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Sentidos Atribuídos por Profissionais de Psicologia sobre a Redução de Danos

Meanings Attributed by Psychologists about Harm Reduction

Resumo

O psicólogo é um profissional muito presente nas políticas públicas destinadas aos usuários de drogas. Essas políticas vinham indicando a Redução de Danos enquanto princípio do cuidado. No entanto, desde sua introdução como diretriz, ela tem sido fruto de equívocos e resistências. Este estudo exploratório de metodologia qualitativa teve como objetivo compreender os sentidos atribuídos pelos psicólogos sobre a Redução de Danos, analisando as repercussões sobre suas práticas. Os dados provenientes de entrevistas apontam que a Redução de Danos tem sido tomada de maneira reducionista como estratégia de diminuição do uso e contrária à abstinência. Conclui-se que essa simplificação da proposta da Redução de Danos mostra a necessidade de ampliar essa discussão no campo da Psicologia e na sociedade.

Palavras-chave:
redução de danos; psicologia; drogas; assistência em saúde

Abstract

The psychologist is a professional who has been present in public policies aimed at drug users. These policies had been indicating Harm Reduction as a principle of care. However, since its introduction as a guideline, it has been the result of mistakes and resistance. This exploratory study of a qualitative methodology aimed to understand the meanings attributed by psychologists about Harm Reduction, analyzing the repercussions on their practices. The data from interviews show that Harm Reduction has been taken in a reductionist way as a strategy for reducing use and against abstinence. It is concluded that this simplification of the Harm Reduction proposal shows the need to expand this discussion in the field of Psychology and society.

Keywords:
harm reduction; psychology; drugs; health care

O campo da assistência à saúde de usuários de álcool e outras drogas no Brasil tem sido palco de inúmeras ambiguidades provenientes de decisões políticas, que ora tem tomado posicionamentos autoritários e higienistas em decorrência da suposta urgência em que se declara uma epidemia do uso de drogas (Bicalho, 2013Bicalho, P. P. (2013). Em Nome da Proteção do Cuidado, que Formas de Sofrimento e Exclusão Temos Produzido?. Em Conselho Federal de Psicologia (Org.). Drogas, Direitos Humanos e Laço Social (pp. 17 - 21). Conselho Federal de Psicologia - CFP.), ora buscam alternativas mais pragmáticas e condizentes com o respeito aos direitos humanos. Em nome do cuidado e utilizando a justificativa da suposta incapacidade de decidir sobre a própria vida, algumas iniciativas equivocadas, como é o caso da promoção de internações compulsórias como política pública, tem incitado a privação de liberdade como método mais adequado para o tratamento da dependência de drogas.

Alguns autores como Karam (2013Karam, M. L. (2013). Direitos Humanos, Laço Social e Drogas: Por uma Política Solidária com o Sofrimento Humano. Em Conselho Federal de Psicologia (Org.), Drogas, Direitos Humanos e Laço Social. (pp. 33 - 51). CFP.) tem apontado o fracasso das políticas proibicionistas baseadas na ideologia de “Guerra às drogas” que, ao invés de promoverem benefícios para a sociedade, trazem contraditoriamente uma série de efeitos maléficos, como o incremento da violência, o aumento da população carcerária e métodos de cuidado que não interferem na persistência do desejo humano em usar substâncias psicoativas. Um dos reflexos da influência desse paradigma é a transformação dos profissionais de assistência à saúde na sua função de cuidadores para a de delatores dos desviantes da sociedade. Por reforçar o uso de substâncias como algo indesejável para o comportamento humano, cria-se uma atmosfera propícia para a construção de uma tendência punitiva dos sujeitos usuários de drogas e, consequentemente, a violação de direitos humanos (Alvarenga et al., 2018Alvarenga, R.; Silveira, J.; & Teixeira, D. (2018). Política de Drogas no Brasil no Cenário de Violações aos Direitos Humanos. Argumentum, 10(3), 123-136. https://doi.org/10.18315/argumentum.v10i3.20841
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).

Segundo Lima et al. (2011Lima, A. F., Gonçalves Neto, J. U., & Lima, M. S. (2011). Las Leyes de Drogas en Brasil y su Relación en la Producción de Políticas de Identidad: Un Análisis de los Procesos de Estigmatización y Promoción de la Alteridad, desde la Perspectiva de la Psicología Social. Salud & Sociedad, 2(2), 135 - 149. https://doi.org/10.22199/S07187475.2011.0002.00002
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), as legislações sobre o uso e a proibição de substâncias, que no Brasil seguiram os padrões internacionais durante certo tempo, contribuíram para a produção de identidades marginais e estigmatizadas dos usuários sem levar em conta as diversas nuances dessa realidade. A função de controle e vigilância que atribuem as legislações e algumas práticas produzidas acabam por trazer consequências negativas sobre a relação de quem cuida e de quem é assistido nos serviços de saúde. Desse modo, há o fomento de uma atitude de desconfiança dos profissionais com relação aos usuários que tende a produzir afastamento e dificuldades em estabelecer o vínculo necessário à proposição de um projeto de cuidados.

Em contraponto a esse modelo, a Redução de Danos (RD), enquanto um princípio político para pensar a questão das drogas, foi assumida, pela primeira vez no Brasil, como uma estratégia de saúde pública para o cuidado com os usuários de álcool e outras drogas na cidade de Santos (Santos & Miranda, 2016Santos, V. B., & Miranda, M. (2016). Projetos/Programas de Redução de Danos no Brasil: Uma Revisão de Literatura. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, 5(1), 106 - 118. http://dx.doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i1.841
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). Essa inserção não se deu isenta de conflitos, pois, como afirma Lancetti (2008Lancetti, A. (2008). Clínica Peripatética. Hucitec.), o secretário de Saúde do município e o coordenador de atenção à AIDS na época foram processados e acusados de incitar o uso de drogas e as ações instituídas foram interrompidas judicialmente.

O Ministério da Saúde, no desenvolvimento de suas diretrizes, vinha apoiando oficialmente, desde o ano de 2003, ações em Redução de Danos, assegurando sua inserção no sistema público de saúde através da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral aos usuários de álcool e outras drogas (Ministério da Saúde, 2004Ministério da Saúde (2004). A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas (2ª Ed.). Ministério da Saúde. ), como também em outros marcos regulatórios. Observou-se, porém, que as poucas iniciativas na implementação de programas e serviços de baixa exigência, que tinham a RD como norte, indicaram uma dificuldade na assimilação desses princípios e no reconhecimento da validade da proposta e do usuário como sujeito de direitos (Souza & Carvalho, 2015Souza, T., & Carvalho, S. R. (2015). Reduzindo Danos e Ampliando a Clínica: Desafios para a Garantia do Acesso Universal e os Confrontos com a Internação Compulsória. Em Minsitério da Saúde. Caderno Humanizasus (Saúde Mental - vol. 05). (pp.215 -232). Ministério da Saúde.).

Com esse processo de embates entre o modelo de cuidado que se deu ao longo do tempo, vimos surgir na atualidade, com as modificações trazidas pela Lei nº 13.840/2019, que o Brasil deixa de assumir a Redução de Danos enquanto perspectiva do cuidado para apostar na abstinência e na lógica proibicionista como abordagem ao uso de drogas (Tatmatsu et al., 2020Tatmatsu, D. I. B., Siqueira, C. E., & Prette, Z. A. P. D. (2020). Políticas de Prevenção ao Uso de Drogas no Brasil e nos Estados Unidos. Cadernos de Saúde Pública, 36(1), 01-13. http://doi.org/10.1590/0102-311x00040218
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).

A Redução de Danos pode ser definida como um conjunto de medidas em saúde que tem a finalidade de minimizar as consequências adversas do uso/abuso de drogas. Essas ações devem levar em consideração que nem todos as pessoas desejam largar o uso de drogas ou consigam parar de utilizá-las. Sendo assim, se percebe que a RD se configura como um dispositivo da Reforma Psiquiátrica brasileira na afirmação do usuário em sua autonomia e sua condição de sujeito de direitos ao ser coparticipante da produção de seu cuidado (Santos & Malheiro, 2010Santos, V. E., Soares, C. B., & Campos, C. M. (2010). Redução de Danos: Análise das Concepções que Orientam as Práticas no Brasil. Physis, 20(3), 995-1015. https://doi.org/10.1590/S0103-73312010000300016
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).

Outros autores como Petuco (2014Petuco, D. R. (2014). Redução de Danos: das Técnicas à Ética do Cuidado. Em T. Ramminger, & M. Silva (Orgs.). Mais Substâncias para o Trabalho em Saúde com Usuários de Drogas. (pp. 133 - 148). Rede Unida.) demarcam a Redução de Danos não apenas como um conjunto de estratégias, mas como um marco ético, estético e político, na forma de organizar as ações de cuidado e de se colocar diante das pessoas que usam drogas no trabalho assistencial. Nesse sentido, a RD é um conceito que se articula com princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS), como a integralidade do cuidado e a clínica ampliada como um modo de compreender e abarcar as demandas do usuário em sua singularidade e complexidade.

Ainda assim, há quem sustente que é preciso perceber que a RD se apresenta de maneira bastante heterogênea em sua aplicação. Pode-se concluir, a partir dessa visão, que existem diferentes sentidos sobre a RD, expressando tendências que vão se constituindo no Brasil como respostas aos problemas relacionados com o fenômeno das drogas. Essa multiplicidade de sentidos tem significado o envolvimento das diversas áreas de conhecimento na ampliação dese debate (Santos et al., 2010Santos, A. M., & Malheiro, L. (2010). Redução de Danos: Uma Estratégia Construída para Além dos Muros Institucionais. Em Nery Filho, A. & Valério, A. L. (Orgs.), Módulo para Capacitação dos Profissionais do Projeto CR. (pp.49 - 53). Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas.). Além disso, a perspectiva repressiva de uma política de guerra às drogas, que ganhou reforço na política brasileira a partir de 2018, acabou por fortalecer a percepção da RD como uma iniciativa marginalizada na sociedade, apresentando, assim, um significativo retrocesso no cuidado em saúde mental aos usuários de álcool e outras drogas (Prudêncio & Senna, 2018Prudêncio, J. D. L., & Senna, M. D. C. M. (2018). Retrocessos na Atenção a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Argumentum, 10(3), 79-93. http://10.18315/argumentum.v10i3.20854
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).

Sabendo que historicamente os usuários de drogas têm sofrido com estigmas e estereótipos negativos, muitas vezes vindos de profissionais de saúde (Oliveira et al., 2013Oliveira, M. C., Martins, L.F., Richter, K., & Ronzani, T.M (2013). Evaluation of an Intervention to Reduce Health Professional Stigma Toward Drug Users: A Pilot Study. Journal of Nursing Education and Practice, 3(5), 1 - 11. https://doi.org/10.5430/jnep.v3n5p138
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), encontramos no cenário brasileiro uma situação na qual a ampliação da oferta de serviços em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas vem marcando presença, reforçando a lógica do isolamento e da exclusão como forma de cuidar (Prudêncio & Senna, 2018Prudêncio, J. D. L., & Senna, M. D. C. M. (2018). Retrocessos na Atenção a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Argumentum, 10(3), 79-93. http://10.18315/argumentum.v10i3.20854
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).

Na visão de Passos e Souza (2011Passos, E. H., & Souza, T. P. (2011). Redução de Danos e Saúde Pública: Construções Alternativas à Política Global de “Guerra às Drogas”. Psicologia & Sociedade, 23(1), 154 - 162. https://doi.org/10.1590/S0102-71822011000100017
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), a produção histórica do estigma do usuário de drogas como perigoso ou doente parece estar entre um dos problemas que a RD passa a enfrentar quando se afirma como política e método de cuidado. Sendo assim, se percebe como relevante levantar as questões envolvidas na aplicação desse princípio para as práticas nos serviços de saúde. Os estudos de Carvalho e Dimenstein (2017Carvalho, B., & Dimenstein, M. (2017). Análise do Discurso sobre Redução de Danos num CAPS ad III e em uma Comunidade Terapêutica. Temas em Psicologia, 25(2), 647-660. http://dx.doi.org/10.9788/TP2017.2-13
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) e Vecchia et al. (2017Vecchia, M., Ronzani, T. M, Azevedo, B. L. (2017). Os Cuidados à Saúde dos Usuários de Drogas em Perspectiva Psicossocial: Conquistas e Desafios Dez Anos Após a Nova Lei de Drogas. Em M Vieira-Silva (Org.) Democracia, política e psicologia social: rupturas e consolidações (pp. 168-181). ABRAPSO.), apontam essa dificuldade dos profissionais na incorporação da perspectiva da Redução de Danos nos serviços destinados ao cuidado de usuários de álcool e outras drogas.

Tomando a Psicologia como uma das profissões da saúde, as referências técnicas formuladas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), criadas com base em uma pesquisa com psicólogos atuantes nas políticas públicas destinadas às pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas, afirmam que o modelo proibicionista de serviços baseados no isolamento e na abstinência como única meta possível entra em conflito com a perspectiva ética da profissão de respeito aos direitos humanos e valorização da singularidade (CFP, 2019Conselho Federal de Psicologia (2019). Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas/os em Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas (2ª Ed.). CFP.).

Diante desse cenário, constatando que o psicólogo é um dos profissionais que está em uma quantidade considerável de postos de trabalho nessas políticas e reconhecendo seu importante papel nesse contexto, buscamos responder a seguinte interrogação: Como os psicólogos têm compreendido a RD em suas atuações e como eles têm percebido sua aplicação?

Procuramos no conceito de sentido, oriundo da Psicologia Histórico-Cultural, uma ferramenta para captar esse fenômeno como sendo constituído na interação social e como expressão da singularidade dos sujeitos e suas vivências. Essas construções singulares não são alheias, pois contém como elemento essencial a realidade objetiva. Os sentidos são a forma como nós manifestamos nossa maneira própria de assimilar os significados coletivos que trazem as marcas da realidade histórica e da cultura (Aguiar et al., 2009Aguiar, W. M. J., Liebesny, B., Marchesan, E. C., & Sanchez, S. G. (2009). Reflexões sobre Sentido e Significado. Em Bock, A. M. B., & Gonçalves, M. D. G. M. (Orgs.), A Dimensão Subjetiva da Realidade: Uma Leitura Sócio-Histórica (pp.54-72). Cortez.).

Desse modo, nosso objetivo, por meio deste estudo, foi compreender os sentidos atribuídos pelos psicólogos sobre o princípio da Redução de Danos no cuidado em saúde das pessoas que tem problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, analisando as repercussões desses sentidos sobre suas práticas junto à essa população.

Nessa direção, salientamos a necessidade do aumento do conhecimento acerca das ações de RD no Brasil, visto sua inserção nas políticas públicas serem marcadas por conflitos e equívocos em sua compreensão. Além disso, cabe à Psicologia refletir sobre os modos de aproximação com o paradigma da RD, de modo a trazer contribuições possíveis para o trabalho dos psicólogos, por meio de sua presença qualificada nos espaços de cuidado.

Método

Este estudo se caracteriza como um estudo exploratório de natureza qualitativa, pretendendo ampliar a contribuição sobre o fenômeno, privilegiando as informações obtidas com os sujeitos envolvidos. Buscamos na metodologia qualitativa uma abordagem que nos respaldou na obtenção de nosso objetivo e no direcionamento de uma pesquisa que inclui a subjetividade, ao invés de retirá-la de cena na produção do conhecimento (Bosi, 2012Bosi, M. L. (2012). Pesquisa Qualitativa em Saúde Coletiva: Panoramas e Desafios . Ciência e saúde coletiva, 17(3), 575 - 586. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300001
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).

Participantes

Os participantes da pesquisa foram selecionados pelo critério de realizarem seu trabalho há mais de um ano nas instituições. Foram selecionadas duas psicólogas que trabalhavam nos CAPS Ad de Fortaleza e um psicólogo que trabalhava em uma Comunidade Terapêutica (CT) credenciada à rede pública de saúde mental da cidade de Fortaleza. As psicólogas dos CAPS ad trabalhavam sob regime de 20 horas semanais, contratadas em regime celetista por uma organização social responsável pela terceirização dos serviços no sistema público de saúde e estavam há mais de três anos no serviço. O psicólogo da CT atuava um dia por semana na instituição, mediante um contrato de seis meses que a instituição renovava conforme julgasse necessário. O profissional já trabalhava há mais de um ano e meio neste lugar e também desempenhava atividades em uma clínica privada. Seu vínculo empregatício com a CT se caracterizava como um contrato de prestação de serviços, sem o asseguramento de nenhum direito trabalhista.

Procedimentos

O estudo foi realizado no período entre 2012 e 2013 na cidade de Fortaleza. Foram convidados seis psicólogos entre dois cenários distintos, sendo três psicólogos de Comunidades Terapêuticas e três psicólogas dos CAPS ad.

Nos CAPS ad, não conseguimos encontrar o quantitativo definido de profissionais que estivessem dispostos a participar, bem como que preenchessem o critério de estar pelo menos há um ano no serviço, pois haviam constantes demissões e finalização de contratos temporários precarizados, característicos da realidade da maioria dos trabalhadores da saúde.

No que diz respeito aos psicólogos das Comunidades Terapêuticas houve muita dificuldade em estabelecer contatos com os responsáveis ou “donos” das instituições, como assim foram denominados por seus funcionários. Em algumas CTs (onde foi possível contactar), os responsáveis pela instituição não forneceram as informações solicitadas pelo pesquisador. Em outras, foi deixado telefone e e-mail do responsável pela pesquisa para que os psicólogos que atuavam na instituição pudessem entrar em contato. Das seis Comunidades contactadas, duas deram resposta positiva com o aval para o psicólogo participar da pesquisa; destas, apenas um dos psicólogos se prontificou a conceder uma entrevista.

As entrevistas foram realizadas em locais previamente agendados e segundo a disponibilidade dos psicólogos. Após apresentar os objetivos da pesquisa e a assinar os termos de consentimento, foram solicitadas autorizações para utilização de um gravador para o registro das entrevistas, assegurando maior fidedignidade às falas dos participantes. O estudo, como parte integrante da dissertação de mestrado do primeiro autor, foi submetido e aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa, com o CAAE número 05716712.9.0000.5044.

Instrumentos

Utilizou-se neste estudo a “entrevista individual de profundidade” (Gaskell, 2002Gaskell, G. (2002). Entrevistas individuais e grupais. Em M. Bauer, & G. Gaskell (Orgs.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. (pp. 64 - 89). Vozes.), onde convidamos o entrevistado a falar o máximo possível sobre alguns tópicos. Por meio dessa técnica, buscamos explorar a cosmovisão pessoal do participante em detalhe. No roteiro, foram incluídas perguntas sobre a compreensão sobre o uso de drogas e as diretrizes teóricas e metodológicas da atuação dos psicólogos frente aos usuários de álcool e outras drogas. Durante a realização das entrevistas, tomamos como ponto de saturação o momento em que se percebeu que não surgiram novos temas e percepções entre as falas, indicando, assim, o esgotamento dos elementos a serem estudados.

Técnica de análise das informações

Como técnica de análise das falas produzidas nas entrevistas, utilizamos a proposta da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.). Foi realizada uma leitura prévia das entrevistas e, posteriormente, foram elencados os temas que se destacaram com base nos objetivos propostos. Das entrevistas realizadas, evidenciamos a categoria Redução de Danos como um eixo onde os participantes puderam apresentar suas percepções e considerações sobre a aplicabilidade desta na prática dos seus serviços.

Resultados

Apontamos alguns trechos das entrevistas onde os psicólogos apresentaram suas ideias sobre a Redução de Danos, expondo como compreendiam a abordagem sobre o assunto e como operacionalizavam as estratégias da RD em seus cenários de prática.

Um dos sentidos apresentados sobre a RD por uma das psicólogas é o de compreendê-la como uma estratégia que busca a redução do uso de substâncias.

Então assim, a gente diz: olha, vamos diminuir, vamos reduzir. Fuma quanto? Três carteiras (de cigarro) por dia? Vamos reduzir, tirar pelo menos dez cigarros disso aí, [...] aí têm uns que dizem assim: ‘pô doutora, você tá querendo só que eu reduza?’ É, vamos começar assim, então quando a gente começa, a gente vai indo, vai indo, e quando eles vêm, eles se percebem de como é que tá o processo (Psicóloga 1 - CAPS ad).

A redução do uso de drogas pode ser uma das várias estratégias de operacionalização da RD que são pactuadas com o usuário em seu projeto terapêutico. Chama a atenção de que o primeiro aspecto salientado por nossa entrevistada é o que envolve a diminuição do consumo de substância. Ao mesmo tempo, percebemos também que, apesar de dizer que não existiriam cobranças quanto à meta da redução, esta acabaria se tornando uma obrigação para o usuário, conforme a mesma entrevistada aponta.

Olha, é difícil? É! Mas vocês não se preocupem que, não têm cobrança (falando de como orienta os usuários). [...] Quando você quiser, a gente tá aqui pra ajudar. Então eles ficam [...] Só que aí depois a gente começa, tem que reduzir. Não é dizer que vem, que vai reduzir e ficar com o mesmo tanto de carteira [de cigarro] não. Tem que reduzir, né? Você tem o compromisso comigo de que vai reduzir. Se você não quer reduzir, sai do grupo e deixa pra voltar quando você tiver a fim de reduzir. Não de parar, é de reduzir (Psicóloga 1 - CAPS ad).

Assim se percebe que o cuidado, mesmo tendo por referência a Redução de Danos, restringe-se e é condicionado à supressão do consumo de drogas. O fracasso na execução da redução do uso é inclusive critério de exclusão da atividade de cuidado proporcionada no serviço de saúde.

Outro psicólogo entrevistado que trabalha numa Comunidade Terapêutica, que se baseia na abstinência como meta terapêutica, compreende a Redução de Danos em seu aspecto prático como uma estratégia que traz riscos para os usuários.

A Redução de Danos tem aquele ‘porém’, também né. [...] Pra este espaço que a gente tem na Comunidade [Terapêutica], às vezes vira fator de risco. Porque eles acabam se expondo a situações inadequadas devido à redução de riscos, devido à busca por uma droga mais leve, devido a ir reduzindo o uso e fazer aquela dessensibilização sistemática. Eles começam a se expor em algumas situações um pouco mais complicadas. E o repertório deles é muito reduzido. Ah, o público lá, o repertório é muito complicado. É difícil trabalhar (Psicólogo 2 - Comunidade Terapêutica).

Por oferecer um tratamento em um lugar isolado da realidade externa, como ocorre nas Comunidades Terapêuticas, o profissional entende que a exposição a situações do cotidiano torna o manejo do cuidado mais complexo. Percebe-se que esse modo de atuação traz repercussões para a prática do psicólogo sob a forma de distanciamento das intervenções realizadas em locais onde não se exige a abstinência.

Cabe observar também que os profissionais relatam a existência de conflitos institucionais que envolvem a gestão das instituições governamentais com relação à política de Redução de Danos. Esse conflito, que já existia desde o surgimento das primeiras inciativas de RD, talvez tenda a ser reproduzido na atualidade. Por meio das falas, observou-se que a RD sofre com grande resistência por parte de profissionais responsáveis pela execução da atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas, como apontam nossos entrevistados.

Eu vejo que (falando das instituições de saúde) no estado e no município eles não conseguem ter uma interação com relação, ideológica mesmo. E a gente fica nesse fogo cruzado, né? Por exemplo, eu percebo no estado uma ideia da abstinência e da prevenção da recaída muito mais forte e, no município, a perspectiva da Redução de Danos [...] Diversas vezes fui indagada: Ah, como pode você trabalhar com tratamento de drogas e achar que é possível a Redução de Danos? (Psicóloga 3 - CAPS ad).

É interessante observar que nem todos estão tão satisfeitos e convictos no âmbito da gestão dos serviços, talvez entre os próprios trabalhadores, de que a RD possa ser uma forma de sustentar o cuidado. Parece haver certa desconfiança com a proposta, como se ela não fosse viável. A psicóloga demonstra que sua prática fica sob suspeita, causando certo constrangimento para a profissional, quando tenta aplicar os princípios em seu cotidiano profissional.

Observamos que esse conflito se dá também no interior da Comunidade Terapêutica, onde um de nossos entrevistados trabalha.

Redução de danos, aí eu vou falar especificamente nessa Comunidade, eles não aceitam em hipótese alguma. Para eles, é interrupção total. Nenhum tipo de substância utilizar. Na história deles, preferencialmente, nenhum tipo de medicação. A gente já conseguiu quebrar um pouco essa barreira da medicação em cima dos treinamentos que a gente foi dando. Então, essa mudança a gente já tem, mas a questão da Redução de Danos, eles estão muito rígidos em cima disso. Até porque é uma instituição religiosa (Psicólogo 2 - Comunidade Terapêutica).

As Comunidades Terapêuticas, que até então eram credenciadas pela Prefeitura de Fortaleza, eram, em sua grande maioria, de orientação religiosa. Vemos que a abordagem preconizada pela instituição era centrada na religião, o que direcionava e impactava a prática dos psicólogos, condicionando o fato de que a abstinência seja o objetivo primeiro do tratamento.

Discussão

Observamos que há uma diversidade de modos de compreender e atribuir sentidos à Redução de Danos nas políticas de saúde, confirmando a ideia de Santos et al. (2010Santos, V. E., Soares, C. B., & Campos, C. M. (2010). Redução de Danos: Análise das Concepções que Orientam as Práticas no Brasil. Physis, 20(3), 995-1015. https://doi.org/10.1590/S0103-73312010000300016
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) sobre as suas diferentes concepções e seus modos de operacionalização. O que percebemos é que, no que diz respeito à Psicologia, existem ainda muitos debates a serem feitos, visto não haver um consenso sobre a viabilidade dessa política e existirem alguns conflitos sobre a aplicação desses princípios nas suas práticas (Carvalho & Dimenstein, 2017Carvalho, B., & Dimenstein, M. (2017). Análise do Discurso sobre Redução de Danos num CAPS ad III e em uma Comunidade Terapêutica. Temas em Psicologia, 25(2), 647-660. http://dx.doi.org/10.9788/TP2017.2-13
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; Vecchia et al., 2017Vecchia, M., Ronzani, T. M, Azevedo, B. L. (2017). Os Cuidados à Saúde dos Usuários de Drogas em Perspectiva Psicossocial: Conquistas e Desafios Dez Anos Após a Nova Lei de Drogas. Em M Vieira-Silva (Org.) Democracia, política e psicologia social: rupturas e consolidações (pp. 168-181). ABRAPSO.).

Ao observar as falas de nossos entrevistados, podemos perceber que alguns psicólogos têm pensado a RD como uma proposta na qual a finalidade das ações seja a abstinência do consumo de drogas. Quando a Psicóloga 1 fala sobre a obrigação de reduzir o uso de cigarros na realização do seu grupo, que tem por objetivo a Redução de Danos, percebemos que há uma ênfase na necessidade de reduzir a substância para o abandono do seu uso. Há nessa concepção da entrevistada uma visão simplificada da RD como uma ideia de tratamento na qual se preconizam progressos gradativos em direção à abstinência (Santos, 2008Santos, V. E. (2008). O Objeto/Sujeito da Redução de Danos: Uma Análise da Literatura da Perspectiva da Saúde Coletiva. [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital da USP. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/7/7137/tde-16052008-093122/pt-br.php
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). Isso também tem sido observado em outros estudos com psicólogos que mostram que, apesar de conhecerem a RD, acabam por reproduzirem uma instrumentalização técnica, com o objetivo de garantir a abstinência, desconsiderando o protagonismo e a liberdade das pessoas (Calassa et al., 2015Calassa, G., Penso, M. P., & de Freitas, L. G. (2015). Redução de Danos na Visão dos Profissionais que Atuam no CAPS AD II do Distrito Federal. Revista Psicologia em Pesquisa, 9(2). http://dx.doi.org/10.5327/Z1982-1247201500020008
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).

Percebemos, com isso, que existe a manutenção de uma compreensão da droga como algo eminentemente nocivo e incompatível com o cuidado de si. Como afirmam Souza e Carvalho (2015Souza, T., & Carvalho, S. R. (2015). Reduzindo Danos e Ampliando a Clínica: Desafios para a Garantia do Acesso Universal e os Confrontos com a Internação Compulsória. Em Minsitério da Saúde. Caderno Humanizasus (Saúde Mental - vol. 05). (pp.215 -232). Ministério da Saúde.), na maioria das vezes, há uma associação do uso de drogas com o desejo de morte, descuido, criminalidade e doença, de modo que só se pode pensar no autocuidado se este estiver associado à abstinência das substâncias.

Um equívoco percebido nas entrevistas é o de que, embora a RD não se oponha a abstinência de substâncias em seus princípios, ela é percebida como avessa a essa recomendação. Quando o Psicólogo 2 relata considerar a RD como um fator de risco e que a Comunidade Terapêutica onde trabalha não permite sua aplicação, parece não estar claro para o profissional que a abstinência pode ser uma das estratégias possíveis, mas que não é em torno dela que deve girar a oferta do cuidado dispensado.

O que observamos é que, como aponta Souza e Carvalho (2015Souza, T., & Carvalho, S. R. (2015). Reduzindo Danos e Ampliando a Clínica: Desafios para a Garantia do Acesso Universal e os Confrontos com a Internação Compulsória. Em Minsitério da Saúde. Caderno Humanizasus (Saúde Mental - vol. 05). (pp.215 -232). Ministério da Saúde.), a abstinência comparece como regra que define uma fronteira entre quem está dentro e fora do sistema de cuidados, como mostra a condicionalidade da permanência do grupo conduzido pela Psicóloga 1, e a exigência da abstinência como condição para receber tratamento na Comunidade, como afirma o Psicólogo 2. Assim, a prática do psicólogo na atenção a esses sujeitos pode estar esquecendo outras questões e necessidades, reduzindo, ao invés de ampliar, as possibilidades de oferecer um plano de cuidados que envolvam a pessoa como um todo.

Como apontam Dimenstein e Macedo (2012Dimenstein, M., & Macedo, J.P (2012). Formação em Psicologia: Requisitos para Atuação na Atenção Primária e Psicossocial. Psicologia, Ciência e Profissão, 32(esp), 232-245. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500017
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), a atuação do psicólogo, dessa maneira, corre o grande risco de estar voltada para concepções mecanicistas da vida, preocupadas exclusivamente com a remissão de sintomas e estratégias de subjetivação norteadas pelos princípios da disciplina e da cristalização das referências identitárias. Corre-se o risco, assim, de colocarmos a ação do psicólogo assentada num desejo de manipulação ou dominação dos sujeitos, sustentada por uma ética repressiva, como afirma Bucher (2007Bucher, R. (2007). A Ética da Prevenção. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23(esp), 117-123. https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000500021
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), baseada em um modelo jurídico-moral de atuação.

A dificuldade relatada pela Psicóloga 3, sobre o conflito existente entre as instituições de saúde e sobretudo as gestões estadual e municipal em operar estratégias de RD, também nos chama atenção, pois, como observa-se, desde a inserção dos princípios da Redução de Danos no Brasil, as resistências formam parte integrante do processo da afirmação deste modelo (Lancetti, 2008Lancetti, A. (2008). Clínica Peripatética. Hucitec.; Souza & Carvalho, 2015Souza, T., & Carvalho, S. R. (2015). Reduzindo Danos e Ampliando a Clínica: Desafios para a Garantia do Acesso Universal e os Confrontos com a Internação Compulsória. Em Minsitério da Saúde. Caderno Humanizasus (Saúde Mental - vol. 05). (pp.215 -232). Ministério da Saúde.; Santos & Miranda, 2016Santos, V. B., & Miranda, M. (2016). Projetos/Programas de Redução de Danos no Brasil: Uma Revisão de Literatura. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, 5(1), 106 - 118. http://dx.doi.org/10.17267/2317-3394rpds.v5i1.841
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; Vecchia et al., 2017Vecchia, M., Ronzani, T. M, Azevedo, B. L. (2017). Os Cuidados à Saúde dos Usuários de Drogas em Perspectiva Psicossocial: Conquistas e Desafios Dez Anos Após a Nova Lei de Drogas. Em M Vieira-Silva (Org.) Democracia, política e psicologia social: rupturas e consolidações (pp. 168-181). ABRAPSO.). Esses resquícios de incompreensão e não aceitação parecem perdurar e tenderão a se aprofundar na atualidade com a retomada da lógica proibicionista pelas políticas brasileiras (Prudêncio & Senna, 2018Prudêncio, J. D. L., & Senna, M. D. C. M. (2018). Retrocessos na Atenção a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Argumentum, 10(3), 79-93. http://10.18315/argumentum.v10i3.20854
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; Tatmatsu et al., 2020Tatmatsu, D. I. B., Siqueira, C. E., & Prette, Z. A. P. D. (2020). Políticas de Prevenção ao Uso de Drogas no Brasil e nos Estados Unidos. Cadernos de Saúde Pública, 36(1), 01-13. http://doi.org/10.1590/0102-311x00040218
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). Observa-se ainda que tal dilema se reflete no cotidiano de nossos entrevistados, se configurando como uma das barreiras para a aplicação da RD como um princípio que norteia o cuidado em saúde mental.

O cuidado no território parece ser ainda um grande desafio a ser atravessado na prática do psicólogo. Isto fica ainda mais evidente na menção ao desconforto do Psicólogo 2, quando relata a dificuldade de manejar o cuidado quando o sujeito está exposto a situações do cotidiano. O Psicólogo 2 sente que a complexidade de fatores envolvidos na vida, fora do espaço institucional da Comunidade Terapêutica, é um dificultador de seu trabalho. Como afirma Ferreira Neto (2008Ferreira Neto, J. L. (2008). Práticas Transversalizadas da Clínica em Saúde Mental. Psicologia, Reflexão e Crítica, 21(1),110-118. https://doi.org/10.1590/S0102-79722008000100014
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), a clínica tradicional do psicólogo tende a funcionar a partir de uma neutralização dos fatos sociais. Ao contrário disso, a RD instiga à uma prática transversalizada que exige um diálogo com a vida, o território e as determinações sociais. Desse modo, percebe-se que a RD, em vez de ser banida da prática psicológica, deve fazer parte dela como referência que compõe a construção de um cuidado integral às pessoas.

Um dado importante desse cenário é que há uma crescente oferta de vagas para internações em Comunidades Terapêuticas, que vem sendo credenciadas pelo estado do Ceará, frente a um perceptível sucateamento dos CAPS ad e de outros serviços territoriais da Rede de Atenção Psicossocial (Pitta & Guljor, 2019Pitta, A. M. F., & Guljor, A. P. (2019). A Violência da Contrarreforma Psiquiátrica no Brasil: Um Ataque à Democracia em Tempos de Luta pelos Direitos Humanos e Justiça Social. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades, (246), 6-14. http://dx.doi.org/10.25247/2447-861X.2019.n246.p6-14
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). Esse cenário parece enfraquecer ainda mais a ideia de um cuidado em liberdade de base territorial, por assegurarem investimentos significativos em instituições privadas que apostam no isolamento e na abstinência como modelo de cuidado.

Considerações Finais

Os psicólogos entrevistados compreendem a Redução de Danos como ainda muito atrelada a ideia de abstinência. Esta compreensão se materializa e é ratificada nas práticas que, em sua maioria, tem como objetivo primordial a redução do uso de álcool e outras drogas pelos sujeitos. Não se percebe a RD como estratégia de promoção de vínculos entre os usuários, secundarizando o uso de drogas enquanto preocupação e promovendo o autocuidado.

Consideramos que o fato da RD ser apresentada para os psicólogos entrevistados apenas como redução do uso da substância parece simplificar a proposta de cuidado plural existente, impedindo que esse marco ético seja um princípio que ilumine as múltiplas demandas dos usuários e a construção de uma prática que promova a autonomia dos sujeitos no atendimento de suas necessidades em sua integralidade.

Para um maior aprofundamento, necessitaríamos ouvir outros psicólogos que desempenham estratégias de Redução de Danos em espaços para além das instituições formais, pois as limitações de tempo, obstáculos de algumas instituições e os trâmites burocráticos para a realização do estudo trouxeram entraves à condução do trabalho e impossibilitaram a ampliação do nosso campo de pesquisa.

Percebemos que a RD pode impulsionar a Psicologia enquanto ciência e profissão na criação de espaços de cuidado, onde exista uma baixa exigência para esses sujeitos, buscando um acolhimento radical sobre suas condições singulares em detrimento da atenção centrada na substância. Desse modo, ao colocar “a droga entre parênteses”, parafraseando a expressão de Franco Basaglia, poderemos construir abordagens mais alinhadas aos princípios da RD, da Reforma Psiquiátrica e do SUS que avancem em práticas mais resolutivas e que respeitem os direitos humanos, resgatando a subjetividade presente nos diferentes sujeitos e nos problemas decorrentes do consumo de drogas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2016
  • Revisado
    08 Fev 2019
  • Aceito
    21 Mar 2020
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