fazer com”, na lapidação do osso.

Éric Laurent, em seu texto A carta roubada e o voo sobre a letra (Laurent, 2010Laurent, É. (2010) A carta roubada e o vôo da letra [The stolen letter and the flight over the letter]. Correio.Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 65. EBP (Original work published 1998). ), faz uma análise da escrita a partir de Lituraterra (Lacan, 1971/2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan (2003).Outros escritos(pp. 15-25). Jorge Zahar. (Original work published 1971).) e nos ajuda a entender de que escrita Lacan tratava neste texto. Ele faz uma passagem do que seria a letra no Seminário sobre a carta roubada (Lacan, 1955/1998dLacan, J. (1998d). O seminário sobre "A carta roubada". In J. Lacan,Escritos(V. Ribeiro, trad., pp. 13-68). Jorge Zahar. (Original work published 1955). ) à letra em Lituraterra. No primeiro texto, Lacan analisa o conto de Edgar Alan Poe, situando os deslocamentos da carta do lado dos percursos do significante e a carta em si (não seu conteúdo), do lado de uma dimensão que, apesar dele não a explicitar nesse texto, aponta para sua existência e a retoma em 1971 com a letra. Já no segundo texto, ele aprofunda a noção de letra, aproximando-a, metaforicamente, de um litoral, como vimos acima, em que, nas palavras de Laurent, teríamos os “cursos d’água como uma espécie de traço no qual se abole o imaginário” (Laurent, 2010Laurent, É. (2010) A carta roubada e o vôo da letra [The stolen letter and the flight over the letter]. Correio.Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 65. EBP (Original work published 1998). , p. 74). Esse traço que Lacan extrai da paisagem da Sibéria vista do avião “não é sem referência à pintura chinesa (...) como a de uma caligrafia, como um puro traço que opera sem indicar, sem significar o que há ali (...)” (Laurent, 2010Laurent, É. (2010) A carta roubada e o vôo da letra [The stolen letter and the flight over the letter]. Correio.Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 65. EBP (Original work published 1998). , p. 75).

O autor organiza neste texto a divisão da escrita em alfabética - ocidental - e ideográfica - oriental (Laurent, 2010Laurent, É. (2010) A carta roubada e o vôo da letra [The stolen letter and the flight over the letter]. Correio.Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 65. EBP (Original work published 1998). , p. 63). Há na escrita uma rede de significantes em que se articula aquilo que serve à comunicação, que se compartilha no Outro, que se ordena entre sentidos comuns - essa seria a ordem da escrita alfabética - e o que não se articula no sentido, mas conta para que toda a articulação mencionada se dê - da ordem da escrita ideográfica, da caligrafia, da letra.

“Esta pintura de calígrafo, onde não se trata, como na pintura do Renascimento, de descrever o mundo, de ordenar o caos interno, mas de ordenar por meio de um traço de pincel, de atuar traçando. É nisso que o gesto do pintor (...) se encontra com o da criança que lança o carretel fort-da (...). Não é apenas a oposição fonemática o-a, fort-da, mas o próprio gesto que conta, uma vez que é portador da inscrição desse traço.” (Laurent, 2010Laurent, É. (2010) A carta roubada e o vôo da letra [The stolen letter and the flight over the letter]. Correio.Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 65. EBP (Original work published 1998). , p. 80).

Com esse gesto em que “o singular da mão esmaga o universal” (Lacan, 1971/2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan (2003).Outros escritos(pp. 15-25). Jorge Zahar. (Original work published 1971)., p. 20), podemos passar à nossa proposta de articulação final.

Lacan com Pina Bausch

Com essas pinceladas sobre letra, significante e significado, podemos tentar visualizar esses planos na estrutura das peças de Pina a partir do estilo de seu processo criativo. Vejamos novamente como se dava esse processo, na descrição feita por Anne Cattaneo:

“Bausch começa o trabalho com sua companhia internacional e multilíngue (suas peças usam uma mistura de Francês, Espanhol, Inglês, Alemão, Português e outras línguas) em torno de alguma música ou texto e lentamente começa a investigar as emoções, pensamentos, memórias esquecidas, e comportamentos que os membros da companhia associam a isso. (...) No fim de mais ou menos seis semanas, Bausch escolhe uma centena de histórias, imagens, gestos, e fragmentos de frases de sua lista (suas “catchwords”, como Hoghe as chama) e isso forma a espinha dorsal do trabalho. A segunda metade do período de ensaios é dedicada a descobrir a forma da peça - como as imagens devem se conectar e se ordenar. Aqui, Bausch trabalha de modo puramente visual - justapondo palavras e gestos, grupos de dançarinos etc., como um quebra-cabeças para encontrar a estrutura que apoie o tema da noite.” (Cattaneo, 1984Cattaneo, A. (2013) Pina Bausch: “You can always look at it the other way around”. In Climenhaga, R. (org.). The Pina Bausch Sourcebook: the making of tanztheater. New York: Routledge Taylor and Francis Group. (Original work published 1984)., p. 85 e 86, tradução livre).

Essas catchwords, expressão usada por Raimund Hoghe em seu livro de 1982, What All is a Tango Good For?, segundo Cattaneo, são fruto da operação de redução que Pina fazia, mencionada anteriormente. Redução de um universo de sentidos - sentimentos, emoções - a fragmentos e pedaços. No segundo momento do processo criativo, ocorre a montagem em si, a costura desses pedaços. Temos aí, então, os significantes do Outro - em seus deslizamentos de significados -, o material que Pina decanta daí e a rede que se articula, delimitada por esse material. O que aparece com mais força, podemos constatar, é o material da linguagem e não o sentido da linguagem. E o que é que produz em cena o efeito de letra? Tal como na caligrafia, é o gesto que conta aí. É uma “condansação” (Lacan, 1975-1976/2007Lacan, J. (2007).O seminário, livro 23: o sinthoma. Jorge Zahar . (Original work published 1975-1976), p. 150) - tomando emprestado um neologismo que Lacan cria no seu seminário 23 para dizer de uma dança que, justamente, condensa algo do real, diferentemente da dança compreendida no sentido comum da cultura, mais tributária do imaginário. Um “fazer com” os fragmentos; uma costura artesanal e singular que conta com essa fração de real, fisgada pelo próprio gesto imbricado no fazer em questão.

Tomemos a releitura de A Sagração da Primavera, feita por Pina pela primeira vez em 1975. Os elementos em cena compõem uma ficção, emprestada da consagrada peça de Stravinsky, mas pelos gestos de Pina Bausch. À história da jovem que precisa ser sacrificada em virtude da chegada da primavera, acrescenta-se lama, corpos quase nus e um pano vermelho. Por mais que nos remetamos à trama original, ou qualquer outra trama que vislumbremos tecer para aqueles movimentos, o que aparece é uma montagem com a lama, a nudez e o pano vermelho, cujo caráter de invenção é algo de que não podemos nos desvencilhar. Há, no palco, uma imagem que veste - seja a da música de Stravinsky, ou qualquer outra - do lado do significado. Há também o furo do significante, na medida em que as marcações em cena equivocam o significado; o mal entendido está posto. Por fim, há o gesto, o “puro traço”, o que não comunica nada e, tal como na caligrafia, encarrega-se do próprio desenhar daquela lama, da nudez e do pano vermelho, presentificando um saber que não se sabe, nem será sabido, mas se apresenta. Os gestos bauschianos realizam uma singularidade em cena; escrevem uma letra.6 6 A pesquisa que apresentamos neste artigo não se esgota, de modo algum, aqui. Tratamos de trazer à luz alguns pontos que julgamos fundamentais para nossa tentativa de trançar a letra com os movimentos de Pina. Tateamos a noção de um fora de sentido, que parece não apenas tomar corpo em suas montagens, mas parece ser o material privilegiado com o qual se faz alguma coisa naquele espaço que nos remete ao litoral. O esforço de organizar neste trabalho conceitos e ideias que julgamos pertinentes ao tema produziu uma base, de onde pudemos partir e nos aprofundar nessa pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2017
  • Revisado
    10 Dez 2018
  • Aceito
    02 Nov 2019
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