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Determinantes Sociais e Dependência de Drogas: Revisão Sistemática da Literatura

RESUMO

Realizou-se revisão sistemática da literatura sobre determinantes sociais e dependência de substâncias psicoativas. A pesquisa foi feita em algumas bases de dados utilizando-se, nos idiomas português, inglês e espanhol, os descritores “Determinantes Sociais em Saúde” e o descritor booleano AND para o termo “Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias”. Selecionaram-se 78 artigos, nos quais observou-se uma concentração de estudos no hemisfério norte, com ênfase em fatores microssociais. As drogas mais estudadas foram múltiplas substâncias (44,9%), álcool (21,8%) e tabaco (15,4%), destacando-se os determinantes renda (35,9%), sexo, família e território (26,9% cada). É importante considerar o uso de drogas como fenômeno biopsicossocial complexo e multifacetado, sendo necessária maior produção de evidências em países em desenvolvimento, utilizando-se diferentes perspectivas epistemológicas e metodológicas.

PALAVRAS-CHAVE:
Determinantes Sociais em Saúde; Transtorno Relacionados ao Uso de Substâncias; Revisão Sistemática

ABSTRACT

A systematic literature review on social determinations and consumption of psychoactive substances was realized. The research was accomplished in some databases, in Portuguese, English and Spanish, using the descriptors "Social Determinants in Health" and the Boolean descriptor AND for the term "Disorders Related to Substance Use". Then, 78 articles were selected, in which a concentration of studies was observed in the northern hemisphere, emphasizing on micro social factors. The most studied drugs were multiple substances (44.9%), alcohol (21.8%) and tobacco (15.4%), highlighting the determinants of income (35.9%), sex, family and territory (26.9% each). It is important to consider drug use as a complex and multifaceted biopsychosocial phenomenon, requiring greater production of evidence in developing countries, using different epistemological and methodological perspectives.

KEYWORDS:
Social Determinants of Health; Substance-Related Disorders; Systematic Review

Os problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas são reconhecidamente um dos principais desafios de saúde pública no mundo. Estima-se que cerca de 271 milhões de pessoas fizeram algum uso de substâncias na vida e que mais ou menos 35 milhões sofram com transtornos relacionados ao uso de substâncias (United Nations Office on Drugs and Crime [UNODC], 2019United Nations Office on Drug anda Crime (2019).World Drug Report. United Nations Office on Drugs and Crime.). Especificamente no Brasil, estima-se que 11,7% da população tenha usado álcool e tabaco e 2,6% tenha utilizado álcool e qualquer outra substância ilícita nos últimos 12 meses (Bastos, 2017Bastos, F. I. P. M. et al (org.) (2017). III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ICICT (p. 528). https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614
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). Para além dos dados de prevalência de consumo e dependência, o tema se relaciona aos prejuízos físicos, psicológicos e socioeconômicos, impactando de forma significativa a vida pessoal, familiar, acadêmica, profissional e social do usuário. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 8,9% da carga global de doenças estão relacionadas ao uso de substâncias (World Health Organization [WHO], 2018World Health Organization (2018). Global status report on alcohol and health 2018. World Health Organizatio). Estes dados associados a outras consequências em termos da saúde mental indicam que o abuso e a dependência de substâncias psicoativas é um fenômeno de natureza biopsicossocial complexo e multifacetado.

Considera-se a dependência de drogas como condição crônica de saúde, compreendida a partir de um contínuo padrões de consumo anteriores que necessariamente não levam à dependência ou danos, havendo a perspectiva de se considerar diferentes aspectos socioculturais ou sanitários para uma compreensão mais dinâmica ou complexa (Mota, Ronzani, Tófoli & Rush, 2015Mota, D. B., Ronzani, T. M., Tófoli, L. F. & Rush, B. R. (2015). Construindo a continuidade do cuidado ao usuário de álcool e outras drogas: alguns conceitos e questões para o trabalho em rede no Brasil. In: Ronzani, T. M., Costa, P.H.A., Mota, D.B. & Laport, T. J. (Orgs.) Redes de Atenção aos Usuários de Drogas. Políticas e Práticas. Cortez. p. 85-106. ). Nesse sentido, entende-se e se ressalta que nem todo consumo de qualquer substância é um comportamento patológico automático, mas que demanda uma avaliação mais cuidadosa e ampla sobre tal condição. Assim, ainda que uma parcela menor de usuários venha a desenvolver ao longo da vida Transtornos por Uso de Substâncias, é necessário avaliar os diferentes impactos dessa condição para a vida dos indivíduos e sociedade (Volkov et. al., 2017Volkov, N. D. et al. (2017). Drug use disorders: impact of a public health rather than a criminal justice approach. World Psychiatry, 16(2), p. 213-214. https://doi.org/10.1002/wps.20428
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).

Nessa direção, no que diz respeito à organização da atenção em saúde mental na perspectiva da integralidade, considera-se que devem partir não só da compreensão do uso de substâncias e da relação de indivíduos e de grupos com as drogas como um fato histórico, mas sua articulação com as características do contexto sociocultural e com sua dimensão subjetiva. O consumo de drogas passa a ser entendido na interação entre droga-indivíduo-meio, o que dá o real sentido aos problemas relacionados a essa prática (Ronzani, 2018Ronzani, T. M. (2018). The Context of Drug Use in the Consumer Society. In: Ronzani, T. M. (Org.). Drugs and Social Context: Social Perspectives on the Use of Alcohol and Other Drugs. Springer. p. 77 - 88.). Assim, é fundamental a compreensão de que o uso de substâncias está relacionado a uma trama de determinações sociais. Embora o uso de drogas esteja presente em todas as classes sociais e em diferentes contextos, a carga social ou de doença em relação a esse uso é bastante diferenciada quando levamos em conta os pertencimentos sociais, questões de gênero, raça/etnia, faixa etária, dentre outros (Wilkinson & Marmot, 2003Wilkinson, R. & Marmot, M. (2003). Social Determinants of Health: the solid facts. World Health Organization.).

A compreensão do processo saúde-doença, a partir do paradigma da determinação social procura, portanto, ampliar o horizonte sobre o entendimento desse processo focado tradicionalmente nos agentes biológicos e de cunho individual (Rocha & David, 2015Rocha, P. R. & David, H. M. S. L. (2015). Determinação ou determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde. Revista da Escola de Enfermagem, 49(1), p. 129-135.). Tal perspectiva teve início a partir da discussão sobre Determinantes Sociais em Saúde (DSS), ou seja, que as condições de vida, os fatores econômicos, sociais, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais influenciam na ocorrência e manutenção das condições de saúde e determinam algumas barreiras de acesso ao cuidado, gerando iniquidades (Allen et al., 2014Allen, J., Balfour, R., Bell, R. & Marmont, M. (2014). Social determinants of mental health. International Review Of Psychiatry, 26(4), p. 392-407. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.3109/09540261.2014.928270
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; Buss & Pellegrini, 2007Buss, Paulo Marchiori, & Pellegrini Filho, Alberto. (2007). A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17(1), p. 77-93. https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
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; WHO, 2010World Health Organization (2010). A conceptual framework for action on the social determinants of health. World Health Organization.).

A partir dessa concepção inicial, esta área de conhecimento e pesquisa foi se desenvolvendo, diversificando e criando ênfases e formas de compreender os DSS de diferentes maneiras (Buss & Pellegrini, 2007Buss, Paulo Marchiori, & Pellegrini Filho, Alberto. (2007). A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17(1), p. 77-93. https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
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). Algumas delas mantém a tradição da epidemiologia clássica que, apesar de considerar algumas variáveis na determinação das condições de saúde, estabelecem correlações de forma direta e definitiva, fazendo um retrato fragmentado e estático da realidade (Rocha & David, 2015Rocha, P. R. & David, H. M. S. L. (2015). Determinação ou determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde. Revista da Escola de Enfermagem, 49(1), p. 129-135.; Spooner, 2009Spooner, C. (2009). Social determinants of drug use - barriers to translating research into policy. Health Promotion Journal Of Australia, 20(3), p. 180-185. https://doi.org/10.1071/HE09180
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; WHO, 2010World Health Organization (2010). A conceptual framework for action on the social determinants of health. World Health Organization.). Outras vertentes epistemológicas, baseadas em teorias sociais, procuram compreender o processo saúde-doença determinado pela história, cultura e questões sociais em diversos níveis, de forma complexa e processual (WHO, 2010World Health Organization (2010). A conceptual framework for action on the social determinants of health. World Health Organization.). A partir disso, procura-se entender como esses elementos se relacionam e como produzem certas condições de saúde, como elas são interpretadas pela população e quais são as ações planejadas para sua solução ou manejo das mesmas (United Nations Development Programme [UNDP], 2013United Nations Development Programme (2013). Addressing the Social Determinants of Noncommunicable Diseases. United Nations Development Programme.).

Portanto, ao se considerar a complexidade da relação entre fatores sociais, econômicos e culturais de forma processual e histórica, alguns autores procuraram se diferenciar da teoria dos determinantes sociais, ancorada na epidemiologia clássica, e passaram a usar o termo Determinação Social (Rocha & David, 2015Rocha, P. R. & David, H. M. S. L. (2015). Determinação ou determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde. Revista da Escola de Enfermagem, 49(1), p. 129-135.). Tal perspectiva considera, segundo Dimenstein et al. (2017Dimenstein, M., Siqueira, K., Macedo, J. P., Leite, J., & Dantas, C. (2017). Determinação social da saúde mental: contribuições à psicologia no cuidado territorial. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 69(2), p. 72-87. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v69n2/06.pdf
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), que é imprescindível para a ampla compreensão dos processos saúde-doença a identificação da história, das particularidades e desigualdades produzidas por um modelo de sociedade específica, gerando impactos concretos na vida das pessoas e na forma como as condições de saúde são enfrentadas pela coletividade. Por isso, a simples análise de correlações de fatores sociais, em seus diferentes níveis, torna-se limitada (Dimenstein et al., 2017Dimenstein, M., Siqueira, K., Macedo, J. P., Leite, J., & Dantas, C. (2017). Determinação social da saúde mental: contribuições à psicologia no cuidado territorial. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 69(2), p. 72-87. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v69n2/06.pdf
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; Rocha & David, 2015Rocha, P. R. & David, H. M. S. L. (2015). Determinação ou determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde. Revista da Escola de Enfermagem, 49(1), p. 129-135.).

No âmbito da saúde mental, a importância da lente da determinação social para nortear nosso olhar é fundamental, pois, hegemonicamente, o sofrimento mental é tratado como algo individual e desconectado dos aspectos sociais, econômicos, culturais, políticos e ambientais (Dimenstein et al., 2017Dimenstein, M., Siqueira, K., Macedo, J. P., Leite, J., & Dantas, C. (2017). Determinação social da saúde mental: contribuições à psicologia no cuidado territorial. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 69(2), p. 72-87. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v69n2/06.pdf
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;Allen et al., 2014Allen, J., Balfour, R., Bell, R. & Marmont, M. (2014). Social determinants of mental health. International Review Of Psychiatry, 26(4), p. 392-407. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.3109/09540261.2014.928270
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). Mais especificamente sobre a dependência de álcool, tabaco e outras drogas, evidências demonstram como o contexto social é determinante, não só na forma como a população percebe tal condição, bem como o interpreta e desenvolve políticas públicas, a partir de algumas crenças compartilhadas (Ronzani, 2018Ronzani, T. M. (2018). The Context of Drug Use in the Consumer Society. In: Ronzani, T. M. (Org.). Drugs and Social Context: Social Perspectives on the Use of Alcohol and Other Drugs. Springer. p. 77 - 88.). Assim, muitas ações de base punitiva, excludentes e individualizantes são propostas como consequência, por exemplo, do estigma estrutural que existe sobre os usuários (Livingston, 2013Livingston, J. D. (2013). Mental illness-related structural stigma: The downward spiral of systemic exclusion. Mental Health Commission of Canada.). Pesquisas que relacionam elementos do contexto de vida e o consumo de drogas focam nas características dos territórios e como elas nos ajudam a compreender os impactos da dependência de substância entre determinados grupos, através de perspectivas compreensivas e dinâmicas (Galea et al., 2005Galea, S.; Rudenstine, S. & Vlahov, D. (2005). Drug use, misuse, and the urban environment. Drug And Alcohol Review, 24(2), p. 127-136. https://doi.org/10.1080/09595230500102509
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).

Assim, várias críticas têm sido feitas à perspectiva epidemiológica no manejo dos DSS no campo de drogas, que ainda está baseada na compreensão de comportamento de uso como um evento isolado, individualizado, desconsiderando o contexto social, o território, a família, questões de renda, pobreza e cultura, de forma processual e complexa (Spooner, 2005Spooner, C. (2005). Structural determinants of drug use-a plea for broadening our thinking. Drug And Alcohol Review, 24(2), p. 89-92.https://doi.org/10.1080/09595230500102566
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). Torna-se necessária a visão para além do indivíduo, entendendo que não há um padrão único de consumo, que os problemas relacionados não ocorrem da mesma forma e que alguns grupos, com características específicas, estarão desproporcionalmente mais expostos a riscos e danos associados a esse comportamento do que outros. Além disso, tais riscos e danos não devem ser entendidos como uma aparição instantânea e estática, mas resultado de uma interação complexa entre várias determinações sociais (Spooner, 2009Spooner, C. (2009). Social determinants of drug use - barriers to translating research into policy. Health Promotion Journal Of Australia, 20(3), p. 180-185. https://doi.org/10.1071/HE09180
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).

Apesar da importância dessa mudança paradigmática trazida pela perspectiva da determinação social da saúde, inclusive, na compreensão ampla sobre o impacto da dependência de drogas entre pessoas e populações, esta é uma área ainda incipiente de produção científica. Por isso, a sistematização e análise do conhecimento acumulado sobre o tema se torna relevante. Dessa forma, o presente artigo é fruto de uma revisão sistemática da literatura sobre determinantes sociais em saúde e dependências de substâncias psicoativas e objetiva apresentar o estado da arte e os principais avanços e lacunas sobre o tema.

Método

A revisão sistemática foi conduzida de acordo com os passos indicados pelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) (Liberati et al., 2012). A busca foi feita em março de 2020, sem recorte temporal, porém, estabeleceu-se o ano de 2019 como limite. Para cobrir o maior número de estudos, pesquisamos nas seguintes bases de dados: PubMed, PsycINFO, Scielo, PEPSIC, LILACS, SCOPUS e Social Science Citation Index com os seguintes descritores: “Determinantes Sociais em Saúde” e o descritor booleano AND para o termo, “Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias”. Os termos foram definidos a partir do dicionário de Descritores em Saúde (DeCS) e do MeSH (Medical Subject Headings), principal vocabulário de termos utilizado pelas revistas científicas no mundo. A escolha pelos termos de busca justifica-se primeiramente pelo objetivo central do estudo serem os DSS e ser este o termo constante nas bases de descritores em saúde. O segundo foi definido por outros termos mais gerais não constarem na base e por nosso foco neste estudo ser analisar as condições mais graves de padrões de uso de drogas. A busca também foi realizada com os mesmos termos nos idiomas inglês e espanhol. Foram excluídas revisões narrativas, sistemáticas e metanálises. Foram incluídos estudos empíricos, cujo foco central era a análise dos determinantes sociais associada à dependência de substâncias psicoativas. Inicialmente, os títulos dos trabalhos foram usados para triagem. Após essa etapa, fez-se a leitura dos resumos e aqueles artigos que atenderam aos critérios de inclusão foram avaliados por três pesquisadores independentes.

A Plataforma Zotero foi utilizada para organizar e compilar os dados importados das diferentes bases. Pela análise qualitativa foram definidas algumas variáveis descritivas tais como: base de dados, idioma, país de origem da pesquisa, ano de publicação, desenho metodológico (quantitativo, qualitativo ou métodos mistos), nome da revista e as áreas de conhecimento predominantes. Após essa etapa, nova categorização foi feita a partir da leitura dos artigos na íntegra e validada por mais de um pesquisador da equipe, a saber: população estudada, determinantes sociais analisados e principais conclusões.

Após essa etapa inicial do manejo dos dados, algumas variáveis foram recategorizadas a fim de proporcionar algumas análises e comparações. Os países foram organizados por regiões geográficas ou continentes e, posteriormente, classificados em termos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD], 2020United Nations Office on Drug anda Crime (2019).World Drug Report. United Nations Office on Drugs and Crime.) com o objetivo de se analisar as pesquisas realizadas sobre o tema em diferentes realidades sociais no mundo. Já os determinantes sociais apresentados nos resultados e conclusões das pesquisas subsidiaram a sua classificação em duas modalidades: os que se associavam ao risco ou vulnerabilidade em relação ao uso de drogas e aqueles apresentados como fatores de proteção. Tais determinantes ainda foram classificados como micro, meso ou macrossocial, de acordo com o modelo de Dahlgren e Whitehead (Buss & Pellegrini, 2007Buss, Paulo Marchiori, & Pellegrini Filho, Alberto. (2007). A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17(1), p. 77-93. https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
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), que classificam os DSS em diferentes camadas, sendo as mais centrais as consideradas de nível individual/biológico, tais como sexo, idade e fatores genéticos e as mais distais, os fatores macrossociais como condições socioeconômicas, culturais e ambientais (Buss & Pellegrini, 2007; Rocha & David, 2015Rocha, P. R. & David, H. M. S. L. (2015). Determinação ou determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde. Revista da Escola de Enfermagem, 49(1), p. 129-135.). Apesar da crítica a esse modelo, que desconsidera a construção histórica e social dos níveis dos DSS (WHO, 2010World Health Organization (2010). A conceptual framework for action on the social determinants of health. World Health Organization.) e em virtude da grande diversidade de perspectivas epistemológicas presentes nos artigos selecionados, foram feitas algumas escolhas: utilizamos a variável sexo (e não gênero), raça/etnia foram classificados, seguindo a proposta acima indicada, como variáveis microssociais, tal como são tratadas pela maioria dos estudos, ou seja, como categorias biológicas e/ou individuais.

Em termos de análises e comparações, realizamos o cruzamento entre as variáveis, dando especial atenção à relação entre o tipo de substância, o grupo pesquisado, os determinantes discutidos e a classificação dos países em termos de IDH. Por fim, selecionamos os artigos que utilizaram abordagens qualitativas e descrevemos as principais discussões e considerações a partir dos resultados encontrados nas pesquisas. A justificativa para essa análise é aprofundar e apresentar como os estudos com abordagem qualitativa têm tratado ou compreendido o tema das determinações sociais e o consumo de substâncias psicoativas.

Após baixar e organizar os artigos na Plataforma Zotero, as categorizações foram realizadas através de Planilha Excel e exportados para análise através do software SPSS, versão 15.0. As análises foram realizadas a partir da frequência e porcentagem das categorias. O processo de busca, seleção e análise dos trabalhos é descrito na Figura 1.

Resultado

A busca eletrônica nos bancos de dados resultou em 905 artigos assim distribuídos: PUBMED (592), Scopus (167), Social Science Citation Index (138), PsycInfo (4), Scielo (2) e LILACS (2). Após a conferência dos trabalhos duplicados, restaram 693 artigos. A leitura dos títulos e resumos, com base nos critérios de inclusão e exclusão, reduziu o total para 105 pesquisas. Nessa etapa, todos os textos foram lidos integralmente. A partir disso, 27 artigos foram excluídos já que não obedeciam aos critérios de inclusão, resultando em 78 artigos elegíveis para a revisão (ver Figura 1).

Figura 1
Fluxograma PRISMA. Procedimentos de Identificação e Seleção dos Estudos Incluídos na Revisão Sistemática

No que diz respeito ao número de artigos por ano de publicação, observa-se uma concentração de publicações a partir de 2011 (5 artigos). Além disso, os anos 2013, 2015, 2017 e 2018 (com 8 artigos cada) foram aqueles que registraram maior frequência de publicações na área (Figura 2).

Figura 2
Número de artigos publicados por ano (N=78)

Os artigos foram publicados tanto em revistas que tratam especificamente do tema drogas (51,3%), quanto naquelas com foco na saúde de uma maneira geral (48,7%). No que se refere ao desenho metodológico, a abordagem quantitativa foi predominante (88,5%), com apenas 9,0% de estudos qualitativos e 2,6% de estudos mistos (quali/quanti). Observou-se ainda uma maior frequência de pesquisas realizadas na América do Norte (44,9%), seguida pela Europa (19,2%), Ásia (16,7%), África (9,0%), América Latina (7,7%) e, por último, Oceania (2,6%). Houve maior concentração de estudos em países com alto IDH (64,1%), seguido de países com índices médios (24,4%) e baixos (5,1%) (Tabela 1). Além disso, os Estados Unidos da América foram o país com maior concentração da produção, com 33% de publicações, representando percentual maior que as pesquisas oriundas e conjuntas da América Latina e África.

Tabela 1
Dados Gerais dos Estudos Selecionados (n=78)

Apenas 3 estudos (3,8%) foram realizados no Brasil, sendo 2 de abordagem quantitativa e 1 qualitativa. As substâncias estudadas foram múltiplas: drogas (1), crack (1) e álcool (1). Dois estudos brasileiros foram realizados entre a população geral e um com adolescentes. Os determinantes estudados foram família, raça/etnia, imigração, condições de saúde, escolaridade/educação, gênero e renda.

Quanto ao tipo de substância estudada, o estudo de múltiplas drogas (44,9%) tem destaque. O álcool (21,8%), tabaco (15,4%) e os pioides (6,4%) foram as substâncias mais frequentemente estudadas. Dentre a população alvo da pesquisa, a população geral, geralmente definida através de estudos populacionais de cunho epidemiológico, com definição demográfica, foi a mais frequente (50%), seguida dos adolescentes (23,1%) e mulheres (9%). Os mais estudados foram renda (35,9%), família, gênero e território (com 26,9% cada), idade (23,1%), raça/etnia (21,8%) e condições de saúde (17,9%), tal como apresentado na Tabela 2.

Tabela 2
Análise das Substâncias, Grupos e Determinantes Estudados (N=78)

Como descrito na seção de métodos, foi realizada análise entre os determinantes sociais e fatores relacionados aos impactos do consumo de substâncias psicoativas. Na Tabela 3 são apresentados os resultados quanto aos determinantes sociais associados com maiores prejuízos ou impactos negativos em relação ao consumo de drogas, classificados nos níveis macro, meso e microssociais. A frequência de associação entre os fatores ficou assim apresentada: Microssociais (36,5%), Macrossociais (32,8%) e Mesossociais (30,7%). Dentre os determinantes Macrossociais, especificamente, a renda/pobreza (13,9%), o desemprego (10,3%), o estigma (3,6%), a moradia (3,6%) e a violência (1,5%) foram os mais frequentes para a associação com prejuízos relacionados ao consumo. Já no nível mesossocial, o ambiente/território vulnerável (11,7%), as características familiares (13,3%), escolaridade/educação (6,6%) e o encarceramento (2,1%) foram os mais frequentes. Por fim, no nível microssocial, a maior associação foi entre sexo (8,7%), eventos da vida (8,0%), raça/etnia (7,3%), idade (7,3%), estado civil (4,4%) e religião/espiritualidade (0,7%) (Tabela 3).

Tabela 3
Determinantes Sociais que são Fatores de Risco ao uso de Substâncias Distribuídos nos Níveis Macro, Meso e Microssocial (N=78)

A Tabela 4 apresenta os resultados da associação entre determinantes sociais como fatores que protegem ou se relacionam com menores prejuízos em relação ao consumo de substâncias psicoativas. O nível Mesossocial (46,4%) foi o mais frequente, seguido pelo Microssocial (32,1%) e Macrossocial (21,5%). O emprego (10,6%), as políticas sociais (7,1%), e a renda (3,6%) foram os mais frequentes no nível Macrossocial. No nível Mesossocial, as categorias mais frequentes foram apoio/coesão/redes sociais (21,4%), características familiares (17,9%), escolaridade/educação (3,6%) e ambiente/territórios protetores (3,6%). No nível microssocial, a religião/espiritualidade (17,9%), raça/etnia (7,1%), estado civil (3,6%) e bem-estar (3,6%) foram os mais frequentes.

Tabela 4
Determinantes Sociais que são Fatores de Proteção ao uso de Substânciais Distribuídos nos Níveis Macro, Meso e Microssocial (N=78)

Por fim, realizamos a comparação entre a classificação dos países em termos do IDH e outras categorias, tais como tipo de substâncias, grupos e determinações sociais estudadas, nível das determinações e tipo de desfechos (positivos ou negativos). Não encontramos nenhuma diferença para essa análise.

Discussão

Por uma dinâmica nas determinações sociais sobre drogas: o que discutem os artigos de base qualitativa

Como já apontado anteriormente, ainda que o objetivo do presente artigo não esteja centrado na diferença conceitual/epistemológica entre determinantes e determinações sociais em saúde, procuramos, ainda que de forma superficial, apontar para tal aspecto. Inclusive, não por acaso, utilizamos ambos os termos, justamente para demonstrar a diferença de quando apresentamos os resultados de nossa pesquisa. Neste sentido, apesar das limitações que serão posteriormente discutidas, destacamos a presente seção com o objetivo de ressaltar alguns estudos que procuraram discutir a dependência de drogas a partir da perspectiva das determinações sociais.

Três artigos focaram a questão de gênero, mais especificamente, o consumo de substância entre mulheres. O estudo Shahram et al. (2017Sharam, S. Z., Bottorff, J. L., Oelke, N. D., Kurtz, D. L. M., Thomas, V. & Spittal, P. M. (2017). Mapping the social determinants of substance use for pregnant-involved young Aboriginal women. International Journal Of Qualitative Studies On Health And Well-being, 12(1), p. 1275155.https://doi.org/10.1080/17482631.2016.1275155
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), junto às mulheres de povos originários do Canadá, apontam que questões de gênero, tais como a maternidade, sobrecarga do trabalho feminino de cuidado a família, e as condições de desigualdade social, tais como a falta de acesso à educação, moradia e alimentação adequadas, bem como a ausência de reconhecimento cultural, estavam fortemente relacionadas ao consumo de substâncias. O uso de álcool e outras drogas atua como um mecanismo de enfrentamento das tristezas, perdas, situações de estresse e sobrecarga às quais estão muitas vezes submetidas. Além disso, os artigos discutem que as relações familiares, podem, ao mesmo tempo, proteger ou incentivar o consumo. A espiritualidade se apresenta como um fator de proteção.

Outro estudo realizado no Quênia discute os estigmas associados às mulheres que injetam drogas. Tal estigma é atravessado por diversos aspectos, tais como a pobreza e a condição de serem soropositivas, as quais têm um impacto direto na vida dessas mulheres, criando barreiras de acesso aos cuidados em saúde (Mburu et al., 2018Mburu, G., Ayon, S., Tsai, A. C., Ndimbii, J., Wang, B., Strathdee, S. e Seeley, J. (2018). “Who has ever loved a drug addict? It’s a lie. They think a ‘teja’ is as bad person”: multiple stigmas faced by women who inject drugs in coastal kenya: multiple stigmas faced by women who inject drugs in coastal Kenya. Harm Reduction Journal, 15(1), p. 29.https://doi.org/10.1186/s12954-018-0235-9
https://doi.org/10.1186/s12954-018-0235-...
). A pesquisa com mulheres canadenses chama atenção para a importância de se considerar a multiplicidade de determinações em termo do consumo de drogas, tais como território, habitação, pobreza, alimentação, família, saúde física e mental.

Quatro artigos realizaram estudos com jovens e adolescentes. De uma maneira geral, as pesquisas destacam as normas sociais forjadas a partir da interação entre o grupo com seus pares, familiares e o contexto em que vivem. O artigo de Yassin et al. (2018Yassin, N., Afifi, R., Singh, N., Saad, R. & Ghandour, L. (2018). “There Is Zero Regulation on the Selling of Alcohol”: the voice of the youth on the context and determinants of alcohol drinking in lebanon. Qualitative Health Research, 28(5), p. 733-744.https://doi.org/10.1177/1049732317750563
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), com jovens libaneses sobre o consumo de álcool discute a necessidade de compreensão de múltiplas determinações que interagem entre si para entender o contexto do uso entre esse grupo, tais como família, território e aprovação social do uso entre os pares. Chama atenção para a globalização ocidentalizada da cultura presente no país que vem mudando a percepção e o comportamento de jovens sobre o consumo de álcool. Outro estudo com jovens holandeses ressalta a importância da influência do grupo no estabelecimento das normas sociais sobre o consumo de álcool e ressalta possíveis fatores que poderiam diminuir o uso, como reprovação do uso por parte dos pais, prática religiosa ou esportiva e problemas de saúde (Jander et al., 2013Jander, A., Mercken, L., Crutzen, R. & Vries, H. (2013). Determinants of binge drinking in a permissive environment: focus group interviews with dutch adolescents and parents: focus group interviews with Dutch adolescents and parents. Bmc Public Health, 13(1), p. 251-265.https://doi.org/10.1186/1471-2458-13-882
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). O estudo de Mirlashari et al. (2013Mirlashari, J., Demirkol, A., Salsali, M., Rafiey, H. & Jahanbani, J. (2013). Society and Its Influences on Drug Use Among Young Individuals in Tehran, Iran. Journal Of Addictions Nursing, 24(2), p. 116-121.) com jovens iranianos discute que a aprovação social para o uso de substância já é cognitivamente construída em períodos precoces do desenvolvimento, além da pressão por pares e aspectos familiares, culturais e a quantidade de estímulos ambientais que vulnerabilizam os jovens para o consumo de drogas.

Por último, o estudo realizado no Brasil, procurou compreender algumas barreiras presentes na procura de ajuda por jovens usuários de crack. As maiores queixas foram a demora nos atendimentos, atitudes preconceituosas e pouco acolhedoras por parte dos profissionais, excesso de burocracia e o alto valor dos transportes para se chegar ao atendimento. Apontam ainda que a oferta de cuidado de forma descontextualizada e padronizada é uma forte barreira de acesso ao tratamento (Cruz et al., 2013Cruz, M. S., Andrade, T., Bastos, F., Leal, E., Bertoni, L., Lipman, L., Burnett, C. & Fischer, B. (2013). Patterns, determinants and barriers of health and social service utilization among young urban crack users in Brazil. Bmc Health Services Research, 13(1), p. 536. http://dx.doi.org/10.1186/1472-6963-13-536
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).

O presente artigo faz uma compilação e análise sobre a produção científica em relação aos determinantes sociais e a dependência de substâncias psicoativas. Os dados demonstram que essa é uma área cujo interesse mundial tem sido crescente nos últimos anos, o que evidencia o quão recente é a discussão sobre o tema, bem como exprime a relevância progressiva que abordagens mais complexas sobre determinação social e uso de álcool e outras drogas vêm ganhando no campo científico (Spooner, 2009Spooner, C. (2009). Social determinants of drug use - barriers to translating research into policy. Health Promotion Journal Of Australia, 20(3), p. 180-185. https://doi.org/10.1071/HE09180
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).

Além disso, é válido ressaltar o fato de que observa-se uma concentração de publicações em determinadas regiões e países, em especial os do hemisfério norte, que têm maior desenvolvimento econômico. Essa dinâmica se faz presente também em outras áreas do conhecimento, o que indica a hegemonia dessas regiões, tanto no que diz respeito à produção do conhecimento científico, quanto na difusão do mesmo (Crew, 2019Crew, B., (2019). The top 10 countries for scientific research in 2018. Nature Index. https://go.nature.com/2WP5cLZ.
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). Não à toa, a presente revisão de literatura constatou que a concentração da produção dos Estados Unidos da América a respeito dessa temática teve um percentual maior do que as pesquisas da América Latina e da África conjuntamente, sendo as duas últimas regiões com cenários de pobreza e desigualdade social, nos quais o uso de substâncias ganha contornos diferenciados (Organização dos Estados Americanos [OEA], sdOrganização dos Estados Americanos. Desigualdad e Inclusión Social en las Américas. Washington DC: Organização dos Estados Americanossd. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, (2015). Ranking IDH Global, 2014. Relatório de Desenvolvimento Humano.).

Nesse âmbito, considerando a importância das determinações sociais na problemática do uso de drogas para uma compreensão ampla sobre o tema, é imprescindível que as especificidades de regiões mais pobres possam ser investigadas e divulgadas, visto que nesses contextos o impacto das questões sociais em saúde é ainda maior (OEA, sdOrganização dos Estados Americanos. Desigualdad e Inclusión Social en las Américas. Washington DC: Organização dos Estados Americanossd. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, (2015). Ranking IDH Global, 2014. Relatório de Desenvolvimento Humano.). Por fim, não se pode desconsiderar que características dos resultados encontrados neste estudo devem-se à concentração de publicação nos países e regiões mais desenvolvidos, mostrando a íntima relação entre padrão de desenvolvimento, produção do conhecimento e mercado científico.

Outra consideração importante diz respeito ao fato de que, na metade das pesquisas, o foco se deu na investigação da população geral em detrimento da análise detalhada de grupos específicos. Esse resultado reforça a hegemonia de caracterização das pesquisas encontradas, com maior ênfase em estudos epidemiológicos. Além disso, grande parte das publicações trataram os determinantes sociais como categorias estáticas, muitas vezes considerando-as como variáveis lineares, indicando a tentativa de análise de atribuições diretas entre uma variável e o consumo, sem considerar o contexto e a dinâmica social envolvida (Dimenstein et al., 2017Dimenstein, M., Siqueira, K., Macedo, J. P., Leite, J., & Dantas, C. (2017). Determinação social da saúde mental: contribuições à psicologia no cuidado territorial. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 69(2), p. 72-87. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v69n2/06.pdf
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; Rocha & David, 2015Rocha, P. R. & David, H. M. S. L. (2015). Determinação ou determinantes? Uma discussão com base na Teoria da Produção Social da Saúde. Revista da Escola de Enfermagem, 49(1), p. 129-135.). Nesse sentido, como já referido anteriormente, as categorias gênero e raça/etnia, na maioria dos artigos, foram tratadas como variáveis individuais e biológicas e não como categorias históricas e sociais, como problematizam algumas perspectivas teóricas (WHO, 2010World Health Organization (2010). A conceptual framework for action on the social determinants of health. World Health Organization.). Tais características podem estar relacionadas à tradição e origem das pesquisas a partir do referencial da epidemiologia clássica que se ancora em pressupostos diferentes daqueles que sustentam a perspectiva da Determinação Social da Saúde (Buss & Pellegrini, 2007Buss, Paulo Marchiori, & Pellegrini Filho, Alberto. (2007). A saúde e seus determinantes sociais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17(1), p. 77-93. https://doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006
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).

Com relação à comparação entre as análises dos determinantes sociais e a dependência de drogas, observa-se um maior número de pesquisas que destacam os fatores de risco para o consumo, dependência ou prejuízos relacionados às substâncias psicoativas, ao invés daqueles que investigam os fatores de proteção ou redução dos possíveis danos associados ao consumo. Assim, fica evidente a perspectiva hegemônica nos estudos encontrados e a força do paradigma biomédico, de forma que a complexa trama que envolve a problemática do uso de drogas na atualidade é reduzida à presença de determinantes, tomados como causalidades em si mesmas e realidades estáticas, a-históricas e naturais. A tradição curativista é mais forte do que as perspectivas que procuram promover a saúde das populações e a redução de danos (Spooner, 2009Spooner, C. (2009). Social determinants of drug use - barriers to translating research into policy. Health Promotion Journal Of Australia, 20(3), p. 180-185. https://doi.org/10.1071/HE09180
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).

Ainda nesse viés, nota-se que a predominância de estudos com foco nos fatores microssociais e nos indivíduos, em detrimento de análises mais complexas que abordam o uso de drogas como questão social e coletiva, demonstra não só a força das perspectivas individualistas e essencialistas nesse campo, mas aponta para os efeitos nefastos da responsabilização em relação às pessoas que essa tradição epistemológica traz (Dimenstein et al., 2017Dimenstein, M., Siqueira, K., Macedo, J. P., Leite, J., & Dantas, C. (2017). Determinação social da saúde mental: contribuições à psicologia no cuidado territorial. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 69(2), p. 72-87. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v69n2/06.pdf
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). Essa perspectiva, inclusive, ao tomar o indivíduo como alvo do tratamento, vai em sentido contrário à literatura da área, que aponta a maior efetividade de ações de base comunitária e ambiental (Ronzani, 2018Ronzani, T. M. (2018). The Context of Drug Use in the Consumer Society. In: Ronzani, T. M. (Org.). Drugs and Social Context: Social Perspectives on the Use of Alcohol and Other Drugs. Springer. p. 77 - 88.).

Além disso, é importante analisar criticamente o fato de que, ao se realizar a comparação entre a classificação dos países em termos do IDH e as categorias tipo de substâncias, grupos e determinações sociais estudadas, nível das determinações e tipo de desfechos (positivos ou negativos), não foram encontradas diferenças entre os resultados desses países, apesar deles apresentarem desigualdades em relação aos índices de desenvolvimento humano. Ainda que saibamos das limitações do IDH como indicador de desenvolvimento social de um país ou região e que este indicador não seja central nas nossas análises e objetivos de estudo (Oliveira, 2005Oliveira, A. R. V. (2005). Perspectivas Críticas Sobre a Mensuração da Pobreza e Desigualdades no Brasil: Uma Reflexão a partir do IDH (Tese de Doutorado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil),), optamos por utilizá-lo como uma primeira aproximação na comparação neste sentido. Sugerimos que em outros estudos possam utilizar índices e análises mais sensíveis e detalhadas para objetivos mais específicos nessa direção. Mesmo considerando tais limitações, os dados sugerem uma certa homogeneidade na caracterização dos estudos, ressaltando novamente a ênfase epidemiológica das publicações. Nesse âmbito, destacamos a existência de uma grande diferença não somente em termos da realidade cultural e socioeconômica, mas também da epidemiologia ou padrão de uso nas diferentes regiões, bem como os distintos impactos e atravessamentos relacionados às determinações sociais e a dependência de substâncias psicoativas (Galea et al., 2005Galea, S.; Rudenstine, S. & Vlahov, D. (2005). Drug use, misuse, and the urban environment. Drug And Alcohol Review, 24(2), p. 127-136. https://doi.org/10.1080/09595230500102509
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). Dessa forma, reforça-se a necessidade de se pensar na produção de pesquisas e evidências mais compreensivas e contextualizadas às características dos diferentes territórios.

Assim, faz-se necessário considerar a relevância das pesquisas de desenho qualitativo. Apesar de serem minoritários, os sete estudos que utilizaram essa abordagem metodológica, de uma maneira geral, apontaram para importância de se compreender as determinações sociais de forma dinâmica, processual e complexa e levaram em consideração a relação entre essas determinações e o consumo de substâncias, particularmente entre determinados grupos sociais. Os estudos realizados com mulheres, por exemplo, compreendem que a análise a respeito do uso de drogas entre esse grupo deve levar em conta o contexto social em que elas vivem, chamando atenção para a importância da articulação entre cultura, história e aspectos sociais dessa comunidade e os cuidados em saúde (Badry & Felske, 2013Badry, D. & Felske, A. W. (2013). An examination of the social determinants of health as factors related to health, healing and prevention of foetal alcohol spectrum disorder in a northern context - the brightening our home fires project, Northwest Territories, Canada. International Journal Of Circumpolar Health, 72(1), p. 21140.https://doi.org/10.3402/ijch.v72i0.21140
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). Portanto, nota-se que os trabalhos qualitativos têm uma tendência de articular os diferentes fatores envolvidos e as diversificadas dinâmicas de consumo de substâncias psicoativas, reforçando a importância das investigações e da produção científica a partir desta perspectiva que preza pela busca pelo significado cultural das práticas e do sentido de fenômenos como o uso de drogas.

Por último, é importante ressaltar que os resultados encontrados possivelmente sofreram influência dos critérios adotados nessa pesquisa. Inicialmente, ainda que não seja o foco desse estudo realizar uma discussão conceitual, como já discutimos anteriormente, a opção por manter o termo Determinantes Sociais de Saúde, ainda que seja o termo constante nas bases de descritores, pode ter gerado justamente a seleção de tipos de artigos de regiões específicas. Além disso, a especificação e a ênfase de busca baseada na dependência de drogas e não em outros padrões de uso também podem ter gerado resultados mais específicos. Ainda assim, como um primeiro artigo nesse sentido, optamos por manter os critérios de busca, conforme o Protocolo PRISMA e uma análise mais focada na dependência de drogas. De qualquer maneira, sugere-se em estudos futuros e complementares a ampliação dos padrões de consumo e um estudo mais conceitual sobre determinantes e determinações sociais. Apesar dessas escolhas metodológicas possivelmente não abrangerem outras pesquisas, acreditamos que nosso artigo tenha atingido seus objetivos e tenha gerado informações relevantes para a área.

Conclusão

Ressalta-se que, tendo em vista a ênfase dos estudos em fatores individuais/biológicos relacionados a uma perspectiva curativa sobre a dependência de substâncias psicoativas, torna-se necessária a realização de trabalhos de base processual, com fundamentações históricas e compreensivas, cujo foco supere o caráter individualizante e epidemiológico encontrado na grande maioria dos estudos. Assim, destaca-se a importância da discussão sobre drogas a partir da perspectiva da determinação social, seja para a compreensão ampliada do fenômeno, seja para o planejamento contextualizado e o fortalecimento das políticas sociais como ações protetoras, as quais minimizam os impactos do consumo em grande parte da população, em especial em países economicamente periféricos. É importante, portanto, a promoção e o incentivo de produção de maior número de investigações na área, bem como é necessário ampliar metodologias, ênfases e perspectivas teóricas que possibilitem análises mais adequadas e fecundas acerca do uso de substâncias psicoativas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2020
  • Aceito
    19 Nov 2021
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