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A Nasalidade, um Velho Tema

The nasality, an old theme

Resumos

O objetivo deste artigo é mostrar que o português possui dois processos de nasalização que, em níveis fonológicos separados, lexical e pós-lexical, originam, respectivamente, o ditongo e a vogal nasal. Na formação do ditongo, o efeito da estabilidade é o ponto essencial como é a assimilação para a vogal nasal.

stability; assimilation; percolation; underspecification; estabilidade; assimilação; percolação; subespecificação


The aim of this paper is to show that Portuguese has two processes of nasalization, operantig in separate levels, the lexical one that originates the diphthong and the postlexical that originates the nasal vowel. In the formation of the diphthong, the stability effect, a local condition, is the fundamental point as the assimilation is, as spreading, for the nasal vowel.


A Nasalidade, um Velho Tema

(The nasality, an old theme)

Leda BISOL (Pontifícia Universidade Católica, Rio Grande do Sul)

ABSTRACT: The aim of this paper is to show that Portuguese has two processes of nasalization, operantig in separate levels, the lexical one that originates the diphthong and the postlexical that originates the nasal vowel. In the formation of the diphthong, the stability effect, a local condition, is the fundamental point as the assimilation is, as spreading, for the nasal vowel.

RESUMO: O objetivo deste artigo é mostrar que o português possui dois processos de nasalização que, em níveis fonológicos separados, lexical e pós-lexical, originam, respectivamente, o ditongo e a vogal nasal. Na formação do ditongo, o efeito da estabilidade é o ponto essencial como é a assimilação para a vogal nasal.

KEY WORDS: stability, assimilation, percolation, underspecification.

PALAVRAS-CHAVE: estabilidade, assimilação, percolação, subespecificação.* * Agradeço a Lee Seung-Hwa pela leitura crítica dos originais e sugestivos comentários.

0. Introdução

A hipótese de Câmara Jr. (1969) de que a vogal nasal é o conjunto VC, uma vogal seguida de uma elemento nasal, subespecificado, um arquifonema em seus termos, é o pressuposto básico deste estudo, que tem por foco o ditongo nasal. Ser bifonêmica a vogal nasal é uma hipótese geralmente aceita, embora com variantes de interpretação. Ser um ditongo mais arquifonema nasal em final da palavra, conforme Câmara, é a hipótese refutada, com o argumento de que o português desconhece o padrão silábico VCC, em que C2 não seja /S/.

Neste artigo, reinterpreta-se a idéia mattosiana à luz da fonologia atual, mas o proibido padrão silábico não vem à tona, pois N, sem ferir a Condição de Coda, associa-se à rima para nasalizar o ditongo que a vogal temática ajudou a construir.

1. O Contraste Fonológico

Das evidências que a literatura registra para a hipótese VN, relembremos apenas a relação derivacional do tipo irmão/irmanar, limão/limonada, que sinaliza paradigmas com uma base em comum, e a ausência de nasalidade na sílaba pré-final de proparoxítonas, capénga mas não cápenga, apontando para a sílaba pesada que a nasal constrói. Proparoxítonas rejeitam sílabas pesadas na penúltima posição.

Em se tratando de contraste fonológico, vale observar que ele se estabelece entre a sílaba pesada da seqüência VN e a sílaba leve de uma só vogal (1a), mas entre ditongos a oposição se faz diretamente entre presença e ausência de nasalidade (1b).

(1) Contrastes fonológicos

2. Pressupostos Básicos

2.1. Tipo de nasalidade

A idéia central deste artigo é que o português possui dois processos distintos de nasalidade: o de estabilidade e o de assimilação. O primeiro, em que a nasal do grupo VN, sem interpretação fonética, é desassociada, tornando-se flutuante, ocorre com marcador de classe, em final de palavra, gerando o ditongo nasal; o segundo, com N subespecificado in situ, por espraiamento muitas vezes referido, dispõe dos demais contextos para criar a vogal nasal.

Línguas como o francês (Piggot, 1987) e como o português no caso específico do ditongo nasal, que mostram nasalidade local, têm de contar com o efeito da Estabilidade (Goldsmith, 1990:27-29), segundo o qual autossegmentos são preservados como flutuantes, quando desassociados, até que possam reassociar-se a unidades fonológicas vizinhas.

Segundo Odden (1995), não só vogais vizinhas, mas sílabas, rimas ou moras são possíveis receptores de tons flutuantes. É nesta linha que defendemos a idéia de que o receptor da nasalidade flutuante, em português, é a rima, pois inexistem rimas parcialmente nasalizadas como *irmão ou *irmaõ, com nasalidade apenas sobre o núcleo ou sobre a coda. A rima toda fica por ela envolvida: irmãõ.

2.2 Da fonologia lexical

Na perspectiva de Kiparsky (1985), segundo o qual, no nível 2, a morfologia precede a fonologia, desenvolve-se este estudo, que entende ser o léxico do português ordenado em dois níveis, o da raiz (nível 1) e o da palavra (nível 2).1 * Agradeço a Lee Seung-Hwa pela leitura crítica dos originais e sugestivos comentários.

O nível 1 é o da derivação e flexão irregular; o nível 2, o da flexão, tanto de verbos como de não-verbos, e inclui a composição e a derivação com sufixos produtivos, como -zinho e -mente.

É preciso levar em conta a clássica divisão entre regras lexicais, as que se aplicam no processo de formação de palavras e regras pós-lexicais, as que se aplicam sobre o resultado da sintaxe. Regras lexicais são controladas pelo Princípio de Preservação de Estrutura e pela Condição do Ciclo Estrito. Todavia, segundo Kiparsky (1985) e Borowsky (1993), o Ciclo Estrito, que proíbe a aplicação de regras cíclicas em ambientes não-derivados, fica desativado no nível da palavra. Regras pós-lexicais por eles não são controladas.

2.3. Da vogal temática

Em raízes de terminação nasal, subespecificada, a vogal temática nunca faz parte do processo derivacional, funcionando exclusivamente como marcador de classe, o que permite a seguinte afirmação:

(2) A vogal temática de itens terminados em nasal subespecificada está sujeita à Condição de Perifericidade Vocabular, i.é, é introduzida no nível da palavra.

O argumento é que inexistem indícios de sua presença na morfologia derivacional do nível 1. Somente aparece diante de sufixos que respeitam a integridade da palavra, mão#zinha, mão#zudo, ou em final absoluto, mão.

Harris (1982:18) diz que marcadores de classe somente aparecem no nível mais externo da palavra, o da palavra inteira. É o que acontece com o caso em estudo que só conhece VT com esta função, diferentemente de raízes com outras terminações.

Por outro lado, é importante observar que a distinção que se costuma fazer entre raízes com VT e raízes sem VT, também se faz com os itens em questão: i) Os que recebem marcador de classe: irmão (irma(N)+o), com a vogal final convertida em glide por silabação, ou submetida a um processo de fusão, maçã (masa (N)+a); ii) Os que não têm marcador de classe: bem, cetim, homem.

(3)

Duas são, pois, as vogais temáticas /a, o/, diretamente envolvidas com raízes nominais terminação nasal. A última forma o verdadeiro ditongo nasal ao converter-se por (4) na vogal alta correspondente. A vogal /e/ somente figura em verbos. Que /i/, e na escrita, das flexões nominais, limões, chorões, seja reflexo de um processo de assimilação, é o pressuposto mais adiante discutido.

(4) Elevação de VT

3. Das Exceções

Antes de dar início às derivações, queremos chamar atenção sobre as exceções. São poucas e as admitimos como palavras de ditongos lexicalizados, isto é, ditongos não gerados. Trata-se de muito e cãimbra/cãibra, zãimbo/zãibo. O primeiro é o único caso de nasalização progressiva. O segundo são raros casos de ditongo no interior de palavra, que não se ajustam à rima máxima do português VCC, a qual somente admite /S/ em C2, como foi observado. Por essas razões de excepcionalidade, tais palavras são lexicalizadas com ditongo.

4. Análise

À luz da fonologia lexical, os ditongos nasais podem ser classificados como lexicais e pós-lexicais.

Os primeiros são gerados no léxico, como irmão e limões. Em geral puxam o acento para a sílaba final com exceções que podem ser enumeradas: órgão, órfão, bênção, Cristóvão, sótão e raras palavras mais. Os segundos são formados no pós-lexico, como homem, ariticum, fórum - [omey ~omeñ], [aritukuw~aritikuh], [`fOruw ~`fOruh].

Em suma, a principal distinção entre o ditongo lexical e o pós-lexical, propriamente uma vogal seguida de um apêndice nasal, é a presença de VT como marcador de classe nos primeiros, e a ausência de VT nos segundos.

4.1. Do ditongo lexical

Feitas essas considerações básicas, passemos à derivação do verdadeiro ditongo nasal, que denominamos ditongo lexical, precisamente com o sentido de ditongo gerado no léxico, atentando para os detalhes que lhe dão peculiaridade e sustento.

A suposição básica, já enunciada, é que a forma subjacente do ditongo nasal é uma vogal seguida de uma consoante nasal, não plenamente especificada, tal qual a vogal nasal, interna.

É importante notar que N subespecificado somente acontece na coda silábica; no ataque, as nasais do sistema estão plenamente especificadas por traços articulatórios, e são em número de três, /n,m,ñ/, criando oposições fonológicas do tipo /kama,kana, kaña/ (cama, cana, canha).

(5) Estrutura da vogal nasal

Com respeito ao ditongo, a hipótese é que a nasal com a estrutura (5), em posição final de vocábulo, é desassociada por convenção, porque não recebe interpretação fonética, pois não possui traços articulatórios, resultando um suprassegmento nasal, flutuante (N), mas estável graças à Estabilidade, um dos constructos da teoria autossegmental. Então, a vogal temática, como marcador de classe, ocupa a posição disponível da coda. E o traço nasal, reassociado à rima percola até atingir todos os segmentos terminais, ou seja, as vogais que a compõem. Exemplifiquemos com a palavra pão.

(6)

onde (N) significa nasal flutuante.

O que se lê acima é que, em posição final de vocábulo, a raiz (r), que domina N, encontra-se dessilabada, porque a nasal não possui os traços articulatórios que lhe garantiriam manifestação fonética e justificariam o `timing slot' (x). Conseqüentemente a nasal torna-se flutuante, isto é, livre, mantendo-se assim no aguardo de reassociação. Se isso não ocorrer, será apagada, de acordo com os princípios da teoria2 * Agradeço a Lee Seung-Hwa pela leitura crítica dos originais e sugestivos comentários. .

No passo derivacional seguinte, estando vazia a posição de coda do molde CCVC, a vogal temática nele se insere. Por fim o traço nasal, como um suprassegmento, é associado à rima e percola até os elementos terminais, gerando o ditongo nasal.

A análise realizada em (6) levanta um problema, pois gera um ditongo nasal em um sistema vocálico que não possui vogais nasais subjacentes. Esperar-se-ia que esse procedimento fosse bloqueado pelo Princípio de Preservação de Estrutura, mas isso não acontece, pois esses ditongos são preservados, sem variação, com o papel contrastivo, exemplificado em (1).

A hipótese consagrada de que a vogal nasal é a seqüência tautossilábica VN, em que V recebe de N a nasalidade, tem por ponto de partida o fato já referido de que o português não possui vogal nasal em seu sistema subjacente, mas apenas sete vogais orais, o que pressupõe a presença no sistema do seguinte filtro ou restrição:

(7) Restrição da Vogal Nasal

Leia-se: É proibido V ligado a N por uma só linha de associação.

Esse filtro não alcança vogais nasais em função da nasalidade bifonêmica, como não alcança ditongos. Gerados no léxico, esses ficam protegidos pelas linhas duplas de associação. Fica, pois, (8a) livre da restrição mencionada, mas não (8b).

(8)

Tal argumento fundamenta-se na convenção "Linking Constraint", (Hayes, 1986:331), segundo a qual linhas de associação em descrição estrutural são interpretadas exaustivamente.

Retomando a análise, lembremo-nos de que N tautossilábico torna-se flutuante somente em posição final de um item lexical, por conseguinte diante de (]) do nível 2, mas não em itens derivados, nos quais permanece in situ para receber, por default, os traços articulatórios que lhe garantem manifestação fonética.

É preciso, pois, fazer a distinção (cf. Kiparsky, 1982) entre item lexical, identificado, e item derivado. Nesse, a nasal é licenciada, manifestando-se como coronal na posição de ataque por regra default, ou seja, de redundância: irmanar, derivada de irmaN, manual, de maN, lanígero de laN ou panifício, de paN.

Somente quando se trata da formação de ditongo fonológico, um processo lexical que ocorre no nível da palavra, a nasal é totalmente absorvida, como se observa em (9), porque não possui nem recebe, como segmento independente, os traços articulatórios. De acordo com Piggot (1987), em sistemas de nasalidade local, uma nasal sem traços é desassociada.

Nas derivações que se sucedem, a desassociação da raiz de N de que resulta uma nasal flutuante, será referida por Convenção de Desassociação de N, CDN, que somente ocorre no nível 2, pois a nasal é silabada no nível 1, para sustentar a derivação subseqüente do ciclo 2. No nível da palavra, no entanto, quando ainda permanece inespecificada, tem de ser desassociada, pelas razões inicialmente expostas: não recebe os traços referentes aos pontos de articulação. Por AVT, indicamos a adjunção da vogal temática; por RNP, a reassociação da Nasal à rima, com percolação; por CAA, a condição de apagamento do acento, na passagem do ciclo, desde que o sufixo não receba acento próprio, de acordo com a teoria de Halle & Vergnaud; por SIL, SILABAÇÃO e por AC, acentuação. Essa consiste, em linhas gerais, na atribuição de acento à sílaba pesada final e, nos demais casos, na formação de um troqueu silábico, a partir da borda direita. EN e IN, que serão tratados no item 4.2, indicam, respectivamente, expansão de nasalidade e implementação de N por assimilação.

(9)

A primeira e a terceira entradas são identificadas como itens lexicais, por conseguinte são candidatas à perda de N (CDN) no nível 2, quando VT, que satisfaz a condição de perifericidade vocabular, entra, ocupando a posição de N e tomando a forma de vogal alta, uma vez que vizinha com V (Regra 4). Com a associação da nasalidade à rima, gera-se por percolação o ditongo nasal, garantindo-se, no léxico, o contraste fonológico do tipo pãw/paw, mãw/maw.

Tornar-se glide uma vogal alta por ditongação é conseqüência natural da silabação. Vogais altas que satisfazem a Condição de Coda, por serem soantes, realizam-se em nível de superfície como glide. Isso é um universal lingüístico. E como os ditongos tomam nasalidade por linhas duplas de associação, não são eles atingidos pelo filtro (7).

Por vezes, em se tratando de acentuação, itens com ditongos verdadeiros estão marcados no léxico profundo pela extrametricidade (EX). Leia-se AEE por adjunção do elemento extraviado.

(10)

Passemos a considerar a terminação oN em palavras polissílabas.

4.1.1.Da terminação oN

De nominais com oN acentuado, derivar-se-ia o ditongo nasal /õw/, que a língua apenas reconhece em monossílabos: tom, bom, som ou onomatopaicos como em bombom. Raros nomes próprios, empréstimos como Gaston, o exibem. Dessa terminação, identificada pelo paradigma derivacional, como se vê abaixo, geram-se dois ditongos lexicais, ãw e õys: limão, limões, coração, corações, paixão, apaixonado, paixões.

Não é difícil argumentar em favor de uma regra de dissimilação que relacione oN com ão, presente tanto na diacronia quanto na sincronia, como (11) sugere:

(11)

Pode-se descrever esta relação através da regra (13), a partir do sistema seguinte:

(12) O sistema vocálico

( 13) Dissimilação Labial (DL)

O asterisco está indicando o acento na sílaba final, como elemento do contexto da regra. O símbolo (]) está dizendo, por sua vez, que tal regra somente atinge cadeias de vocóides labiais que estiverem na borda da palavra. A rima apresenta-se com duas vogais, a segunda das quais, como alta [-abn], isto é, [-] em todos os níveis de abertura, ocupa a posição de coda; a segunda é uma vogal média. Ambas as vogais compartilham os traços labial, dorsal e a nasalidade que percola da rima. O processo de dissimilação consiste em desassociar o traço labial da vogal nuclear. O resultado que seria [aa], desconhecido pelo sistema fonológico, é fixado, em função da preservação de estrutura, como /a/.

A regra (13) pressupõe a seguinte restrição, de língua particular, que tem o papel de condição de boa-formação (CBF):

(14) Restrição do ditongo nasal

É proibido ou nasalizado, tônico, em posição final de palavras polissílabas. Então o ditongo ow nasal é aceito em [bõw], [tõw], [sõw], mas não em *lim[õw], *feij[õw], *naç[õw].

Quanto ao ditongo nasal õy (15a), com e na escrita, a que fizemos alusão em páginas anteriores, entendemos ser o glide o resultado da expansão da coronalidade de /S/, como em (15b), quando uma nova sílaba se forma ou como (15c), em que um glide vem à tona.

(15)

A formação de plural consiste apenas no acréscimo do morfema {S}: casa>casas. Mas, se a palavra terminar em consoante, o acréscimo deste morfema cria uma nova sílaba com uma vogal emergente mar+S > marS > mares; rapaz + S > rapasS > rapazes; por vocalização da lateral emerge um ditongo: coronel + S > coronelS > coronéis, ou a fusão tem sua vez funil + S > funilS > funiis > funis. Em todos esses casos, uma vogal epentética intervém, mostrando que o morfema de plural tende a evitar coda complexa. Nossa pressuposição é que tal vogal é o resultado da expansão do traço coronal de /S/. Também argumentam nesta direção Girelli (1988) e Morales-Front & Holt (1997).

A expansão da coronalidade de /S/ em terminação oN subjacente dá-se de forma muito semelhante a paz ~ paiz, feroz ~ feroiz, mês ~ meis ou tõws ~ tõys, irmãs ~ irmãys, fãs ~fãys, com a diferença de ser uma regra de aplicação categórica, por conseguinte lexical, enquanto esses pares são variáveis que caracterizam dialetos.

São esses fatos que oferecem argumento à suposição de que /i/, e escrita, é uma vogal criada pela expansão da coronalidade de /S/, que substitui u por i.

(16) Expansão do traço coronal (EC)

O asterisco indica acento. Leia-se: O traço coronal de S expande-se sobre a vogal imediatamente precedente, em sílaba acentuada e com nasalidade, quando ambas as vogais são labiais. O espraiamento provoca a desassociação do traço labial da vogal atingida, substituindo-o pelo traço coronal.

(17)

Trata-se de uma regra de mudança de traços que se aplica no léxico e que combina apagamento com assimilação.

Há algumas palavras com o ditongo ãw nasal que mostram invariavelmente o glide coronal ao invés do glide dorsal, que para isso devem ser marcadas.

(18)

Variantes livres como aldeãos ~ aldeães ~ aldeões já estão registradas em gramáticas normativas. Na fala popular se vem notando a preferência pelo plural oys, como se a regra de expansão da coronalidade de /S/ estivesse estendendo o seu domínio.

No pós-léxico, a regra tende a generalizar-se de dois modos: i) perde a restrição lexical, aplicando-se variavelmente em monossílabos também: bõws ~bõys, característica de alguns dialetos; ii) coexiste com uma nova versão de espraiamento do coronal, a que, sem restrição quanto à qualidade da vogal ou à nasalidade, deixa de ser uma regra de mudança de traço para ser uma regra de inserção: paz > paiz.

Feitas essas considerações, passemos a desenvolver uma derivação. Os itens da primeira e da terceira coluna são candidatos a perder N da borda, no nível da palavra, enquanto o item da segunda coluna desenvolve, no ciclo 2 do nível 1, uma nasal que se silabifica como ataque e, por default, recebe o traço coronal.

(19)

A partir da desassociação de N, no nível da palavra, cria-se o ditongo nasal ou, considerado por (14) mal formado, embora não seja bloqueado pelo Princípio de Preservação de Estrutura. A CBF (14) torna obrigatória a assimilação do coronal (16), que se aplica para produzir õys, assim como motiva a dissimilação labial (13), impelida por OCP a produzir a forma esperada no singular.

4.1.2. Da terminação aN

Quando da seqüência de dois as , em que a vogal baixa não se ajusta à posição de C da rima, mas à de núcleo, já ocupada, o Princípio do Contorno Obrigatório, comumente referido por (OCP), funde as duas vogais idênticas em uma só, provocando o alongamento da vogal, que preenche a posição vazia da coda disponível no molde CCVC.

Em (20), que expõe apenas o nível 2, a vogal temática na alínea a) vale por morfema de feminino e marcador de classe; na alínea b), apenas como marcador de classe.

(20)

Embora o sistema fonológico do português não possua vogais longas, a vogal a nasalizada, resultante da fusão de as, cria, sem restrições, uma vogal longa que não precisa ser encurtada. É que a restrição de vogal longa somente incide sobre o sistema das vogais fonológicas, o qual não inclui vogais nasais. Embora um ditongo não seja gerado, gera-se a estrutura correspondente com duas posições na rima, assim como a nasalidade com linhas duplas de associação, lexicalmente legitimada.

Do ponto de vista fonético, Moraes & Wetzels (1992:156-58) afirmam que a vogal nasal é efetivamente mais longa que a oral (27%) no contexto tônico e (74%) no contexto átono. A supressão da nasal subjacente acarretaria, pois, o alongamento compensatório da vogal nasal e/ou a presença de um apêndice consonântico.

Finda a descrição do ditongo nasal que, por sua natureza, é lexical, passemos para os ditongos variantes cujo processo conclui somente no pós-léxico, razão pela qual são denominados ditongos pós-lexicais. Passemos, pois, da nasalidade local para a nasalidade por estranhamento.

4.2 Da vogal interna e do ditongo pós-lexical

Partimos do pressuposto de que a geração do ditongo final em palavras sem VT, homem, cetim e hífen, afilia-se à regra da nasalização da vogal no interior da palavra, como em canto, senda e pranto.

Vale observar que as regras ortográficas, neste particular, apresentam indícios fonológicos, pois representam o verdadeiro ditongo por duas vogais, pão, põe e pela consoante nasal todas as demais vogais nasalizadas, campo ou bem, que pertencem ao segundo grupo.

Tanto a nasal interna (VN em canto e censo, por exemplo) quanto a final (VN em jovem e cetim) têm realização fonética, por isso estão livres da convenção de apagamento (CDN). A primeira permanece in situ, porque recebe os traços articulatórios da consoante seguinte ou da vogal precedente; a segunda, porque se superficializa seja como glide consonântico seja como glide vocálico, de acordo com os traços articulatórios da vogal precedente. Não se trata, pois, da nasal apagada, flutuante e estável, que gera o verdadeiro ditongo nasal, acima desenvolvido, mas da expansão de N in situ, uma assimilação. Uma vogal oral seguida de uma consoante nasal tautossilábica é por essa coberta de nasalidade, como afirmava Câmara Júnior.

E porque a regra de espraiamento da nasal, (EN), aplica-se também em itens não-derivados, como entre, ante e sem, palavras formais, fica ela restringida, pelo Ciclo Estrito, a operar somente em níveis não-cíclicos, cabendo-lhe as alternativas: i) o léxico no nível da palavra ou ii) o pós-léxico. Por ser categórica, i) seria escolhida. Todavia, considerando-se que a nasalidade é, neste caso, um traço redundante, pois o contraste fonológico está garantido no léxico pela oposição referida em (1) de VN versus V (seNda/seda; riN/ri), o Princípio da Simplicidade, que reza The optimal grammar is the simplest (Chomsky and Halle, 1965, Kiparsky, 1993), leva a regra de espraiamento de nasalidade para o pós-léxico. Isto é, embora os resultados possam ser alcançados com (21) no nível 2, onde a Condição do Ciclo Estrito está desativada, a gramática mais simples a classifica como regra pós-lexical, pois, entre uma gramática com redundância e uma gramática sem redundância, a segunda deve ser escolhida.

(21)

Expansão de N (EN) (Pós-lexical)

Espraie N sobre a vogal tautossilábica

4.2.1. Da implementação de N

Uma das características da vogal nasal interna e das terminações nasais de itens sem vogal temática são as formas variantes que dizem respeito à realização de N, cujo preenchimento por assimilação é uma regra tardia, que se aplica no pós-léxico. No interior da palavra, as variantes são condicionadas pelo segmento vizinho da direita ou da esquerda: ca[n]to, ca[h]to; na borda, desenvolvem uma coda vocálica ou consonântica, home[y] ~home[ñ], bo[w] ~bo[h], em concordância com a vogal precedente. É, pois, no componente pós-lexical que se situa essa variação, relacionada à especificação de N.

Em (22a), a nasal adquire os traços da obstruinte seguinte ou da vogal precedente. Diante de líquidas tende a tomar os traços da vogal precedente. Em todos os casos, pode ser suprimida sem perda do espaço temporal; em (22b), concorda com a vogal precedente, manifestando-se como glide vocálico ou consonantal. É essa variação na coda, que tanto aparece em sílaba tônica como átona, o indício de sua natureza pós-lexical.

(22)

2 Ver para detalhes fonéticos Cagliari (1977).

A variação que VN da borda de palavra (22b) exibe está, pois, relacionada diretamente à realização de N, sem traços articulatórios durante todo o processo lexical, que os recebe, para ser interpretado, em nível pós-lexical, da vogal precedente, quando em glide consonantal ou vocálico se manifesta. A variação interna (22a) também depende do preenchimento da nasal pelos traços articulatórios da vogal precedente ou da consoante seguinte. Pode ser apagada com duração compensatória.

Já contemplada a nasalização local, exemplifiquemos em (23) a nasalização por espraiamento. Palavra que, como fértil e réptil, não atrai acento final, é marcada por extrametricidade.

Leia-se IN como implementação da nasal por assimilação da consoante seguinte ou da vogal precedente.

(23)

Da mesma forma que homem, derivam-se líquen, viagem, e mais itens com N final em sílaba não acentuada. As de terminação acentuada como amém, vintém, assim como bom, jardim, sem marca de extrametricidade, recebem acento final e desenvolvem processo semelhante, exemplificado com a palavra cetim em (23).

Os alofones que a seqüência VN manifesta no interior do vocábulo ou em posição final, com N in situ são, pois, o resultado da implementação de N, que, para superficializar-se, precisa receber os traços articulatórios de segmento vizinho, uma regra tardia, que abre caminhos a opções. E o ditongo variável é apenas uma vogal seguida de um apêndice nasal, realizado como glide vocálico ou consonântico.

Portanto a nasalisade fonológica, invariante, está garantida durante todo o processo lexical pelo grupo VN, mas a expansão de N e sua realização fonética são regras tardias.

E assim damos por findo esse estudo, que distingue dois tipos de nasalidade em português:

i) a nasalidade por assimilação a partir de uma consoante nasal in situ;

ii) a nasalidade por inserção na rima de uma nasal flutuante e estável.

Aquela cria a vogal nasal; essa, o ditongo nasal.

5. Conclusão

A fonologia lexical e a teoria autossegmental permitiram distinguir dois processos de nasalidade em português, a nasalidade por estabilidade e a nasalidade por assimilação, lexical e pós-lexical, respectivamente.

Toda a análise se desenrolou na perspectiva da fonologia lexical, concebendo um léxico composto de dois strata, o da raiz e o da palavra. No nível 1, morfologia e fonologia interagem, iniciando-se a derivação pela fonologia com as regras de silabação e acento. No nível 2, onde um dos processos de nasalização ocorre, a morfologia, que tem precedência, esgota-se antes de iniciar a fonologia. É neste nível que se forma o ditongo nasal. Por outro lado, a nasalização por expansão de N (EN), que alcança terminais assinalados por [-VT] e a vogal interna, e que não tem uma morfologia específica, opera no componente pós-lexical.

1 A hipótese de três níveis lexicais , o último dos quais seria o da palavra prosódica, com que trabalhamos em estudos anteriores é agora abandonada em favor de dois níveis, mas na visão específica de Kiparsky 85.

2 Derivados com perda da nasal também acontecem: limão ~limoeiro~; feijão ~feijoada, mostrando que uma derivação pode ignorar N. Se N não passar para a posição de ataque, no nível 1, pelo ato da silabação, permanece flutuante até o fim do ciclo, quando é apagado, porque não está sob a proteção da extraprosodicidade. Tomem-se extraprosódico, extramétrico ou extrassilábico como sinônimos.

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    Agradeço a Lee Seung-Hwa pela leitura crítica dos originais e sugestivos comentários.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2001
    • Data do Fascículo
      1998
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