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O seu Trabalho Está Bom, Mas...

Your Paper is Good, But...

Resumos

O objetivo deste ensaio é observar e analisar uma construção do tipo "Esta é uma primeira abordagem, mas...", observada de maneira crítica por Charlotte Baker (1995), e refletir sobre as possibilidades de uso da partícula "mas" no português falado.

Polidez; "Mas"; Atenuação na fala


The purpose of this paper is to analyse and discuss the structures and constructions like "This is a first approximation, but...", critically examined by Charlotte Baker (1995), and reflect about the possibilities of usage of the particle "mas" in oral Portuguese speech.

Politeness; "But"; Mitigation in the speech


O seu Trabalho Está Bom, Mas...

(Your Paper is Good, But...)

Hudinilson URBANO (Universidade de São Paulo)

ABSTRACT: The purpose of this paper is to analyse and discuss the structures and constructions like "This is a first approximation, but...", critically examined by Charlotte Baker (1995), and reflect about the possibilities of usage of the particle "mas" in oral Portuguese speech.

RESUMO: O objetivo deste ensaio é observar e analisar uma construção do tipo "Esta é uma primeira abordagem, mas...", observada de maneira crítica por Charlotte Baker (1995), e refletir sobre as possibilidades de uso da partícula "mas" no português falado.

KEY WORDS: Politeness; "But"; Mitigation in the speech.

PALAVRAS-CHAVE: Polidez; "Mas"; Atenuação na fala.

É comum alguém começar desta forma a análise crítica de um trabalho, sobretudo quando se está em presença do seu autor, como no caso das defesas de teses. Vem desse uso talvez até a substantivação do "mas" em frases do tipo: "Há sempre um más" ou "Não tem más nem meio más", onde ele significa restrição, objeção, dificuldade, estorvo, obstáculo etc.

Duas podem ser as motivações para o elogio contido na oração que precede o "mas": ou se trata de um elogio verdadeiro em razão da qualidade real do trabalho ou se trata de um falso elogio, fruto da simples atitude de polidez e diplomacia do falante. Em ambos os casos, esse elogio soa como uma atenuação antecipada do que se vai dizer na seqüência do "mas".

Uma construção de estrutura sintático-semântico-pragmática semelhante pode ser exemplificada em enunciados como:

"Eu não quero ser grosseiro, mas..."

"Posso estar enganado, mas..."

"Não sei se entendi bem, mas..."

"Desculpe o egoísmo, mas..."

Nestes enunciados, o segmento precedente ao "mas" não contém elogio, antes uma ressalva ou restrição, também falsa ou verdadeira, ao próprio falante. Nesses casos, além da função atenuadora antecipada, esses segmentos têm um caráter de preparação defensiva em relação ao que vai ser dito na seqüência introduzida pelo "mas", como por exemplo:

(1)"Eu não quero ser grosseiro, mas você pegou o meu lugar."

Baker (1995) denominou esse uso do "mas" em tais contextos de "mas - prefácio controlador de resposta". Na realidade o "mas" articula-se com um segmento anterior ("Eu não quero ser grosseiro"), aprioristicamente atenuador, de feição mais ou menos formulaica. Esse conjunto prefacia a oração "você pegou o meu lugar", de natureza ofensiva, que, sem o acompanhamento atenuador do início, poderia ensejar uma réplica agressiva. Trata-se de uma estratégia que tenta afastar por antecipação o eventual melindre do ouvinte em face de algo menos cortês ou irreverente que ele, falante, pretende ou vai falar.

Sem que se possa considerar um uso conjuncional típico o "mas", nos termos das gramáticas tradicionais, não há duvida que entre o segmento anterior e o posterior há uma contrariedade semântico-pragmática de idéias e atitudes: não se quer ser grosseiro, mas se toma uma atitude verbal que pode ser interpretada como grosseira. A oposição semântica pode não ser clara e explícita, como prevêem as gramáticas.

Na verdade, no texto oral, sobretudo na conversação, a oposição estabelecida pelo "mas" passa muitas vezes por uma cadeia de pressupostos, nem sempre clara e imediatamente inferíveis, todavia mais ou menos convencionalmente aceitos e pragmaticamente compreensíveis.

Observemos o exemplo:

(2) "Sou pobre, mas sou honesto."

Neste exemplo a idéia de honestidade não se contrapõe logicamente à de pobreza, mas o falante, ao relacionar essas qualidades por meio do "mas", aceita uma espécie de consenso de que "pobre tem escassez de recursos, por isso tem dificuldade ou impossibilidade de cumprir suas obrigações, tornando-se mau pagador; logo, desonesto", o que explicaria o emprego da palavra "honesto" por oposição.

Freqüentemente o "mas" deixa de estabelecer contraste de idéias, proporcionando, porém, em concorrência ou não, algum outro tipo de oposição de natureza discursiva ou pragmática.

Tomando-se por base o uso sintático original do "mas como conjunção coordenativa, podemos formular o esquema [X + MAS + Y], aplicando-o às construções sob análise:

(3) "Eu não quero ser grosseiro, mas você pegou o meu lugar.

X Y

Observando este tipo de construção, parece que ela apresenta ao menos as seguintes características:

1) quanto ao X:

- tem função de "atenuar" em benefício próprio e/ou do ouvinte, por antecipação, o conteúdo de Y, por meio de um elogio ao outro ("Seu trabalho está bom") ou uma restrição ou falha sobre si próprio ("Posso estar enganado"). Vale lembrar, com Rosa (1995: 30) que "a noção mesma de atenuação permanece atada à obtenção de um efeito de sentido que só poderá ser considerado e avaliado como tal numa interação social específica".

-trata-se de pequenas frases ou orações mais ou menos estereotipadas, como:

Não quero ser detalhista, mas... / Não me lembro bem, mas...

Posso estar enganado, mas... / Desculpe o egoísmo, mas...

- representa um comentário e/ou uma intenção metacomunicativos de controle do conteúdo de Y. É, portanto, marginal ao tópico;

- nessas condições, controla/delimita uma possível resposta ou co-mentário do ouvinte, atingido pela mensagem contida em Y, procurando afastar, por antecipação, sua indisposição ao que será dito na seqüência;

- trata-se de oração paralela ao Y, gramaticalmente falando;

- deve estar vinculado necessariamente ao efeito de sentido de Y.

Em caso contrário, pode ocorrer o que Rosa (1992: 85-87) chama de "falso mas - prefácio", como no exemplo abaixo, em que Y não se relaciona com X, ou, em outras palavras, o conteúdo da direita ao "mas" não se relaciona com o objeto antecipado à esquerda ("como é que se deu a mudança"):

(4) L2 (...)Europa você encontrava os casos de histeria aqueles de histeria de conversão né? que o cara... tem um TA:: que ali na sua frente... isso não acontece... mais... sabe... eu não sei te explicar como é que se deu a mudança... mas... caso assim é muito difícil de encontrar...(...) (vol III - p. 82)

- sinaliza que o falante sabe ou supõe que o conteúdo de Y é dúbio, contestável, ofensivo ou irreverente, sendo, portanto, passível de uma possível crítica.

2) quanto ao Y:

- trata-se de uma mensagem principal, direta, a prevalecer, falando-se em termos de conteúdo;

- de alguma forma seu conteúdo implica o ouvinte ou o próprio falante, ou suas opiniões, ou os seus comportamentos;

- trata-se de oração paralela ao X, gramaticalmente falando;

- deve estar vinculado necessariamente à intenção contida em X;

- trata-se de mensagem dúbia, ofensiva ou irreverente ou, de alguma forma, criticável. Enfim, trata-se de um ato de fala considerado pelo falante como potencialmente ameaçador à face do ouvinte e, por tabela, a sua própria face.

3) quanto ao X e ao Y:

- ambos devem ocorrer obrigatória e explicitamente, o que determina que o "mas" esteja sempre em posição medial no turno;

- ambos preenchem estruturas sintáticas equivalentes (unidades teóricas coordenadas) e correspondem a segmentos semântica e pragmaticamente vinculados e de alguma forma oponíveis.

4) quanto ao "MAS":

- trata-se de uma conjunção coordenativa, portanto com função sintática normal de coordenação; daí sua posição inicial na oração e medial no turno;

- no plano semântico, dentro do contexto específico, opõe de algum modo segmentos ou introduz uma restrição.

Nessas condições, X funciona como um mecanismo atenuador acoplado ao "MAS", com o qual, em conjunto, prefacia um segmento (Y), classificado como menos polido ou dúbio, capaz de perturbar a interação pacífica entre os parceiros.

Por outro lado, conforme o grau de questionamento implicado no Y, também varia o grau da força atenuadora de X.

Assim, por ter uma função mais interacional que referencial, o X pode ser entendido como marcador de atenuação, mas, por não revelar uma cabal fixidez formal e uma grande recorrência de uso é melhor designá-lo genericamente de "procedimento" de atenuação.

Levantadas as características gerais dessas construções, procuramos fazer uma pesquisa rápida em transcrições de vários textos (amostras do Projeto NURC/SP e cerca de dez entrevistas dos programas de TV "Jô Soares Onze e Meia" e "Marília Gabi Gabriela"), a fim de examinar ocorrências que permitissem a aplicação desse suporte teórico, bem como reflexões complementares.

O levantamento revelou muito poucas ocorrências, principalmente perfeitamente enquadráveis nas coordenadas arroladas. Parece que textos induzidos, como os do NURC e as entrevistas, embora possibilitem muitas estratégias de atenuação, não favorecem a ocorrência do tipo de construções que queríamos enfocar.

Mas as poucas ocorrências do tipo ou variantes dele ensejam, por ora, algumas observações significativas.

A primeira é que deve ficar claro que o "mas-prefácio" (na realidade: X + MAS prefácio) é apenas um dos vários procedimentos de atenuação possíveis e em abundância produzidos na língua falada.

A segunda observação é que a ordem X+MAS+Y pode estar invertida. Assim, em lugar de

(5) O seu trabalho está bom, mas há falhas metodológicas nele.

X Y

pode-se dizer, com efeito atenuador talvez de grau diferente (caberia analisar mais profundamente para chegar a uma conclusão a respeito):

(6) Há falhas metodológicas no seu trabalho, mas ele está bom.

Y X

ou:

(7) Inf. (...) agora é possível que haja outro termo específico mas isto já está:: ... confesso... fora... dos meus limitados conhecimentos na matéria (DID 250, p. 139. 1. 261-263)

A terceira observação é quanto ao "falso mas-prefácio atenuador", já lembrado. Pode o Y não ter vinculação com o X, conforme o exemplo (4); pode o X não conter conteúdo criticável ou de alguma forma ameaçador à face do ouvinte e/ou do falante.

(8) Inf. agora o::o:: eu não sei bem porque que chamavam colonos mas os empregados aqui em Campinas eles eram quase todos ... descendentes ... de colonos italianos ...(DID 18, p, 18, 1. 65-67)

Portanto, não há o que atenuar... salvo se Y contiver um auto elogio, que causa certo desconforto como em:

(9) L1 (...) e os processos também... que ele... recebe ou...

eu não sou leiga eu não entendo... mas... pelo que a gente... ouve falar são muito bem estudados... tem pareceres muito bem dados. (D2, p. 166, L 1184-87)

L1 está falando sobre seu marido como procurador do Estado. Elogiar o trabalho do marido naturalmente soa como auto elogio, o que caracteriza uma falta de modéstia, que ela procura atenuar, por antecipação com "eu sou leiga eu não entendo" e mesmo depois de proferido o "mas", com a estratégia de distanciamento "pelo que a gente... ouve falar".

Muitas outras observações poderiam ainda provocar o presente ensaio, mas o objetivo, neste curto espaço, é apenas chamar a atenção, juntamente com outros estudiosos sobre o "mas", para as virtualidades de uso dessa partícula, aqui apenas esboçadas. Trata-se de partícula que, combinada com outros recursos da língua e em contextos específicos, enseja originais estratégias retóricas e de estilo, sobretudo na língua falada. Só a título de ilustração relacionamos, extraída de um inquérito do Projeto NURC (DID 161), de 65 minutos, a recorrência de nove construções reveladoras, produzidas por um mesmo informante:

(10) (...) colocaram coisas que estavam fo::ras... mas completamente fora da da do TEMA. (p.39. 1. 46-47)

(11) de quem tivemos apoio? De ninguém... mas DE NINGUÉM MESMO...(p.41, 1. 120-121)

(12) (...) e assim mesmo foi MUITO pouco viu? mas muito pouco mesmo (p.41, 1. 127-128)

(13) (...) não tivemos nenhum PROblema mais sério ma::s aPOIO mesmo de ninguém (p.41, 1. 134-135)

(14) (...) é um erro muito grande... mas muito grande mesmo(p.44,280-281)

(15) olha... o:: paulista é frio é gelado... mas é gelado mesmo (p.48, 1. 439-440)

(16) (...) existem pouQUÍssimos... principalmente em São Paulo mas pouQUÍ::ssimos mesmo (p. 52, 1. 628-630)

(17) (...) é praticamente impossível... mas impossível mesmo (p.54, 1. 714-15)

(18) (...) ele é doente.. mas é doente MESmo (p.57, 1. 824-825)

A insistência de construções bastante semelhantes, respingadas de entonação intensiva, alongamentos e repetições, com "mas enfático", permite abrir caminho para hipóteses estilísticas desse falante, naturalmente sujeitas a análises mais profundas.

Finalmente cremos que uma variante do "mas prefácio atenuador" pode ocorrer em respostas do tipo "sim mas" ( e variantes como "ahn ahn mas", "uhm uhm mas", "é mas" etc.), ainda que com baixo grau de atenuação, não só pela formulaicidade do esquema, como também pela sua alta rotatividade de uso, o que esvazia a própria significação pragmática do "sim". Pensamos, sobretudo, nas respostas "sim mas..." em que o "sim"(ou sua variante) é produzido quase mecanicamente, dentro de uma estratégia de cortesia, preparando um reparo ou discordância, ainda que parcial, e, portanto, não significando total assentimento, como literalmente faria supor. Trata-se de um "sim" cortês, facilitador da interação, na medida em que prepara e atenua, por antecipação, uma resposta ou comentário possivelmente frustrante ou desagradável para o falante anterior. Por outro lado, facilita a entrada pacífica no turno:

(19)

L1 então você tem que abstrair desse aspecto porque você pode ter ambos os ca::sos... você tem que pegar na média esquecendo esse aspecto particular...

L2 é mas aí:: é o tal negócio eu não me preocupo muito com a média... (D2, p. 31, 1. 565-569)

L1 faz a seguinte colocação: "você tem que pegar a média esquecendo este aspecto particular", com a qual L2 não concorda, apesar de iniciar seu turno com "é", aparentemente concordância.

A fim de manter uma interação pacífica, ao invés de discordar prontamente L2 prefere utilizar um "é"(substituto do "sim", que formal e convencionalmente é uma palavra de concordância), que facilita polidamente a interação, na medida em que aparenta um alinhamento com o interlocutor. Por outro lado ameniza antecipadamente o "eu não me preocupo muito com a média...", enunciado que traduz opinião contrária à do seu interlocutor.

  • BAKER, C. (1995) This is a first approximation, but... Papers from the Eleventh Regional Meeting of the Chicago Linguistic Soc. 11: 37-47.
  • CASTILHO, A. T. e PRETI, D. (orgs.) (1987) A linguagem falada culta na cidade de Săo Paulo Vol. II - Diálogos entre dois informantes. Săo Paulo, T.A. Queiroz/ FAPESP.
  • PRETI, D. e URBANO, H. (orgs.) (1988) A linguagem falada culta na cidade de Săo Paulo Vol III - Entrevistas. Săo Paulo, R. A.. Queiroz/ FAPESP.
  • ROSA, M. (1992) Marcadores de atenuaçăo. Săo Paulo, Contexto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2001
  • Data do Fascículo
    1998
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