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Ferenczi e Freud Revisitados: dos usos do desmentido (Verleugnung) na produção científica

RESUMO

A pesquisa apresentada teve como objetivo investigar os usos do conceito de desmentido (Verleugnung) nas produções científicas. Realizou-se revisão integrativa de literatura nas bases Scielo, Biblioteca Virtual de Saúde e Web of Science, nos idiomas português, inglês e espanhol, no formato de artigos científicos, analisando-se 39 publicações. Verificam-se extrapolações do conceito enquanto circunscrito à clínica das perversões, com o predomínio de uma análise da Verleugnung em sua relação indissociável com a cultura, tendência geral dos artigos. Observou-se três formas predominantes de seu uso na literatura: 1) em diálogo com a função paterna; 2) em diálogo com Ferenczi e sua teoria do trauma; 3) em diálogo com o fetichismo. Quanto às lacunas, há carência de propostas consistentes de intervenção no plano clínico e político, bem como a escassez de diálogo entre certas linhas teóricas.

PALAVRAS-CHAVE:
Verleugnung ; psicanálise; desmentido; pesquisa bibliográfica

ABSTRACT

The present research aimed to investigate the uses of the concept of disavowal (Verleugnung) in scientific productions. An integrative literature review of scientific papers was carried out in the Scielo, Biblioteca Virtual de Saúde and Web of Science databases in Portuguese, English and Spanish. Thirty-nine publications were analyzed. Extrapolations of the concept as circumscribed to the clinic of perversions were found, with the predominance of an analysis of Verleugnung in its inseparable relationship with culture, a general trend. Three predominant forms of its use were observed in the literature: 1) dialogues with the paternal function; 2) dialogues with Ferenczi and his trauma theory; 3) dialogues with fetishism. As for the gaps, there is lack of consistent proposals for intervention at the clinical and political level, as well as lack of dialogue between certain theoretical lines.

KEYWORDS:
Verleugnung; psychoanalysis; disavowal; bibliographic research

O conceito de Verleugnung (desmentido) foi concebido por Sigmund Freud (1856 - 1939) e posteriormente ganha uma nova roupagem quando explorado na obra de Sándor Ferenczi (1873 - 1933) dadas as articulações à sua inovadora teoria do trauma. Na contemporaneidade, tomam-se os desenvolvimentos de Slavoj Zizek (2011Zizek, S. (2011).Em defesa das causas perdidas(1 ed.). Boitempo.) e Jean Pierre Lebrun (2008Lebrun, J. P. (2008).A Perversão comum: Viver juntos sem outro. (1 ed.). Campo Matêmico.) como proeminentes na discussão do conceito. Tais desenvolvimentos contemporâneos, mostram o potencial do conceito para a leitura de fenômenos culturais sob a ótica psicanalítica, bem como abrem campo para um maior diálogo entre a clínica e a cultura, extrapolando a abrangência do desmentido para além da clínica tradicional das perversões e revivificando a letra freudiana. Insiste-se aqui, portanto, na reabertura de uma fenda que tem sua origem nas indicações deixadas pelos próprios iniciadores do movimento psicanalítico. O contexto, por si só, parece demandar a dilatação de tal brecha, contrapondo-se às tendências que operam sob a lógica da sutura (i.e., mantendo o conceito circunscrito às teorizações puramente clínicas).

Dada a complexidade do conceito (que pode ser explicitada pela quantia de neologismos que orbitam ao redor do mesmo e todas as divergências nas traduções para a língua portuguesa, por exemplo) há necessidade de um aprofundamento no que diz respeito ao uso e consequentes articulações da Verleugnung nas produções científicas que a tomam como categoria central.

Este artigo tem como objetivo geral investigar os usos do desmentido (Verleugnung) nas produções científicas, e como objetivos específicos: a) Explorar as aberturas propostas pelas revisitações do conceito; b) Caracterizar as temáticas às quais essa categoria está sendo articulada; e ainda c) Indicar lacunas e tendências nas produções científicas sobre o tema. Nesse trabalho serão encontrados: uma tabela (Tabela 1) expondo os artigos utilizados para a pesquisa (disposta de forma cronológica), informações relativas à fundamentação teórica utilizada, a metodologia empregada na análise dos artigos anteriormente citados e também os resultados encontrados, oriundos da análise realizada, os quais versam sobre as características bibliométricas dos estudos, as formas predominantes de abordar o desmentido nas produções, e as principais lacunas observadas.

Do conceito psicanalítico “Verleugnung” e suas origens

Para a realização da presente pesquisa compreende-se como imprescindível remontar aos primórdios da literatura psicanalítica relacionada o conceito de Desmentido (Verleugnung), bem como delinear a evolução de tal conceito até chegarmos às produções científicas contemporâneas. Desmentido, Negação, Recusa, Renegação ou até Desautorização são noções utilizadas como sinônimos do conceito de Verleugnung. A própria divergência encontrada no que diz respeito à transposição da Verleugnung para a língua portuguesa (e consequentemente para todas as outras línguas em que foi traduzida) exemplificada pelos cinco termos apontados, pode ser tomada como um ponto de partida e justificativa para a breve reconstrução da utilização e criação de tal conceito que se segue.

Sigmund Freud e a criação do conceito de Verleugnung.

As origens/primeiros aparecimentos da Verleugnung na obra de Freud podem ser remontadas ao seu uso como substantivo e verbo (“Verleugnen”) em contextos variados, ainda antes da mesma vir a tomar o estatuto de conceito em seus escritos posteriores. Freud, empregava o termo alemão em seus escritos sempre de forma a acusar alguma espécie de “negação”, o que corresponde à articulação proposta por Souza (2010Souza, P. C. (2010).As palavras de Freud(1 ed.). Companhia das Letras.) em sua análise dos termos empregados no vocabulário freudiano, onde afirma que a Verleugnung pode, em diversos aspectos, ser equiparada ao “negar” da língua portuguesa.

É a partir de 1924 (Freud, 1924/1996Freud, S. (1996). A perda da realidade na neurose e na psicose. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - ESB (v. XIX). (Trabalho original publicado em 1924)) que a Verleugnung passa a ganhar a consistência (e as consequentes delimitações) de um conceito, sendo então tomada como uma forma de rejeição/negação que estaria, nessa parte da obra freudiana (1924 até 1925), associada ao quadro das psicoses. Tal associação pode ser encontrada no texto de 1924 “A perda da realidade na neurose e na psicose” onde ao elucidar os conflitos entre as instâncias psíquicas, Freud diz que a “psicose desmente a realidade”: "Ou, de outra maneira ainda: a neurose não nega [verleugnet] a realidade, apenas não quer saber dela; a psicose a nega [verleugnet] e busca substituí-la”. (p. 140, grifo nosso).

Um ano depois em seu texto sobre "As consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (Freud, 1925/1996Freud, S. (1996). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - ESB (v. XIX). (Trabalho original publicado em 1925)), Freud novamente reforça tal associação, ao tratar a Verleugnung, quando presente em sujeitos adultos, como desencadeadora de uma possível psicose: “Ou surge o processo que eu designaria como “recusa” [Verleugnung], que na vida psíquica da criança parece não ser raro nem muito perigoso, mas que no adulto daria início a uma psicose.” (p. 182, grifo nosso). Aqui há também uma indicação curiosa que aponta para a incidência do processo na vida anímica infantil e, consequentemente, desprendido vínculo estreito com a patologia.

Tal associação estreita (entre o desmentido e a psicose) não foi mantida por muito tempo, pois, três anos depois em seu trabalho sobre o fetichismo, (Freud, 1927/1996Freud, S. (1996). Fetichismo. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - ESB (v. XXI). (Trabalho original publicado em 1927)) o uso da Verleugnung passa a ser então vinculado à metapsicologia da perversão, onde Freud afirma, em uma delimitação mais incisiva de seu próprio conceito, que quando se trata da perversão, o destino das representações teria de ser explicado com base no termo alemão “Verleugnung”.

A solução encontrada pelo perverso no que tange ao destino das supracitadas representações que provém da constatação da realidade da diferença sexual e da ameaça de castração é então o que ele chamava, nessa parte da obra, de Verleugnung: “Querendo-se diferenciar mais firmemente o destino da ideia daquele do afeto, reservando o termo ‘repressão’ para o afeto, a designação alemã correta para o destino da ideia seria Verleugnung [recusa, repúdio]” (Freud, 1927/1996Freud, S. (1996). Fetichismo. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - ESB (v. XXI). (Trabalho original publicado em 1927), p. 246). Com essa espécie de fixação do conceito, já é possível começar a compreender a solução comumente encontrada pelos tradutores brasileiros e franceses, por exemplo, visto que a Verleugnung aqui passa a consistir em um desmentir da diferença sexual em sua realidade.

Onze anos após a publicação do texto anteriormente mencionado (Freud, 1940 [1938]/1996Freud, S. (1980). A divisão do ego no processo de defesa. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (V. 23, pp. 309-314). Imago. (Trabalho original escrito em 1938 e publicado postumamente em 1940)) intitulado “A divisão do ego no processo de defesa”, pode-se dizer que o conceito atinge o apogeu de sua precisão teórica na obra freudiana, quando é utilizado para explicar a “Cisão do Eu” (ichspaltung) neste texto inacabado de Freud, criando um campo de abertura teórica que vem sendo explorado até os dias atuais: os estudos das tendências contraditórias de um eu cindido. Uma das contribuições mais relevantes no que diz respeito à Verleugnung, veio de um de seus discípulos: Sándor Ferenczi, como exposto a seguir.

A Verleugnung em Sándor Ferenczi.

Ferenczi, conhecido por sua inovadora teoria do trauma - uma de suas mais proeminentes contribuições psicanalíticas - que em certos aspectos conflita com a teoria freudiana, ao abordar e delinear suas elaborações teóricas a respeito de como o traumatismo viria a adquirir um caráter patogênico, utiliza da Verleugnung como conceito fundamental e indissociável ao processo traumático. Podemos ler: "[...] O pior é realmente a negação [Verleugnung], a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento [...]” (Ferenczi, 1931/1992Ferenczi, S. (1992). Análises de crianças com adultos. In: Obras Completas Sándor Ferenczi (v. 4). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931), p. 79, grifo nosso). Na elaboração ferencziana, as contribuições de Freud relativas ao desmentido são trabalhadas na teoria do trauma, dotando-a de novas colorações, e atribuindo um papel ativo ao desmentido na caracterização do traumatismo patogênico (através do movimento de retroação/ressignificação, que acaba por caracterizar a experiência enquanto patologicamente traumática).

É visível que tal abordagem, provoca uma ampla abertura para que a Verleugnung possa ser pensada em contextos que transcendem seu uso tradicional/vigente à época (a conceptualização do termo como basicamente circunscrito à delineação estrutural das perversões e o mecanismo de clivagem do ego), destacando-se as teorizações relativas ao campo social como poderá ser visto posteriormente no presente texto. A primorosa abertura proposta por Ferenczi, marca o deslocamento da Verleugnung zizde uma aplicação restritivamente intrapsíquica para uma aplicação que considera a dimensão do laço social enquanto indispensável.

Ferenczi (1931/1992Ferenczi, S. (1992). Análises de crianças com adultos. In: Obras Completas Sándor Ferenczi (v. 4). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931)) evocando a questão da “desautorização” da narrativa/relato infantil enquanto constituinte da temporalidade do trauma, simultaneamente, nos apresenta um novo modelo para pensarmos a aplicação discursiva do conceito freudiano. O texto de Ferenczi contém, em forma germinal, fundamentos para o pensar de uma ética da experiência analítica e o reposicionamento do analista enquanto tal: o analista podendo ser aquele que “desmente” e, trabalhando na contramão do manejo transferencial, invalida o relato do analisando. Temáticas como o “reconhecimento”, “confiança” e “horizontalidade” são evocadas pela leitura das teorizações ferenczianas, abrindo espaço para possíveis articulações políticas.

Das Utilizações contemporâneas da Verleugnung

Considerando a abertura conceitual deixada por Freud e Ferenczi, amplia-se nossa compreensão acerca das utilizações contemporâneas do conceito, tomado tanto para pensar situações diversas daquelas de que se ocupavam os dois autores nos primórdios do movimento psicanalítico, como para explorar e amplificar a utilização que os autores deram ao termo. É notória a proeminência das produções científicas que tratam da Verleugnung enquanto atrelada ao campo social e à política. Em território nacional, observa-se por exemplo a obra de Gondar e Reis (2017Reis, E. S., & Gondar, J. (2017).Com Ferenczi: Clínica, subjetivação, política(1 ed.). 7 Letras.) denominada "Com Ferenczi: Clínica, Subjetivação, política”, um dentre muito dos trabalhos que visam revisitar a obra de Ferenczi e Freud de forma a trazer a luz sua dimensão política e consequentes aberturas.

Em terreno internacional destacam-se as contribuições de Jean Pierre Lebrun, tendo como notória sua obra “A Perversão Comum” (Lebrun, 2008Lebrun, J. P. (2008).A Perversão comum: Viver juntos sem outro. (1 ed.). Campo Matêmico.). Tal obra, usa o termo de forma a explorar - dentre outras questões - o laço social contemporâneo, a função paterna e suas mutações. Também são de interesse, nesse sentido, as obras do esloveno Slavoj Zizek, que em diversos escritos e, notavelmente, em seu livro “Em defesa das Causas perdidas” (Zizek, 2011Zizek, S. (2011).Em defesa das causas perdidas(1 ed.). Boitempo.), elabora o desmentido-da-realidade para uma análise psicanalítica, política e histórico-crítica.

Método

A presente pesquisa se caracteriza como uma revisão integrativa. A escolha da metodologia foi pautada pela necessidade da realização de um levantamento bibliográfico de cunho qualitativo que pudesse integrar os resultados obtidos através da análise em um conjunto e promover ampla compreensão da temática abordada, bem como possibilitar a reprodução de tal metodologia para fins científicos/comprobatórios.

No que tange à revisão integrativa, através de Souza et al. (2010Souza, M. T., Silva, M. D., & Carvalho, R. (2010). Revisão integrativa: O que é e como fazer.Einstein, 8(1), 102-106. https://doi.org/10.1590/S1679-45082010RW1134
https://doi.org/10.1590/S1679-45082010RW...
) compreende-se que o propósito do método pode ser sumariamente definido como a realização de uma forma de síntese de pesquisas sobre determinada temática, visando conduzir/orientar a prática científica e surgido da necessidade de um método que abarque a "aplicabilidade de resultados e estudos significativos na prática" (p 102).

A busca foi realizada no mês de abril do ano de 2021 em três bases de dados distintas: Scielo (Scientific Electronic Library Online), Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) e Web of Science. A pesquisa abrangeu os idiomas português, inglês, espanhol, sem delimitação de período de tempo específico. Foram utilizadas as seguintes palavras-chave (de forma padronizada em todas as bases de dado supracitadas): Desmentida” or Verleugnung” and Psicoanálisis”, “Desmentido or Verleugnung and Psicanálise”, “Disavowal or Verleugnung and Psychoanalysis”. O acréscimo do termo original no alemão (Verleugnung) em todas as buscas se dá pela frequência com que este é citado nas publicações em diferentes idiomas.

Em uma primeira busca nas referidas bases de dados foram obtidas 456 publicações. Concluída essa primeira etapa do processo de busca seguida de uma análise prévia do material encontrado, foram adotados os seguintes critérios de inclusão: Somente trabalhos publicados no formato de artigo científico; disponíveis na versão completa; somente trabalhos que tomam o conceito de Desmentido (Verleugnung) como central em seu desenvolvimento. Foram excluídos todos os artigos que se repetiram nas diferentes bases de dados.

Após a utilização dos critérios de inclusão e exclusão mencionados, chegou-se ao número final de 39 artigos selecionados para posterior análise.

Quanto ao método a ser empregado na vindoura análise do montante obtido após os ditos processos de inclusão e exclusão, tomou-se a Análise do Discurso em seus diálogos e entrecruzamentos com a psicanálise, podendo afirmar que:

[...] as relações entre Lingüística e Psicanálise consistem em uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo em que as informações oriundas da Lingüística interessam à Psicanálise, essa última também pode contribuir com a Lingüística. Assim, para Leite (1994), o discurso inconsciente engendra os deslocamentos e, em decorrência, Lacan recusava pensar a Linguagem como objeto exclusivo da Lingüística. Desse modo, ele afirma a existência de uma teoria de linguagem forjada a partir do conceito de Inconsciente e já delineada na obra de Freud. (Melo, 2005Melo, M. F. V. (2005). Psicanálise e análise de discurso: Interlocuções possíveis e necessárias. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 1, 61-71., p.62)

Tal análise culminou na exploração do material e tratamento dos resultados obtidos. A seguir, estão listados os artigos selecionados para a pesquisa.

Tabela 1
Artigos selecionados.

Considerações bibliométricas

Os 39 artigos analisados, no que tange à autoria, foram escritos por 28 mulheres e 17 homens. As publicações estão distribuídas em 26 diferentes revistas, dentre as quais são proeminentes: “Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental” com seis artigos, e a “Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana” com quatro artigos. Em sua vasta maioria (77%) se tratam de revistas de psicologia clínica e/ou psicanálise.

Entre os autores analisados, dois deles aparecem com mais de uma publicação. Coelho Dos Santos (2016, 2018) destaca-se na autoria de quatro dos artigos analisados [20, 22, 29, 32]; Oliveira (2018) é autora de dois dos artigos presentes no arquivo de análise [29; 32], ambos em co-autoria com Coelho Dos Santos.

No que diz respeito à área de formação dos autores, nota-se o predomínio da psicologia e da psicanálise. 30 dos artigos foram escritos por graduados em psicologia, e 26 destes autores possuem formação psicanalítica. Dentre as outras áreas de formação dos autores encontram-se: letras, medicina, teologia, educação (dois autores), história, antropologia e filosofia.

Dentre os artigos selecionados, 31 se encontram em língua portuguesa, quatro em língua inglesa e quatro em língua espanhola. 32 dos artigos foram publicados no Brasil e dentre os outros países se encontram: Colômbia (1), Argentina (1), Estados Unidos (1), Costa Rica (1), Inglaterra (2), México (1).

Entende-se que o predomínio de artigos em português e de autores brasileiros pode apontar para tendências nacionais a respeito da revisitação da obra ferencziana e freudiana em relação ao conceito de desmentido para pensar a realidade social brasileira. Não se descarta também a possibilidade de que tal proeminência tenha se dado pela escolha das palavras-chave, considerando que Verleugnung costuma ser traduzido de variadas formas em diferentes idiomas, o que nos aponta novamente para a densidade e nebulosidade de tal termo mencionada no decorrer do presente trabalho.

Sem a delimitação de um período para a busca, a distribuição dos artigos se deu entre os anos 2004 a 2019. Tal resultado de busca aponta para a ampliação e revisitação do conceito nas produções dos últimos 20 anos, hipótese basilar do presente trabalho. A análise apontou como anos em que se concentraram mais publicações: 2016 (6 artigos), 2018 (6 artigos) e 2019 (5 artigos). O VI Simpósio do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana (ISEPOL) “Invenções e desmentidos - verdade, mentira e ficção” realizado em 2016 originou dois dos artigos de análise (o que pode explicar a concentração de publicações nesse período).

As formas de abordar o desmentido

No decorrer da pesquisa encaram-se uma miríade de temáticas articuladas ao conceito de desmentido nas produções científicas analisadas. Dentre tais temáticas, mostraram-se proeminentes três, que são: 1) as mudanças na função paterna; 2) trauma; 3) fetichismo. Estas temáticas emergiram como as formas principais de se abordar o conceito do desmentido. Para além das três temáticas proeminentes, observam-se: análises etimológicas e investigações da origem do conceito na obra freudiana [artigos 30 e 19]; investigações de fenômenos clínicos [artigos 28, 23, 10]; e ainda: artigos que, mesmo não tendo nenhuma das três temáticas consideradas proeminentes como orientadoras principais, apontam para um entendimento do desmentido na cultura e enquanto processo atuante nas modalidades discursivas contemporâneas [artigos 33, 26, 25, 9 e 16].

Observou-se então, o predomínio de uma análise da Verleugnung em sua relação -indissociável - com a cultura, o que foi localizado como uma tendência geral dos artigos, uma relação que abre caminhos para a análise social contemporânea, tendo o desmentido como um paradigma para a compreensão das mutações culturais na contemporaneidade - seguindo a via psicanalítica - de forma a suspender a oposição entre “interno e externo” que por si só já não se sustenta em psicanálise, visto que: a palavra vem do outro.

O desmentido em diálogo com a função paterna

Na psicanálise, com a teorização freudiana relativa ao complexo edípico (1913Freud, S. (1913). Totem e tabu. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - ESB. Imago, 1996. v. XIII. ), Freud já introduz a questão da função paterna enquanto estruturadora do laço social e instauradora da falta que dissolve a “completude” da relação puramente dual, principiando o desejo. A função paterna não se restringe ao pai biológico (macho e tomado enquanto indivíduo) visto que está enredada na dinâmica do sujeito e é indispensável à formação do mesmo enquanto tal. Na psicanálise Lacaniana - apoiada em um retorno a Freud - enfatiza-se a função paterna enquanto tomada no interior da operação simbólica que intervêm na relação mãe-bebê como porta de entrada do sujeito na rede simbólica. Fala-se aqui do domínio da castração, da entrada do sujeito no desejo sexual pela via da renúncia do objeto incestuoso, pela via do reconhecimento da impossibilidade.

Desde os primórdios da psicanálise, a função paterna, enquanto um elemento exterior à relação mãe e filho, introduz no psiquismo uma marca traumática, perante a qual o sujeito experimenta forçosamente uma relação de submissão. A outra face desta relação com o pai é a dívida simbólica que o sujeito contrai com aquele que liberta a criança de sua indiferenciação com o Outro materno. (Oliveira & Coelho dos Santos, 2018, p.933) [artigo 29]

As discussões relativas ao desmentido relacionado às mudanças na “função paterna” predominam, aparecendo em 13 artigos analisados, sendo eles identificados no quadro um, com os números: 1, 4, 6, 12, 14, 17, 20, 21, 22, 24, 27, 29 e 32. Esses dialogam com as temáticas: crença; fé; narcisismo; castração; fetichismo; perversão; falta; o feminino; falo; política; contrato social; horizontalidade; movimentos sociais; realidade; clivagem do eu; virtualidade; tradição; lei; neoliberalismo; capitalismo de consumo; passagem da modernidade à contemporaneidade; obesidade; fantasma.

Nas discussões relativas ao desmentido quando relacionado às mudanças na “função paterna” encontram-se menções à sua implicação na constituição do sujeito e, mais especificamente, sua relação com o que pode ser agrupado na categoria genérica “sujeito contemporâneo”. Autores como Jean-Pierre Lebrun enfatizam a importância de tomar aquilo que chamam de “declínio da função paterna” como uma significativa tendência que tem reflexos/impactos consideráveis nos âmbitos sociais e psíquicos.

Considerando a função paterna em seu aspecto interditório, entende-se que seu declínio culminaria inevitavelmente em uma “irrestrição” de gozo e, consequentemente, em um movimento simbiótico para com a figura da mãe primitiva, marcando a impossibilidade do processo de separação. Aqui, a legitimidade da função paterna estaria desmentida. Logo, depreende-se como consequência que: a forma de inscrição (ou o desmentido) da função paterna se manifesta na cultura, inevitavelmente afetando e provocando mutações no laço social.

O desmonte do patriarcado; a ascensão do discurso da ciência ; a plasticidade do capitalismo e, por fim, a influência da engenharia social do neoliberalismo, podem ser pensados como aspectos de destaque quando se analisam as formas de gozo contemporâneas.

Este estudo é pertinente à reflexão sobre o papel da autoridade na trama edipiana que marca uma diferença importante na constituição do sujeito contemporâneo, especialmente no que tange à instauração do ideal do eu. É cada vez mais evidente o esfacelamento da autoridade do pai na trama familiar desde a desconstrução do patriarcado e da emergência do discurso da ciência (Lebrun, 2009Lebrun, J. P. (2008).A Perversão comum: Viver juntos sem outro. (1 ed.). Campo Matêmico., p.119). (Quintella, 2016 [artigo 24]) (Grifo do original).

Um dos artigos (12) aborda a temática da função paterna sob outra ótica. Considerando a tendência levantada nos parágrafos anteriores como “declinologista” (pois seriam discursos pessimistas relativos ao declínio da função paterna), aponta para críticas que consideram o caráter “positivo” da horizontalização das relações. Vale mencionar que o artigo menciona Jacques-Alain Miller enquanto alguém que “admite a horizontalidade do campo social sem lamentos, como um processo incontornável de feminização da cultura”, mas que, não obstante, Miller continuaria apegado a uma referência fálica. A crítica aqui, está voltada para um “apego” ao falo que parece culminar em uma resistência à movimentos da contemporaneidade que abandonariam tal noção “falocêntrica”. É também notório o fato de que um diálogo que considere a noção Ferencziana de desmentido em sua articulação com os autores “declinologistas” acontece única e exclusivamente nesse artigo (dos 39 analisados).

Apesar da divergência de abordagens, (“declinologista” ou não) os autores tendem a convergir no que diz respeito à influência da “função paterna” (e suas transformações) na estruturação do laço social contemporâneo. As novas formas de subjetividade/experiência do subjetivo, bem como as novas “engenharias sociais” que acompanham o desenvolvimento dos “sujeitos contemporâneos”, podem ser pensados à luz de tal função. O artigo [24], por exemplo, aponta que a dissolução do laço social na contemporaneidade, ligada às experiências de excesso, pode culminar em apelos à reestruturação da função paterna de uma forma ainda mais radical: “tentativas desesperadas de fazer a lei assumir ali seu valor” (Quintella, 2016). (artigo 24).

Na cultura, aborda-se um discurso que desmente a falta e a castração, um discurso que almeja tornar imanente o impossível, relegando o pai carnal à impotência ante o grande outro provedor de tudo. O laço social fundado sob tal discurso conduziria a esse enfraquecimento da eficácia simbólica do interdito que, sob a égide do desmentido, produz alterações em toda subjetividade contemporânea. Tais alterações, parecem embaçar as “linhas” que separariam as grandes estruturas psíquicas propostas pela psicanálise, tendo um impacto significativo na soberania da neurose e do recalque. Lebrun (2008Lebrun, J. P. (2008).A Perversão comum: Viver juntos sem outro. (1 ed.). Campo Matêmico.) parece apontar que, na contemporaneidade, destronaram-se o recalque e a “neurose normal” enquanto paradigmáticos (como eram na era moderna). O desmentido (mecanismo perverso) e uma “perversão comum” parecem vir a suceder a antiga dupla no sentido da organização do laço social atual. A perversão comum não deve ser confundida ou puramente identificada com a perversão enquanto estrutura.

Os artigos analisados no presente trabalho parecem convergir no sentido de apontarem para pensar a questão do desmentido como desvinculado de uma ligação estreita e indissociável com a perversão estrutural: assim, o desmentido está presente também nos neuróticos. Tal reconhecimento, que concorda com as aberturas propostas na obra freudiana, amplia a capacidade de alcance sócio-político da psicanálise, e permite atualizar dinamicamente a letra da obra de seu fundador, Sigmund Freud.

Teoria do Trauma e Ferenczi

Nos artigos analisados, dentre as temáticas que dialogam com a teoria ferencziana estão: luto, comunicação, vínculo mãe-bebê, reconhecimento, modernidade, morte, horizontalidade clínica, vulnerabilidade, novo laço social, política, ambiente facilitador, sofrimento social, democracia, educação, autenticidade, neocatarse, identificação, grupos, desigualdade, ética, clivagem, o bebê sábio.

Dentro do arcabouço teórico Ferencziano, sua teoria é utilizada para pensar o laço social sob a ótica do desmentido da experiência, uma recusa de reconhecimento ou desautorização, o que aparece em sete artigos, sendo eles: 2, 12, 34, 36, 37, 38, 39. Para isso, sua inovadora teoria do trauma é evocada: "[...] O pior é realmente a negação [Verleugnung], a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento [...]” (Ferenczi, 1931/1992Ferenczi, S. (1992). Análises de crianças com adultos. In: Obras Completas Sándor Ferenczi (v. 4). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931), p. 79, grifo nosso). Vale ressaltar que, nos artigos pesquisados, observou-se (tópico que será retomado) que os autores que optaram por uma abordagem “lacaniana” ou “freudo-lacaniana” não promoveram articulações com a teoria do trauma de Ferenczi, do mesmo modo que os “ferenczianos” não mencionam as elaborações dos autores supracitados em relação à função paterna, com exceção do artigo 12 que aponta para as tendências “declinologistas”.

Nenhum pensador se dedicou de forma tão insistente, rigorosa e apaixonada a elaborar uma teoria do trauma como Ferenczi. Contudo, ele tem sido raramente convocado para o debate sobre a contemporaneidade, como se, diferentemente de Freud, suas contribuições não pudessem extrapolar o campo clínico” (Gondar, 2012, p. 194) [artigo 12].

O não reconhecimento/desautorização no social, como uma forma de desmentido, é ressaltado na obra ferencziana e apontaria simultaneamente para um mal-estar social e para uma consistente prática clínica pautada pela lógica do reconhecimento. Nisso, entramos novamente na discussão sobre a constituição do “novo” laço social fundado sobre o desmentido do discurso contemporâneo. O autor supracitado, utilizando da teoria Ferencziana, aponta para a horizontalidade na práxis clínica e vê uma “possibilidade positiva” de intervenção na nova organização político-social que “superaria a verticalidade” (a criação de um laço social que se paute pelo reconhecimento da vulnerabilidade), o que o contrapõe novamente a autores fundamentados primordialmente pela lacaniana/freudo-lacaniana como Lebrun (2008Lebrun, J. P. (2008).A Perversão comum: Viver juntos sem outro. (1 ed.). Campo Matêmico.) na abordagem das mutações do laço social. Por outro lado, os últimos, ao mesmo tempo em que discorrem sobre os problemas causados pelas ditas mutações também apontam para movimentos sociais de resistência (artigo 17, por exemplo), e nos fornecem material teórico para pensar a reestruturação da clínica na contemporaneidade a partir da noção de desmentido.

O desmentido associado à questão de uma recusa do reconhecimento aproxima Ferenczi das discussões que envolveriam uma nova modalidade de laço social, mesmo que o diálogo entre os “declinologistas” e os ferenczianos seja escasso nos artigos analisados. Uma posição ético-política pode ser claramente retirada das ideias Ferenczianas, considerando-se tanto suas teorizações sobre o trauma e o reconhecimento da vulnerabilidade, quanto as teorizações relativas à horizontalidade clínica (que se ampliam à horizontalidade das relações na contemporaneidade).

Com a correlação da Verleugnung com a teoria do trauma, as contribuições freudianas são imbuídas de novo significado, de forma a atribuir um papel ativo ao desmentido no que tange à caracterização do traumatismo enquanto patogênico. Em um movimento retroativo de ressignificação, o “desmentido do sofrimento” por exemplo poderia acarretar na caracterização da experiência enquanto patologicamente traumática. Com isso, quando se considera um discurso social (ou uma noção de trauma social) que seja predominantemente marcado pelo desmentido, é possível analisar as consequências patogênicas de tal e utilizar-se de uma nova lente de análise social: a micro e a macro política Ferencziana [artigo 12].

O desmentido enquanto significação retroativa do evento traumático é um agente que provoca a dissolução de relações sociais pautadas pelo reconhecimento e a confiança, o que tem evidentes implicações em relação ao simbólico e à própria relação do sujeito com a realidade e a percepção. Isso parece corroborar com a hipótese de que o laço social contemporâneo não pode ser psicanalisado desconsiderando-se a ação da Verleugnung e a ascensão de tal mecanismo que parece tomar uma significação paradigmática de resposta à subjetividade característica de nossa era.

Ainda de acordo com a versão ferencziana do trauma, a defesa psíquica contra o desmentido seria a autoclivagem narcísica (Ferenczi, 1913/1988Ferenczi, S. (1992). Análises de crianças com adultos. In: Obras Completas Sándor Ferenczi (v. 4). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931), p. 77). Nessa sofisticada gambiarra narcísica, a parte do sujeito que carrega a experiência do vivido traumático permanece extremamente frágil e machucada, enquanto a outra “amadurece”, rapidamente, para tentar se adaptar à realidade. O não reconhecimento social produz um sujeito portador de fragmentos mortos, inexpressivos, silenciados. (Alencar, 2018, p.63) [artigo 24].

Questões presentes na obra Ferencziana, como a “autoclivagem narcísica” que seria uma defesa contra o desmentido [artigo 34] apontam novamente para uma questão influente na constituição do laço social (os efeitos do desmentido social). Articulações com o neoliberalismo, do qual o artigo 36 é exemplo, podem ser extraídas daí.

“Haveria situação mais paradigmática desse desmentido do que o espancamento de professores pela polícia nas suas greves e manifestações de protesto?” Docentes que reclamam e se mobilizam contra a condição de exploração em que vivem, são ainda mais punidos por políticas de segurança autoritárias. O discurso sobre “a educação para todos”, que nunca se efetiva de fato, ocupa o lugar de um fetiche cultural”. (Montes & Arreguy, 2019, p.250) (artigo 36). O artigo mencionado elabora no que diz respeito ao desmentido enquanto atuante na esfera educacional e a questão da falta de reconhecimento. Fundamentando-se em Ferenczi, é possível reconhecer a indisputável influência do sistema atual (capitalista) na perpetuação do desmentido social.

Fetichismo

É notório na discussão que se segue, que o pano de fundo da lógica do consumo corrobora a teoria do desmentido fetichista enquanto paradigma do laço social moderno e suas inconsistências, estando presente em 12 dos artigos analisados, sendo eles (6, 7, 8, 11, 13, 15, 18, 21, 31, 32, 35, 36).

A mudança no laço social trazida à tona pela ascensão da lógica mercantil com suas novas formas de sintomatização, demanda frenética e irrestrição de gozo, parece apontar para a transfiguração simbólica reconhecida pelos diferentes autores que compõe nossa presente análise, e guia novamente às contribuições freudianas relativas à clínica da perversão. Tal lógica, se assemelhando à resposta perversa ante a castração, desmentiria a realidade angustiante da falta em uma recusa à abdicação da forma de gozo “total. A proposta Freudiana da recusa da castração operada pelo perverso é assim atualizada e revisitada à luz da aspiração ao gozo irrestrito, da transgressão na contemporaneidade que culminaria em uma possível dissolução do pacto edípico.

A perversão é indissociável do âmbito social e como tal, na grande maioria dos artigos, é tomada para além da clínica e de seu viés puramente estrutural. Trata-se aqui também de neuróticos que apresentam traços e mecanismos (principalmente o desmentido) perversos, o que pode apontar novamente para tendências sociais contemporâneas. As duas posições contrapostas do perverso (o saber e não saber relativo ao falo materno, que encontra sua pseudo-reconciliação no objeto fetiche) são tomadas como um suporte de análise social. O desmentido é tirado de sua associação estreita - como defesa exclusiva dos “perversos de estrutura - e é, de certa forma, “generalizado” para sujeitos neuróticos, sob um novo entendimento metapsicológico. Seguindo as aberturas propostas pela obra freudiana, alguns autores (artigo 13) observam a Verleugnung enquanto considerada como despida da estrita “patologia”, agora tomada como processo fundamental de todo funcionamento mental: “A frase de Freud ‘Comecei então a suspeitar que na infância não são nada raros fenômenos semelhantes’ revela sua intuição de que estava abordando um mecanismo de ocorrência mais ampla, além dos casos de fetichismo e do início das psicoses.” (Cintra, 2004, p.46) (artigo 1).

Ainda relativo à aproximação intrínseca do conceito de perversão e do desmentido, encontram-se temáticas como o discurso neoliberal capitalista e o discurso religioso enquanto associados aos “usos sociais da perversão” (artigos: 1, 5, 22, 25, 27, 31, 35). Os estudos, enxergam no fetiche o amparo a uma posição transgressiva de insubordinação ao interdito paterno da castração/instauração da falta. Em um só movimento, o fetiche se estabelece como um reconhecimento e desafio à ameaça. As tendências perversas relativas ao desmentir da falta da castração e o impulso fetichista relativo ao objeto e suas formas de desvelamento, são encontrados no âmago contemporâneo e alimentam teorias como a da “perversão comum” de Lebrun. O desmentido fetichista da castração (primordialmente associado à percepção da diferença sexual e da falta) que pode ser remontado a uma etapa mítica da infância, opera de forma a aplacar a angústia provocada pela aterradora presença da falta no campo perceptivo; nesse processo, o perverso através da Verleugnung gera o objeto fetiche que maquia o insuportável da castração feminina, escondendo a falta mesmo que a reconheça (na união das proposições contraditórias).

Na contemporaneidade, o tema do desmentido fetichista foi vinculado estreitamente ao discurso neoliberal e ao capitalismo de consumo. O “fetichismo da mercadoria” de Marx balizou algumas dessas discussões. O pano de fundo neoliberal da sociedade contemporânea carrega-se de um viés fetichista que visa tamponar a falta e prega pelo gozo irrestrito. Sendo o desmentido fetichista a resposta à subjetividade que caracterizaria o estágio atual das sociedades capitalistas, as articulações entre a teoria marxista e a psicanálise enfatizam a conexão íntima entre “subjetividade psíquica”, clínica e política. Os objetos-fetiches são exaltados no apelo à proto-completude consumista do capitalismo de consumo e nos imperativos superegóicos da injunção social que nos intima (assim, performativamente construindo novos modos de experiência subjetiva): “Goze!” (Zizek, 2009Zizek, S. (2009). O Sujeito Incômodo: O Centro ausente da Ontologia Política. Lisboa: Relógio D’Àgua.).

Com o desmentido, na posição cindida entre o saber e o não saber da castração representada pelo véu que esconde e aponta a falta simultaneamente. - falta essa que é suplantada pelo substituto do falo materno, o fetiche - o sujeito assume o lugar fálico, destronando assim a figura da autoridade paterna. A insuportabilidade da castração e da lei (enquanto sendo uma instância simbólica) são contornadas pelo sujeito perverso. Aqui, notam-se as aproximações com a temática anterior (função paterna,). Tal diálogo foi desenvolvido por três dos artigos analisados [6, 21, 32]

O suposto triunfo que obtura a falta e vela a ameaça e a castração, pode ser reencontrado no discurso capitalista contemporâneo que cobre a falta com a mercadoria e cobre com seu discurso os conflitos e divisões inerentes à sociedade como organizada contemporaneamente. Encontra-se no funcionamento intersubjetivo dos sujeitos (não necessariamente perversos de estrutura) a dita coexistência das duas posições contraditórias por natureza: o reconhecimento e o não reconhecimento da falta. O Neoliberalismo é invariavelmente fetichista quando corrobora com a transmissão de um discurso que funda uma compreensão do mundo pautada pela ausência da falta, por uma “completude” que anula qualquer castração (e fetichiza os objetos de consumo que viram imperativos superegóicos), aumentando exponencialmente a insuportabilidade da falta no outro.

A função escamoteadora do objeto, ainda no caso da mercadoria, pode ser utilizada na compreensão do laço social fundado em nossa era que tem no desmentido fetichista seu suporte e sua perpetuação. O artigo 35 por exemplo, em uma articulação entre Freud e Marx (consequentemente entre o Fetichismo Freudiano e o fetichismo da mercadoria de Marx) aponta para o fato de que o capitalismo se utiliza do fetichismo para “cobrir” ou “obscurecer” o trabalho que constituiu a própria mercadoria, e explicita que a promessa do capitalismo está na sutura da própria falta constitutiva do sujeito (que seria suplantada pela mercadoria).

De forma complementar ao pacto social que inclui e exclui, temos o desmentido da castração, pelo imperativo do gozo, promessa do mundo atual, oriunda do capitalismo. Esses dois aspectos são complementares porque o imperativo do gozo leva a um laço perverso. A sociedade capitalista coloca a mercadoria como fetiche, que tampona a falta, leva à ilusão de completude, de satisfação imediata. Essa posição fetichista é uma negação do subordinamento à lei simbólica, o que compromete o pacto social. (Sequeira, 2009, p. 226) (artigo 6).

Dentre as temáticas que dialogaram com o tema do fetichismo estão: Crime; Prisão; Teoria queer; heterossexualidade compulsória; niilismo; civilização; adicção; virtualismo; mercado; neoliberalismo; divisão de classes; capitalismo de consumo; preservação ambiental; laço social; moralidade; submissão; cinema; fé; crença; epistemologia; sociologia; anorexia; política; fetichismo de mercadoria; revolução e educação.

Lacunas e aproximações na produção científica sobre o desmentido

Levando em consideração o que foi exposto nos itens anteriores e a divisão entre categorias, pudemos atentar para certas características lacunares nos artigos analisados. A articulação entre a teoria do trauma de Ferenczi e os autores “declinologistas” (como Lebrun) é quase inexistente, ficando restrita a um único artigo [12]. Esse, seria um campo fértil para análises críticas, mesmo que culminassem em antagonismos irreconciliáveis (o que, à primeira vista, não parece ser o caso). O desmentido enquanto “desautorização da experiência” bem como a psicanálise da “horizontalidade” propostas por Ferenczi podem indubitavelmente ser discutidos à luz de conceitos como “a função paterna e seu declínio/alteração”.

São escassos também os artigos que trabalham tendo como norteadores a teoria ferencziana do trauma e a lógica fetichista em diálogo (apenas encontramos tal articulação no artigo 36), ao passo que os diálogos entre a lógica fetichista e a função paterna são um pouco mais recorrentes (artigos: 6, 21 e 32). A falta de propostas consistentes de intervenção no plano clínico e político também se sobressai. O reconhecimento das mazelas da nova estruturação do laço social e as alterações da subjetividade encontradas na clínica demandam uma análise consistente com ambição política e revisitações à práxis psicanalítica: o declínio ou alteração da função paterna, o novo laço social, o sistema econômico vigente em perpétua retroalimentação com o desmentido/lógica fetichista, o desmentido no discurso, o enevoamento das “linhas” de divisão estrutural, a “aniquilação” da falta, o empuxo à “completude”, o viés transgressivo etc. Com todos esses tópicos em mente, quais seriam as estratégias para uma clínica do “sujeito contemporâneo”? Investigações relativas ao analista enquanto enredado em uma lógica atravessada por um “desmentido cultural”, fazem-se necessárias: há mudanças na posição analítica?

Quanto a um reposicionamento teórico, grande parte dos artigos indicam e parecem dar conta da necessidade de se estudar o conceito e sua incidência no contexto atual, em uma revivificação das contribuições teóricas propostas nos primórdios da psicanálise.

Por fim, é também notório que a introdução de alguns “neologismos” e hipóteses como a Urverleugnung ou “Desmentido Primordial” (artigo 3), nos apontam para uma fecundidade de novas explorações do termo. Alguns conceitos relativamente inexplorados resgatados da obra Freudiana - como o “repúdio à feminilidade” (artigo 4) que aproxima a ablehnung de Freud à Verleugnung - sugerem um adensamento nas pesquisas relativas ao tema.

Considerações Finais

No decorrer da exposição, pudemos nos voltar muitas vezes à questão da extensão da psicanálise enquanto território epistêmico e suas atualizações, essas indissociáveis das transmutações da cultura humana e, consequentemente, das oscilantes configurações sociais. É notório o olhar para a contemporaneidade que privilegia a análise do laço social e as modalidades discursivas que a constituem. As revoluções interdiscursivas, os atravessamentos dialógicos - ambos parecem apontar para uma interdisciplinaridade que não pode ser pensada como descolada da faceta ético-política da psicanálise. Para além do reconhecimento das mazelas que constituem a estruturação do social contemporâneo, começam a ser delineadas mudanças no próprio olhar analítico e nos processos interventivos. O desmentido, ameaçando a posição privilegiada do recalque na psicanálise, abre caminho para uma extrapolação da conceptualização da Verleugnung para além de seu uso enquanto indissociável dos sujeitos perversos.

A quantidade considerável de temáticas ligadas ao conceito na contemporânea revivificação da contribuição freudiana e ferencziana é um ponto notório na pesquisa. Tal ponto, nos faz pensar primeiramente no potencial analítico da dita ampliação/extrapolação do campo analítico que o conceito anteriormente parecia abranger (circunscrito à clínica das perversões e ao sujeito perverso). Em Freud, vimos que de certa forma já podemos encontrar o conceito como não restrito à “estrita patologia”. Com isso, somos levados a pensar na necessidade de ampliação das hipóteses que aparecem ainda de forma germinal nos artigos analisados considerando que o adensamento das mesmas pode contribuir ainda mais para futuras investigações.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2020
  • Aceito
    06 Jun 2021
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