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Adolescência e Feminilidade na Peça O Despertar da Primavera* * Apoio: FAPEMIG

Resumo

Neste artigo, levantamos as vicissitudes no processo de tornar-se mulher, tomando como pressuposto a aposta psicanalítica de que é na puberdade que haverá a escansão sexual. Abordamos a adolescência como um processo de sexuação decorrente do Édipo. Se, no caso dos meninos, a identificação ao pai é suficiente, as meninas precisam de um trabalho a mais. Partiremos das personagens adolescentes Wendla e Ilse, na peça O despertar da Primavera de Frank Wedekind, para examinar os impasses e as saídas próprios à construção da feminilidade, inventados por cada uma diante do real pulsional.

Palavras-chave:
adolescência; feminilidade; psicanálise

Abstract

This paper aims to raise the theoretical discussion about the vicissitudes in the process of teenage girls becoming women, from the psychoanalytical point, which says the puberty is a landmark on sexual development. Adolescence is approached as a sexuation process resulting from Oedipus. For the boys, the identification with the father is enough, while the girls need extra work. We are going to examine the proper impasses and the outputs to the femininity construction incented by Wendla and Ilse, adolescent characters from the play Spring Wakening by Frank Wedekind, in the face of the real drive.

Keywords:
adolescence; femininity; psychoanalysis

Introdução

Neste artigo, buscamos compreender as vicissitudes da adolescência para as mulheres, pois, como veremos, a feminilidade é uma construção que exige um trabalho de elaboração psíquica. Dessa forma, propomos demonstrar que, além de encontrar uma resposta para o enigma que o encontro com o sexual convoca na adolescência, as meninas terão que responder aos enigmas da assunção do próprio sexo. Para tanto, iniciaremos com a discussão acerca da sexuação na adolescência, para em seguida abordamos o processo de tornar-se mulher.

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [Three essays on the theory of sexuality] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1905) ) afirma a existência da sexualidade infantil. Com a chegada da puberdade, ocorrem mudanças que levam a sexualidade a sua configuração final. A pulsão sexual, até então autoerótica, encontra agora um objeto sexual. Surge um novo objetivo sexual, as pulsões parciais se combinam para atingi-lo e as zonas erógenas ficam subordinadas ao primado da zona genital. Esse novo objetivo sexual traz funções diferentes aos dois sexos, cujo desenvolvimento sexual não se diferenciava muito até esse momento. “O dos homens é o mais direto e o mais compreensível, ao passo que o das mulheres, na realidade, entra numa espécie de involução” (Freud, 1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [Three essays on the theory of sexuality] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1905) , p. 213). Freud refere-se aqui à convergência da corrente afetiva e da corrente sensual e compara este período à conclusão de um túnel cavado através de uma montanha, a partir de ambos os lados. Lacadée (2012Lacadée, P. (2012). A clínica da língua e do ato nos adolescentes [The language and act clinic in adolescents]. Responsabilidades, 2, 253-268.) descreve este túnel como um buraco em que uma das extremidades fura a autoridade e a consistência do Outro parental e a outra extremidade perturba e faz furo na existência do ser infantil. Um túnel que marca para o sujeito a desconexão entre o seu ser de criança e o seu futuro ser de homem ou de mulher.

Utilizaremos como recurso metodológico, para interrogar essa travessia do túnel que se dá da criança a seu futuro ser de mulher, a peça O Despertar da Primavera do dramaturgo alemão Frank Wedekind. A peça exibe a complexidade da entrada na adolescência. É em seu prefácio que Lacan nos dá a ver o furo no real, que constitui o despertar da sexualidade na adolescência. Cada um vai, a seu modo, confrontado com a questão sexual, inventar uma resposta. Interessa-nos abordar nossa questão a partir da singularidade das respostas encontrada por cada uma das personagens femininas da peça. Não se trata de propor uma psicanálise aplicada, mas de buscar seguir a indicação de Lacan de que podemos produzir um saber teórico a partir do que o poeta escreveu. Os personagens não são nada além do que seres de linguagem, portadores de um discurso e resultados da criação do dramaturgo; no entanto, o poeta reencontra a teoria analítica, revelando um saber que permanece encoberto.

Adolescência, Puberdade e Sexuação

“Eu nunca senti nada assim antes - esse tipo de desejo, essa sensação insuportável. É insuportável. Por que não me deixaram passar por tudo isso dormindo e eu acordar quando já tivesse acabado?” (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p. 8). Moritz, um dos protagonistas da peça O Despertar da Primavera, adianta a proposição freudiana de que a puberdade é o momento em que há o redespertar das pulsões após o período de latência. Lacan (2003aLacan, J. (2003a). Prefácio a: O despertar da primavera [Preface to The Awakening of Spring]. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 557-559). Jorge Zahar Ed.) acrescenta a isso o fato de que a maturação biológica que prepara o adolescente para a consecução do ato sexual não exclui o mal entendido inerente ao encontro entre os sexos.

Freud (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [Three essays on the theory of sexuality] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1905) ) usa o termo puberdade para designar o momento da vida em que há a emergência da genitalidade, de forma que o adolescente pode dar consecução ao ato sexual. Não há na perspectiva freudiana uma separação evidente entre puberdade e adolescência. Já os autores lacanianos separam puberdade de adolescência, considerando que a adolescência é uma resposta subjetiva às mudanças advindas com a puberdade e pode ser pensada como um sintoma da puberdade, de modo que frente ao real que emerge na puberdade cada adolescente encontrará uma resposta sintomática para esse encontro. Essa resposta pode ser o estabelecimento de uma parceria amorosa, o uso de drogas, as passagens ao ato ou outras possibilidades.

Em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, texto publicado pela primeira vez em 1905, Freud (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [Three essays on the theory of sexuality] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1905) ) anuncia a existência da sexualidade infantil e descreve as transformações da vida sexual e suas implicações psíquicas. Ele separa a sexualidade em dois tempos lógicos: sexualidade infantil e puberdade, intercaladas pelo período de latência.

A puberdade é o momento em que ocorrem as mudanças que levam a sexualidade à sua configuração final. É quando a pulsão sexual, que era predominantemente autoerótica e parcial durante a infância, conjuga-se em um objeto sexual único, subordinada agora ao primado da zona genital. Até esse momento, o desenvolvimento sexual feminino e masculino não se diferenciavam muito, pois ambos estavam sob o primado fálico e a atividade autoerótica das zonas genitais era idêntica. É somente a partir da puberdade que o desenvolvimento sexual diverge com intensidade.

Na puberdade, segundo Freud (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [Three essays on the theory of sexuality] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1905) ), a pulsão coloca-se a serviço da reprodução, uma vez que adquiriu a maturação biológica para isso, tornando possível a consecução do ato sexual. Com isso, “consuma-se, no lado psíquico, o encontro do objeto para qual o caminho fora preparado desde a tenra infância.” (p.209). Freud esclarece que desde a mais tenra infância já se reconhece bem as disposições femininas e masculinas, mas a atividade autoerótica das zonas erógenas infantis é idêntica em ambos os sexos, “e essa conformidade suprime, na infância, a possibilidade de uma diferenciação sexual como a que se estabelece depois, na puberdade.” (p.207). No período infantil, a sexualidade feminina tem um caráter inteiramente masculino, pois o órgão sexual estimulado nas meninas, o clitóris, é homólogo ao masculino e na “transformação da menina em mulher” (p.208), que ocorre na puberdade, há uma nova onda de recalcamento, fazendo sucumbir na menina a sexualidade masculina. Um novo órgão precisa ser impelido a assumir o lugar do clitóris. Contudo, para que isso ocorra, é necessário um tempo em que a moça fica insensível. É apenas quando a mulher consegue transmitir sua excitabilidade do clitóris para a vagina, o órgão feminino por excelência, que ela muda de zona erógena dominante, ao contrário do homem, que conserva a sua desde a infância. Assim, temos a primeira diferença fundamental na puberdade feminina e masculina: enquanto na menina há uma nova onda de recalcamento da sexualidade (masculina), nos homens a puberdade traz um grande avanço na libido.

A segunda diferença se dá em relação à escolha de objeto, tendo em vista que no final do complexo de Édipo o menino mantém seu objeto de amor: a mãe, enquanto a menina precisa fazer a troca de objeto da mãe para o pai. Na tentativa de compreender essa troca de objeto, Freud acrescenta a existência da fase pré-edípica nas meninas.

O período pré-edípico é caracterizado pela vinculação amorosa da menina com a mãe, visto que a mãe é o primeiro objeto de amor para todas as crianças. Freud (1933/2006bFreud, S. (2006b). Sexualidade feminina [Female sexuality] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1933). ) se pergunta, então, porque a menina se afastaria da mãe e elabora que a razão central e mais forte para esse afastamento tem relação com o complexo de castração. A razão é “a censura por a mãe não ter lhe dado um pênis apropriado, isto é, tê-la trazido ao mundo como mulher.” (p. 241-2). Esse afastamento é um passo decisivo para o curso do desenvolvimento de uma menina.

O Édipo feminino, portanto, é introduzido pelo complexo de castração. Constatada a universalidade da privação feminina em relação ao pênis e sendo a mãe afastada como objeto de amor, a menina parte em busca do pai a fim de que este possa lhe dar o que lhe falta, numa substituição simbólica pênis-criança. Essa operação de substituição, no entanto, não apaga o núcleo da posição feminina em Freud, que é a centralidade da inveja do pênis, penisneid, em sua vida psíquica.

Freud (1931/2006cFreud, S. (2006c). Conferência XXXIII: Feminilidade [Lecture XXXIII: Femininity] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1931)) aponta três saídas para a menina em relação ao penisneid: a primeira é a inibição da sexualidade, a segunda, o complexo de masculinidade, e a terceira, a saída à feminilidade normal. Em relação à primeira saída, Freud relembra que o primeiro prazer é o prazer gerado pelo órgão fálico, com a excitação clitoridiana. Contudo, ao constatar-se castrada, a menina repudia seu pequeno órgão e nega qualquer prazer advindo dele, pois ele está muito aquém do órgão do menino. A mulher, então, fica insensível.

Já em relação ao que Freud (1931/2006cFreud, S. (2006c). Conferência XXXIII: Feminilidade [Lecture XXXIII: Femininity] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1931)) nomeia como complexo de masculinidade, a menina recusa-se a se reconhecer castrada e “exagera sua masculinidade prévia, apega-se à sua atividade clitoridiana e refugia-se numa identificação com sua mãe fálica ou com seu pai.” (p.129). A saída pela feminilidade normal, por sua vez, se dá quando, com ódio da mãe, a menina volta-se para o pai, esperando obter dele o pênis como objeto fálico. “No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo de ter o pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar de pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica.” (p.128). Aí, o desejo feminino é identificado como sendo, por excelência, o desejo do falo. Freud estaria, portanto, tentando reunir as mulheres num conjunto, o que Lacan ensina não ser possível. É exatamente nesse ponto que Freud estanca, mantendo enigmática a solução feminina.

Dessa forma, percebemos que Freud erige sua tese sobre a sexualidade feminina tendo como referencial o falo e a centralidade da inveja do pênis na vida da mulher, aproximando, como que em equivalência, a feminilidade da maternidade. Com isso, uma tomada de posição feminina autêntica dependeria de que a mulher tivesse um parceiro, e com isso, a solução feminina passaria por um homem. Lacan, por sua vez, complementa em sua leitura do Édipo freudiano, que à menina cabe criar um álibi.

Lacan (1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente [Formations of the Unconscious: The Seminar of Jacques Lacan, Book V]. Jorge Zahar Ed.) indica que a função do Édipo é normatizadora não apenas no campo moral ou nas relações dos sujeitos com o campo da realidade (questão de estrutura), mas também quanto à assunção do sexo. Indica-nos que o complexo de Édipo não é o mesmo que genitalização, pois “há no Édipo a assunção do próprio sexo pelo sujeito, isto é, para darmos os nomes às coisas, aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com suas funções de mulher. A virilidade e a feminização são os dois termos que traduzem o que é, essencialmente, a função do Édipo.” (p.171)

Lacan (1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente [Formations of the Unconscious: The Seminar of Jacques Lacan, Book V]. Jorge Zahar Ed.) divide o complexo de Édipo didaticamente em três tempos. O primeiro tempo é marcado pela posição em que a criança busca satisfazer o desejo materno, identificada ao falo imaginário. No segundo tempo do Édipo, o pai intervém como privador da mãe, remetendo-a a uma lei que não é apenas a dela, mas de quem possuiu seu objeto de desejo. Trata-se do pai proibidor, que intervém no discurso materno anunciando duas proibições: ao filho - não te deitarás com tua mãe - e à mãe - não reintegrarás seu produto. Dessa forma, a criança é retirada do lugar de falo imaginário.

No terceiro tempo edípico, o pai intervém como aquele que detém o falo, invertendo sua posição daquele que priva a mãe do falo para aquele que pode lhe dar o falo. A mãe, por sua vez, pode ter acesso ao falo via o homem, que é quem o possui. O pai aparece nesse momento como permissivo e doador no nível materno, surgindo, pela primeira vez, em seu próprio discurso. E assim,

por intermédio do dom ou da permissão concedidos à mãe, ele [o sujeito], afinal, consegue isto: que lhe seja permitido ter um pênis para mais tarde. Aí está o que é efetivamente realizado pela fase do declínio do Édipo - ele realmente carrega, como dissemos da última vez, o título de posse no bolso. (Lacan, 1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente [Formations of the Unconscious: The Seminar of Jacques Lacan, Book V]. Jorge Zahar Ed., p.212)

Lacan (1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente [Formations of the Unconscious: The Seminar of Jacques Lacan, Book V]. Jorge Zahar Ed.) indica que ter o título de posse “não quer dizer que o menino vá tomar posse de todos os seus poderes sexuais e exercê-los” (p.201). Sabemos que, após o declínio do Édipo, há o período de latência, no qual ocorre o adormecimento das funções sexuais, mas fica ao menino resguardada a sua potência, que poderá ser despertada na puberdade. O processo edípico, dessa forma, interdita uma parte do gozo ao mesmo tempo em que permite outra por meio da significação fálica. É permitido o gozo fálico cifrado pela castração, e é na puberdade que o sujeito poderá servir-se deste gozo, posicionando-se no campo da sexuação. Portanto, o que Lacan nomeia como título de posse é uma autorização que dá ao adolescente o direito de servir-se da significação fálica quando for convocado para isso. No menino, temos a saída do Édipo com sua identificação ao pai como ideal do eu. Já no caso das meninas, o desfecho é outro:

Ela não tem que fazer essa identificação nem guardar esse título de direito à posse da virilidade. Ela, a mulher, sabe onde ele está. Sabe onde deve ir buscá-lo, que é do lado do pai, e vai em direção àquele que o tem. Isso também indica por que uma feminilidade, uma feminilidade verdadeira, tem sempre um toque de uma dimensão de álibi. Nas verdadeiras mulheres, tem sempre algo de extraviado. (Lacan, 1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente [Formations of the Unconscious: The Seminar of Jacques Lacan, Book V]. Jorge Zahar Ed., p.202)

O que Lacan (1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente [Formations of the Unconscious: The Seminar of Jacques Lacan, Book V]. Jorge Zahar Ed.) indica é que as meninas não precisam ter o título de virilidade, pois elas podem acessar o falo dirigindo-se a quem o tem. O trabalho psíquico que se exige das meninas é de estabelecer essa posição de álibi que marca sua saída edípica. Dessa forma, Lacan também demonstra o trabalho a mais que cabe às meninas que é estabelecer essa posição, diferente dos meninos que fazem sua saída edípica pela virilidade, identificados com o pai. Assim, na década de 50, Lacan já indica um extravio da posição feminina, que será mais bem formalizado na década de 70 com a noção do não todo, na qual a mulher se desdobra entre o gozo fálico e o gozo suplementar, ou seja, um extravio em relação ao falo.

Portanto, tanto em Freud como em Lacan o trabalho psíquico necessário na adolescência inclui a sexuação, a tomada de posição na partilha dos sexos. Miller (2015Miller, J. A. (2015). Em direção à adolescência. [Towards adolescence] [oral communication]. 3rd. Journey of the Instituto da Criança. Paris, France.) indica que, mesmo que desde cedo já se reconheçam as disposições sexuais das meninas e dos meninos, “a puberdade, de toda forma, tanto para Freud como para Lacan, representa uma escansão sexual, uma escansão no desenvolvimento, na história da sexualidade.” (p. 2).

A Feminilidade para Além da Lógica Fálica

Jacques Lacan faz um longo percurso em sua teoria sobre a feminilidade. No início, ele mantém a centralidade fálica, subvertendo a lógica entre ter e não ter o falo para a lógica de ter ou ser o falo, na década de 60. Nesse momento, ele aponta que a mulher localiza-se na parceria amorosa como a mascarada, como aquela que se mascara como o falo, localizando-se como objeto causa de desejo do homem.

Na década de 70, Lacan (2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 20: mais, ainda [The seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore]. Jorge Zahar Ed. ) vai discutir a divisão entre os sexos a partir de dois modos de gozos: o gozo fálico e o gozo não todo fálico, ou Outro gozo, tendo como base a sua formulação da tábua da sexuação, construída a partir do recurso da matemática com a lógica proposicional Aristotélica, conforme podemos verificar na figura 1.

Figura 1
Tábua da sexuação

Na parte de cima da tábua, temos os quantificadores. Do lado masculino (esquerdo), temos a universal afirmativa de que todos os homens estão inscritos na função fálica justamente por existir o um da exceção que fundou a regra: o pai primevo, de Totem e Tabu. O pai tirano da horda primeva possuía todas as mulheres, mas negava aos filhos o acesso a elas. É a partir do seu lugar de exceção à lei que se funda a regra no grupo dos homens. Na parte de baixo, temos como o homem se encontra na parceria amorosa. Ele está na posição de sujeito desejante e terá acesso à sua parceira sob a forma do objeto a, mediado pela fantasia.

Já do lado da mulher não há a universal afirmativa, mas sim duas negações: Não existe uma mulher que escape à função fálica ∃ 𝑥 Φ 𝑥 , e não toda mulher está submetida à função fálica ∀ 𝑥 Φ 𝑥 . Portanto, não existe uma mulher que faça exceção à regra e, com isso, não se funda um grupo da mulher, de forma que A mulher não existe. Na parte inferior da tábua, temos a duplicidade a partir da qual a mulher vai se relacionar na parceria amorosa: se, por um lado, ela se direciona ao falo (La →Φ), por outro ela se direciona ao S(Ⱥ), buscando no Outro barrado um significante que lhe diga o que é uma mulher. No entanto, não há o Outro do Outro, não há um significante dessa falta do Ⱥ e, dessa forma, a demanda da mulher se infinitiza, não sendo regulada pelo registro fálico. Lacan (2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 20: mais, ainda [The seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore]. Jorge Zahar Ed. ) chama esse gozo de gozo Outro, tendo como paradigma o gozo místico. Dessa forma, pode-se pensar o não todo como sendo não da ordem de uma ausência, de um a menos, mas como da ordem do a mais, do suplementar, do infinito. E aí a mulher tem mais liberdade que o homem, podendo se inventar, criando assim seu álibi.

Não é que Lacan (2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 20: mais, ainda [The seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore]. Jorge Zahar Ed. ) exima as mulheres da submissão ao registro fálico, mas indica que o registro fálico não diz tudo sobre o gozo feminino e sobre a mulher. “Não é porque ela é não toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela está lá toda. Mas há algo mais.” (p. 101). Portanto, não sendo toda circunscrita pelo falo, não há A mulher, mas uma mulher, que vai, à sua maneira, lidar com a ausência de significante que lhe diga o que é uma mulher. Ao não poder se identificar com A mulher há um apelo à identificação sexuada, como orienta Soler (1998Soler, C. (1998) A histérica e a mulher: clínica diferencial [The hysteric and the woman: differential clinic]. In C. Soler . A psicanálise na civilização. (pp. 223- 253). Contracapa.). A autora propõe que ao não poder especificar-se como uma por seu gozo, a mulher pode “ao menos ser a mulher de um homem” (p. 249), exigindo um amor exclusivo.

O amor, portanto, tem estruturalmente um lugar privilegiado para as mulheres. Ele tem como princípio o Ⱥ, o não todo, o sem limites, e a devastação é seu outro nome. Enquanto no lado masculino temos como rubrica do modo de gozar o sintoma, do lado feminino temos a devastação. Tomando como metáfora devastar uma região, a devastação é uma depredação sem limites.

Esse apelo ao amor, quando não respondido, pode levar à devastação. A devastação parte da relação mãe e filha e faz sua aparição na vida amorosa. A devastação está ligada ao gozo feminino, que “está direcionado ao Outro, ao amor do Outro, sob a forma do S(Ⱥ). É nessa vertente que a demanda de amor surge com toda a sua insistência” (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 20: mais, ainda [The seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore]. Jorge Zahar Ed. , p.87) e pode devastar. Há na devastação uma sujeição ao desejo e demanda do outro. Soler (1995Soler, C. (1995). Ser sintoma. In C. Soler . Variáveis do fim de análise. (pp. 119-156). Papirus.) propõe que a devastação indica um sujeito à mercê da vontade, do desejo e da demanda do Outro. Enquanto a máscara é utilizada para se inscrever na parceria, “há devastação quando saímos da mascarada, quando a mascarada que ficou sobre uma cena transborda e realiza-se como sujeição real, sujeição realizada” (p.127). Parece-nos, então, que a devastação é uma tendência estrutural no caso das mulheres, em consequência da própria forma de amar erotomaníaca.

A devastação é uma depredação que se estende a tudo, que não conhece limites, e é em função dessa estrutura que o Outro pode ser o parceiro-devastação, mas pode também, ser o modo como acontece o arrebatamento para a mulher, pois a palavra francesa ravage (devastação) tem a mesma raiz de ravir de ravissement (arrebatamento)... Arrebatar é levar a um estado de felicidade suprema e tem, por isso, um valor erotômano. Temos, portanto, no horizonte da erotomania, no melhor dos casos, o arrebatamento e, no pior, a devastação. (Alvarenga, 2003Alavarenga, E. (2003). Devastação na Psicose [Devastation in Psychosis]. Clique - Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano. 2, 45-49., p.46)

Assim, Lacan acrescenta à lógica fálica outro lado da posição feminina. Se é na puberdade que haverá a sexuação, é também na puberdade que as meninas irão construir sua saída feminina. É isto que sugere Lacan. Na medida em que não existe A mulher, cada uma terá que construir sua feminilidade de forma singular.

Adolescência e o Despertar da Primavera.

A primavera evoca este momento de desamparo da puberdade, que é também o tempo das descobertas. No texto Prefácio a O Despertar da Primavera, Lacan (2003aLacan, J. (2003a). Prefácio a: O despertar da primavera [Preface to The Awakening of Spring]. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 557-559). Jorge Zahar Ed.) afirma que “o que Freud demarcou daquilo a que chama sexualidade faça um furo no real, eis o que se percebe pelo fato de que, como ninguém escapa ileso, as pessoas não se preocupem com o assunto.” (p. 558). O real do gozo que irrompe na vida dos personagens da peça é causa de múltiplos efeitos e passagens ao ato. Cada um vai, a seu modo, confrontado com a questão sexual, inventar uma resposta. Lacan também indica que pelo fato da sexualidade fazer furo no real, é preciso do recurso da fantasia para que o sujeito adolescente possa saber fazer com a sexualidade.

Na peça, fica evidente a angústia de Moritz, que se divide entre ser aprovado no ano letivo para não decepcionar seus rígidos pais e a curiosidade em relação ao sexo, sobre o qual nada sabe. Em busca de uma resposta para esse não saber, revira a enciclopédia, mas só encontra “(...) palavras e mais palavras!” (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
https://docplayer.com.br/14360062-O-desp...
, p.10), indicando que o conhecimento sobre o sexo escapa à articulação significante. Frente à inexistência desse saber, Moritz pede que seu amigo Melchior lhe escreva sobre o que sabe e coloque dentro de um livro.

Melchior, criado de forma mais livre que o amigo, encontra no saber uma forma de tentar articular o desconhecimento sobre o sexo. No entanto, ele se depara com o enigma sobre o gozo feminino e não consegue compreender o prazer de sua amiga Wendla em ajudar aos pobres. Ele sabe que meninos e meninas são diferentes, mas não sabe como as coisas se passam com o sexo oposto, buscando, então, a construção de um saber sobre o Outro sexo.

As personagens femininas da peça Wendla, Martha e Ilse, são as que nos interessam aqui. Elas, confrontadas com a questão sexual, nos ensinam algo sobre o feminino e dão a ver suas invenções singulares na construção de uma resposta ao tornarem-se mulheres. De acordo com Page e Jodeau-Belle (2015Page, C., & Jodeau-Belle, L. (2015). Le non-rappport sexuel à`l`adolescence. Presses Universitaires de Rennes. ), Wendla busca dar um sentido ao real que irrompe e inventa uma fantasia que passa pela fustigação e violência do homem. A explicação que ela constrói para tamponar o buraco do real a mantém em uma posição de objeto que ela ocupava em relação à mãe. Martha, por sua vez, não aparece colada à mãe e mantém certo distanciamento das punições que lhes são infligidas pelos seus pais. Sua posição subjetiva se constrói em torno de um projeto de rebelião. Ela permitirá a seus filhos aquilo que lhe foi interdito. Ilse vive um gozo sem limite. Ela exibe a posição do corpo que goza, decidida a gozar até a morte; gozar por gozar, sem par e sem amor. Vamos nos ater primeiramente à Wendla e sua impossibilidade de aceder à feminilidade.

A peça se abre com um diálogo entre Wendla e sua mãe. A mãe percebe a transformação do corpo de menina e oferece à filha um vestido longo, tal como uma mocinha deve se vestir. Wendla, ao mesmo tempo em que mostra um desejo de saber sobre a questão sexual, quer continuar menina, de vestido curto. Ao seu desejo de saber, a mãe responde com o silêncio e com motivos dissimulados para o vestido longo. Wendla permanece irredutível na sua posição de recusa dos semblantes femininos. Sua posição, veremos mais adiante, será modificada a partir do encontro com Melchior. Contudo, seu desejo de saber sobre o sexual não cede. Quando a mãe lhe anuncia que sua irmã teve um bebê, Wendla quer saber sobre a questão da reprodução ao que a mãe lhe responde com a história da cegonha, que já não lhe convence completamente, pois “com quatorze anos ninguém mais acredita nessa história de cegonha” (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
https://docplayer.com.br/14360062-O-desp...
, p.19). Page e Jodeau-Belle (2015Page, C., & Jodeau-Belle, L. (2015). Le non-rappport sexuel à`l`adolescence. Presses Universitaires de Rennes. ) afirmam que Wendla pede que sua mãe a reconheça enquanto sujeito, na medida em que, por meio de perguntas endereçadas ao Outro (à mãe), ela busca ser considerada enquanto ser de gozo, naquilo que ela não pode nomear e que lhe é enigmático. Entretanto, como veremos, a educação almejada pela mãe exclui a questão sexual.

Contudo, a questão sexual se conjuga não somente no desejo de saber sobre a reprodução, mas também em um interesse inusitado, quando Wendla ouve sua amiga Martha contar dos espancamentos que o pai lhe inflige, chegando a dizer que gostaria de ficar em seu lugar. Wendla responde a esse furo no real do sexo com a construção de uma fantasia masoquista, que ela confiará a Melchior em seu encontro. Ela lhe conta um sonho no qual ela era uma menina pobre e que o pai a enviava para pedir dinheiro a homens brutos e cruéis que lhe batiam. Ela explica que sua amiga Martha sempre é espancada pelo pai e que desejaria ficar no lugar dela. Wendla pede então a Melchior que bata nela para que ela saiba como é, atualizando sua fantasia masoquista de ser espancada pelo pai. Inicialmente ele recusa, mas termina por ceder. Wendla diz que não dói e sobe as saias para que ele possa acertá-la com mais força, ao que Melchior responde atacando-a com violência e furor. Após o ato, Melchior é tomado pela angústia e foge para a mata.

Após essa cena, Wendla insiste e se dirige mais uma vez à mãe e diz que não dorme enquanto não souber como os bebês vêm ao mundo e, que se não lhe responder, ela irá perguntar à sua irmã ou mesmo ao limpador de chaminés. Envergonhada, diz que colocará a cabeça entre as saias da mãe para que essa possa lhe contar. A mãe, por fim, oferece uma resposta articulando a reprodução ao amor e ao casamento. Em sua explicação, Sra. Bergman oculta a sexualidade e o gozo:

Se você quer ter um bebê, você tem que amar o homem - o homem que é seu marido - você tem que amar esse homem, amar de verdade, só como uma mulher pode amar um homem. Você tem que amar tanto - com todo seu coração e todo, tanto que... Nem se pode dizer com palavras. Você tem que amar esse homem de um jeito que uma menina da sua idade ainda não sabe amar. É isso. Pronto. (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p.22)

Wendla renuncia ao saber e aceita como verdade o dito materno. As duas estão coladas imaginariamente, de forma que Wendla aceita prontamente a explicação da mãe. Contudo, sua investigação e a busca de uma resposta para suas questões, respeitando o dito materno, a conduzem à experiência sexual. Em um segundo encontro com Melchior, quando este tenta lhe beijar, ela diz: “as pessoas se amam quando se beijam... Não, Melchior!” (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p.24). Contudo, Melchior lhe garante que não há amor. “Amor não existe. Não existe, sabe? Só o que existe é o interesse. Eu te amo tão pouco quanto você me ama” (p. 24). Page e Jodeau-Belle (2015Page, C., & Jodeau-Belle, L. (2015). Le non-rappport sexuel à`l`adolescence. Presses Universitaires de Rennes. ) veem aí a posição sadiana do direito ao gozo. Como afirma Lacan (2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 20: mais, ainda [The seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore]. Jorge Zahar Ed. ), o gozo do corpo do Outro não é signo do amor.

Após esta experiência sexual, Wendla se enche de alegria, não consegue controlar o riso, sente que os pés não podem tocar o chão. “Eu nem sei achar palavras para explicar isso” (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p. 25), diz a adolescente. Ela decide usar o vestido longo, aceitando os semblantes da feminilidade. No encontro sexual, Wendla conhece algo da verdade do seu gozo, que não tem relação com o amor. Quando a mãe descobre sua gravidez, ela responde que não amou ninguém mais do que a mãe.

Na relação entre Wendla e sua mãe, não há lugar para o pai, que não surge em nenhum momento da peça. Essa relação parece indicar o que Lacan (2003bLacan, J. (2003b). O aturdito [The stunned]. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 448-497). Jorge Zahar Ed. ) nomeia como devastação:

A elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade da devastação que constitui na mulher sua relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai - o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação. (p.465)

O que Lacan (2003bLacan, J. (2003b). O aturdito [The stunned]. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 448-497). Jorge Zahar Ed. ) parece indicar é que nessa busca por substância de seu ser feminino, inconsistente por estrutura, a menina vai em direção à mãe. Se a filha está para a mãe no lugar de falo, como aquilo que poderia completá-la, o que ela encontra é a devastação, em vez de uma transmissão possível de um ponto do feminino. Essa é uma vertente da devastação, que coloca a menina como objeto fetiche da mãe. Marcos (2011Marcos, C. (2011). Mãe e filha: Da devastação ao amor [Mother and daughter: From devastation to love]. Tempo Psicanalítico, 43 (2), 269-284.) orienta que a devastação é tomada por Freud como catástrofe, quando ele se refere que, superada a catástrofe da relação pré-edipiana mãe e filha, a criança pode se direcionar ao pai como objeto, estando a devastação ligada ao destino do falo na menina. Como já dissemos, na construção da sexualidade feminina, temos um período que antecede o Édipo, no qual a mãe é o primeiro sedutor e também primeiro a proibir à filha a expressão da sexualidade.

Frente à gravidez de Wendla, a Sra. Bergman interroga a filha: “Como você fez isso comigo?” (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p. 34), mostrando aí uma não separação mãe e filha, como se a filha que a tornasse completa. Wendla não consegue entender como a gravidez surgiu e afirma: “Eu não sei, mãe. A gente estava lá. Deitado em cima da palha. Mas eu juro que nunca amei mais ninguém no mundo, que não fosse você, mãe!” (p.34). Essa jura de amor tão decidida à mãe parece indicar que não há entre elas o espaço para o amor de um homem, de forma que a filha ocuparia para a mãe o lugar de objeto fálico. A adolescente não toma nenhuma decisão em relação à gravidez e ao aborto. É a mãe, tomando a filha como objeto, que decide pela interrupção da gravidez, o que leva Wendla à morte.

Se a devastação comporta uma face fálica de reivindicação ligada ao desejo da mãe, ela também aponta para a dificuldade de simbolização do gozo feminino, cujo âmago se revela no momento em que a filha entra em contato com o que da mãe não se reduz ao desejo e ao falo, mas diz respeito a uma ausência de limite (Brousse, 2002Brousse, M. H. (2002). Une difficulté dans l’analyse des femmes: le ravage du rapport à la mère. Ornicar? Revue du Champ Freudien, 50, 93-105.). Wendla se depara com essa face do desejo da mãe, marcada por uma ausência de limite mortífera.

La Sagna (2009La Sagna, P. (2009). L'adolescence prolongée, hier, ajourd'hui et demais [Extended adolescence, yesterday, today and tomorrow]. Mental- Revue internacionale de psychanalyse, 23, 17-28.) lembra que, para Lacan, a adolescência é por excelência o fato de que o sujeito passa da posição infantil de desejado à posição de desejante. Como criança, o sujeito é desejado ou não e, a partir da adolescência, ele é convocado a se propor como desejante. No seminário sobre a angústia, Lacan afirma: “Propor-me como desejante, eron, é me propor como falta de A" (Lacan, 2005Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: A angústia [Anxiety: The Seminar of Jacques Lacan]. Jorge Zahar Ed. , p. 198). O objeto separador é aquele que produz um desejo, a partir do momento em que eu me proponho como desejante, como falta do objeto. A dificuldade de Wendla parece ser a de se constituir com desejante, ela permanece como objeto de desejo da mãe. Sua gravidez, fora do casamento e do amor, prova do gozo, não é aceitável. A mãe lhe fará abortar e Wendla morre.

Ilse, por sua vez, faz um caminho diferente do de Wendla. A adolescente aparece no início da peça colocando flores no caixão de Moritz. Antiga colega do grupo de amigos, Ilse abandonou a escola para se tornar uma prostituta. Enquanto os amigos encontram-se embaraçados com as questões que o encontro sexual suscita, ela se coloca a serviço do gozo, o que não é sem riscos. Um pouco antes do suicídio de Moritz, ela o encontra e conta que estava há quatro dias fora de casa, na Falópia “na casa do Nohl, do Fehrendorf, do Padinsky, do Lenz, do Rank, do Spüller - todos!” (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p. 27). Ela conta a Moritz o que acontece em sua vida, a diversão e também os riscos que já correu. Uma vez, foi encontrada inconsciente na sarjeta por um conhecido - Heinrich. Ele a achou e a levou para a casa dele. Lá, ela tinha que encenar todas as suas fantasias. Ilse se coloca a serviço do gozo de todos seus clientes, a serviço do gozo de todos eles (Page & Jodeau-Belle, 2015Page, C., & Jodeau-Belle, L. (2015). Le non-rappport sexuel à`l`adolescence. Presses Universitaires de Rennes. ). Isso, porém, não exclui seu gozo. Lacan (2003cLacan, J. (2003c). Televisão [Television]. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 508-543). Jorge Zahar Ed.) afirma que para a mulher é mais difícil dizer de suas fantasias, então

ela se presta, antes, à perversão que considero ser d´O homem. O que leva à mascarada que conhecemos, e que não é a mentira que lhe imputam os ingratos, por aderir a O homem. É mais o haja-o-que-houver do preparar-se para que a fantasia d´O homem que há nela encontre sua hora da verdade. Isso não é exagero, visto que a verdade já é mulher, por ser não toda - não toda a se dizer, em todo caso. (p.538)

Parece que essa é a saída de Ilse que, não podendo dizer de sua verdade como mulher, quando o corpo púbere a convoca para isso, presta-se às fantasias dos homens, para talvez nelas encontrar suas respostas. A jovem prostituta conta a Moritz que foi resgatada de uma delegacia, após fugir de Heinrich, por seus amigos pintores:

Eles me tiraram de lá. Num carro alugado. Desde esse dia, eu sou fiel a todos eles. O Fehrendorf é um gorila. O Nohl é um porco. O Bojokewitsch um burro. Mas amo todos eles e não quero mais ninguém, mesmo que o resto dos homens fossem anjos e milionários. (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p. 29)

Relembrando as brincadeiras de infância, Ilse faz um convite para que Mortiz vá com ela até sua casa, mas o jovem, embaraçado, nega o encontro sexual feito pela amiga. Ilse não demonstra inibição em relação à sexualidade e se coloca como objeto de gozo de seus parceiros. Isso, porém, não dispensa o terror (Page & Jodeau-Belle, 2015Page, C., & Jodeau-Belle, L. (2015). Le non-rappport sexuel à`l`adolescence. Presses Universitaires de Rennes. ), quando ocorre o encontro com Heirich. Ilse conta a Moritz que, quando estava refém dele, tinha pesadelos à noite e que este a ameaçava, colocando o cano de revolver em sua boca. Ortiz (2014Ortiz, M. E. R. (2014). Despertar de la adolescência Freud y Lacan, lectores de Wedekind. Gama Ediciones. ), em seu trabalho sobre a peça, fala sobre os pesadelos, mas tendo como foco o personagem Moritz. Ele nos adverte que a angústia nos sonhos é o limite onde fracassa a capacidade dos sonhos em realizar o desejo. Moritz passa toda a peça angustiado com as questões suscitadas pela sexualidade, sem conseguir colocar em palavras as questões do real sexual que irrompem no momento da puberdade. Ortiz afirma que a excitação sexual se transforma em angústia quando não tem representação para ser ligada, que é o que ocorre em Mortiz. Parece-nos que no encontro de Ilse com Heirich isso também ocorre. As questões sexuais mescladas com violência que o jovem dirige a ela parecem não se ligarem a representações. Se no campo sexual ela consegue ligá-las a partir do ponto em que se coloca como realizadora de fetiches dos parceiros, isso muito se difere da relação com Heirich, pois ele coloca a vida da jovem em risco. Na mistura da sexualidade com a violência, parece não haver para a jovem a capacidade de ligá-las a uma representação. Page e Jodeau-Belle (2015Page, C., & Jodeau-Belle, L. (2015). Le non-rappport sexuel à`l`adolescence. Presses Universitaires de Rennes. ) apontam que o que está em jogo em Ilse é o encontro sexual livre, independente da moral e do amor, e da parceria fixa, ela ama a todos seus homens. Ilse coloca em cena a reivindicação de um gozo livre de todo discurso moralista.

Entendemos que Ilse faz dois movimentos em relação à construção de sua feminilidade: por um lado, ao satisfazer os fetiches de todos seus parceiros, ela se inscreve na lógica fálica, mas, por outro lado, quando reivindica ser livre da moral, ela parece buscar um gozo sem limites, um gozo não-todo fálico, algo que experimenta em seu próprio corpo. Se Melchior busca no saber formal uma tentativa de articulação do significante sobre o sexual, Ilse coloca seu corpo a serviço disso; essa parece ser sua resposta adolescente ao que insiste sem resposta. Por outro lado, ela também vai construindo sua feminilidade ao dizer que ama todos esses homens, mesmo que sejam eles burros, porcos ou gorilas. Isso, pois Lacan (2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 20: mais, ainda [The seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore]. Jorge Zahar Ed. ) ensina que o amor é uma forma possível de dar consistência ao ser feminino, ainda que isso não lhe diga nada de seu gozo. Parece que, como prostituta, Ilse encontra seu álibi para buscar o falo do lado dos parceiros.

Sobre Marta, temos poucos elementos para pensar sua construção da feminilidade e da adolescência. Ela, objeto de gozo dos pais, é espancada diariamente por eles. Quando questionada pela Wendla sobre os espancamentos, ela diz acreditar que, se ela não existisse, a vida dos pais seria vazia e não deixa de reconhecer o gozo encontrado pelos pais no espancamento:

Eles gostam. Eles não falam, mas eu tenho certeza que eles adoram fazer aquilo. Quando eu tiver filhos, quero que eles cresçam como mato no jardim. Todo mundo ignora o mato e ele cresce forte, alto. As rosas, cheias de cuidados, dão flores cada vez mais raquíticas. Aí, numa primavera, nem isso. Claro - estão mortas. (Wedekind, 1991Wedekind, F. (1991). O Despertar da Primavera [Awakening of Spring]. https://docplayer.com.br/14360062-O-despertar-da-primavera.html
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, p. 9)

Se os relatos de Martha resvalam numa fantasia masoquista de Wendla, a jovem, por sua vez, mostra não encontrar satisfação desse modo. Por outro lado, talvez Martha tente encontrar nas amigas - Wendla e Thea (esta última mencionada sem detalhes na peça) - algo que oriente na sua constituição da feminilidade, ao queixar de seu penteado com tranças e a proibição dos pais em deixá-la ter o cabelo como o das amigas. Parece que, presa como objeto de gozo do casal parental, Martha não encontra artifícios para a construção de sua feminilidade.

Considerações Finais

Neste artigo, buscamos indagar a vicissitudes das saídas adolescentes para as meninas e conjugar o trabalho de construção de uma feminilidade que se dá no momento da puberdade. Por mais que como Freud (1905/2006aFreud, S. (2006a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [Three essays on the theory of sexuality] (J. Strachey, Ed., J. Salomão, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado 1905) ) mesmo afirme que na tenra infância já se encontram traços distintivos entre os sexos, é na puberdade que, nas palavras de Miller (2015Miller, J. A. (2015). Em direção à adolescência. [Towards adolescence] [oral communication]. 3rd. Journey of the Instituto da Criança. Paris, France.), haverá a escanção sexual. Também seguimos a orientação de Lacan (1999Lacan, J. (1999). O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente [Formations of the Unconscious: The Seminar of Jacques Lacan, Book V]. Jorge Zahar Ed.) de que é na puberdade que os meninos usufruirão do título de virilidade forjado no Édipo. E, interpretando a posição lacaniana, entendemos que seria também na puberdade que a menina encontraria seu álibi para construir a sua feminilidade.

A psicanálise, que não desconsidera o corpo na construção da sexuação, propõe que o que está em jogo no tornar-se homem ou mulher é uma ética sexuada, de forma que ser mulher ou ser homem diz respeito a como o desejo se articula nessa construção. Adolescência e construção da feminilidade trazem em comum um ponto de embaraço: a sexuação, a forma de se posicionar na partilha dos sexos e criar respostas para as questões que o corpo púbere exige para o furo real do sexo com o qual se confrontam.

Além disso, a adolescência tomada como um sintoma da puberdade, segundo elaboração de Stevens (2004Stevens, A. (2004). Adolescência, sintoma da puberdade: Clínica do contemporâneo [Adolescence, symptom of puberty: Clinic of the contemporary]. Revista Curinga, 20, 27-39. ), exige do sujeito um esforço para que ele crie sua resposta frente à inexistência de respostas prontas sobre o encontro sexual. Esse sexual não é apenas em seu sentido biológico, pois a psicanálise em muito ultrapassa a biologia. O sexual em questão é o encontro com o Outro sexo. Concordamos com Lacan (2003aLacan, J. (2003a). Prefácio a: O despertar da primavera [Preface to The Awakening of Spring]. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 557-559). Jorge Zahar Ed.) que este é um encontro mal sucedido para todos.

Nesse encontro, diversas respostas são possíveis e escolhemos pensar essas respostas a partir da peça, por duas razões: primeiro, pela proposição freudiana de que os poetas sempre chegam antes da ciência; e pela advertência de Lacan (2003aLacan, J. (2003a). Prefácio a: O despertar da primavera [Preface to The Awakening of Spring]. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp. 557-559). Jorge Zahar Ed.) de que Wedekind adianta Freud, tendo em vista que em 1891, data original da peça, Freud ainda não havia formulado sua teoria sobre a sexualidade.

Wendla e Ilse, personagens eleitas por nós, ensinam que, frente ao enigma proposto pela sexualidade na puberdade e à pergunta de como tornar-se mulher, temos formas diferentes de responder. Enquanto a primeira fica presa à resposta materna, a segunda inventa uma resposta com seu próprio corpo. As duas nos ensinam, no entanto, que o encontro com o homem traz sua marca: o encontro de Wendla com Melchior a fará se deparar com o gozo do próprio corpo que se revela em um sorriso que não tem fim, enquanto Ilse faz A mulher quando se presta à fantasia masculina.

Para concluir, vale lembrar que as respostas das personagens são respostas possíveis, mas não são universais, já que, como propõem Lacan na década de 1970, não há um universal que diga d’A mulher, de forma que cabe a cada uma inventar-se na construção de sua feminilidade.

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    Apoio: FAPEMIG

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2017
  • Revisado
    03 Jun 2019
  • Aceito
    02 Nov 2019
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