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A IDEOLOGIA DO SUPRIMIDO: OU, COMO NÃO TEORIZAR A RESPEITO DA IDEOLOGIA

Ideology of the Suppressed: or, how not to Theorise about Ideology

Resumos

Este trabalho é uma crítica da tendência atual de confinar a questão da ideologia à esfera da subjetividade - tese essa que se acha defendida no livro Language, Ideology, and Point of View, da autoria de Paul Simpson (1993). Minha principal objeção a tal proposta é a de que ela não passa de uma simples re-afirmação de algumas das categorias com as quais estamos acostumados a pensar sobre os temas em questão. Procuro sustentar que, ao invés disso, devemos interrogar aquelas mesmas categorias com o intuito de trabalhar as instabilidades que as caracterizam.. Urge, no meu modo de entender, a necessidade de desconstruir a própria oposição entre, de um lado, ideologia, ponto de vista etc., e, de outro, ciência, teoria, ou seja o que for que se queira postular.

Ideologia; Ponto de vista; Subjetividade; Teoria; Paul Simpson


In this paper, I argue against the contemporary tendency to confine ideology to the sphere of subjectivity and "point of view", as defended by Paul Simpson (1993) in his book Language, Ideology, and Point of View. My principal criticism against the view is that it simply amounts to a re-affirmation of certain of the conceptual categories with which we have for long been accustomed to think. Rather, I contend, we ought to try to interrogate those very categories with a view to teasing out the instabilities that characterise them. I argue that there is an urgent need to deconstruct the very opposition between ideology, point of view etc. on the one hand, and science, theory, or whatever that one might wish to posit on the other.

Ideology; Point of view; Subjectivity; Theory; Paul Simpson


DEBATE

A IDEOLOGIA DO SUPRIMIDO; OU, COMO NÃO TEORIZAR A RESPEITO DA IDEOLOGIA

(Ideology of the Suppressed; or, how not to Theorise about Ideology)

Kanavillil RAJAGOPALAN

(Universidade Estadual de Campinas)

ABSTRACT: In this paper, I argue against the contemporary tendency to confine ideology to the sphere of subjectivity and "point of view", as defended by Paul Simpson (1993) in his book Language, Ideology, and Point of View. My principal criticism against the view is that it simply amounts to a re-affirmation of certain of the conceptual categories with which we have for long been accustomed to think. Rather, I contend, we ought to try to interrogate those very categories with a view to teasing out the instabilities that characterise them. I argue that there is an urgent need to deconstruct the very opposition between ideology, point of view etc. on the one hand, and science, theory, or whatever that one might wish to posit on the other.

RESUMO: Este trabalho é uma crítica da tendência atual de confinar a questão da ideologia à esfera da subjetividade - tese essa que se acha defendida no livro Language, Ideology, and Point of View, da autoria de Paul Simpson (1993). Minha principal objeção a tal proposta é a de que ela não passa de uma simples re-afirmação de algumas das categorias com as quais estamos acostumados a pensar sobre os temas em questão. Procuro sustentar que, ao invés disso, devemos interrogar aquelas mesmas categorias com o intuito de trabalhar as instabilidades que as caracterizam.. Urge, no meu modo de entender, a necessidade de desconstruir a própria oposição entre, de um lado, ideologia, ponto de vista etc., e, de outro, ciência, teoria, ou seja o que for que se queira postular.

Key Words: Ideology; Point of view; Subjectivity; Theory; Paul Simpson.

Palavras-Chave: Ideologia; Ponto de vista; Subjetividade; Teoria; Paul Simpson.

"ESTRANGEIRO: Dividir assim por gêneros, e não tomar por outra, uma forma que é a mesma, nem pela mesma uma forma que é outra, não é essa, como diríamos, a obra da ciência dialética?

TEETETO: Sim, assim diríamos.

ESTRANGEIRO: Aquele que assim é capaz discerne, em olhar penetrante, uma forma única desdobrada em todos os sentidos, através de uma pluralidade de formas, das quais cada uma permanece distinta; e mais: uma pluralidade de formas diferentes umas das outras envolvidas exteriormente por uma forma única repartida através de pluralidade de todos e ligada à unidade; finalmente, numerosas formas inteiramente isoladas e separadas; e assim sabe discernir, gêneros por gêneros, as associações que para cada um deles são possíveis ou impossíveis.

TEETETO: Perfeitamente "

Platão , Sofista.

0. Introdução

Vez por outra, aparecem nas prateleiras das livrarias especializadas, livros acadêmicos ostentando grifes internacionais de prestígio editorial inquestionável, que chamam a atenção de um pesquisador, não porque apresentam idéias que vão ao encontro da sua própria posição a respeito, ou trazem novos subsídios para sua reflexão, ou ainda contribuem para levar suas pesquisas numa direção até então não vislumbrada, mas porque - por mais estranho que isso possa parecer - defendem posições visceralmente contrárias a tudo o que o pesquisador no caso tem defendido em relação ao tema abordado. São casos em que, como se diria, pontos de vista diferentes se encontram em rumo de franca colisão. Para o pesquisador, esses livros são tão importantes como aqueles que expõem pontos de vista consoantes com o seu, pois o ajudam a perceber as implicações da sua própria posição com maior clareza e nitidez.* * A pesquisa relatada neste trabalho faz parte de um projeto financiado pelo CNPq (Processo n.º 306151/88-0). Meus agradecimentos aos dois pareceristas pelas valiosas sugestões.

Para mim, ou se assim preferir, no meu ponto de vista (o porquê desse reparo será logo esclarecido), o livro de Paul Simpson, Language, Ideology and Point of View (Simpson, 1993) pertence a essa classe de verdadeiros ‘achados bibliográficos’ de valor inestimável. Nele o autor defende uma posição - o seu ponto de vista - diante da questão da moda nos dias de hoje - a ideologia; ou melhor, o tema do livro é, como anuncia o parágrafo chamativo que consta da contra-capa do livro, o ponto de vista que, do ponto de vista do autor, "intersecta e é moldado pela ideologia" - tese essa com respeito à qual tenho sérias dúvidas e divergências por razões que procurarei tornar claras ao longo da minha exposição a seguir. Contudo, é preciso ressaltar que o autor defende a sua tese com tanto entusiasmo e convicção que torna extremamente atraente um debate ou aquilo que os intelectuais franceses costumam chamar de um engagement com suas idéias.

Eis, então, a minha justificativa para a escolha do referido livro para elaborar esta resenha crítica: Não consigo me lembrar de nenhuma outra obra recente que defenda tão sistematicamente uma postura contrária à minha em relação ao tema central, de tal sorte que, à medida que vou analisando os pontos críticos do livro e me contrapondo a cada um deles, estarei também construindo a postura alternativa e o leitor no fim ficará, espero eu, com duas posições diametralmente opostas e o voto de minerva (ou, quem sabe, um novo ponto de vista e, se o autor do livro ainda estiver com a razão, uma terceira ideologia, já que, na sua perspectiva, não há como pensar os dois temas se não conjuntamente).

1. Ideologia e ponto de vista

O principal defeito na abordagem do autor se acha entusiasticamente alardeado no próprio título do livro. Trata-se da idéia de que a ideologia e o ponto de vista sejam cartas do mesmo naipe. Para o autor, tanto o ponto de vista como a ideologia contribuem para que as coisas pareçam diferentes do que realmente são. Todos os capítulos do seu livro, diz ele, "enfocam a linguagem como representação, como uma projeção de posições e perspectivas, como uma forma de comunicar atitudes e presunções" (Simpson, 1993:2). Ou seja, a linguagem - que pena! - está condenada a apenas representar o mundo; e toda representação, como não podia ser de outra maneira, traz consigo o ponto de vista de quem representa.

Nem tudo está, porém, irrecuperavelmente perdido; pois, para o autor, graças ao fato de que tudo passa pelo "olhar" de quem narra, todo texto é suscetível de uma interpretação estilística - uma das coisas mais fascinantes que se pode fazer depois da análise lingüística. Nas palavras de Ronald Carter, editor responsável pela Série "Interface", da qual faz parte o livro de Simpson, um dos princípios básicos do livro é que "o termo ‘literatura’ não pode ser definido isoladamente de uma expressão de ideologia" (p. x) e, por conseguinte, a contribuição de Simpson para a série "situa-se em uma área que é central para a crítica literária" (p. xi). E o próprio autor nos adverte logo no início do seu livro (p. 3):

Por causa da sua dependência da ‘ciência’ lingüística, presume-se com freqüência que a estilística tem a pretensão de ser um método puramente ‘objetivo’ de análise textual. O analista aguarda em uma atitude descompromissada enquanto que o engenho da lingüística espreme do texto todos os significados que teriam sido depositados nele pelo escritor. Todavia, poucos estudiosos de estilística reivindicam tal objetividade.

Entretanto, o autor faz questão de ressaltar que sua meta não é a de tentar livrar a estilística da sua dependência da lingüística - ou seja, a estilística, segundo o autor, não se propõe a ser uma área tão objetiva quanto a lingüística, porém continua na sua dependência.

A dependência da estilística em relação a lingüística significa que à medida que as técnicas na lingüística vão sendo aprimoradas, os modelos estilísticos também vão se enriquecendo e sendo revitalizados. (p.4)

Resumindo, a estilística só tem a ganhar, em virtude da sua dependência da ‘ciência’ da linguagem - não tendo, ao que parece implicar a posição do autor, nada a contribuir para a lingüística. A relação de dependência é, em outras palavras, unidirecional.

2. A parábola do monarca malvado e a moral da estória

A fim de ilustrar sua tese, Simpson relata a seguinte "parábola macabra" contada, segundo ele, pelo diretor de filmes mexicano Alejandro Jodorowsky, para explicar o segredo da sua técnica cinematográfica. Um monarca cruel e merecidamente feio, deformado e aleijado - além de ser corcunda, havia perdido um olho e uma perna - decide deixar uma lembrança para a posteridade e encomenda seu retrato oficial. Diante da tarefa ingrata, o primeiro artista a se apresentar para o desafio simplesmente ignora os‘ ligeiros’ defeitos da fisionomia do Rei. O truque não funciona, porque o tirano fica enfurecido por tamanho desrespeito à verdade, e como é de se esperar nesses casos, manda degolar o responsável. O segundo artista que foi comissionado para executar a tarefa logo decide não cair na mesma asneira do primeiro e opta por uma representação fiel em todos os detalhes, porém o azarado também tem o mesmo destino que o outro, porque o ilustre modelo novamente fica horrorizado, desta vez com tanto realismo numa só obra de arte.

Finalmente, chega a vez do terceiro artista, aquele a quem cabe, pela lógica convencional dos contos do gênero, satisfazer o desejo do Rei e também a curiosidade do leitor, como se diz em linguagem vulgar, "matando a charada". Com toda a esperteza a que tem direito o terceiro na fila em casos como esse, o mais novo candidato a um lugar no "hall of fame" retrata o tirano na pose de um caçador com arco e flecha nas mãos, preparando-se para acertar o alvo, pose essa que exige que o Rei apareça no momento de concentração intensa, com "um dos olhos" fechado e" uma das pernas" descansando sobre o tronco de uma giagantesca árvore caída. O Rei sai satisfeito com a ‘semelhança’ do retrato com o original e não só deixa o artista ficar com sua cabeça mas manda seu tesoureiro abrir o cofre para um prêmio generoso, acompanhado de todas as demais regalias etc.

Nas palavras do próprio Paul Simpson, "Transportado ao domínio da linguagem, a técnica do terceiro artista será também a preocupação central do livro" (p.2). E explica: "A elusiva questão da ‘verdade’ daquilo que um texto diz não é o que está em jogo aqui; o que está em jogo aqui é o ‘ângulo da narração’ que é adotado no texto, seja ele um anúncio, um romance ou uma reportagem jornalística. Em suma, este livro é todo sobre o ponto de vista na linguagem"(p.2).

A parábola do déspota malvado é, sem dúvida, interessante e dela pode ser depreendida, sem dúvida, toda uma filosofia da linguagem. Como diria Nietzsche, há uma poderosa metafísica ansiosa e pronta para eclodir por detrás das nossas falas, por mais corriqueiras elas sejam. E, ao contrário do que pensa o autor do livro, o que nos diz essa filosofia é que em nenhum momento estamos livre da "elusiva questão da‘ verdade’ daquilo que um texto diz". Isso porque a crença na existência de algo chamado a "verdade" é precisamente o que torna possível falar em termos de "ângulos de narração". Ou seja, falar em "ângulos de narração" ou diferentes perspectivas só tem sentido com o pressuposto de que há um ponto qualquer, ainda que este ponto, em toda sua plentitude e seu esplendor seja inacessível a partir de qualquer um dos ângulos e qualquer uma das perspectivas. Platão já previa isso.

3. Eidos platônico e a exaltação da razão

A moral da estória (aquela contada pelo diretor cinematográfico mexicano) que Simpson quer que seja dela retirada, já se acha cuidadosamente elaborada por Platão. O eidos platônico é inacessível aos nossos olhos, posto que estes só conseguem enxergar o mundo de fenômenos sob uma perspectiva ou outra. E nenhuma perspectiva corresponde à forma eidêtica do objeto em questão, a qual só pode ser apreendida mediante exercício da nossa intuição. Posto que o verdadeiro objeto é a sua forma (no sentido platônico deste termo), e que a forma nunca é enxergada pelos nossos olhos tal e qual, tem-se a conclusão de que os objetos nunca são vistos na plenitude de sua forma.

Para Simpson, então, a esperteza do terceiro artista teria a ver com o fato de ter percebido o seguinte: já que todo olhar jamais consegue ser qualquer coisa a mais que um simples olhar, a realidade é uma mera ficção. E já que a realidade nunca passou de uma mera ficção, o artista precisa ‘usar sua cabeça’ para saber o que retratar e o que não retratar. O melhor artista é aquele que melhor sabe representar, não no sentido de reproduzir fielmente o objeto da representação, mas no sentido de recriar livremente, da forma que mais convém a seus interesses imediatos, entre os quais, por exemplo, evitar que sua cabeça seja decepada. No mundo de representações, não há lugar algum para verdades.

Vou diretamente à questão que mais me incomoda nessa forma de ler a moral da estória do Rei malvado. Discordo, antes de mais nada, da maneira como a questão ética é relegada ao campo de uma "desgraça" - a desgraça que é, no caso, a própria linguagem e a condição de que a linguagem só consegue, na melhor das hipóteses, representar o mundo e não, por exemplo, espelhar ou, melhor ainda, quem sabe, apresentar o mundo tal como ele de fato é. Acredito, contrariamente ao autor do livro, que a oposição entre representar e apresentar no caso é no mínimo problemática, pois só introduz um petitio principii. Argumentarei mais tarde que o que temos nesses casos é uma questão de indicibilidade radical.

Para retomar a questão do eidos platônico, é notável que, com a manobra acima aludida, Platão inaugura toda uma tradição filosófica, todo um modo de pensar, baseado em uma série de oposições binárias. Pois, no rastro da oposição ‘objeto vs. sujeito’, vem um sem número de outras tantas: ‘real vs. aparência’, ‘público vs. privado’, ‘razão vs. emoção’,‘ mente vs. corpo’, e por aí vai.

O conceito de ideologia que Simpson utiliza tem um termo oposto suprimido, que é algo que pode ser chamado de ciência, teoria ou coisa parecida, entendida como uma instância de superação de todos os últimos vestígios ideológicos. Aliás, o desejo de superação está também sempre presente em todas as outras oposições binárias consideradas, pois, em cada uma delas, o segundo termo é entendido como algo que precisa ser suprimido para se chegar ao primeiro termo, este sim, entendido como instância de superação. A razão se dá a partir da supressão das emoções; a mente é entendida como acima das sensações corpóreas; a realidade se supõe revelar quando forem desfeitas todas as aparências; a esfera pública implica a instância acima de todos os interesses particulares e privados etc.

De nada adianta Simpson insistir que não está interessado em saber" a verdade verdadeira" das coisas, que a única coisa que lhe interessa é o ponto de vista. Ao insistir em que na ideologia só há lugar para o "ângulo de narração", o autor de fato legitima o binarismo clássico, e desse modo, deixa tudo como sempre esteve.

O fato em si de tais idéias terem sido discutidas por Platão ou quem quer que seja, é bom que se diga, não depõe contra o autor do livro. A questão é como mesmo Platão acaba não achando outra maneira de discutir a capacidade de intuição senão aquela que põe em cena a própria metáfora da percepção. A intuição é a percepção do objeto com o uso dos "olhos da mente". O que é importante perceber é que a metáfora no caso não é um simples recurso pedagógico ou retórico. Também não foi fortuito o uso da palavra perceber como sinônimo de compreender no começo da última sentença. A história da filosofia é testemunha de que nunca fomos capazes de articular a questão da apreensão de conceitos se não com a ajuda da analogia do processo de percepção. "Perceptos sem conceitos são cegos" (ênfase minha), dizia Kant, formulando sua posição incansavelmente racionalista de que conceitos antecedem os perceptos, ao contrário do que querem nos convencer os empiristas.

4. Ponto de vista e a "coisa em si"

O principal problema de confundir a ideologia com o ponto de vista é que tal manobra acaba, como já aludi, no fundo, legitimando algo que estaria acima, ainda que de maneira implícita, de qualquer ideologia, da mesma forma que falar em pontos de vista reconhece implicitamente uma visão total do objeto em questão, ainda que tal visão total seja entendida como além do alcance humano (donde a expressão em inglês "God’s eye-view"). Tanto a ideologia quanto o ponto de vista são, dessa maneira, relegados ao plano da subjetividade. E o livro de Simpson acaba celebrando a subjetividade, no melhor estilo dos poetas românticos. Como manda a cartilha do Romantismo, o livro recusa qualquer apelo à ciência, representada pela Lingüística, preferindo discutir as questões à margem das análises lingüísticas. A única diferença entre Simpson e os poetas românticos estaria em que a ciência (no caso, a lingüística) não é repudiada por ele ou considerada irrelevante para a estilística, a área na qual se pretende localizar tanto a ideologia como o ponto de vista. A posição de Simpson diverge, portanto, da famosa afirmação do poeta romântico inglês John Keats, de que o estado mental ideal para a criação de poesia seria aquilo que chamou de" capacidade negativa" (negative capability), na qual, segundo o jovem poeta, não haveria "nenhuma procura irritante de fatos e razões" ("no irritable reaching after fact and reason").

5. Lingüística e o estudo da literatura: lembrando um pouco da história

Há fortes indícios no livro de Simpson para se afirmar que, a despeito de toda a pretensão em contrário, a posição assumida pelo autor é extremamente tímida e acuada e, o que vem a ser uma surpresa ainda maior, tradicional e nem de longe inovadora. Afinal, é público e notório que Platão demarcou o terreno da filosofia (leia-se, o território onde prevaleceria o domínio da razão), demarcando uma área separada para a literatura. Ou seja, a filosofia nasceu no mundo ocidental a partir de um gesto inaugural de exclusão. Desde então, os filósofos e, mais tarde, os cientistas, sempre foram unânimes em lembrar aos poetas que havia todo um espaço exclusivamente reservado a eles, onde eles podiam fazer tudo que bem entendessem. O medo de ‘contaminação’ sempre foi tão grande que aos poetas sempre era imposta uma espécie de ‘quarentena’ intelectual. Cada qual no seu lado da fronteira, garantindo a paz para sempre.

Ocorre que a bi-partição do terreno nunca foi e nunca será feita nos moldes paritários como devem pensar os desavisados. A filosofia - e mais tarde, a ciência - sempre se considerava no direito de legislar sobre o que acontecia no outro lado da fronteira. A história da crítica literária está aí como prova contundente disso. Em maior ou menor grau, ela sempre procurou ser um discurso privilegiado sobre a literatura e quase sempre reivindicou para si um caráter científico, o qual foi, novamente conforme os sabores do vento, alardeado com maior ou menor estardalhaço (O chamado New Criticism nos E.U.A., contemporâneo do movimento de Practical Criticism, no outro lado do oceano Atlântico, são períodos em que o caráter científico da crítica literária foi realçado). Não é de se estranhar que a Lingüística tenha sido convocada para emprestar a base científica de que a crítica literária tanto precisava para se justificar. Em outras palavras, o ‘namoro’ da Crítica Literária com a Lingüística não foi um caso de amor à primeira vista, muito menos um caso de amor ‘platônico’.

Nas palavras de Hill (1955: 968):

Na lingüística, já se mostrou frutífero o procedimento de trabalhar, a partir das características observáveis, externas, e formais, até chegar às qualidades de significado que decorrem delas, todas reconhecidamente mais importantes, porém mais vagas. Na análise literária, da mesma forma, não seria interessante trabalhar a partir das características formais e observáveis em direção aos significados?

Não é por coincidência que até bem recentemente as revistas especializadas traziam análises lingüísticas de poemas e romances. Widdowson (1975: 33) oferece a seguinte justificativa:

[ .....] a interpretação de uma obra literária enquanto discurso envolve o correlacionamento do significado de um item lingüístico no interior do código lingüístico com o significado que aquele item adquire no contexto específico no qual ocorre. Tal procedimento de correlacionamento, porém, é necessário para a produção e recepção de qualquer discurso, de tal sorte que a habilidade de usar e compreender a linguagem como comunicação em sua forma geral se constitui na base para a compreensão da literatura em particular.

Ou seja, a literatura nada mais é do que um caso especial da comunicação por intermédio da linguagem. "[a literatura] é tão somente uma forma estranha e misteriosa pela qual os seres humanos conseguem comunicar-se uns com os outros" (Widdowson, 1975: 124). Ihwe (1975: 132) é ainda mais contundente quando afirma:

Pode-se dizer, com um pouco de exagero, que a teoria literária deveria ser vista mais ou menos como um aditivo (appendage) à Lingüística, que goza de uma certa independência apenas em virtude de um refinamento especial das técnicas de descrição.

É importante salientar que nenhum dos três autores citados acima faz parte da bibliografia do livro de Simpson. Há, no entanto, uma rápida menção ao nome de F.R. Leavis, o nome mais lembrado do movimento de Practical Criticism. Depois de notar que "a estilística [...] se refere, normalmente, à prática de usar a Lingüística para o estudo de literatura"(p. 3), Simpson afirma que não há por que restringir o uso do termo ‘literariedade’ (literariness) às "inovações lingüísticas que com freqüência ocorrem no contexto da comunicação literária" (p. 3), pois o mesmo atributo pode ser detectado também em muitos outros textos que não seriam convencionalmente rotulados de literários. A principal reivindicação de Simpson contra Leavis é no sentido de repensar "a distinção rigorosa entre linguagem literária e linguagem ordinária, mais prosaica, que caracteriza a interação cotidiana" (p.3). Em outras palavras, Simpson jamais pensa em interrogar as bases conceituais da distinção entre o literário e o não-literário; apenas quer alargar (ou afrouxar) a aplicabilidade do primeiro termo.

6. Na trilha dos binarismos

Já vimos acima que, no rastro da distinção‘ filosófico/literário’ proposta por Platão como gesto inaugural da demarcação do território conceitual da Filosofia, foram se multiplicando tantas outras oposições dicotômicas. Tendo estabelecido uma estreita relação entre o ponto de vista e a ideologia, Simpson procura evidenciar a presença do ponto de vista em ficção narrativa, e no modo como a linguagem codifica a experiência corriqueira mediante o fenômeno de transitividade, termo este entendido num sentido bem mais amplo do que em Halliday (1985).

Na verdade, não é difícil perceber que o autor está sendo absolutamente fiel à sua meta inicial de definir o ponto de vista em oposição a um ponto arquimediano - meta esta não confessada por ele em nenhum momento. Pois, binarismos como ‘lingüística/estilística’, ‘literal/metafórico’,‘ fato/ficção’, não são senão oposições autorizadas e abençoadas pela distinção inaugural entre filosofia, ciência, teoria etc. de um lado, e poesia, ideologia etc. do outro lado. Em todos esses casos, têm-se relações concebidas hierarquicamente, porém disfarçadas para parecerem simétricas. Isso fica bastante claro no Capítulo 5 do livro, onde se discute o ponto de vista no contexto de pragmática lingüística.

7. A pragmática das sobras

Na página 133 do livro, o leitor encontrará um diagrama que representa o que Simpson chama de "os múltiplos níveis de componentes comunicacionais de um enunciado". Trata-se de uma série de círculos concêntricos." Cada anel enclausura um nível e os anéis expandem-se radialmente, de acarretamento a implicatura. Assim, enquanto o acarretamento se constitui no significado mais‘ literal’ fora de contexto, a implicatura depende do significado produzido conjuntamente pelo locutor e seu destinatário." Entre acarretamento (entailment) e implicatura (isto é, respectivamente, os anéis interno e externo) estão dois outros anéis denominados ‘pressuposto semântico’ e ‘pressuposto pragmático’.

Essa representação diagramática dos níveis de significação comprova mais uma vez com muita clareza como Simpson acaba se entregando de corpo e alma aos encantos de uma longa tradição já consagrada na Lingüística, com fortes influências advindas da Semiótica de inspiração peirceana e da Filosofia Analítica, sobretudo a partir de Carnap. A tendência à qual estamos nos referindo foi muito bem sintetizada por Bar-Hillel (1970) mediante a metáfora da "lata de lixo". A pragmática historicamente foi pensada como o componente onde se jogam todos os detritos dos demais componentes.

É interessante lembrar, a esse respeito, como algumas das tentativas mais destacadas de definir o domínio de cada um dos componentes da tríade semiótica, originalmente vislumbrada por Peirce, Katz e Fodor (1964) chegam a definir o campo da semântica como "a teoria lingüística menos a gramática" (linguistic theory minus grammar"). Exatos quinze anos mais tarde, Gazdar (1979) vai utilizar a mesma estratégia para delimitar o campo da pragmática: "significação menos a semântica" (meaning minus semantics). Ou seja, a pragmática se define a partir de uma definição previamente disponível da semântica, a qual, por sua vez, se define utilizando como termo já definido a sintaxe. Efetivamente, então, o que temos é uma escala de componentes, escala que define, ao mesmo tempo, uma ordem cronológica de prioridades de pesquisa (Por exemplo, só se faz uma investigação pragmática com razoável êxito se dispusermos de uma descrição semântica do fenômeno em questão, mas não o contrário; e mais, um pragmatista precisa conhecer as principais tendências da semântica, mas não o contrário). O que vem a ser pior ainda é que a idéia de sobras (isto é, a idéia de que a pragmática é o que se faz com as sobras da semântica, a qual, por sua vez, se constitui em um campo de pesquisa onde se trabalha com as sobras da sintaxe) acaba legitimando uma escala de valores de prioridade conceitual. O sintaxista se coloca como quem está com o âmago da linguagem, o pragmatista com a casca (ou, se se quiser mudar a metáfora, respectivamente, com a pérola e com a ostra).

Ao se entregar, como já disse, de corpo e alma, a essa tradição da divisão do bolo, todo o esforço de Simpson acaba se revelando como nada mais que uma patética celebração da casca e da ostra. É isso que se vê quando o autor, no trecho citado no começo desta resenha (reproduzido abaixo a fim de facilitar a consulta), faz a apologia do "ângulo da narração" e do ponto de vista, e coloca, no mesmo saco, a questão da ideologia.

A elusiva questão da ‘verdade’ daquilo que um texto diz não é o que está em jogo aqui; o que está em jogo aqui é o "ângulo da narração" que é adotado no texto, seja ele um anúncio, um romance ou uma reportagem jornalística. Em suma, este livro é todo sobre o ponto de vista no estudo da linguagem. (Simpson, 1993: 2).

Simpson está dizendo, em outras palavras, "Deixem eles ficarem com a verdade; nós nos contentaremos com os pontos de vista, pois o nosso interesse está na ideologia".

8. Para uma abordagem mais sensata da questão ideológica

No capítulo introdutório do seu livro Ideology: An Introduction, Terry Eagleton (1991) distingue nada menos que 16 possíveis definições do termo ideologia. São as seguintes:

(i) o processo da produção de sentidos, signos e valores na vida social

(ii) um corpo de idéias característico de um determinado grupo ou classe social

(iii) idéias que ajudam a legitimar o poder político dominante

(iv) idéias errôneas que ajudam a legitimar o poder político dominante

(v) comunicação sistematicamente distorcida

(vi) aquilo que oferece uma posição (um lugar) para um sujeito

(vii) formas de pensamento motivadas por interesses sociais

(viii) pensamento de identidade

(ix) ilusão socialmente necessária

(x) a conjuntura de discurso e poder

(xi) o meio pelo qual agentes sociais conscientes fazem sentido de seu mundo

(xii) conjunto de crenças orientadas para a ação

(xiii) a confusão entre realidades lingüística e fenomenológica

(xiv) fechamento semiótico

(xv) o meio indispensável mediante o qual os indivíduos vivem suas relações com uma determinada estrutura social

(xvi) o processo através do qual a vida social é transformada em realidade natural.

Como observa Eagleton, nem todas as definições são compatíveis entre si. De acordo com algumas das definições, a ideologia se refere a qualquer sistema de pensamento, ao passo que outras definições identificam a ideologia com apenas determinados tipos de pensamento. Nesse segundo caso, a ideologia é encarada como algo negativo e merecedor de ação corretiva. Acontece, porém, que a conotação pejorativa também está presente em definições como (ix), onde a ilusão é descrita como necessária, portanto, universal. A chave para o enigma está no advérbio" socialmente" que aponta para a possibilidade de que o elemento da negatividade pode não estar presente em outras instâncias que não contemplam o social.

O que é, a meu ver, interessante observar é que, em praticamente todas as definições, está presente a idéia ou, quem sabe, o desejo subliminar de superação. A ideologia é quase sem exceção entendida como algo a ser identificado, isolado, cercado, denunciado, combalido, contido, extirpado, aniquilado, e por fim, superado. Ou seja, conforme já notamos anteriormente, só conseguimos pensar a ideologia, tendo em mente, ainda que de forma implícita, um termo oposto, uma instância superior, de superação. É nesse sentido que argumentei acima que de nada adianta "assumir a bandeira" da ideologia, como faz Simpson em seu livro, se o motivo for simplesmente defender a causa do excluído. Isso porque, ao celebrar o reino da ideologia e do ponto de vista, Simpson está simplesmente deixando intocado aquilo que, desde quando fora concebido para servir de contraponto, fez com que a questão ideológica fosse relegada a um segundo plano, ao plano do subjetivo - a saber, a fé na existência de um lugar transcendental, imune a qualquer influência interpretativa - a fé, em outras palavras, na possibilidade de uma ciência (ou simplesmente teoria) isenta de qualquer conotação ideológica (Cf. Rajagopalan, Ms) ou, pela mesma lógica, de uma estética inteiramente despolitizada (Cf. Rajagopalan, 1997).

Se quisermos entender o funcionamento da ideologia, é preciso, no meu modo de entender, começar problematizando as próprias categorias como sujeito e objeto e os inúmeros binarismos que daí decorrem. Em Rajagopalan (1995), argumentei a favor de uma abordagem que começasse problematizando a própria oposição entre a ideologia e a teoria. O raciocínio que desenvolvi naquele trabalho era nitidamente desconstrutivo. A seguir, procurarei elaborar tal proposta.

Antes, porém, face à desinformação generalizada a respeito do pensamento de Jacques Derrida e o movimento filosófico que se inspirou nos seus escritos, urge a necessidade de alertar o leitor desavisado ou, pior ainda, mal avisado, sobre o que a desconstrução não tem a pretensão de ser. A desconstrução não tem a pretensão de ser algo totalmente inovador na história do pensamento humano; ela parte, pelo contrário, precisamente do reconhecimento do fato de que o sonho de começar tudo de novo foi o que sempre moveu os filósofos, geração após geração. O sonho de refazer a filosofia numa página limpa se traduz na tentativa de superar as tentativas do passado (Toulmin, 1990).

A lógica da desconstrução - se é que podemos falar numa‘ lógica’ neste contexto, pois certamente não se trata de um método ou de um procedimento com êxito garantido - está no reconhecimento de que, na filosofia (leia-se, no pensamento humano de forma geral), no lugar da suposta superação, o que de fato se verifica é uma espécie de reaproveitamento. Isso diz respeito até mesmo ao sonho de se desvencilhar da metafísica que tanto impulsionou programas filosóficos de grande ousadia como, para citar um exemplo recente, o de Heidegger (cuja principal queixa contra Nietzsche fora a de que este não passou simplesmente de ‘o último metafísico’ da filosofia ocidental’).

Para Derrida, no lugar de superação o que se pode desejar é uma problematização da dicotomia em questão. Tal problematização não terá como meta resolver de vez todos os problemas que são encontrados no caminho do raciocínio, pois este seria nada mais do que o velho desejo de soluções definitivas. Longe de prometer o sossego de soluções duradouras, a reflexão desconstrutivista exige de nós um engajamento constante com os nossos próprios pensamentos, mesmo sabendo, de antemão, da inexistência de saídas teleológicas (Ou melhor, precisamente, em virtude de tal reconhecimento).

Vale a pena citar a seguinte observação de Paul de Man (1982:510) a respeito do que se pretende com a reflexão desconstrutivista:

Quando se analisa ou desconstrói um par de termos binários, o que está implícito não é que tal oposição não tenha validade alguma numa situação empírica (ninguém de bom senso poderia sustentar que seja impossível distingüir a noite do dia ou o quente do frio); o que se entende é que a figura da oposição que se encontra em todos os juízos analíticos não é confiável, precisamente porque ela permite, no interior da linguagem à qual pertence enquanto figura, substituições que não ocorrem da mesma forma no mundo empírico. Quando passamos de uma oposição empírica como aquela entre a noite e o dia para uma oposição categórica como a entre a verdade e a falsidade, as apostas epistemológicas aumentam consideravelmente, pois, no plano de conceitos, o princípio da exclusão opera decisivamente. A função crítica da desconstrução não é de tornar nebulosas as distinções mas de identificar o poder da figuração lingüística em transformar diferenças em oposições, analogias, contigüidades, reversões, encruzilhadas e qualquer outra coisa que seja da ordem das relações que articulam o campo textual de tropos e de discurso.

Como problematizar, então, a oposição ‘ideologia vs. teoria’? O passo inicial de todo esforço desconstrutivo consiste na percepção de que os próprios termos em que tal oposição é posta são problemáticos. O termo excluído é precisamente o que torna possível o delineamento do conceito privilegiado. Já vimos como isso se deu no momento menos esperado na elaboração de um dos binarismos mais consagrados da história da filosofia: a oposição entre os conceitos e os perceptos. No mesmo gesto em que se reivindica a superioridade dos primeiros, evidencia-se a impossibilidade de "conceber" tal relação sem recorrer, pasmem, ao termo que se pretende excluir: percepto. Pois, nota-se que não se tem como pensar o modo como se apreende um conceito se não com base na analogia com o processo da própria percepção sensorial: postula-se, no caso, um processo chamado ‘intuição’ o qual, por sua vez, vem a ser, nada mais nada menos que a percepção de algo não material através dos" olhos da mente".

Quando se interroga o binarismo ‘ideologia vs. teoria’, per (ou, con?) cebe-se que, por mais que se queira delinear o espaço da teoria em oposição à ideologia, esta se revela uma condição, uma necessidade estrutural, daquela. Ou seja, não há teoria que não seja impulsionada por esta ou aquela ideologia. Ou melhor ainda, toda teoria é, ao mesmo tempo, uma expressão ideológica de quem a elaborou em primeira instância e também de todos aqueles que nutrem simpatia por ela.

Quando se percebe que a teoria e a ideologia são mutuamente imbricadas, há que se chegar à conclusão de que a relação entre elas não pode ser a de simples exclusão, mas a de infindável confronto. Em outras palavras, o ideológico e o teórico "convivem" em todo empreendimento de raciocínio. Os dois são obrigados a compartilhar o mesmo terreno, a despeito de todos os dissabores e atritos entre eles. É justamente por esse motivo que teorias freqüentemente entram em choque entre si, da mesma forma que ideologias. Se as diferentes ideologias fossem, como sustenta Simpson, apenas perspectivas diferentes sobre uma mesma verdade, simplesmente não haveria conflitos entre elas, posto que não pode haver nenhum confronto entre elementos complementares. Da mesma forma, também não haveria nenhum conflito no reino da teoria (ou ciência, ou seja lá o que for que autores como Simpson implicitamente postulam como a instância radicalmente oposta à ideologia), já que estaríamos, neste caso, lidando com uma instância de superação total de toda a subjetividade e, como diz o velho ditado, a verdade verdadeira desconhece qualquer contradição interna.

Evidentemente, a necessidade de gerenciar o conflito sem trégua (é isso que, em última análise, nos resta) exige de nós um preço alto: o de vigilância constante contra as armadilhas do fenômeno composto que devemos batizar de" ideologia/teoria" (isso nos remete, é claro, ao par‘ conhecimento/poder’ de Foucault), (cf. Rajagopalan, 1995).

Acredito que a posição que esbocei acima em rápidas pinceladas tem implicações éticas imediatas. Em verdade, trata-se de uma postura de conduta, de uma maneira de lidar com o mundo, tanto o mundo real como o mundo das idéias, sem nos entregarmos aos velhos encantos de binarismos consagrados.

9. De volta ao monarca malvado

Antes de encerrar esta discussão, talvez valha a pena voltarmos atrás um pouco e rever o conto do rei e seu retrato oficial. Simpson quer tirar uma moral daquela estória que seja válida para todos os tempos e todas as circunstâncias - um princípio norteador universal, em outras palavras. Para Simpson, tal princípio seria o de que o que vale mesmo é o ponto de vista, desde que o que se enxerga não traga conseqüências danosas. A verdade sobre a deformidade do rei nada teria a ver com o sucesso do terceiro artista. Já que tudo é representação, seria tolice ficar pensando no que estaria por trás.

Há, no mínimo, uma profunda ironia nesse gesto do autor. Pois é justamente nesses instantes que o termo suprimido da sua posição a respeito da ideologia levanta sua cabeça. Simpson quer, no fundo, teorizar a questão ideológica e tentar falar do ponto de vista a partir de algo que não seja um outro ponto de vista (contrariando seu próprio preceito).

A propósito, não acho nada de errado neste gesto em si de querer dizer a última palavra do que quer que seja. A ambição totalizante sempre foi a marca registrada de todas as tentativas teóricas. Ela também sempre foi o que animou as ideologias. Podemos dizer que se trata do "ponto cego" da teoria, lembrando as raízes etimológicas dessa palavra que deitam sobre a idéia de" visão". Enfim, confirma-se no mundo da concepção o princípio amplamente comprovado na óptica, ou seja, no que diz respeito à percepção, aquele que nos ensina que o ponto cego é condição sine qua non para que os olhos consigam focalizar os objetos, enfim, consigam enxergar.

Author’s e-mail address: rajan@iel.unicamp.br

(Recebido em 14/10/96. Aprovado em 18/02/97)

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  • *
    A pesquisa relatada neste trabalho faz parte de um projeto financiado pelo CNPq (Processo n.º 306151/88-0). Meus agradecimentos aos dois pareceristas pelas valiosas sugestões.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 1998
    • Data do Fascículo
      Fev 1998

    Histórico

    • Recebido
      14 Out 1996
    • Aceito
      18 Fev 1997
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