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SOBRE OS COMPOSTOS DO PB

On Compounding in Brazilianb Portuguese

Resumos

O presente trabalho propõe uma nova análise dos compostos do Português do Brasil (doravante, PB) assumindo os pressupostos da Morfologia Lexical (Kiparky: 1982, 1983; Lieber: 1980, 1983) e argumenta que existem dois tipos de compostos no PB: Compostos Lexicais e Compostos Pós-Lexicais. Os compostos lexicais são formados no léxico e são sintaticamente opacos, ou seja, esses compostos se comportam como uma unidade (uma palavra comum) em relação a processos morfo-sintáticos, pois não permitem flexão, derivação, nem concordância. Os compostos pós-lexicais são formados no componente pós-lexical e, portanto, sintaticamente transparentes (permitindo flexão, derivação, concordância); esses compostos resultam da atuação da regra de formação de palavras não-morfológicas, proposta por Di Sciullo & Williams (1987).

Composto; Morfologia; Teoria lexical; Português


This paper proposes a new analysis of compound formation in Brazilian Portuguese (BP), assuming the Theory of Lexical Morphology (Kiparky: 1982, 1983; Lieber: 1980, 1983), and argues that there are two types of compounds in BP: Lexical Compounds and Post-Lexical Compounds. The former are formed in the lexicon and are syntactically opaque like simple (derived) words, since they do not permit the presence of the inflectional (plural) mark and the agreement of number and gender between their elements - they function as a unit during the morpho-syntactic process. The latter are formed in the postlexical (syntactic) component and are syntactically transparent, since they permit the inflectional mark and the agreement between their elements - they are the product of the non-morphological word formation rules proposed by Di Sciullo & Williams (1987).

Compound; Morphology; Lexical theory; Portuguese


SOBRE OS COMPOSTOS DO PB* * Este trabalho é uma parte revisada da minha tese (1995).

(On Compounding in Brazilianb Portuguese)

Seung-Hwa LEE

(CNPq/Universidade Federal de Minas Gerais)

ABSTRACT: This paper proposes a new analysis of compound formation in Brazilian Portuguese (BP), assuming the Theory of Lexical Morphology (Kiparky: 1982, 1983; Lieber: 1980, 1983), and argues that there are two types of compounds in BP: Lexical Compounds and Post-Lexical Compounds. The former are formed in the lexicon and are syntactically opaque like simple (derived) words, since they do not permit the presence of the inflectional (plural) mark and the agreement of number and gender between their elements - they function as a unit during the morpho-syntactic process. The latter are formed in the postlexical (syntactic) component and are syntactically transparent, since they permit the inflectional mark and the agreement between their elements - they are the product of the non-morphological word formation rules proposed by Di Sciullo & Williams (1987).

RESUMO: O presente trabalho propõe uma nova análise dos compostos do Português do Brasil (doravante, PB) assumindo os pressupostos da Morfologia Lexical (Kiparky: 1982, 1983; Lieber: 1980, 1983) e argumenta que existem dois tipos de compostos no PB: Compostos Lexicais e Compostos Pós-Lexicais. Os compostos lexicais são formados no léxico e são sintaticamente opacos, ou seja, esses compostos se comportam como uma unidade (uma palavra comum) em relação a processos morfo-sintáticos, pois não permitem flexão, derivação, nem concordância. Os compostos pós-lexicais são formados no componente pós-lexical e, portanto, sintaticamente transparentes (permitindo flexão, derivação, concordância); esses compostos resultam da atuação da regra de formação de palavras não-morfológicas, proposta por Di Sciullo & Williams (1987).

Key words: Compound; Morphology; Lexical theory; Portuguese.

Palavras-Chave: Composto; Morfologia; Teoria lexical; Português.

0. Introdução

O presente trabalho propõe uma nova análise dos compostos do Português do Brasil (doravante, PB), assumindo os pressupostos da Morfologia Lexical (Kiparky: 1982, 1983; Lieber: 1980, 1983). Em geral, os compostos são formados pela concatenação das duas ou mais palavras ou de dois ou mais radicais. Os compostos do PB, no entanto, têm características diferentes da palavra comum. Essas diferenças podem ser, assim, resumidas:

i) os compostos podem carregar dois acentos, enquanto a palavra (não)-derivada carrega só um (Brakel: 1979, Lee: 1992);

ii) os compostos podem ter flexões entre constituintes (ou palavras), como se verifica, por exemplo, em garotas propaganda, enquanto as palavras comuns não podem;

iii) os compostos, diferentemente dos vocábulos derivados, caracterizam-se somente como categorias lexicais [+N]: N, A, Adv, *V, *P.

Além dessas diferenças em relação às palavras comuns, os compostos exibem as seguintes peculiaridades:

a) permitem a formação de diminutivo através do acréscimo de sufixo entre constituintes: guardinha-noturno;

b) podem flexionar mais de uma vez: homens-rãs.

Segundo Kiparsky (1982, 1983), a formação dos compostos, como um processo de formação de novas palavras, acontece no léxico. No entanto, Villalva (1986), seguindo Di Sciullo & Williams (1987), argumenta que os compostos do português são as palavras sintáticas reanalisadas, de tal maneira que a formação de composto acontece na sintaxe.

Neste trabalho, propõe-se que há dois tipos de compostos no PB: compostos lexicais e compostos pós-lexicais. Em outras palavras, propõe-se que somente os compostos lexicais são "compostos verdadeiros", que funcionam como unidade independente nas operações morfológicas, enquanto os compostos pós-lexicais são" pseudo-compostos", palavras sintáticas reanalisadas que, conforme Williams & Di Sciullo (1987), permitem os processos morfológicos entre seus constituintes.

1. A tipologia dos compostos

1.1. Compostos Lexicais

1.1.1. N + N

Este tipo de composto é formado por dois substantivos e sempre apresenta a seqüência constituída, nos termos da gramática tradicional, de Determinante (DT) + Determinado (DM):

(1)

a. autopeça, cineclube, ferrovia, tomaticultura

b. rádio-táxi

c. espaçonave

Ao tratar dos compostos de tipo N + N, Sandmann (1989, 1990) afirma que este tipo de composto não é comum no PB.

1.1.2. A + A

Este tipo de composto é formado por dois adjetivos:

[Adjetivo]Radical + o]Adj. + Adj., como (2 (2) ) mostra:

a. ítalo-brasileiro, judeu-americana

b. econômico-social, sócio-econômico, sócio-cultural

1.1.3. V + N

Este tipo de composto é muito produtivo e é formado pela junção de verbo e de nome. Segundo Câmara (1970), o segundo elemento do composto - N - funciona como o complemento do primeiro elemento - V -, que é constituído pelo radical verbal mais vogal temática.

(3)

a. guarda-chuva, porta-voz

b. toca-discos, porta-aviões, pára-quedas

c. puxa-saco

1.2. Compostos Pós-Lexicais

Os compostos pós-lexicais, de modo geral, apresentam a seqüência DM + DT, contrária à seqüência do composto lexical (essa seqüência foi abordada na seção 2.1), e são formados no componente pós-lexical. Os compostos pós-lexicais constituem unidades semânticas, mas cada constituinte deste tipo de composto funciona independentemente nas operações morfológicas.

1.2.1. N + (preposição) + N

(4)

a. sofá-cama, homem-rã, bar restaurante

b. trem-bala, garota propaganda

c. fim de semana, pé-de-moleque

1.2.2. N + A

(5)

a. bóia-fria, carro-forte

b. mesa-redonda

c. pão-duro, dedo-duro

1.2.3. A + A

(6) surdo-mudo

1.2.4. A + N

Este tipo de composto apresenta a seqüência de DT + DM, como o composto lexical. Mas cada um dos constituintes deste composto funciona como palavra independente nas operações morfológicas:

(7)

a. curto circuito, primeiro ministro

b. boa-vida

1.3. A Categoria Lexical do Composto

Levando-se em conta o resultado do processo de composição, tem-se os seguintes tipos de compostos:

(8)

a. guarda-chuva

VN®N

b. rádio-táxi

NN®N

c. puxa-saco

VN®A

d. boa-vida

AN®N

e. presidente ministro

NN®N

f. mesa-redonda

NA®N

g. surdo-mudo

AA®A

h. fim de semana

NPN®N

i. pão-duro

NA®A

A categoria lexical que resulta do composto lexical ou pós-lexical do PB é sempre N ou A - o que pode ser generalizado por [+N].

2. A sintaxe dos compostos

De acordo com Di Sciullo & Williams (1987), existem dois tipos de formação de compostos - objetos morfológicos e palavras sintáticas1 1 A noção de palavra sintática é usada para se distinguir a noção de objeto morfológico. A forma da palavra sintática é frasal embora seja inserida na posição X 0. - e essa distinção é baseada na noção de núcleo de palavra (cf. Di Sciullo & Williams, 1987:26):

(9) Definição de NúcleoF

The headF of a word is the rightmost element of the word marked for the feature F.

Para os autores, os compostos, como objetos morfológicos, mostram as mesmas propriedades de palavra - núcleo à direita - e a opacidade para descrições e operações sintáticas, tais como a concordância, que será discutida na seção 5 Como palavras sintáticas, no entanto, os compostos não mostram a opacidade para descrições e operações sintáticas - são sintaticamente transparentes -, embora possam ser inseridos na posição X0. Além disso, os compostos têm interpretações genéricas no X0, diferentemente da frase sintática - em pé-de-moleque, por exemplo, pé não tem sua interpretação genérica (a palavra não significa uma parte do corpo), como na sintaxe. Portanto, os compostos, assim como as palavras sintáticas, funcionam como frase na morfologia e como palavra na sintaxe e podem ser formados pela regra de formação de palavra não-morfológica (Nonmorphological Word-Creating Rule), representada abaixo:

(10) Y®XP

Onde Y representa a categoria lexical e XP representa as categorias lexicais máximas (VP, NP, AP, PP)2 2 No português, Y representa somente N ou A: [+N]. .

Essa regra prediz que qualquer unidade sintática pode ser reanalisada como uma palavra. Segundo os autores, em línguas da família românica, como francês, italiano e espanhol, os compostos podem ser analisados como palavra sintática, ao passo que, no inglês, há dois tipos de composto3 3 Por exemplo, os compostos do inglês, [[wolf] N [children] N, pl ] N,pl e [[break] V [down] P] V, representam objeto morfológico e palavra sintática, respectivamente, uma vez que, no primeiro composto, o núcleo do compoto fica à direita como ocorre em palavras derivadas e, no segundo exemplo, o núcleo do composto fica à esquerda. .

Villalva (1990), entretanto, faz uma observação interessante com relação aos dados do português europeu: os compostos do português podem ter núcleo à direita ou à esquerda e, ainda, podem ser sem núcleo, como mostra (11 ):

Em (11a, b ), o núcleo do composto fica à esquerda; o composto de (11c ), não tem núcleo, na medida em que o gênero de chuva - feminino - é diferente do gênero do composto - masculino; em (11d ) o núcleo do composto fica à direita - este composto tem a mesma propriedade de palavra. Na análise de Di Sciullo & Williams (1987), uma diferença entre os objetos morfológicos e as palavras sintáticas é relacionada com a identificação do núcleo, de modo que; i) os exemplos de (11a, b ) seriam frases sintáticas; ii) o exemplo de (11c ) seria composto como palavra sintática. O exemplo de (11d ) mostra caraterística de composto como objeto morfológico, embora os compostos sejam transparentes para operações sintáticas, como curtos circuitos. Estes exemplos evidenciam que os dados do português são diferentes das outras línguas românicas e problemáticos para a análise de Di Sciullo & Williams (1987).

Villalva (1990) propõe que os exemplos de (11 ) podem ser explicados pelas regras de formação de palavra não-morfológica, já que o núcleo de palavra sintática infiltra para o composto derivado. Em (11c ), a categoria lexical e o gênero do composto são previsíveis no português - o traço default do composto do português é a categoria lexical [+N] e o gênero - masculino. Além disso, a autora argumenta que não há composto como objeto morfológico e a diferença entre composto como objeto morfológico e compostos como palavra sintática pode ser explicada pelo fenômeno da sintaxe - a diferença do núcleo do composto pode ser determinada pela estrutura interna do NP de cada língua, como transcrito em (12 ):

Os exemplos acima mostram que os compostos do inglês são formados como objetos morfológicos, na medida em que os núcleos ficam à direita. Mas, na estrutura sintática do inglês, o modificador sempre fica do lado esquerdo do núcleo, enquanto, na estrutura sintática do português, o modificador pode ficar à direita (como em (12a, b )) ou à esquerda (como em (12c )).

Apesar dessa generalização em relação ao processo de composição, a análise de Villalva (1990) apresenta alguns problemas:

i) admitir que o processo de composição tem como resultado apenas palavras sintáticas, não dá conta da opacidade para a descrição e a operação sintática nos casos que envolvem composto como objeto morfológico;

ii) além da opacidade sintática, o composto como objeto morfológico mostra a mesma propriedade de palavra comum, diferentemente do composto como palavra sintática - os processos derivacionais podem ocorrer com os compostos que funcionam como unidade única; o mesmo não acontece no caso dos compostos como palavra sintática.

Enfim, Villalva leva em conta, apenas, as propriedades relacionadas ao núcleo do composto e não se preocupa com questões relativas às propriedades sintáticas apresentadas pelo composto. Na seção 5, retomar-se-á esse assunto e argumentar-se-á que há dois tipos de compostos no PB: composto como objeto morfológico e composto como palavra sintática.

3. Os compostos segundo um critério semântico

Com base num critério semântico (ou seja, considerando-se o significado) os compostos compreendem duas classes: compostos endocêntricos e compostos exocêntricos.

Os compostos endocêntricos, exemplificados em (13 (13) ), abaixo, são aqueles que têm o significado relacionado aos significados dos seus próprios constituintes - nesse caso, o núcleo do composto determina a sua referência. Os compostos exocêntricos, exemplificados em (14 (14) ), têm significado determinado por metáfora ou metonímia (cf. Sandmann, 1990).

Composto Endocêntrico

ferrovia

( = composto lexical)

rádio-táxi

( = composto lexical)

bar restaurante

( = composto pós-lexical)

Composto Exocêntrico puxa-saco

( = composto lexical)

boa-vida

( = composto pós-lexical)

pé-de-moleque pé-de-moleque

( = composto pós-lexical)

Esses exemplos mostram, portanto, que é difícil estabelecer uma distinção entre os compostos lexicais e os compostos pós-lexicais, através de um critério semântico.

4. A distinção entre compostos lexicais e compostos pós-lexicais

4.1. Formação de Plural

No processo de formação de plural do não-verbo do português, o morfema de plural, -s ou sua variante -es, é acrescentado às formas não-verbais, como em (15 (15) ):

a. casas

b. rapazes

No composto lexical, o morfema de plural é acrescentado ao final do composto, como na palavra comum:

(16)

a. rádio-taxis, ferrovias, ítalo-brasileiros, guarda-chuvas

b. rádio-amadores

c. *rádios-táxis, *rádios-táxi

d. *guardas-chuva(s), *guardam-chuva(s)

Como se observa em (16), os compostos lexicais funcionam como unidades no processo de pluralização, não permitindo a presença do morfema de plural entre seus constituintes.

Contrariamente ao que ocorre com o composto lexical, no composto pós-lexical, o morfema de plural aparece mais de uma vez, dependendo da estrutura interna de composto (que será discutida mais adiante) e ocorre entre os constituintes do composto, conforme atestam os exemplos de (17 (17) ):

a. surdos-mudos, presidentes ministros, boas-vidas

b. fins de semana, trens-bala, garotos propaganda

c. *surdo-mudos, *surdos-mudo

d. *fins de semanas, *fim de semanas

4.2. Derivação

Na morfologia do português, os compostos lexicais podem formar novas palavras através de afixação, como acontece com a palavra comum, o que é ilustrado pelos exemplos seguintes:

(18)

a. [[fotograf]Nar]V

b. [[puxa-saco]A ismoN]N

c. [[rádio-tax]N istaN]N

Os compostos pós-lexicais, no entanto, só podem se envolver em derivações específicas, uma vez que podem ser acrescidos de apenas alguns prefixos, entre os quais figuram ex- e super- etc.:

(19)

ex-homem-rã, super-primeiro-ministro

No presente trabalho, assume-se que esses tipos de prefixo funcionam como palavra prosódica independente (cf. Booij & Lieber, 1993).

4.3. Formação de Diminutivo

No PB, não é comum formar o diminutivo do composto, embora alguns exemplos desse fenômeno possam ser encontrados, conforme atesta (20 (20) ):

a. guarda-roupinha/ *guardinha-roupa/*guardinha-roupinha

b.homem-rã/homenzinho-rã/*homem-rãzinho/*homenzinho-rãzinho

c. hora-extra / horinha-extra / *hora-extrinha

Na formação de diminutivo, os compostos lexicais, como em (20a (20) ), comportam-se como unidade única, ao passo que os compostos pós-lexicais apresentam um núcleo que pode conservar o seu estatuto de palavra independentemente, como em (20 b, c (20) ).

4.4. Ordem dos Elementos

Como foi observado na seção 2, os compostos lexicais apresentam apenas a seqüência Determinante (DT) + Determinado (DM), ao passo que os compostos pós-lexicais apresentam tanto a seqüência DM + DT, quanto a seqüência DT + DM.

Nos compostos do tipo N + N, que podem ser lexicais ou pós-lexicais, as relações semânticas são distintas, como se verifica nos exemplos de (21 (21) ) e (22 (22) ), respectivamente:

Compostos Lexicais

DT + DM: espaçonave, autopeça

Compostos Pós-Lexicais

a. DM + DT: trem bala, funcionário fantasma

b. DT + DM: curto circuito, primeiro ministro

Cabe ressaltar que a combinação A + N, presente em (22b (22) ) não ocorre nos compostos lexicais.

4.5. Concordância

Nos compostos lexicais do tipo A + A, falta a concordância entre os constituintes, o que pode ser visto em (23a, b (23) ), enquanto, à semelhança do que ocorre em sintagmas nominais da sintaxe, os compostos pós-lexicais dos tipos A + A, A + N e N + A sempre coincidem com o número e o gênero dos seus constituintes, como ilustram os exemplos de (23c, d (23) ):

a. ítalo-brasileiro/ítalo-brasileiros/ítalo-brasileira.

b. judeu-americano/*judia-americana/judeu-americana(s)

c. surdos-mudos, mesas-redondas, boas-vidas

d. *surdo-mudos, *surdos-mudo, *surdas-mudos

Em (23a, b (23) ), o gênero e o número dos compostos não coincidem com o gênero e o número dos seus constituintes. Na verdade, o gênero do adjetivo não é imanente; é dependente do gênero do nome que o adjetivo modifica (ou acompanha), ou seja, o gênero do adjetivo é determinado pela relação de concordância, como mostra (24 (24) ):

a. as culturas ítalo-brasileiras

b. o homem judeu-americano

Em (24a (24) ), o composto lexical ítalo-brasileiro concorda com o nome culturas em número e gênero. Nesse composto, o primeiro constituinte, ítalo, não é flexionado, diferentemente do segundo elemento que flexiona (concorda) em número e gênero com o nome culturas. Isso mostra que não há relação de concordância entre os constituintes do composto lexical, na medida em que o composto lexical funciona como uma unidade única nas operações morfológicas. Em outras palavras, os elementos flexionais são afixados ao composto inteiro, não apenas ao segundo constituinte do composto.

Em (23c, d (23) ), os exemplos mostram que os constituintes do composto sempre coincidem em número e em gênero. A concordância dentro de NP e AP é comum nas estruturas frasais (ou sintáticas)4 4 No Programa Minimalista (cf. Chomsky, 1992, 1994), a concordância é codificada como uma relação entre um Especificador e um Núcleo. , como em (25 (25) ) abaixo:

a. Ele é um menino bonito

b. *Ele é um menino bonitos(*bonita(s))

c. O João é alto e lindo

d. *O João é alta e lindo(*linda)

Nos compostos pós-lexicais do tipo N + N, no entanto, a concordância ocorre só em número, na medida em que o gênero de cada constituinte é determinado lexicalmente. Os compostos lexicais não mostram a concordância entre constituintes, como mostra (26 (26) ):

a. presidentes ministros

b. *presidentes ministro, *presidente ministros

c. espaçonaves, *espaçosnaves, *espaçosnave

Como se observou na seção 5.1, em alguns compostos pós-lexicais falta a concordância em número, como em (27 (27) ):

a. fins de semana, trens-bala, garotos propaganda

b. *fins de semanas, *fim de semanas

Esta diferença entre (26a (26) ) e (27a (27) ) pode ser explicada através das estruturas sintáticas, como em (28 ):

Com base nesses dados, pode-se concluir que os compostos pós-lexicais do PB têm estruturas de palavras sintáticas reanalisadas, ou seja, são construídos pela regra de formação de palavra não-morfológica, proposta por Di Sciullo & Williams (1987).

Em (28a ), ocorre a concordância de número entre os constituintes do composto - a concordância ocorre dentro da projeção do NP. Em (28b, c ), no entanto, não se verifica a concordância entre os constituintes dentro do NP1. Essa distinção entre (28a ) e (28b, c ) permite formular a seguinte hipótese: em (28a ), a concordância é possível, dado que os elementos que se encontram dentro do NP1 são N e NP2; em (28c ), a concordância não é permitida porque os elementos que se encontram dentro do NP1 são N e PP e, conforme postulado na sintaxe, não há relação de concordância entre tais elementos; a explicação para a ausência de concordância em (28b ) pode, então, ser inferida dos dois fatos que explicam (28a ) e (28c ), ou seja: com base nesses fatos, pode-se supor que, em (28b ), não há relação de concordância porque os elementos que se encontram dentro do NP1 são N e CP vazio5 5 Agradeço a Eunice Nicolau pela discussão dessa hipótese. .

A estrutura dos compostos lexicais pode se apresentar da seguinte forma:

Nessas estruturas, não há categoria máxima NP - os compostos nelas representados são sintaticamente opacos. Portanto, o morfema de plural não pode ocorrer entre os constituintes desses compostos.

Em resumo, no PB, há dois tipos de compostos: compostos lexicais e compostos pós-lexicais. Os compostos lexicais são formados no léxico e são sintaticamente opacos, ou seja, esses compostos se comportam como uma unidade (uma palavra comum) em relação a processos morfo-sintáticos, pois não permitem flexão, derivação, nem concordância. Os compostos pós-lexicais são formados no componente pós-lexical (no componente da sintaxe) e, portanto, são sintaticamente transparentes (permitindo flexão, derivação, concordância); esses compostos resultam da atuação da regra de formação de palavras não-morfológicas, como se observou na seção 4.2.

5. Compostos lexicalizados

5.1 N + A

Observem-se os exemplos abaixo:

(30)

a. pão-duro®

pães-duros

b. dedo-duro®

dedos-duros

Esses exemplos são compostos pós-lexicais, uma vez que admitem a ocorrência do morfema plural entre os seus constituintes. No entanto, esses compostos podem funcionar como base para a derivação, como demonstra (31 (31) ):

a. pão-durismo, pão-duragem

b. dedo-duro, dedurismo, dedurar (dedo-durar)

Apesar disso, no processo de formação de plural de (30), os compostos comportam-se como os compostos lexicais.

(32)

a. pão-duragens, *pães-duragens

b. dedo-durismos/dedurismos

Uma alternativa para se explicarem esses casos consiste em considerar os compostos pão-duro e dedo-duro como compostos lexicalizados, ou seja, como expressões idiomáticas - estruturas que são lexicalizadas, de modo que passam a integrar o léxico da língua como se fossem itens lexicais, da mesma forma que os exemplos seguintes:

(33)

a. cair no conto do vigário(= sofrer golpe, trapaça)

b. ficar de perna(s) pro ar (ficar à toa)

c. tá no mato sem cachorro (sem solução)

Portanto, ao derivar pão-durismos, o composto pão-duro é a própria entrada, de tal maneira que não acontece *pães-durismos.

No entanto, esta explicação é circular, uma vez que se deve admitir que há três formas pão, duro, pão-duro, na entrada lexical. Diante desse fato, a questão quanto a composto lexicalizado ficará em aberto6 6 O Prof. Marco Antônio de Oliveira observou que as formas flexionadas de ( 30 ), apesar de dicionarizadas, não são reconhecidas como legítimas pelos falantes do PB, ou seja, as formas flexionadas seriam pão-duros e dedo-duros; tal fato corrobora a análise que, neste trabalho, é atribuída aos compostos lexicais. .

5.2. Composto do Tipo V + V

O composto do tipo V + V é muito comum e, aparentemente, semelhante aos compostos lexicais do tipo V + N:

(34)

a. vaivém, leva-e-traz, vai-volta

b. corre-corre, quebra-quebra, puxa-puxa

Em (34b), os compostos são formados pela reduplicação. Em primeiro lugar, nos compostos lexicais do tipo V + N, o elemento V corresponde ao tema verbal, ou seja, não carrega traços de modo, tempo, pessoa ou número. Os exemplos de (34) mostram que, de modo geral, o composto V + V não apresenta essa caraterística; em vaivém, por exemplo, as formas verbais, vai e vem, deixam transparecer a presença de tais traços (modo, tempo, número e pessoa).

Em segundo lugar, os exemplos de (35 (35) ) mostram que o composto V + V apresenta a ausência do morfema de plural entre os constituintes7 7 Nos compostos de ( 34a ), não há forma plural. Somente as formas reduplicadas possuem a forma plural. que é uma caraterística do composto lexical:

a. *vaivéns, * vaisvéns, *vãovém, *vaivém

b. quebra-quebras, *quebrasquebras *quebrasquebra

Em (35a (35) ), a flexão verbal irregular acontece no nível derivacional (ou nível a , cf. Lee, 1995) e o processo de composição acontece no nível a . Admitir que a forma verbal de (35a (35) ) contém os traços de modo/tempo e número/pessoa na sua estrutura implica admitir que a forma verbal de (35b (35) ) também contém esses traços. Se isso é verdade, a formação de (35b (35) ) é problemática, na medida em que a flexão regular ocorre no nível flexional (ou nível b , cf. Lee, 1995). Além disso, este tipo de composto parece ser originado pela frase sintática, como em (36 (36) ):

a. vai e vem -> vaivém

b. corre e corre -> corre-corre

Portanto, seguindo a análise do composto do tipo N + A, discutido na seção anterior, assume-se, neste trabalho, que esses compostos também são lexicalizados.

Uma alternativa de análise para o composto V + V é considerá-lo como um composto lexical, à semelhança do composto V + N, já que a flexão irregular ocorre no nível a , diferentemente da flexão regular. Isso siginifica que o tema verbal pode ser entrada para formar compostos no nível a ; assim sendo, o composto vai-vém pode ser analisado como um composto lexical cuja flexão verbal ocorre no nível a . Essa abordagem parece ser a mais plausível.

6. Conclusão

O presente trabalho mostra que, no PB, há dois tipos de compostos: compostos lexicais e compostos pós-lexicais. Os compostos lexicais são formados no léxico e são sintaticamente opacos, ou seja, esses compostos se comportam como uma unidade (uma palavra comum) em relação a processos morfo-sintáticos, pois não permitem flexão, derivação, nem concordância. Os compostos pós-lexicais são formados no componente pós-lexical e, portanto, sintaticamente transparentes (permitindo flexão, derivação, concordância); esses compostos resultam da atuação da regra de formação de palavras não-morfológicas, proposta por Di Sciullo & Williams (1987).

(Recebido em 07/05/96. Aprovado em 11/06/96)

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  • SANDMANN, A. J. (1990). O Que é um Composto?, Delta 6, pp. 01-18.
  • VILLALVA, Alina (1986). Análise Morfológica do Portuguęs Dissertaçăo de mestrado, Universidade de Lisboa.
  • VILLALVA, Alina (1990). Compounding in Portuguese. Working Papers 2, Instituto de Lingüística Teórica e Computacional.
  • (2)
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  • (27)

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  • (35)

  • (36)

  • *
    Este trabalho é uma parte revisada da minha tese (1995).
  • 1
    A noção de palavra sintática é usada para se distinguir a noção de objeto morfológico. A forma da palavra sintática é frasal embora seja inserida na posição X
    0.
  • 2
    No português, Y representa somente N ou A: [+N].
  • 3
    Por exemplo, os compostos do inglês, [[wolf]
    N [children]
    N, pl ]
    N,pl e [[break]
    V [down]
    P]
    V, representam objeto morfológico e palavra sintática, respectivamente, uma vez que, no primeiro composto, o núcleo do compoto fica à direita como ocorre em palavras derivadas e, no segundo exemplo, o núcleo do composto fica à esquerda.
  • 4
    No Programa Minimalista (cf. Chomsky, 1992, 1994), a concordância é codificada como uma relação entre um Especificador e um Núcleo.
  • 5
    Agradeço a Eunice Nicolau pela discussão dessa hipótese.
  • 6
    O Prof. Marco Antônio de Oliveira observou que as formas flexionadas de (
    30
    ), apesar de dicionarizadas, não são reconhecidas como legítimas pelos falantes do PB, ou seja, as formas flexionadas seriam
    pão-duros e
    dedo-duros; tal fato corrobora a análise que, neste trabalho, é atribuída aos compostos lexicais.
  • 7
    Nos compostos de (
    34a
    ), não há forma plural. Somente as formas reduplicadas possuem a forma plural.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 1998
    • Data do Fascículo
      Fev 1997

    Histórico

    • Recebido
      07 Maio 1996
    • Aceito
      11 Jun 1996
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