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Reflexões em torno de um conceito psicolingüístico de tipo de texto

Some reflections around a text type psycholinguistic concept

Resumos

O conceito de tipo de texto, após uma fase em que foi enfocado sob uma ótica cognitivista por van Dijk, com base na teoria dos esquemas cognitivos de Rumelhart, passou a ser objeto de estudo de outros pesquisadores (Adam, Swales) sob novas perspectivas. Estes estudos recentes revigoraram o debate, proporcionando material teórico para a rediscussão do conceito de tipo em termos psicolingüísticos. Utilizando uma metodologia de pesquisa bibliográfica, o presente artigo pretende, assim, retomar a discussão sobre a superestrutura textual.

Psicolingüística; Processamento do Discurso; Tipo de Texto; Superestrutura


The text type concept, after a phase in which it was focused on a cognitive view by van Dijk, based on the cognitive schemata theory of Rumelhart, became an object of study by other researchers (Adam, Swales) in new perspectives. These recent studies strengthened the debate, providing theoretical material for the re-discussion of the concept of type in psycholinguistic terms. Using a methodology of bibliographic research, the present article proposes to retake a discussion about textual superstructure.

Psycholinguistics; Discourse Processing; Text Type; Superstructure


Reflexões em Torno de um Conceito Psicolingüístico de Tipo de Texto*

(Some Reflections Around a Text Type Psycholinguistic Concept)

Adair BONINI1 1 Doutorando em Lingüística na Universidade Federal de Santa Catarina. (Universidade Federal de Santa Catarina)

ABSTRACT: The text type concept, after a phase in which it was focused on a cognitive view by van Dijk, based on the cognitive schemata theory of Rumelhart, became an object of study by other researchers (Adam, Swales) in new perspectives. These recent studies strengthened the debate, providing theoretical material for the re-discussion of the concept of type in psycholinguistic terms. Using a methodology of bibliographic research, the present article proposes to retake a discussion about textual superstructure.

RESUMO: O conceito de tipo de texto, após uma fase em que foi enfocado sob uma ótica cognitivista por van Dijk, com base na teoria dos esquemas cognitivos de Rumelhart, passou a ser objeto de estudo de outros pesquisadores (Adam, Swales) sob novas perspectivas. Estes estudos recentes revigoraram o debate, proporcionando material teórico para a rediscussão do conceito de tipo em termos psicolingüísticos. Utilizando uma metodologia de pesquisa bibliográfica, o presente artigo pretende, assim, retomar a discussão sobre a superestrutura textual.

KEY WORDS: Psycholinguistics; Discourse Processing; Text Type; Superstructure.

PALAVRAS-CHAVE: Psicolingüística; Processamento do Discurso; Tipo de Texto; Superestrutura.

0. Introdução

O tipo de texto em Psicolingüística tem sido denominado tradicionalmente esquema textual (Bartlett, 1954) e também superestrutura textual (van Dijk, 1977, 1978, 1990, 1992b). Assim concebido, o tipo corresponde a um esquema cognitivo que se compõe de partes características organizadas por uma sintaxe particular e está arquivado na memória de longo prazo do indivíduo para servir como recurso nas tarefas comunicativas nos sentidos de recepção e produção lingüística (input e output lingüísticos). O esquema cognitivo é, conforme Rumelhart e Orttony (1977) e Rumelhart (1980), uma estrutura conceitual abstrata arquivada na memória que representa um conceito genérico através de variáveis atualizáveis face a objetos, situações, eventos e seqüências de ações.

Até o trabalho de Bartlett, desenvolvido na década de 30 deste século, o tipo de texto não havia sido pensado como uma estrutura cognitiva. Na década de 70, vários autores abordaram o tema imprimindo-lhe uma perspectiva cognitivista. Entre eles, van Dijk que criou o conceito de superestrutura a partir da concepção de Bartlett, da descrição da narrativa de Labov (1979), de inspiração sociolingüística, e das teorias de processamento de informação (com trabalhos como os de Rumelhart).

Após este período, duas importantes abordagens tomaram a tipologia textual como objeto específico de estudo: a de Adam (1987, 1992), com a descrição de seqüências textuais, e a de Swales (1990, 1992), com a descrição de gêneros textuais. Esta última deu origem a um campo de estudos: a análise de gêneros.

Estas abordagens recentes deixaram quase que por completo a perspectiva cognitivista. Isto, no entanto, já começava a acontecer com os últimos trabalhos de van Dijk sobre o tema (1990, 1992), uma vez que se detinham sobre o texto noticioso mais para descrevê-lo que para entendê-lo como processo cognitivo.

Este afastamento do cognitivismo deve-se, provavelmente, ao fato de o tipo de texto (ou gênero textual) trazer impressa a marca do contexto social em que se formou, o que atrai o estudioso para uma perspectiva extramental. Por outro lado, a relação linguagem e sociedade é um tópico importante dos estudos lingüísticos, com uma exploração bastante fértil via estudo de gêneros textuais, o que as pesquisas em processamento da linguagem não podem ignorar.

O presente artigo pretende, dado o panorama acima exposto, retomar a reflexão sobre o tipo de texto como esquema cognitivo a partir dessa discussão recente sobre o assunto.

O objetivo do artigo, desta forma, é esboçar um conceito psicolingüístico de tipo de texto a partir da contraposição das teorias recentes sobre o tema, principalmente com relação à questão esquema cognitivo de texto versus processo social de convencionalização.

1. Abordagens teóricas da tipologia e o processo de composição tipológica

Minha reflexão parte do conceito de superestrutura de van Dijk, ou estrutura esquemática, um esquema cognitivo abstrato que marca a existência de determinado tipo de texto. Este esquema compõe-se, como já foi mencionado acima, de categorias vazias de caráter abstrato que são preenchidas por proposições para formar o texto. Estas categorias vazias são denominadas macrocategorias. Como elemento formal, auxiliam a distinção entre os vários textos de uma mesma classe.

O conceito surgiu em meio às pesquisas de van Dijk sobre a gramática narrativa no início da década de 70 (van Dijk, 1977). A primeira superestrutura, portanto, se propunha ser o esquema da narrativa e apresentava uma configuração em diagrama arbóreo com três macrocategorias fundamentais - a situação, a complicação e a resolução - e duas opcionais - a avaliação e a moral (v. fig. 1).


Após este momento inicial de construção do conceito, van Dijk iniciou um trabalho de descrição do texto noticioso (v. fig. 2), o que o conduziu a uma série de pesquisas em análise do discurso, com especial atenção para o racismo (van Dijk, 1991, 1992a), e, conseqüentemente, a abandonar a reflexão sobre tipologia textual.


Seu conceito de superestrutura, desse modo, como o próprio autor afirma (van Dijk, 1990, p. 78), ficou incompleto. Quando formulou a superestrutura da notícia, van Dijk seguiu o mesmo padrão do esquema da narrativa. Entre ambos, contudo, há uma diferença de ordem conceitual: o primeiro sendo um esquema relativo ao gênero notícia e o segundo sendo um esquema relativo à seqüência textual narrativa. A ausência desta distinção é que permitiu o surgimento de um trabalho como o de Rodrigues (1991), afirmando que o esquema de notícia é, na verdade, a atualização do esquema narrativo. Este esquema, no entanto, como aponta a discussão recente em tipologia, não é exatamente relativo a um tipo, mas um esquema básico que serve para a formulação de uma série de tipos (ou gêneros). Falta ao conceito de superestrutura, na atualidade, em face desta discussão, levar em consideração esta distinção.

A pesquisa em tipologia de textos apresenta hoje, entre outras, duas abordagens principais: uma que estuda o texto a partir de um conjunto de unidades típicas básicas que se agrupam de forma heterogênea para formar gêneros (de Adam e seus seguidores) e outra que vê o texto como um produto final formado dentro de determinada comunidade discursiva, cumprindo propósitos comunicativos convencionais desta comunidade e apresentando determinada configuração típica (de Swales e seus seguidores).

A proposta de van Dijk que, até o surgimento destas últimas, era bastante utilizada na pesquisa de gênero textual, embora apresente todo um aparato teórico do cognitivismo, pode ser enquadrada dentro desta última, uma vez que chega a um produto bastante parecido, em se tratando de tipologia.

Para efeitos de exposição, vou denominar estas duas abordagens de micro e macropragmáticas. A primeira, por estudar o tipo a partir de sua funcionalidade dentro de um dado contexto verbal (no seu cotexto). A segunda, por estudar o tipo a partir de seu funcionamento dentro de um dado contexto social.

A proposta de Adam parte da idéia de que o texto é formado de proposições que, em seu conjunto, recebem uma forma mais ou menos característica a partir de um processo de fixação sócio-histórico. Este processo de formação de um tipo apresentaria duas dimensões: a configuracional e a seqüencial (figura 3). A primeira diz respeito a uma série de pressupostos semântico-pragmáticos que caracterizam o ambiente imediato em que dada seqüência textual funciona e que exercem determinada força de configuração sobre esta seqüência. A segunda dimensão diz respeito ao modo de organização do texto propriamente dito em seqüências de proposições típicas.


A seqüência textual, na dimensão seqüencial, é um grupo de proposições textuais que assumiu determinada(s) característica(s) típica(s) e um esquema característico, o que permite o seu reconhecimento em vários gêneros de discurso (vistos por Swales como gêneros textuais). Adam a toma como ponto central para a operacionalização de todo este quadro conceitual, classificando-a, em seu trabalho de 1990, em cinco tipos: narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal.

A abordagem micropagmática de Adam, sem entrar no mérito de seus pontos questionáveis, apresenta a virtude de pôr em destaque e clarear bastante o processo de composição tipológica. Um tipo de texto (gênero textual, ou gênero do discurso) é constituído de outros tipos de uma natureza mais específica. Este processo de constituição do tipo já foi pensado de forma bastante aproximada por Longacre (apud Bernardez, 1983) em trabalhos seus da década de 70. Meurer (1997), a partir de Longacre, caracteriza estes esquemas específicos como modalidades retóricas ou discursivas e afirma serem "(...) as estruturas e as funções textuais tradicionalmente reconhecidas como narrativas, descritivas, argumentativas, procedimentais, e exortativas".

A abordagem macropragmática de Swales, por outro lado, tem sua base no cruzamento de conteúdos de várias disciplinas, mas principalmente da etnografia da fala e da análise do discurso anglo-saxã. Parte de dois conceitos chave: comunidade discursiva e gênero textual. Muito embora inseparáveis, o segundo é o mais importante já que o centro da reflexão é a linguagem em sua relação com as estruturas sociais.

O primeiro destes conceitos, conforme última formulação de Swales (1992), estabelece categorias genéricas através das quais se pode detectar um conjunto de indivíduos como portadores de determinados hábitos comunicativos e conhecimentos lingüísticos comuns, cuja comunicação se realiza mediante a utilização de gêneros textuais convencionados. Uma comunidade discursiva tem, desse modo: 1) um conjunto de objetivos detectáveis; 2) mecanismos de intercomunicação entre seus membros; 3) um conjunto de propósitos que move os mecanismos participatórios; 4) uma utilização seletiva e evoluinte desses mecanismos; 5) um léxico específico em desenvolvimento e 6) uma estrutura hierárquica explícita ou implícita que controla o processo de entrada na comunidade e a ascensão dentro dela.

O conceito de gênero textual (Swales, 1990), por sua vez, diz respeito à forma e ao conteúdo característicos de um texto, aos propósitos comunicativos que encerra e ao seu percurso social. Apresenta cinco características, quais sejam: 1) representar eventos comunicativos; 2) servir a certo conjunto de propósitos comunicativos compartilhados; 3) apresentar variação de prototipicidade entre seus exemplares; 4) ter seu conteúdo, posicionamento e forma limitados por conhecimentos e convenções relativos à totalidade de seus elementos; 5) apresentar um nome específico dentro da comunidade discursiva.

O gênero textual descrito dentro desta proposta apresenta, assim, uma configuração processual, refletindo o processo social envolvido na comunicação que encerra. Swales (1990) apresenta a descrição da introdução de artigos científicos (v. fig. 4). Neste esquema, que chama de modelo CARS (creating a research space, ou criação de um espaço de pesquisa), ele apresenta um quadro de categorias possíveis de aparecer nesta parte do artigo acadêmico. As categorias fundamentais, denominadas moves (movimentos), mais genéricas, são preenchidas por subcategorias, às vezes, optativas entre si, denominadas steps (passos).


Swales não se remete ao processo de constituição do gênero a partir de outros esquemas. O trabalho de Meurer (1997), dentro desta perspectiva, no entanto, assume a existência deste processo, mesmo que não o veja como um encaixe de esquemas, mas como modalidades retóricas ou discursivas que agem nos gêneros.

2. O papel do discurso na concepção de tipo

Durante muito tempo o tipo de texto foi visto através de uma análise imanente ao sistema da língua, o que não permitia observar sua variação e sua função de elemento estruturador de dado contexto social de interação. Atualmente, os trabalhos mais influentes nesta discussão têm levado em conta o processo social em que os tipos emergem. Os modos de ver este processo social, entretanto, passam pelas concepções de discurso que os embasam.

O trabalho de Adam se funda na tradição francesa de análise do discurso, em sua corrente principal. Discurso é, neste sentido, o espaço onde emergem as significações, ou os efeitos de sentido. Fundamenta-se especialmente na posição de Maingueneau (1989) de discurso como os efeitos de sentidos que se fazem em determinado texto enunciado, em decorrência de sua ligação com um interdiscurso que se mostra como uma mescla de agrupamentos de sentido fundados em condições materiais de produção (sócio-históricas), as formações discursivas.

Nesta visão de Maingueneau, o sentido apresenta uma constituição heterogênea que se mostra em determinados mecanismos lingüísticos da enunciação.

O gênero para Adam, dentro desta concepção, é essencialmente heterogêneo devido à sua conformação sócio-histórica e pragmática. O sujeito pode ter acesso consciente a uma pequena parte destes conteúdos, às seqüências textuais, mesmo assim de forma pouco precisa, devido às possibilidades ilimitadas de combinação através dos gêneros do discurso.

Swales embasa seu trabalho na tradição anglo-saxã de análise do discurso, mas principalmente na visão dos etnometodologistas. Vê o discurso como estruturação de ato comunicativo a partir dos rituais de interação próprios de dado contexto social.

Essa era também a concepção de van Dijk (1990, 1992b) em seus trabalhos com a notícia, muito embora, por um prisma cognitivista. Seus trabalhos posteriores em análise do discurso desenvolveram mais esta noção de discurso como ato comunicativo, relacionando-o a conteúdos da memória como ideologias e crenças. Estes conteúdos são vistos como representações esquemáticas (Rumelhart e Orttony, 1977; Rumelhart 1980) instanciáveis no ato comunicativo em dado contexto social.

Para explicar o racismo (van Dijk, 1991), por exemplo, o autor utilizava um esquema em forma de matriz (v. fig. 5) que apresenta uma oposição entre instâncias da interação e da cognição e uma gradação dos processos dentro destas instâncias (micro e macro).


Para pensar um conceito psicolingüístico de tipo de texto, nenhuma destas três visões de discurso pode ser aproveitada no seu todo. A visão de Adam, com conceitos complexos e pouco delimitáveis, como o de interdiscurso, dificulta a aplicação de um suporte teórico de processamento cognitivo.

A visão de discurso aplicada ao trabalho de Swales, embora mais assimilável para um conceito psicolingüístico de texto, não dá conta de questões como crença e ideologia em termos da ação individual.

A visão de van Dijk, em que o discurso corresponde à enunciação sustentada pelos esquemas cognitivos próprios do indivíduo e por aqueles compartilhados com o grupo, parece ser a mais indicada nesta reflexão sobre gênero como cognição, mas exigindo um redirecionamento do foco de observação. A teoria dos esquemas é muito rígida para dar conta dos processos sociais relacionados ao texto, principalmente por ignorar a subjetividade individual, já que tende sempre à generalização dos conteúdos. Merece maiores pesquisas.

A interação social via discurso (uso da língua) precisa ser mais estudada em cognição. Ou seja, parece ser necessário detectar-se quais tipos de esquema marcam um quadro social de interação em dada comunidade discursiva e como estes esquemas estão organizados e para assessorar os processamentos de compreensão e produção de enunciados, passando-se aí pela avaliação do grau de convencionalização destes esquemas, o que envolve um trabalho de análise das perspectivas individuais. Neste ponto, uma visão de discurso a partir da cognição passa, necessariamente, a envolver os gêneros textuais.

3. O dialogismo de Bakhtin e os gêneros textuais

Bakhtin (1992) funda a sua reflexão sobre a linguagem em uma noção complexa de diálogo. Para ele tudo o que diz respeito à língua deve ser pensado a partir de um princípio dialógico. Ou seja, toda e qualquer estrutura lingüística existe em função da interlocução que se estabelece entre dois ou mais interlocutores. O diálogo ocorre, assim, em todos os sentidos, seja nas trocas entre interlocutores, seja no interior do próprio enunciado com todos os enunciados já proferidos.

A noção de enunciado é, portanto, de fundamental importância nesta concepção. Como unidade fundamental da língua, segundo Bakhtin, é um ato comunicativo delimitado pela alternância entre comunicadores ou, nas palavras do autor:

"(...) não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um modo "dixi" percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou." (1992, p. 294)

A esta noção de enunciado estão contrapostas todas as propriedades formais da língua, que, para o estudioso russo, só fazem sentido no interior do enunciado. O autor também revê a divisão clássica entre emissor e receptor, na medida em que, durante o ato lingüístico, ambos os papéis estão contidos no mesmo indivíduo. No caso do receptor, por exemplo, ao compreender um enunciado, o faz de forma responsiva, com o objetivo de produzir uma resposta, a qual, sabe, será compreendida pelo seu interlocutor do mesmo modo.

Os gêneros textuais são, nestes termos, não formas da língua, mas do enunciado. São estruturas mais ou menos estáveis que caracterizam o enunciado e que, mesmo não sendo unidades lingüísticas, também são regidas por leis normativas, mas subjugadas à totalidade do ato comunicativo. Distinguem-se das formas da língua, assim, por serem estes, no geral, formas "mais maleáveis, mais plásticas e mais livres (p. 302)". Parece fundamental a uma teoria do processamento caracterizar esta diferença.

O autor estabelece uma distinção entre gêneros do discurso primário e gêneros do discurso secundário. Os gêneros primários moldam os enunciados mais característicos da comunicação humana. São naturais de um quadro de interação falada face-a-face, concebidos por Bakhtin como formas simples. Os gêneros secundários são enunciados em que a interação apresenta-se mais complexa que a conversação convencional. Neles, a estrutura dialógica primária é marcada por barreiras peculiares ao novo padrão interação. É o caso, por exemplo, de uma palestra, em que um locutor apresenta o enunciado complexo em bloco para a posteriori obter respostas que também passam a ser complexas. Os gêneros secundários, assim, por serem uma evolução da situação conversacional natural, podem assumir em seu interior, formas características dos gêneros primários.

Adam, ao levar em conta estas reflexões, o faz de modo viesado. Interpreta a expressão "tipos relativamente estáveis de enunciados" como gêneros primários, quando Bakhtin a utiliza para qualquer tipo de gênero. Esta interpretação dá margem para que Adam veja os gêneros primários como seqüências textuais. O autor apóia-se, para tanto, também na afirmação de Bakhtin de que os gêneros primários são assimilados pelos gêneros secundários. A proposta de seqüências, no entanto, não preenche os requisitos para ser um enunciado, não sendo, portanto, um gênero primário.

Dentro do quadro conceitual de Bakhtin, a seqüência não seria um gênero, porque não se faz como unidade dialogal dentro de um esquema de pergunta e resposta. Embora bastante produtiva dentro da reflexão sobre tipologia, a seqüência necessita de outro modo de explicação teórica.

A concepção de seqüência dialogal de Adam também se torna incoerente se pensarmos que para Bakhtin o diálogo é um gênero primário. A junção dos conceitos de gênero e de seqüência implica no estabelecimento de estatutos de gênero dialogal e de seqüência dialogal para o que Adam concebe apenas como seqüência.

Esta noção de gênero de Bakhtin me parece a mais completa, pois parte sempre da situação comunicativa. Está muito próxima das posições de van Dijk e Swales, muito embora este último também recuse o diálogo como um gênero. Swales concebe o gênero à maneira dos gêneros secundários de Bakhtin (particularmente dos gêneros escritos). De qualquer forma, para Bakhtin e Swales (posso inferir) o ato comunicativo tem base no gênero e não na seqüência, como quer Adam.

Tendo discutido estes trabalhos, chegamos, assim, a um esboço dos conteúdos que um conceito psicolingüístico de tipo de texto deva levar em conta: a idéia de gênero como a forma característica de dado texto dentro de uma situação de interação dialógica, o que envolve também todos os elementos sociais dos interlocutores e da situação em que dado gênero é utilizado e os processos de composição tipológica (junção de seqüências textuais ou uso de modalidades retóricas/discursivas). A superestrutura passa a ser o esquema cognitivo do gênero, comportando esquemas básicos encaixados correspondentes às seqüências textuais.

4. Refinando a idéia de seqüência

Dado o exposto até agora, pode-se presumir que o esquema narrativo de van Dijk (1978) não é uma superestrutura, mas um esquema textual básico para a formação de algumas superestruturas. Uma superestrutura de notícia, por exemplo, tem como um de seus componentes a seqüência narrativa, diferentemente do que propôs Rodrigues (1991) ao afirmar que este tipo de texto é uma atualização do esquema narrativo.

A seqüência textual, como esquema que constitui gêneros, parece bastante válida. Merece, contudo, ser revista em pelo menos um aspecto. Adam a concebe como determinada sócio-historicamente, à mesma maneira dos gêneros do discurso.

A questão é que estruturas como a narração e a argumentação são conhecidas há pelo menos 2.000 anos, sofrendo pequenas alterações em todo esse tempo. O que Adam tomou de Bakhtin como "relativa estabilidade" me parece ter outra razão que não seja só o grau de convencionalidade dentro do espaço social.

A esse respeito Brewer (1980) traz uma posição interessante. Desenvolve uma tipologia (v. fig. 6) a partir do cruzamento de dois conceitos: discurso (estrutura fundamental) e força discursiva. O discurso como estrutura fundamental é visto, à maneira da seqüência, como unidade de composição do tipo de texto, mas é pensado também a partir de categorias psicológicas anteriores ao texto (como espaço, eventos no tempo e lógica). A força discursiva, por sua vez, equivale à função social de determinados gêneros, que surgem do cruzamento de ambos os conceitos.


Esta classificação é bastante problemática, mas a idéia de uma razão anterior ao próprio processo de convencionalização das seqüências me parece frutífera, pois estas teriam, assim, motivos para variarem menos em meio ao fluxo da história e às mudanças sociais. A narrativa, vista em seu esquema fundamental4 1 Doutorando em Lingüística na Universidade Federal de Santa Catarina. (situação, complicação, resolução), por exemplo, espelha a ordem dos fatos no mundo assegurada pela existência do tempo convencional como uma das bases da realidade. À medida em que as convenções de tempo não se alteraram substancialmente nos últimos 2.000 anos, o esquema narrativo fundamental também não se alterou, sendo dado, por estudos transculturais, como um esquema universal.

O esquema argumental, neste sentido, também não varia em seu núcleo por espelhar estruturas psicológicas características da personalidade humana, como as necessidades de convencer o outro e de proteger a auto-estima.

Nestes termos, em contraposição a este e outros aspectos da seqüência, passo a chamar, para fins de um possível conceito psicolingüístico de tipo de texto, de intra-estrutura textual este esquema de base da superestrutura textual, que não deve ser confundido com as macrocategorias, as categorias vazias que compõem e caracterizam, tanto a superestrutura, quanto a intra-estrutura. Em alguns casos, no entanto, pode haver sobreposição, como na superestrutura da notícia, em que a "intra-estrutura narrativa" coincide, por exemplo, com a macrocategoria "evento principal".

5. Um conceito psicolingüístico de tipo de texto

Um conceito psicolingüístico de tipo de texto, como visto em vários modelos teóricos, deve servir como instrumento aos modelos de processamento de recepção e produção do texto oral e escrito. Como os estudos que têm base somente nos modelos de processamento não têm contribuído para avançar a discussão e dar conta dos debates ocorridos fora do cognitivismo, a retomada da teoria dos esquemas parece ser uma alternativa produtiva. O tipo de texto, neste sentido, deve ser estudado como uma forma de conhecimento, conforme os modelos de memória semântica.

O conceito de superestrutura continua sendo bastante atraente para se pensar o gênero textual sob uma visão cognitivista. A superestrutura, conforme o exposto acima, passa a ser o conceito que caracteriza os esquemas do texto como visto pelos falantes em determinado grupo social (comunidade discursiva).

A notícia (v. texto em anexo anexo ), nestes termos, é uma superestrutura utilizada no meio jornalístico, tendo como comunidade discursiva o corpo de jornalistas (acadêmicos e profissionais), os leitores e os anunciantes do jornal. A regulação do gênero depende das estratégias profissionais dos jornalistas e das cobranças de leitores e anunciantes.

A superestrutura é formada por macrocategorias, a exemplo da notícia na figura 2. Estas são as partes convencionais componentes do texto que devem ser melhor estudadas para se saber até que ponto apresentam realidade psicológica aos usuários da comunidade discursiva.

Dentro da superestrutura estão esquemas encaixados, as intra-estruturas, que podem coincidir ou não com as macrocategorias (v. fig. 7). No caso da notícia (v. texto em anexo anexo ), existem, basicamente, dentro da tradição da escola americana de jornalismo, duas intra-estruturas: a expositiva (ou explicativa), dando base, no geral, à maioria das macrocategorias deste gênero, e a narrativa, dando base a macrocategorias como o evento principal, a história do local em que o evento ocorreu e os eventos anteriores ao próprio evento. Acessoriamente pode haver o encaixe da intra-estrutura argumentativa, relacionando-se às macrocategorias expectativa e avaliação.


A intra-estrutura expositiva é preponderante na superestrutura do texto noticioso, dando-lhe o tom a todas as macrocategorias, e a mais importante em seu aspecto funcional. No geral, mesmo as partes do texto que detêm base narrativa, ganham um aspecto expositivo (v. texto em anexo anexo ). O fato de o gênero notícia estar relacionado estreitamente a acontecimentos no mundo pode, no entanto, direcionar o seu processamento a uma forma preponderantemente narrativa. Este, inclusive, é apontado como um dos resultados das pesquisas com evocação desenvolvidas por van Dijk (1990, p. 239). Para o autor: "Existe certa tendência a se organizarem os acontecimentos principais em um esquema narrativo durante o resgate (e, em conseqüência, durante a representação)".

Somado a estes elementos, o tipo completa-se por certas características ditadas pelo meio em que está inserido. Uma notícia, por exemplo, no meio jornalístico, deve ter um caráter de objetividade.

No todo, estes esquemas encaixados podem ser flexibilizados com pesquisas que levem em conta como os falantes os concebem, não no seu todo como uma moldura estática, mas, possivelmente, com graus diferentes de convencionalidade para cada macrocategoria. Cada superestrutura provavelmente terá uma distribuição diferente destes pesos de acordo com o meio social que lhe dá origem, os conhecimentos do sujeito a respeito dela, os dados do contexto imediato de produção e os dados do cotexto lingüístico onde as intra-estruturas se coordenarão.

6. Considerações finais

A reflexão sobre o conceito de superestrutura, após os trabalhos de van Dijk com o texto noticioso, tomou um rumo que levava muito pouco em conta o aspecto cognitivista. Em face das discussões com base em outros enfoques de estudo, o conceito tornou-se obsoleto para explicar o processamento do texto, principalmente em face do contexto social de uso.

As reflexões aqui traçadas, partindo da discussão recente sobre o tema, apontam para o encaixe de esquemas de base na superestrutura, que eu denomino intra-estruturas textuais, equivalentes aos conhecidos tipos narrativo, descritivo, argumentativo e outros que Adam denomina seqüências textuais.

Pesquisas experimentais podem ser desenvolvidas a partir desta reformulação, fazendo com que a Psicolingüística trabalhe mais outros conteúdos que não sejam aqueles do núcleo duro da Lingüística.

(Recebido em janeiro de 1998. Aceito em março de 1998)

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ANEXO

Notações referentes ao texto abaixo:

Intra-estrutura narrativa

Intra-estrutura expositiva

Macrocategorias da notícia:

4 A denominação "esquema fundamental" vem em oposição aos "esquemas específicos" de narrativas que aquivalem a gêneros, como a fábula, a crônica, a piada.

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anexo

  • 1
    Doutorando em Lingüística na Universidade Federal de Santa Catarina.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2000
    • Data do Fascículo
      1999

    Histórico

    • Recebido
      Jan 1998
    • Aceito
      Mar 1998
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