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Reavaliando o estatuto silábico das seqüências obstruinte+lateral em português europeu

Reevaluating the syllabic status of obstruent+lateral clusters in European Portuguese

Resumos

Segundo as descrições fonológicas e as normas ortográficas do português, todas as sequências Obstruinte+Líquida constituiriam, nesta língua, sequências tautossilábicas (Ataques ramificados), sendo heterossilábicas todas as restantes sequências C1C2. Porém, aplicando às sequências Obstruinte+Lateral alguns dos critérios que levam à classificação à parte das sequências heterossilábicas - origem histórica e certas manifestações externas do conhecimento fonológico (CF) dos falantes -, verificamos que as sequências Obstruinte+Lateral se comportam frequentemente como as sequências heterossilábicas, sobretudo quando, no tocante às manifestações do CF, se olha a dados obtidos com sujeitos sem conhecimento ortográfico. Esta verificação leva-nos a caracterizar as sequências Obstruinte+Lateral do português europeu como genuinamente heterossilábicas e, paralelamente, a aceitar a interferência do conhecimento ortográfico sobre o conhecimento fonológico dos falantes.

Fonologia do Português; Estruturas Silábicas; Ataques Ramificados; Grupos Consonânticos; Conhecimento Ortográfico


According to the phonological descriptions and the orthographic rules of Portuguese, all Portuguese Obstruent+Liquid clusters are licensed as branching onsets, whilst all the other C1C2 strings are classified as heterosyllabic. Nevertheless, if Obstruent+Lateral clusters are subject to the criteria that keep the heterosyllabic clusters apart - such as their historical origin and certain externally observable aspects of the speakers' phonological knowledge - it becomes apparent that the Obstruent+Lateral clusters share some common features with the heterosyllabic clusters, namely when data from subjects without orthographic knowledge are taken into account. Therefore, we propose that European Portuguese Obstruent+Lateral clusters should be classified as genuinely heterosyllabic. In addition, we accept the influence of orthographic knowledge on the subjects' phonological knowledge.

Portuguese Phonology; Syllabic Structures; Branching Onsets; Consonant Clusters; Orthographic Knowledge


ARTIGOS

Reavaliando o estatuto silábico das seqüências obstruinte+lateral em português europeu

Reevaluating the syllabic status of obstruent+lateral clusters in European Portuguese

João Veloso

Faculdade de Letras da Universidade do Porto; Centro de Linguística da Universidade do Porto; Portugal

RESUMO

Segundo as descrições fonológicas e as normas ortográficas do português, todas as sequências Obstruinte+Líquida constituiriam, nesta língua, sequências tautossilábicas (Ataques ramificados), sendo heterossilábicas todas as restantes sequências C1C2. Porém, aplicando às sequências Obstruinte+Lateral alguns dos critérios que levam à classificação à parte das sequências heterossilábicas – origem histórica e certas manifestações externas do conhecimento fonológico (CF) dos falantes –, verificamos que as sequências Obstruinte+Lateral se comportam frequentemente como as sequências heterossilábicas, sobretudo quando, no tocante às manifestações do CF, se olha a dados obtidos com sujeitos sem conhecimento ortográfico. Esta verificação leva-nos a caracterizar as sequências Obstruinte+Lateral do português europeu como genuinamente heterossilábicas e, paralelamente, a aceitar a interferência do conhecimento ortográfico sobre o conhecimento fonológico dos falantes.

Palavras-chave: Fonologia do Português; Estruturas Silábicas; Ataques Ramificados; Grupos Consonânticos; Conhecimento Ortográfico/Conhecimento Fonológico.

ABSTRACT

According to the phonological descriptions and the orthographic rules of Portuguese, all Portuguese Obstruent+Liquid clusters are licensed as branching onsets, whilst all the other C1C2 strings are classified as heterosyllabic. Nevertheless, if Obstruent+Lateral clusters are subject to the criteria that keep the heterosyllabic clusters apart – such as their historical origin and certain externally observable aspects of the speakers' phonological knowledge – it becomes apparent that the Obstruent+Lateral clusters share some common features with the heterosyllabic clusters, namely when data from subjects without orthographic knowledge are taken into account. Therefore, we propose that European Portuguese Obstruent+Lateral clusters should be classified as genuinely heterosyllabic. In addition, we accept the influence of orthographic knowledge on the subjects' phonological knowledge.

Key-words: Portuguese Phonology; Syllabic Structures; Branching Onsets; Consonant Clusters; Orthographic Knowledge/Phonological Knowledge.

0. Introdução

Neste artigo, propomo-nos discutir um aspecto muito particular da fonologia do português: a divisão silábica das sequências Obstruinte+ Lateral, tradicionalmente consideradas como tautossilábicas mas que, em nosso entender, são porventura representadas no conhecimento fonológico de um número substancial de falantes nativos do português europeu (PE) como heterossilábicas.

Tentaremos enquadrar a discussão deste aspecto particular num quadro mais amplo. Assim, deter-nos-emos, introdutoriamente, em aspectos muito gerais da questão da divisão silábica das sequências C1C2 nas várias línguas do mundo para depois nos ocuparmos da mesma questão no plano específico do português.

Com base nessa reunião prévia de argumentos, desenvolveremos, nas secções 4 e 5 do texto, a discussão do problema central do estudo.

1. Aspectos gerais da divisão silábica das sequências C1C2 nas línguas do mundo

A colocação de fronteiras silábicas precisas no interior das palavras não apresenta resultados coincidentes entre todos os falantes da língua, o que nos confronta com um certo número de problemas amplamente debatidos quer no âmbito das pesquisas psicolinguísticas (cf.: Cutler, Mehler, Norris e Segui 1986:387 e ss.; Morais, Kolinsky, Cluytens e Pasdeloup 1993:63-64; Schiller 1998:484-485; Costa, Aparici e Sebastian-Gallés 1999:129; Jusczyk, Goodman e Baumann 1999:62-63; Content, Kearns e Frauenfelder 2001:178), quer no domínio da própria fonologia (cf.: Hogg e McCully 1987:51; Blevins 1995:222, 223, 230 e ss)1 1 Estas divergências quanto à colocação de fronteiras silábicas precisas no interior das palavras contrastam com a natureza fortemente intuitiva da sílaba enquanto unidade linguística, demonstrada pela facilidade com que todos os falantes, desde fases muito precoces do seu desenvolvimento linguístico e independentemente de qualquer aprendizagem ou treino formal, se mostram capazes de efectuar operações metafonológicas explícitas que tomem a sílaba por unidade (Liberman, Shankweiler, Fischer e Carter 1974; Brédart e Rondal 1982:65; Morais, Content, Cary, Mehler e Segui 1989; Gombert 1990:34-35, 46-48; Morais 1991:6; Spencer 1996:38; Vihman 1996:177 e ss.; Barroso 1999:154; Vale e Cary 1999:377; Martins 2000:79-80; Freitas e Santos 2001:57, 70, 72, 79 e ss.). .

A divisão silábica das sequências de duas (C1C2), três (C1C2C3) ou mesmo mais consoantes na maioria das línguas do mundo constitui uma das arenas em que esse debate se torna mais agudo, conforme reconhecido, p. ex., por Blevins (1995:230 e ss.) e como decorre ainda das seguintes citações:

"A sílaba tem, portanto, um núcleo, um pólo de atracção, é a sua vogal, por vezes uma combinação de vogais. As consoantes rodeiam este núcleo, e a dificuldade pode surgir do facto de estas consoantes poderem ser duas, três, e por vezes interrogamo-nos a que sílaba pertence esta ou aquela consoante. (...)" (Morais 1994:138)

"Todavia, (...) [à] evidência intuitiva da sílaba opõe-se (...) a dificuldade de delimitar/estabelecer, com rigor e exactidão, as suas fronteiras. E isto acontece, particularmente, quando se está na presença dos chamados grupos (e/ou encontros) consonânticos, sobretudo no interior de unidade acentual. Em alguns destes casos, não há certezas quanto à sua interpretação ou como coda da sílaba anterior, ou como ataque da seguinte, ou como uma e outro ao mesmo tempo (uns segmentos constituindo uma, outros segmentos formando outro)." (Barroso 1999:156-157)

Restringindo-nos, de momento, às sequências C1C2 em português (com vogais adjacentes à esquerda e à direita), a principal questão que emana relativamente ao seu estatuto silábico prender-se-á, então, com o conflito entre a partição das duas consoantes por duas sílabas (divisão heterossilábica, nomeadamente através da associação de C1 à Coda de uma primeira sílaba e de C2 ao Ataque de uma segunda: (x)V1C1.C2V2 (y)) e a associação de ambas as consoantes a uma mesma sílaba, formando assim um verdadeiro cluster ou Ataque ramificado (divisão tautossilábica: (x)V1.C1C2V2(y)) (cf., p. ex.: Vigário e Falé 1994:475), constituindo este o tópico central do ponto seguinte do presente texto2 2 Sendo o português uma língua cuja fonologia não admite, em princípio, Coda ramificada (cf.: Mateus e E. d'Andrade 2000:53), não é aqui encarada a hipótese da silabificação (teoricamente possível) (x)V 1C 1C 2.V 2 (y), a qual, de resto, se mostraria incompatível com o algoritmo de silabificação do português proposto por Mateus e E. d'Andrade (2000:60-64). .

2. Estatutos silábicos das sequências C1C2 em português: breve resenha

Ao nível da cadeia segmental linear, podemos encontrar em português europeu as seguintes combinações de C1C2:

(i)

Sequências Obstruinte /ò/+Obstruinte em posição medial. Exos: "mosca", "festa";

(ii)

Sequências Líquida+Obstruinte em posição medial. Exos: "falta", "marca", "marcha";

(iii)

Sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte (em posição medial ou inicial). Exos: "czar", "afta";

(iv)

Sequências Obstruinte diferente de /ò/+Nasal (em posição medial ou inicial). Exos: "pneu", "magma", "agnóstico", "tmese";

(v)

Sequências Obstruinte diferente de /ò/+Líquida (em posição medial ou inicial). Exos: "flor", "fruta", "aclamar", "grito", "refresco".

De todas estas sequências, só as sequências indicadas em (v) (sequências Obstruinte diferente de /ò/+Líquida, em posição medial ou inicial) são aceites pelas descrições fonológicas da língua como grupos tautossilábicos (Barbosa 1965:180-181, 211-212; 1994:149; Câmara 1971:27; Mateus e E. d'Andrade 2000:40-41; Mateus, Brito, Duarte e Faria 2003:1039-1040).

As restantes são consideradas pelos estudos fonológicos como sequências heterossilábicas. Encontram-se, portanto, impedidas de ocorrer dentro da mesma sílaba (como tal, pertencem necessariamente a constituintes silábicos diferentes), sendo objecto, resumidamente, das seguintes interpretações:

(i') e (ii'). Sequências Obstruinte /ò/+Obstruinte em posição medial e sequências Líquida+Obstruinte em posição medial. Sendo /ò/, /l/ e // as únicas consoantes que a fonologia do PE3 3 Neste momento específico, referimo-nos exclusivamente ao português europeu (PE): na maior parte das variedades brasileiras da língua, o material segmental admitido em Coda silábica diverge, pelo menos no nível fonético, das possibilidades admitidas pelo PE (cf., p. ex.: Mateus e E. d'Andrade 2000:12-13; Netto 2001:158-163). Refira-se ainda que, em português europeu, /ò/ em Coda se realiza foneticamente como [ò] ou como [ ] de acordo com o contexto fonético, sendo esta uma razão para Mateus (1975:32-35) e Mateus e E. d'Andrade (2000:13) conceberem estas realizações fonéticas como as manifestações de superfície de um "segmento não inteiramente especificado" (Mateus 1975:33), responsável, em função do contexto, pela neutralização da oposição fonológica /ò/¹/ /. Tal segmento não-especificado é apresentado como um /S/ subjacente em Mateus (1975:33) e como um /s/ subjacente em Mateus e E. d'Andrade (2000:13). admite segmentalmente na posição de Coda silábica, as sequências C1C2 formadas por uma dessas consoantes (em C1) seguida de obstruinte (em C2) são consideradas pela generalidade das descrições fonológicas da língua como heterossilábicas, cabendo a C1 o preenchimento da Coda ((x)C1]Coda.C2 ]Ataque(y); cf. as Convenções de Associação de Ataques e de Associação de Codas do algoritmo de silabificação de Mateus e E. d'Andrade 2000:60-64). Além de respeitar as restrições de ocorrência de consoantes em Coda vigentes em português, esta divisão silábica, nas sequências de que aqui nos ocupamos, assegura ainda o respeito de princípios silábicos básicos4 4 Versões portuguesas dos princípios silábicos referidos no texto podem ser encontradas em Veloso (2003:97-102). como o Princípio da Sonoridade (PS; Selkirk 1984:116) e a Condição de Dissemelhança (CD; Selkirk 1984:117; Goldsmith 1990:111; Parker 2002:13 e ss.)5 5 Pelo contrário, a aceitação destas sequências como tautossilábicas violaria estes mesmos princípios. .

(iii') e (iv'). Sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte (em posição medial ou inicial) e sequências Obstruinte diferente de /ò/+Nasal (em posição medial ou inicial). Ao contrário do que se verifica com as sequências de (i) e (ii) (vd. (i') e (ii')), a colocação da primeira consoante destas sequências em Coda violaria as restrições de ocorrência segmental de consoante diferente de /ò/, /l/ e // em Coda vigentes no PE. Por outro lado, a associação das duas consoantes destas sequências a um mesmo Ataque silábico (divisão tautossilábica) violaria o PS e/ou a CD. Por esta razão, autores como Câmara (1970:56-58; 1971:27 e ss.) e Mateus e E. d'Andrade (1998:16, 17-18; 2000:44) consideram a existência de também uma fronteira silábica entre as duas consoantes destas sequências, embora associando C1 a uma posição diferente de Coda, como seguidamente explicamos. Segundo os últimos autores citados (Mateus e E. d'Andrade 1998:16, 17-18; 2000:44), estas sequências corresponderiam precisamente às sequências consonânticas a respeito das quais se postula a existência de um Núcleo silábico vazio (dando origem a divisões silábicas como (x)C1]Ataqueø]Núcleo.C 2]Ataque (y)).

A proposta de divisão heterossilábica das sequências (iii) e (iv) que acabamos de referir parece encontrar correspondência nas intuições fonológicas dos falantes do português6 6 Este argumento parece-nos absolutamente relevante se tivermos em conta que a fonologia, enquanto ramo da linguística, se deve ocupar da caracterização do conhecimento fonológico (implícito e interiorizado) dos sujeitos (cf.: Burton-Roberts, Carr e Docherty 2000:2; Freitas e Santos 2001:17). Este, por sua vez e de acordo com estes mesmos autores (cf. também: Halle 1990:57), corresponde a uma componente do seu conhecimento da língua, entidade igualmente implícita e interiorizada que constitui, na linha de pensamento da linguística generativa (cf., p. ex.: Chomsky 1986:41, 43, 45, 47), o verdadeiro objecto de estudo do linguista. . A verificação desta correspondência é-nos sugerida por evidências diversas, algumas das quais invocadas pelos próprios fonólogos que postulam o carácter heterossilábico destas sequências, que passamos a sumariar nos pontos seguintes.

(a) Frequência de realizações fonéticas em que se detecta uma "epêntese" (de [] no PE, de [I] no português brasileiro (PB)) entre as duas consoantes.

Muitas realizações fonéticas destas sequências repartem efectivamente as duas consoantes respectivas por duas sílabas diferentes e sucessivas através da epêntese de uma vogal em princípio não prevista pela forma subjacente das palavras em questão (p. ex.: "afta", realizada como no PE ou no PB; "psicologia", realizada como no PE ou no PB). Concretiza-se, desta forma, um desdobramento da sequência C1C2 em duas sílabas, o qual pode ser entendido como um argumento em favor do estatuto heterossilábico das mesmas defendido por Câmara (1970; 1971) e Mateus e E. d'Andrade (1998; 2000), nos termos que passamos a desenvolver.

Para Câmara (1970:56-58; 1971:27 e ss.; 1977:80-81), a vogal interconsonântica que assim se desenvolve não se restringe apenas ao nível fonético das realizações de fala, sendo antes concebida como um elemento da própria estrutura segmental (ainda que elidido em certas realizações e não contemplado pela ortografia) que preenche fonologicamente um Núcleo silábico. Segundo Mateus e E. d'Andrade (1998:16, 17-18; 2000:44), esta vogal tem uma existência confinada ao nível fonético (merecendo com maior propriedade, como tal, a designação tradicional de vogal epentética7 7 De facto, dentro da perspectiva traçada por Câmara (1970; 1971) e referida no corpo do texto a designação de "epentética" para a vogal interconsonântica que se desenvolve foneticamente no interior destas sequências não nos parece adequada, visto que o autor, nos termos referidos, concede a tal vogal um estatuto fonológico, não a restringindo apenas ao nível fonético. ), limitando-se a ser um preenchimento fonético de um Núcleo fonologicamente vazio, conforme o expressamente previsto pela Convenção de Criação de Núcleos Vazios do algoritmo de silabificação do português proposto pelos autores (cf.: Mateus e E. d'Andrade 2000:62).

(b) Falta de atestação, nas evoluções fonéticas espontâneas, de formas em que estas sequências ocorram.

As palavras do português contemporâneo em que são encontradas sequências como as de que aqui tratamos são palavras introduzidas tardiamente na língua por via culta – frequentemente a partir da sua forma escrita – e importadas directamente de outras línguas (normalmente do latim clássico, mas também de outras, como, nomeadamente, o grego; cf. os exemplos dados acima ((iii) e (iv)): "czar", "afta", "pneu", "magma", "agnóstico", "tmese").

Esta constatação – devidamente salientada por Câmara (1970:56) quando o autor se refere aos "(...) vocábulos, diacronicamente [entrados na língua e] de origem «erudita» (isto é, introduzidos através da língua escrita, a partir do séc. XV, como empréstimos ao latim clássico) (...)" – permite-nos concluir que estas estruturas (e, principalmente, a sua associação a um mesmo constituinte silábico) se apresentam como soluções artificiais e incompatíveis com a fonologia do português. Com efeito, se estas sequências se compatibilizassem com as intuições dos falantes que compõem o seu conhecimento fonológico – isto é, com a própria fonologia da língua8 8 Sobre a identificação possível entre os termos e os conceitos de fonologia e conhecimento fonológico, cf., p. ex., a revisão desenvolvida em Veloso (2003:78 e ss.). –, seria de esperar que encontrássemos no acervo lexical espontaneamente gerado no português atestações em número representativo das sequências em análise, o que, como vimos, não se verifica.

(c) Dúvidas frequentes dos falantes da língua quanto à translineação gráfica destas sequências.

Em português, a translineação gráfica das palavras obedece rigorosamente ao critério da divisão silábica das mesmas (cf. Base XLVIII do Acordo Ortográfico em vigor9 9 Quando, neste texto, fizermos referência ao Acordo Ortográfico vigente, estaremos a referir o diploma legal, aprovado pelos governos português e brasileiro, que, pela parte portuguesa, foi promulgado pelo Decreto nº 35:228, publicado no Diário do Governo, Iª Série, nº 273, de 8 de Dezembro de 1945. Para tanto, servir-nos-emos da transcrição do Acordo contida em suplemento a Gonçalves (1947) (pp. 21-59). ), pelo que é presumível que os falantes, quando explicitamente confrontados com a tarefa de translineação gráfica, activem a parcela do seu conhecimento fonológico responsável pela silabificação das palavras.

De acordo com autores como E. d'Andrade e Viana (1993:211) e Mateus e E. d'Andrade (1998:15; 2000:44), importa ter em atenção as incertezas dos falantes na divisão gráfica destas sequências, as quais poderiam indiciar algum tipo de conflito, no conhecimento fonológico dos sujeitos, entre diversas silabificações alternativas, legitimando, nomeadamente, as propostas de divisão heterossilábica subscritas pelas descrições fonológicas da língua.

3. Aspectos ortográficos das sequências C1C2 do português e a sua divisão em sequências de Tipo I e Tipo II (Veloso 2003)

As interpretações fonológicas que têm sido referidas e que entendem as sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte (em posição medial ou inicial) e as sequências Obstruinte diferente de /ò/+Nasal (em posição medial ou inicial) como heterossilábicas – apoiadas, entre outros argumentos, nas evidências de ordem empírica resumidas em (a) e (c) da secção 2 e nos argumentos de natureza histórica apresentados em (b) da mesma secção – encontram ainda uma correspondência suplementar nas regras ortográficas que regulam a translineação gráfica em português.

Como afirmámos em (c) supra, a translineação gráfica obedece estritamente, nesta língua, ao critério da divisão silábica das palavras, de acordo com um princípio que pode resumir-se da seguinte forma: duas consoantes que pertençam a uma mesma sílaba nunca podem ser divididas graficamente por duas linhas distintas, formando, por isso e de acordo com a terminologia do Acordo Ortográfico, um "grupo próprio"; duas consoantes que pertençam a duas sílabas distintas – formando, como tal e seguindo novamente a terminologia do Acordo Ortográfico, um "grupo impróprio" – são obrigatoriamente divididas por duas linhas (com uma única excepção, que proíbe a translineação se as duas consoantes ocorrerem em início absoluto de palavra10 10 Nas "Instruções para a organização do «Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa»" aprovadas pela Comissão da Reforma Ortográfica e reproduzidas em Gonçalves (1947:suplemento, pp. 63-101), a secção X ("Da divisão silábica") retoma os preceitos vertidos na Base XLVIII do Acordo Ortográfico (Gonçalves 1947:suplemento, pp. 86-87), especificando apenas, no parágrafo Iº, que quando os grupos obrigatoriamente translineados ocorrem em início absoluto de palavra não se dividem por duas linhas (exemplos das "Instruções": bde-lómetro, cni-dose, cza-rista, fti-ríase, gno-ma, mne-mónica, pneu-mático, psi-cólogo, tme-se). ) (cf. Base XLVIII do Acordo Ortográfico).

Em coerência com este princípio e em inteira consonância com a interpretação fonológica das sequências enumeradas em (i)-(v), as únicas sequências que são entendidas ortograficamente como tautossilábicas (não-translineáveis) são as sequências Obstruinte diferente de /ò/+Líquida (vd. (v) supra); todas as restantes são obrigatoriamente translineadas11 11 Exceptuam-se os casos referidos na nota anterior. Sublinhe-se neste momento que, por responder a objectivos diferentes e por operar com quadros conceptuais e terminológicos distintos dos que identificamos nas descrições fonológicas da língua, o Acordo Ortográfico (ao contrário de tais descrições) não estabelece uma divisão explícita, no interior das sequências que considera heterossilábicas, entre aquelas em que C 1 ocupa a posição de Coda (sequências Obstruinte /ò/+Obstruinte em posição medial e sequências Líquida+Obstruinte em posição medial; vd. (i) e (ii) no ponto 2 do texto) e aquelas em que, segundo Câmara (1970:56-58; 1971:27 e ss.) e Mateus e E. d'Andrade (1998:16, 17-18; 2000:44), C 1 ocupa a posição de Ataque (sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte e sequências Obstruinte diferente de /ò/+Nasal, ambas em posição medial ou inicial; vd. (iii) e (iv) no ponto 2 do texto). (isto é, são entendidas como heterossilábicas), o que está de acordo com as interpretações fonológicas apresentadas em (i'), (ii'), (iii') e (iv') da secção 2.

Com base em todos estes critérios – e fazendo menção ainda a outros, não aprofundados no presente texto –, propusemos, em trabalho anterior (Veloso 2003), a partição das sequências C1C2 do português em duas categorias distintas principais, aí denominadas Tipo I e Tipo II. De acordo com os próprios termos em que esta distinção – retomada no Quadro 1 infra – é proposta no trabalho citado, as sequências de Tipo I "(...) correspondem a sequências CC que Mateus e [E. d']Andrade (1998; 2000) consideram tautossilábicas: resultam, caracteristicamente, de combinações de Obstruinte+Líquida e respeitam o Princípio da Sonoridade e a Condição de Dissemelhança. As segundas ("Tipo II"), como combinam sequências Obstruinte+Obstruinte ou Obstruinte+Nasal, apresentam violações desses mesmos princípios" (Veloso 2003:112).


Note-se, neste ponto da exposição, que esta tipologia atende somente ao carácter tautossilábico ou heterossilábico das sequências em apreço e ao respeito/violação dos princípios silábicos mencionados, ignorando, nas sequências heterossilábicas de Tipo II, a existência das duas hipóteses de silabificação alternativas já referidas neste texto: (x)C1]Coda.C2 ]Ataque(y) (associação de C1 à Coda de uma primeira sílaba e de C2 ao Ataque não-ramificado de uma segunda sílaba; proposta aplicável às sequências Obstruinte /ò/+Obstruinte em posição medial) vs. (x)C1]Ataqueø]Núcleo.C 2]Ataque (y) (associação de ambas as consoantes da sequência à posição de Ataque não-ramificado de duas sílabas distintas e sucessivas, com criação de um Núcleo vazio na primeira sílaba; proposta aplicável às sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte ou Obstruinte diferente de /ò/+Nasal).

4. As sequências Obstruinte+Líquida em português

Como decorre do exposto até ao momento, existe aparentemente um consenso – firmado quer ao nível das descrições fonológicas do português, quer quanto à fixação das normas ortográficas da língua – que admite como únicas combinações consonânticas tautossilábicas do português as sequências Obstruinte diferente de /ò/+Líquida.

Os argumentos principais em torno deste consenso encontram-se expostos e resumidos nos pontos precedentes deste texto e estão na base de uma distinção terminológica, aí referida, entre sequências consonânticas de Tipo I e Tipo II (cf. Quadro 1). De um ponto de vista fonológico, recordamos que os mais relevantes de tais argumentos residem na conformação das sequências de Tipo I a princípios silábicos como o PS e a CD (cf.: Vigário e Falé 1994:476; Mateus e E. d'Andrade 1998:17-18; 2000:40-41), ao contrário do que sucede com as sequências de Tipo II e independentemente de o segundo elemento consonântico das sequências de Tipo I ser uma lateral ou uma vibrante.

Na presente secção, propomo-nos confrontar mais aprofundadamente as sequências de Tipo I com alguns dos argumentos que as separam das de Tipo II. Para tal, inspeccionaremos em separado, dentro das sequências de Tipo I, aquelas em que a líquida (C2) corresponde a uma lateral e aquelas em que essa posição segmental é preenchida por uma vibrante, pois pensamos que existem algumas diferenças merecedoras de atenção entre as sequências Obstruinte+Lateral12 12 De ora em diante, quando nos referirmos à obstruinte que aparece em primeiro lugar nas sequências Obstruinte diferente de /ò/+Líquida, Obstruinte diferente de /ò/+Lateral ou Obstruinte diferente de /ò/+Vibrante, usaremos apenas a designação "obstruinte". e Obstruinte+Vibrante. Tais diferenças situam-se ao nível de dois aspectos importantes que discutimos em separado nos pontos 4.1 e 4.2 – a origem histórica destas sequências e certas manifestações externas do conhecimento fonológico dos falantes – e permitir-nos-ão, segundo esperamos, defender o ponto de vista de que estas duas espécies de sequência consonântica podem deter estatutos silábicos diferentes na fonologia do português.

4.1. Origem histórica das sequências Obstruinte+Lateral e Obstruinte+Vibrante

Como vimos em (b) (secção 2), a origem artificial, tardia e erudita de palavras com sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte (em posição medial ou inicial) e Obstruinte diferente de /ò/+Nasal (em posição medial ou inicial) é devidamente salientada por autores como Câmara (1970; 1977) como um argumento do seu carácter exógeno e mesmo "irregular" na língua portuguesa.

A não-ocorrência de tais estruturas em palavras entradas espontaneamente na língua é vista, nessa linha de argumentação, como um forte indício de que o conhecimento fonológico dos sujeitos – que à fonologia cabe descrever (cf.: Burton-Roberts, Carr e Docherty 2000:2; Freitas e Santos 2001:17) – não integraria tais sequências no inventário dos formatos silábicos admitidos pelo português.

Observando agora as sequências Obstruinte+Lateral e Obstruinte+ Vibrante à luz da sua introdução histórica no português, verificaremos que só as segundas são atestadas em evoluções fonéticas "espontâneas". Na realidade, as palavras latinas com sequência Obstruinte+Lateral foram sujeitas a evoluções históricas diversas que em caso algum mantiveram no português essa combinação consonântica do latim.

De acordo com Nunes (1956:93-94), Teyssier (1980:14-15) e Maia (1986:617 e ss.)13 13 Segundo Maia (1986:618-619), a presença gráfica, em alguns documentos escritos do período de formação do galego-português, dos grupos consonânticos originais latinos (isto é, com manutenção gráfica de Obstruinte+Lateral) deve ser sempre interpretada como o reflexo de um esforço deliberado de latinização por influência culta. Atente-se, a propósito, nas seguintes palavras de Teyssier (1980): "Acrescente-se por fim que o português moderno possui um grande número de palavras eruditas em que os grupos iniciais pl-, cl- e fl-, assim como bl-, foram conservados sem modificação; ex.: pleno, clima, flauta, bloco." (Teyssier 1980:15; itálicos do autor; negritos nossos). , designadamente, tais sequências deram origem, em galego-português, a resultados como, entre outros, [tò] (mais tarde simplificado para [ò]), [f] e [bR], p. ex. (cf. as evoluções fonéticas espontâneas de "plenum", "clamare", "florem" e "blandum" em galego-português: (hoje "cheio",), (hoje "chamar", ) e ). Quando, no português contemporâneo, encontramos sequências como [pl] e [fl], essas sequências acham-se em importações tardias e eruditas, provindas normalmente do latim clássico e do grego (em palavras como, p. ex., "plectro", "flama", "gládio", etc.), e/ou em relatinizações, igualmente tardias e não-espontâneas e com origem frequentemente na fixação renascentista da norma escrita (cf.: Teyssier 1980:68-70; Paiva 2002:vol. IV, p. 106), em palavras como "flor" e "flauta", p. ex. (cujas formas resultantes da evolução espontânea eram, respectivamente, "frol" e "frauta")14 14 Quanto à passagem de [l] a [ ] em grupos consonânticos como [fl] durante a época de formação da língua, a mesma autora afirma ainda que, no mesmo período, não se atesta no galego-português a Sul do rio Minho o fenómeno contrário (isto é, a passagem de Obstruinte+Vibrante a Obstruinte+Lateral, esporadicamente registada na Galiza e muito frequente no asturiano ocidental e no leonês – cf.: Maia 1986:619-620). .

Esta situação não se verifica relativamente às sequências Obstruinte+ Vibrante: tais sequências não só se mantiveram na passagem do latim ao português nas palavras cujos étimos latinos já as continham (p. ex.: "fructum" ® "fruito") como inclusivamente se apresentam como um dos resultados possíveis da evolução histórica de Obstruinte+Lateral latina, conforme acima vimos em exemplos como lat. "florem" ® gal.-port. [Èfrol] e lat. "blandum" ® gal.-port."brando", p. ex.15 15 Sublinhe-se que, no caso de pelo menos uma outra língua românica – o italiano –, o mesmo resultado é identificável. Na verdade, nesta língua não foram mantidos os grupos latinos Obstruinte+Lateral, tendo-se verificado como solução mais frequente para a sua integração na fonologia da língua a semivocalização da lateral (cf. lat. "florem" ® it. "fiore", lat. "plenum" ® it. "pieno", lat. "clamare" ® it. "chiamare"). Pelo contrário, e tal como em português, os grupos consonânticos Obstruinte+Vibrante são relativamente frequentes em italiano (cf. palavras como "prato", "fretta", "grande", "crescita", etc.). As causas para este tratamento diferente das laterais e das vibrantes na evolução histórica dos grupos Obstruinte+Líquida, quer em português, quer em italiano, não se inscrevem no âmbito dos objectivos centrais do nosso estudo, pelo que não as discutiremos neste trabalho. Todavia, podemos admitir como hipótese para exploração futura, tal como defendido em Veloso (2003:402), a existência de propriedades fonéticas (articulatórias) inerentes a cada um desses tipos consonânticos como possível explicação para a disparidade registada. .

4.2. Manifestações externas do conhecimento fonológico dos falantes

Em passagens anteriores deste texto (vd. pontos 2 e 3), referimos a importância das manifestações externas do conhecimento fonológico dos falantes da língua para a aceitação ou refutação de determinados postulados da teoria e da descrição fonológicas. De um ponto de vista teórico, tais manifestações aparecem como relevantes na medida em que, sendo a fonologia uma descrição do conhecimento fonológico dos sujeitos (Burton-Roberts, Carr e Docherty 2000:2; Freitas e Santos 2001:17), elas podem ser encaradas como uma manifestação elucidativa das propriedades dessa componente do conhecimento da língua dos falantes16 16 Para uma discussão mais alargada deste tópico, de natureza eminentemente teórica, cf.: Veloso (2003:75-80). . No plano mais específico das questões concretas que aqui abordaremos, vimos atrás dois exemplos da forma como algumas dessas manifestações são apontadas por estudos anteriores para se defenderem certas propostas de descrição fonológica: a "epêntese" de uma vogal no interior dos sequências consonânticas Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte e Obstruinte diferente de /ò/+Nasal (Câmara 1970:56-58; 1971:27 e ss.; 1977:80; Mateus e E. d'Andrade 1998:16, 17-18; 2000:44) e as dúvidas na translineação gráfica destas sequências, assente na divisão silábica das mesmas (E. d'Andrade e Viana 1993:211; Mateus e E. d'Andrade 1998:15; 2000:44), para se defender o carácter heterossilábico destes grupos consonânticos.

Veremos, de seguida, de que modo esses mesmos argumentos se comportam relativamente às sequências de Tipo I, concedendo uma especial atenção ao que se passa com as sequências Obstruinte+Lateral.

4.2.1. Produções epentéticas das sequências Obstruinte+Lateral

Em 2 (a), foi referido que um dos argumentos para a classificação das sequências C1C2 de Tipo II (sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte e sequências Obstruinte diferente de /ò/+Nasal) como heterossilábicas reside na frequência com que tais sequências são articuladas pelos falantes da língua com a introdução de um [] "epentético", conforme expressamente reconhecido por autores como Câmara (1970:56-58; 1971:27 e ss.; 1977:80-81) e Mateus e E. d'Andrade (1998:16, 17-18; 2000:44).

Seguindo a mesma linha de argumentação, se tais produções epentéticas fossem igualmente encontradas para as sequências de Tipo I (sequências Obstruinte+Lateral e sequências Obstruinte+Vibrante) poderíamos reequacionar a inclusão destas no grupo das sequências tautossilábicas (o que redundaria num questionamento das propostas mais tradicionais a propósito deste assunto).

A verificação da existência de tais produções epentéticas, naturalmente acompanhada da respectiva caracterização linguística, exigiria, para além da nossa constatação empírica enquanto falante nativo do PE – que nos leva a poder sugerir que elas se encontram com bastante frequência no português coloquial –, um estudo experimental exaustivo (que teria de ter em conta, necessariamente, as dificuldades que se levantam a qualquer exploração da vogal [] do PE, mesmo que apoiada em técnicas laboratoriais apuradas, conforme sublinhado por autores como Lacerda e Hammarströmm (1952:131) e A. Andrade 1994:1-2).

Na falta, porém, de elementos suportados nessa exploração laboratorial e experimental de que não dispomos, socorremo-nos de uma outra evidência que, como explicaremos adiante, nos pode levar a supor que, no conhecimento fonológico de um conjunto relativamente alargado de falantes nativos do PE, as sequências Obstruinte+Lateral possam corresponder a sequências heterossilábicas. Tal evidência encontra-se nas produções poéticas versificadas dos chamados "poetas populares" portugueses, supostamente criadas e transmitidas por via oral por sujeitos com pouca ou nenhuma escolaridade formal.

Restringindo-nos, por ora, ao Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo compilado por Delgado (org. 1980), verificamos que a inserção dos seguintes versos sublinhados no esquema métrico da redondilha maior – esquema métrico respeitado em todas as quadras do cancioneiro a que nos referimos – só é possível se as palavras morfologicamente relacionadas com "flor" contiverem, entre [f] e [l], um [] epentético (conforme por nós assinalado na própria transcrição ortográfica)17 17 Na transcrição das quadras, indicamos não só a página da compilação de Delgado (org. 1980) em que cada exemplo se encontra, como também o número de ordem que lhe é atribuído pelo organizador na sua recolha (vol. I). Na transcrição, seguiremos todas as opções ortográficas e tipográficas adoptadas pela edição de Delgado (org. 1980), excepto no sublinhado e na indicação do [ ] epentético que indicam, respectivamente, o verso e o ponto exactos em que essa epêntese se torna obrigatória, segundo o ponto de vista que expusemos no corpo do texto, para a conformação de tais versos ao esquema métrico observado em todas as quadras recolhidas (a redondilha maior). . Sublinhe-se que, no levantamento (não-exaustivo) que fizemos destas situações e de que passamos a dar conta, não foram encontrados exemplos análogos para as sequências Obstruinte+Vibrante18 18 A recolha destes exemplos, como referido no texto, resultou de um levantamento não-exaustivo a partir do material publicado por Delgado (org. 1980), não nos sendo possível, nesta fase da pesquisa, indicar outros dados, nem respeitantes à ocorrência do fenómeno descrito com outras sequências consonânticas ou com outros lexemas, nem no que tange à sua quantificação relativa no total do corpus. Trata-se, na verdade, de uma via de análise que merece um ulterior desenvolvimento, inclusive a nível da repetição da recolha em cancioneiros de outras regiões, a fim de se questionar uma eventual interferência, p. ex., de variáveis de natureza dialectal. .

Não olhes p'ra mim, não olhes,

Qu'eu não sou o teu amor.

Eu não sou como a figueira

Que dá fruto sem f[]lor.

(Delgado, org. 1980:236; nº 2114)

Padeço eternas saudades

Do meu ditoso passado,

Desses dias f[]loridos

Que gozei sempre a teu lado.

(Delgado, org. 1980:258; nº 2332)

Padeço eternas saudades

Do meu ditoso passado,

Desses dias f[]loridos

Que por mim têm passado.

(Delgado, org. 1980:258; nº 2333)

Primavera se ausentou,

Deixou tudo f[]lorido;

Também meu bem se ausentou,

Não mais me veio ao «sentido».

(Delgado, org. 1980:259; nº 2345)

Vai-te, carta venturosa,

Toda cheia de f[]lores,

Guiada por passarinhos,

Contando vida de amores.

(Delgado, org. 1980:286; nº 2616)

Abre meu peito e verás

Quatro ramos f[]loridos,

E no meio encontrarás

Nossos corações unidos.

(Delgado, org. 1980:289; nº 2637)

Abre meu peito e verás

Quatro ramos f[]loridos.

Só no meio encontrarás

Nossos corações unidos.

(Delgado, org. 1980:289; nº 2638)

4.2.2. Divisões silábicas explícitas das sequências Obstruinte+Lateral

A segunda manifestação do conhecimento fonológico dos sujeitos sobre que nos deteremos a fim de questionarmos alguns aspectos relativos à divisão silábica das sequências Obstruinte+Lateral do PE consiste nas divisões silábicas explícitas de tais sequências apresentadas pelos falantes nativos da língua quando expressamente solicitados a executar tal tarefa.

A opção por tal tipo de evidência é aqui motivada pela nossa aceitação, num plano eminentemente teórico, de que a explicitação do conhecimento da língua dos sujeitos – nomeadamente através da indução de tarefas explícitas de manipulação metalinguística – pode ser, entre outras, uma via para uma possível caracterização do conhecimento da língua dos falantes (Read 1978:66; Tunmer e Herriman 1984:14; Foster-Cohen 1999:183)19 19 Um maior desenvolvimento, teoricamente enquadrado, da importância das operações metalinguísticas explícitas na caracterização do conhecimento da língua interiorizado dos sujeitos – numa perspectiva focalizada no conhecimento fonológico – poderá ser encontrado em Veloso (2003:166-176). . Este conhecimento, de acordo com a linguística generativa (Chomsky 1965:6 e ss., 8, 15; 1995:15 e ss., 20; Foss e Hakes 1978:14, 15, 17, 18; Goodluck 1986:55; Johnson-Laird 1987:149, 150 e ss.; Halle 1990:58; Higginbotham 1990:245-247), é, pela sua natureza intrínseca, um objecto implícito, mental e interiorizado, pelo que a busca de todos os indícios que possam conduzir-nos à sua caracterização deve revestir-se da maior relevância para a investigação em linguística, já que o conhecimento da língua é o objecto de estudo central do linguista, na perspectiva chomskyana que, neste ponto, não rejeitamos (cf.: Chomsky 1986:41, 43, 45, 47).

Consequentemente, invocaremos de seguida os resultados de um nosso trabalho anterior (Veloso 2003) no âmbito do qual foi solicitado a um grupo de 42 crianças falantes nativas monolingues do PE que, em dois momentos diferentes do seu percurso escolar, procedessem à divisão silábica explícita de 11 palavras que integram, em pontos diferentes da sua cadeia segmental linear, uma sequência Obstruinte+Lateral ou Obstruinte+Vibrante (cf.: Veloso 2003:186 e ss., 197 e ss., 217 e ss.). A primeira observação teve lugar no final do 1º ano de escolaridade das crianças participantes (média etária=6;11 anos, desvio-padrão=0;4 anos). A segunda decorreu no final do 2º ano de escolaridade (média etária=7;11 anos, desvio-padrão=0;4 anos). A escolha destes dois momentos permitiu que os primeiros dados (primeira observação) tivessem sido obtidos antes da aprendizagem formal das regras de translineação gráfica vigentes na língua portuguesa, ao passo que a segunda observação se deu já depois dessa aprendizagem.

Inspirado na revisão metodológica levada a cabo por Catts, Wilcox, Wood-Jackson, Larrivee e Scott (1997:48-52), o referido estudo optou por induzir tais divisões silábicas pedindo às crianças participantes que segmentassem cada uma das palavras do material linguístico apresentado nas respectivas sílabas constitutivas, não tendo sido nunca utilizado, porém, o termo metalinguístico "sílaba". Em seu lugar, o experimentador usou termos mais acessíveis às crianças ("partir palavras em bocadinhos", p. ex.). Antes da situação experimental propriamente dita, cada criança foi minimamente familiarizada com a tarefa a induzir, tendo sido permitido, em caso de necessidade, o recurso a operações como marcar o ritmo da cadência silábica através de palmas ou de pequenos batimentos no tampo da mesa. Cada palavra a segmentar foi articulada em separado pelo experimentador, clara e pausadamente. Para que a uniformidade dos estímulos fosse, dentro do possível, maximamente preservada relativamente a todas as crianças participantes, as palavras foram apresentadas de acordo com uma transcrição fonética previamente fixada pelo experimentador para cada palavra e estritamente seguida na respectiva apresentação oral. A segmentação de cada palavra por cada criança ocorreu imediatamente após a sua apresentação pelo experimentador, tendo sido registada logo de seguida por este último em transcrição fonética20 20 Descrição mais detalhada da metodologia seguida pode ser encontrada em Veloso (2003:218). O material linguístico utilizado e reproduzido no Quadro 2 é apresentado em Veloso (2003:295, 361). .

As palavras cuja segmentação silábica foi solicitada, nos termos que acabamos de descrever, foram as constantes do Quadro 2.


Verificou-se que, na primeira dessas duas observações, os falantes dividem as sequências Obstruinte+Vibrante preferencialmente como tautossilábicas21 21 As divisões silábicas explícitas foram repartidas, no estudo citado, por duas categorias, de acordo com os critérios especificados em Veloso (2003:239-240): foram consideradas como segmentações tautossilábicas todas aquelas em que as duas consoantes da sequência foram associadas a um mesmo Ataque de uma mesma sílaba (sem epêntese de qualquer vogal entre ambas; p. ex.: , para "planta"; , para "fraco") e como segmentações heterossilábicas todas aquelas em que a primeira consoante é associada ao Ataque simples de uma sílaba cujo Núcleo é preenchido, nas segmentações efectuadas, por uma vogal epentética (normalmente um [ ]). Constituem exemplos destas segmentações heterossilábicas respostas como (para "planta") e (para "fraco"). , mas que, quanto às sequências Obstruinte+Lateral, prevalecem, nessa primeira observação, as divisões heterossilábicas, como patente no Quadro 3.


No grupo das palavras com sequência Obstruinte+Lateral, cada criança apresentou, em média, 0,50 segmentações tautossilábicas (desvio-padrão=0,97), contra 4,36 segmentações heterossilábicas (desvio-padrão=1,23) (Veloso 2003:301). Relativamente às palavras com sequência Obstruinte+Vibrante, o número médio de segmentações tautossilábicas foi de 3,24 (desvio-padrão=2,24), tendo sido recolhidas, em média, 1,62 segmentações heterossilábicas (desvio-padrão=2,15) (Veloso 2003:301). Foi ainda possível verificar que, nas sequências Obstruinte+ Lateral, o número médio de segmentações heterossilábicas é estatisticamente superior ao número médio de segmentações tautossilábicas (teste de Wilcoxon: z=5,661; p<0,005 – Veloso 2003:301). Pelo contrário, nas sequências Obstruinte+Vibrante foi verificado que o número de segmentações tautossilábicas excede de forma significativa o número de segmentações heterossilábicas (teste de Wilcoxon: z=2,163; p<0,005 – Veloso 2003:301). Concomitantemente, verificou-se que o número de segmentações heterossilábicas perante sequências Obstruinte+Lateral é estatisticamente superior ao número de segmentações heterossilábicas perante sequências Obstruinte+Vibrante (teste de Wilcoxon: z=4,515; p<0,005 – Veloso 2003:301). Foi ainda observado que o número de segmentações tautossilábicas perante sequências Obstruinte+Vibrante é significativamente superior ao número de segmentações tautossilábicas perante sequências Obstruinte+Lateral (teste de Wilcoxon: z=4,810; p<0,005 – Veloso 2003:301).

A instalação da divisão predominantemente tautossilábica das sequências Obstruinte+Lateral só é verificada, no trabalho citado, no final do 2º ano, após a aprendizagem explícita das regras de translineação gráfica da língua (Veloso 2003:389-395 e ss., 399 e ss.).

Assim, na 2ª observação (final do 2º ano de escolaridade), os resultados obtidos na tarefa de segmentação silábica das mesmas palavras são os encontrados no Quadro 4.


Nesta observação (Veloso 2003:365), o número médio de segmentações heterossilábicas das sequências Obstruinte+Lateral foi de 2,86 (desvio-padrão=2,22); o número médio das segmentações tautossilábicas das mesmas palavras foi de 2,12 (desvio-padrão=2,23). Embora, nesta observação, o número de segmentações heterossilábicas destas sequências seja ainda superior ao de segmentações tautossilábicas, verifica-se que a diferença entre os dois valores não é estatisticamente significativa (teste de Wilcoxon: z=1,007; n.s. – Veloso 2003:365), ao contrário do que se verificara na primeira observação. Por outro lado, o decréscimo de segmentações heterossilábicas destas sequências da primeira para a segunda observação revelou-se estatisticamente significativo (teste de Wilcoxon: z=3,534; p<0,005 – Veloso 2003:392), tal como o incremento das suas segmentações tautossilábicas (teste de Wilcoxon: z=3,839; p<0,005 – Veloso 2003:392).

Já quanto às sequências Obstruinte+Vibrante (Veloso 2003:365-366), foram recolhidas, em média, 1,07 segmentações heterossilábicas (desvio-padrão=1,84) e 3,91 segmentações tautossilábicas (desvio-padrão=1,89), continuando a ser significativa a diferença entre os dois tipos de segmentação destas sequências (teste de Wilcoxon: z=4,241; p<0,005 – Veloso 2003:366).

Estes resultados podem ser interpretados, no seguimento da discussão de que foram objecto no trabalho original de onde foram recolhidos, em duas direcções: por um lado, eles sugerem que, nas intuições fonológicas mais profundas22 22 As intuições fonológicas "profundas" a que aqui nos referimos são aquelas designadas em Veloso (2003:402) como "genuínas" e reportam-se ao conhecimento fonológico não influenciado pelo conhecimento ortográfico dos sujeitos, uma vez que, como adiante explicitaremos, se aceita a possibilidade de o conhecimento ortográfico dos sujeitos interferir sobre a caracterização de aspectos essenciais do seu conhecimento fonológico (sendo este, aliás, o tópico central da investigação de Veloso 2003). dos falantes da língua, as sequências Obstruinte+Lateral, ao invés do que sucede com as sequências Obstruinte+Vibrante, são representadas como sequências heterossilábicas (Veloso 2003:389-395 e ss., 399 e ss.). Num segundo plano, sugerem ainda que o conhecimento ortográfico dos falantes possa exercer algum tipo de influência sobre o seu conhecimento fonológico, na medida em que pode aparentemente reconfigurar formatações originais deste último, conformando-o progressivamente a certos aspectos formalmente consignados pela ortografia. Olhando ao caso específico de que aqui tratamos, lembramos que as sequências Obstruinte+Lateral são aparentemente representadas no conhecimento fonológico dos falantes do PE sem conhecimento ortográfico como heterossilábicas: é essa, presumivelmente e em face dos dados coligidos até ao presente, a representação de tais sequências no conhecimento fonológico das crianças do estudo citado no estádio anterior à aprendizagem das regras de translineação, e parece ser esse também o caso dos poetas iletrados responsáveis pela criação das produções metrificadas referidas em 4.2.1. No entanto, por razões cuja discussão sumária remetemos para o ponto 5 deste artigo23 23 Vd. nota 26. , estas sequências são consideradas pelas normas ortográficas do português relativas à translineação como tautossilábicas, em nome de uma tradição ortográfica multissecular, e tal facto parece associável a que só os sujeitos com conhecimento ortográfico vejam estas sequências representadas como tautossilábicas no seu conhecimento fonológico implícito. Retomando os argumentos expostos em Veloso (2003), poder-se-á afirmar que "(...) [a] mudança da representação destas sequências [Obstruinte+ Lateral] no conhecimento fonológico dos sujeitos da população (...) (em que, de uma situação em que praticamente não existem segmentações tautossilábicas, se passa para uma outra em que estas segmentações aumentam significativamente a sua expressão quantitativa, esbatendo-se as diferenças, no final do 2º ano, entre as quantidades de segmentações tautossilábicas e heterossilábicas apresentadas pelas crianças da população) traduz porventura (...) uma conformação progressiva dessa representação à norma ortográfica da língua, formalmente imposta às crianças por via da aprendizagem escolar, que estabelece precisamente estas sequências como tautossilábicas (na medida em que não translineáveis e sem marcação gráfica de nenhuma vogal entre as duas consoantes (...))" (Veloso 2003: 395-396).

5. Observações finais

De acordo com os dados e os argumentos considerados ao longo do presente estudo, julgamos lícito considerar a possibilidade de as sequências Obstruinte+Lateral do português corresponderem, nas formatações mais genuínas24 24 Vd. nota 22. do conhecimento fonológico dos falantes nativos da língua, a sequências heterossilábicas.

Os principais indícios em que nos baseamos para extrair esta conclusão foram apresentados e discutidos nos pontos 2, 3 e 4 deste estudo e, sinteticamente, resumem-se da seguinte forma:

– Produções epentéticas/Produções versificadas populares. Conforme dissemos em 4.2.1, servimo-nos de uma nossa constatação empírica (não verificada experimentalmente) para afirmar que a produção das sequências Obstruinte+Lateral com a inclusão de uma vogal [] entre as duas consoantes da sequência corresponde a um hábito articulatório frequente junto dos falantes nativos do PE, sobretudo em registo coloquial. A importância deste argumento, como foi também afirmado acima, deriva de ele ter sido invocado por estudos anteriores (Câmara 1970; 1971; 1977; Mateus e E. d'Andrade 1998; 2000) em defesa da proposta do carácter heterossilábico de outras sequências C1C2 do português, mais concretamente daquelas que no Quadro 1 são referidas como sequências de Tipo II. Se bem que, pelas razões esboçadas em 4.2.1, não tenhamos investigado, através de um estudo de campo exaustivo, a questão da existência (e da frequência) das produções epentéticas destas sequências, o levantamento de produções metrificadas populares que referiremos no parágrafo seguinte permite-nos, até certo ponto, aceitar a possibilidade de tais produções, com as implicações anteriormente exploradas a nível da sua descrição silábica.

De facto, de acordo com o levantamento apresentado em 4.2.1, parecem existir indícios que reforçam a ideia de que, no conhecimento fonológico de um número significativo de falantes não influenciados pela representação escrita das palavras, estas sequências são representadas preferencialmente como heterossilábicas, já que a inclusão de certos versos de produções poéticas populares no esquema métrico da redondilha maior só se torna possível se, nos termos expostos nesse local, as sequências em apreço forem tratadas como heterossilábicas;

– Evolução histórica. Tal como sucede com as sequências consonânticas de Tipo II, não são atestadas em português palavras espontaneamente surgidas na língua com sequências Obstruinte+Lateral, o que sugere – como reconhecido, p. ex., por Câmara (1970:56; 1977:80) para as sequências de Tipo II – que as combinações Obstruinte+Lateral, enquanto grupos "próprios" (tautossilábicos), não se integram plenamente na fonologia da língua (isto é, que não são "sentidas" como absolutamente regulares pelo conhecimento fonológico dos falantes), representando sempre uma imposição de um formato "artificial", excepcional e exógeno25 25 Como foi referido em 4.1, um dos instrumentos para se consumar esta imposição, quer para as sequências de Tipo I, quer para as de Tipo II, terá sido a escrita, mais concretamente a normalização ortográfica renascentista que, entre outros efeitos, resultou numa relatinização parcial (e artificial) das formas de numerosas palavras (cf.: Câmara 1971:56-57; Teyssier 1980:68-70; Paiva 2002:vol. IV, p. 106). Este facto, juntamente com uma das conclusões do presente estudo – a de que o conhecimento ortográfico pode, em certa medida, influenciar (ou mesmo "filtrar", segundo Pinto 1998:182) aspectos centrais do conhecimento fonológico –, leva-nos a aceitar a influência da escrita sobre as propriedades estruturais da língua de uma forma mais lata do que aquela que se admite normalmente na linguística, que normalmente considera a escrita como um mero reflexo secundário da língua e uma transposição directa das propriedades desta (para uma revisão dos argumentos favoráveis e contrários a esta posição, cf., entre outros, Veloso (2003:133-155), bem como as fontes aí referidas). ;

– Divisões silábicas explícitas. De acordo com o estudo de Veloso (2003), amplamente referido no ponto 4.2.2 deste artigo, a divisão silábica explícita das sequências Obstruinte+Lateral do português como tautossilábicas parece emergir de forma mais nítida unicamente após e em consequência da aprendizagem formal das regras de translineação gráfica em vigor na língua. Antes desta aprendizagem, as mesmas sequências são preferencialmente divididas, junto da população do estudo citado, como heterossilábicas, o que, reforçando as proposições contidas nos parágrafos anteriores, nos permite supor que esta seja a representação mais "genuína" das sequências em apreço no conhecimento fonológico dos falantes nativos do PE.

No limite, a aceitação de que a classificação das sequências Obstruinte+Lateral como tautossilábicas colide com as intuições fonológicas "originais" dos falantes nativos do PE poderia conduzir-nos à necessidade de rever as propostas tradicionais das descrições fonológicas desta língua no tocante a este ponto preciso da gramática do português26 26 Eventualmente, e levando esta revisão de alguns pontos de vista estabelecidos a limites mais longínquos, poderiam igualmente discutir-se as regras ortográficas que inibem a translineação, na escrita, de todas as sequências Obstruinte+Líquida. O abandono ou a revisão de tais regras originariam, caso se concretizassem, uma ruptura com uma tradição que em português remonta pelo menos ao tratado de ortografia de Leão (1576) ("(...) se há-de pressupor que toda letra muda, que depois de si leva líquida, são ambas compatíveis, e não se podem separar, como ma-dre, ale-gre." – Leão 1576:106), por sua vez presumivelmente baseado numa outra tradição segundo a qual as sequências Obstruinte+Líquida representariam, já em latim, a única excepção admissível à partição heterossilábica de todas as sequências C 1C 2. Refira-se, porém, que mesmo relativamente a esta última tradição, há autores que discutem a possibilidade de os grupos Obstruinte+Líquida serem considerados, ainda no próprio latim, heterossilábicos ou tautossilábicos (cf., p. ex.: Allen (1965:89) e Steriade 1988:371), o que, a nosso ver, reforça a pertinência de aprofundarmos este tópico no português contemporâneo. . Na verdade, parece-nos razoavelmente justificado que se encontre alguma forma de se admitir que no conhecimento fonológico de um número significativo de falantes nativos da língua exista uma diferença entre as sequências Obstruinte+Vibrante e as sequências Obstruinte+Lateral no que diz respeito à sua divisão silábica, sendo as primeiras preferencialmente consideradas como genuinamente tautossilábicas e as segundas como genuinamente heterossilábicas27 27 Para uma breve referência a eventuais causas que possam estar na origem desta distinção, vd. novamente a parte final da nota 15. .

Essa reformulação de alguns pontos de vista tradicionalmente aceites pelas descrições fonológicas do português, nos termos amplamente revistos nos pontos precedentes do presente texto, acarretaria desse modo uma revisão das fronteiras entre as sequências consonânticas de Tipo I e Tipo II (vd. secção 3 do artigo e, nomeadamente, o Quadro 1, o qual, face a estas considerações, careceria de reformulação). Mais concretamente, e atendendo acima de tudo à representação mais "genuína" das sequências contempladas pelo presente estudo – isto é, à sua representação no conhecimento fonológico dos sujeitos sem conhecimento ortográfico –, parece-nos possível, em face dos argumentos anteriormente discutidos, deixar o Tipo I exclusivamente para as sequências Obstruinte+Vibrante e o Tipo II para todas as restantes combinações consonânticas, incluindo as sequências Obstruinte+Lateral. A aceitação de uma explicação desta índole para as sequências consonânticas em análise deixaria em aberto a necessidade de se investigar em profundidade se, tal como defendido por Mateus e E. d'Andrade (1998; 2000) para as sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte e Obstruinte diferente de /ò/+Nasal (vd., p. ex., (iii') e (iv') do ponto 2 deste texto), é pertinente e justificável que aceitemos, para as sequências Obstruinte+Lateral do português, a silabificação (x)C1]Ataqueø]Núcleo.C 2]Ataque (y) – contando-se, portanto, com a presença de um Núcleo vazio entre as duas consoantes.

Além do aspecto que acabamos de referir, a adopção de uma tal perspectiva implicaria ainda, paralelamente, que passássemos a encarar o respeito pelo Princípio da Sonoridade e pela Condição de Dissemelhança como uma condição necessária – mas não suficiente – para uma sequência de duas consoantes caber num mesmo Ataque silábico, na medida em que, assim sendo, todas as sequências verdadeiramente tautossilábicas (isto é, as sequências Obstruinte+Vibrante) respeitariam tais princípios, embora nem todas as sequências que os respeitassem fossem forçosamente intuídas pelos falantes como tautossilábicas, como parece ser o caso das sequências Obstruinte+Lateral em face dos dados empíricos revistos no decurso deste artigo.

Num plano mais teórico, a mudança que aqui preconizamos relativamente à descrição deste aspecto localizado da fonologia do português justifica-se, a nosso ver, pelo postulado de que a descrição fonológica deve obedecer, em primeiro lugar e de acordo com, entre outros, Burton-Roberts, Carr e Docherty (2000:2), ao desígnio fundamental de descrever um estado da mente do sujeito falante, ou seja, uma parcela da sua gramática interiorizada. Para a caracterização dessa parcela do conhecimento da língua, devem ser devidamente consideradas intuições e manifestações externas como as referidas ao longo de 4.2, sendo também de aceitar que essa gramática interiorizada não seja totalmente impermeável à influência de variáveis socioculturais como o conhecimento ortográfico (cf. a tese central explorada em Veloso 2003).

Recebido em outubro de 2004

Aprovado em julho de 2005

E-mail: jveloso@letras.up.pt

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  • VIHMAN, Marilyn May. 1996. Phonological Development. The Origins of Language in the Child. Cambridge (Mass.)/Oxford: Blackwell.
  • 1
    Estas divergências quanto à colocação de fronteiras silábicas precisas no interior das palavras contrastam com a natureza fortemente intuitiva da sílaba enquanto unidade linguística, demonstrada pela facilidade com que todos os falantes, desde fases muito precoces do seu desenvolvimento linguístico e independentemente de qualquer aprendizagem ou treino formal, se mostram capazes de efectuar operações metafonológicas explícitas que tomem a sílaba por unidade (Liberman, Shankweiler, Fischer e Carter 1974; Brédart e Rondal 1982:65; Morais, Content, Cary, Mehler e Segui 1989; Gombert 1990:34-35, 46-48; Morais 1991:6; Spencer 1996:38; Vihman 1996:177 e ss.; Barroso 1999:154; Vale e Cary 1999:377; Martins 2000:79-80; Freitas e Santos 2001:57, 70, 72, 79 e ss.).
  • 2
    Sendo o português uma língua cuja fonologia não admite, em princípio, Coda ramificada (cf.: Mateus e E. d'Andrade 2000:53), não é aqui encarada a hipótese da silabificação (teoricamente possível)
    (x)V
    1C
    1C
    2.V
    2
    (y), a qual, de resto, se mostraria incompatível com o algoritmo de silabificação do português proposto por Mateus e E. d'Andrade (2000:60-64).
  • 3
    Neste momento específico, referimo-nos exclusivamente ao português europeu (PE): na maior parte das variedades brasileiras da língua, o material segmental admitido em Coda silábica diverge, pelo menos no nível fonético, das possibilidades admitidas pelo PE (cf., p. ex.: Mateus e E. d'Andrade 2000:12-13; Netto 2001:158-163). Refira-se ainda que, em português europeu, /ò/ em Coda se realiza foneticamente como [ò] ou como [
    ] de acordo com o contexto fonético, sendo esta uma razão para Mateus (1975:32-35) e Mateus e E. d'Andrade (2000:13) conceberem estas realizações fonéticas como as manifestações de superfície de um "segmento não inteiramente especificado" (Mateus 1975:33), responsável, em função do contexto, pela neutralização da oposição fonológica /ò/¹/
    /. Tal segmento não-especificado é apresentado como um /S/ subjacente em Mateus (1975:33) e como um /s/ subjacente em Mateus e E. d'Andrade (2000:13).
  • 4
    Versões portuguesas dos princípios silábicos referidos no texto podem ser encontradas em Veloso (2003:97-102).
  • 5
    Pelo contrário, a aceitação destas sequências como tautossilábicas violaria estes mesmos princípios.
  • 6
    Este argumento parece-nos absolutamente relevante se tivermos em conta que a fonologia, enquanto ramo da linguística, se deve ocupar da caracterização do conhecimento fonológico (implícito e interiorizado) dos sujeitos (cf.: Burton-Roberts, Carr e Docherty 2000:2; Freitas e Santos 2001:17). Este, por sua vez e de acordo com estes mesmos autores (cf. também: Halle 1990:57), corresponde a uma componente do seu conhecimento da língua, entidade igualmente implícita e interiorizada que constitui, na linha de pensamento da linguística generativa (cf., p. ex.: Chomsky 1986:41, 43, 45, 47), o verdadeiro objecto de estudo do linguista.
  • 7
    De facto, dentro da perspectiva traçada por Câmara (1970; 1971) e referida no corpo do texto a designação de
    "epentética" para a vogal interconsonântica que se desenvolve foneticamente no interior destas sequências não nos parece adequada, visto que o autor, nos termos referidos, concede a tal vogal um estatuto fonológico, não a restringindo apenas ao nível fonético.
  • 8
    Sobre a identificação possível entre os termos e os conceitos de
    fonologia e
    conhecimento fonológico, cf., p. ex., a revisão desenvolvida em Veloso (2003:78 e ss.).
  • 9
    Quando, neste texto, fizermos referência ao Acordo Ortográfico vigente, estaremos a referir o diploma legal, aprovado pelos governos português e brasileiro, que, pela parte portuguesa, foi promulgado pelo Decreto nº 35:228, publicado no
    Diário do Governo, Iª Série, nº 273, de 8 de Dezembro de 1945. Para tanto, servir-nos-emos da transcrição do Acordo contida em suplemento a Gonçalves (1947) (pp. 21-59).
  • 10
    Nas "Instruções para a organização do «Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa»" aprovadas pela Comissão da Reforma Ortográfica e reproduzidas em Gonçalves (1947:suplemento, pp. 63-101), a secção X ("Da divisão silábica") retoma os preceitos vertidos na Base XLVIII do Acordo Ortográfico (Gonçalves 1947:suplemento, pp. 86-87), especificando apenas, no parágrafo Iº, que quando os grupos obrigatoriamente translineados ocorrem em início absoluto de palavra não se dividem por duas linhas (exemplos das "Instruções": bde-lómetro, cni-dose, cza-rista, fti-ríase, gno-ma, mne-mónica, pneu-mático, psi-cólogo, tme-se).
  • 11
    Exceptuam-se os casos referidos na nota anterior. Sublinhe-se neste momento que, por responder a objectivos diferentes e por operar com quadros conceptuais e terminológicos distintos dos que identificamos nas descrições fonológicas da língua, o Acordo Ortográfico (ao contrário de tais descrições) não estabelece uma divisão explícita, no interior das sequências que considera heterossilábicas, entre aquelas em que C
    1 ocupa a posição de Coda (sequências Obstruinte /ò/+Obstruinte em posição medial e sequências Líquida+Obstruinte em posição medial; vd. (i) e (ii) no ponto 2 do texto) e aquelas em que, segundo Câmara (1970:56-58; 1971:27 e ss.) e Mateus e E. d'Andrade (1998:16, 17-18; 2000:44), C
    1 ocupa a posição de Ataque (sequências Obstruinte diferente de /ò/+Obstruinte e sequências Obstruinte diferente de /ò/+Nasal, ambas em posição medial ou inicial; vd. (iii) e (iv) no ponto 2 do texto).
  • 12
    De ora em diante, quando nos referirmos à obstruinte que aparece em primeiro lugar nas sequências Obstruinte diferente de /ò/+Líquida, Obstruinte diferente de /ò/+Lateral ou Obstruinte diferente de /ò/+Vibrante, usaremos apenas a designação "obstruinte".
  • 13
    Segundo Maia (1986:618-619), a presença gráfica, em alguns documentos escritos do período de formação do galego-português, dos grupos consonânticos originais latinos (isto é, com manutenção gráfica de Obstruinte+Lateral) deve ser sempre interpretada como o reflexo de um esforço deliberado de latinização por influência culta.
    Atente-se, a propósito, nas seguintes palavras de Teyssier (1980): "Acrescente-se por fim que o português
    moderno possui um grande número de palavras
    eruditas em que os grupos iniciais
    pl-, cl- e
    fl-, assim como
    bl-, foram conservados sem modificação; ex.:
    pleno, clima, flauta, bloco." (Teyssier 1980:15; itálicos do autor; negritos nossos).
  • 14
    Quanto à passagem de [l] a [
    ] em grupos consonânticos como [fl] durante a época de formação da língua, a mesma autora afirma ainda que, no mesmo período, não se atesta no galego-português a Sul do rio Minho o fenómeno contrário (isto é, a passagem de Obstruinte+Vibrante a Obstruinte+Lateral, esporadicamente registada na Galiza e muito frequente no asturiano ocidental e no leonês – cf.: Maia 1986:619-620).
  • 15
    Sublinhe-se que, no caso de pelo menos uma outra língua românica – o italiano –, o mesmo resultado é identificável. Na verdade, nesta língua não foram mantidos os grupos latinos Obstruinte+Lateral, tendo-se verificado como solução mais frequente para a sua integração na fonologia da língua a semivocalização da lateral (cf. lat.
    "florem" ® it.
    "fiore", lat.
    "plenum" ® it.
    "pieno", lat.
    "clamare" ® it.
    "chiamare"). Pelo contrário, e tal como em português, os grupos consonânticos Obstruinte+Vibrante são relativamente frequentes em italiano (cf. palavras como
    "prato", "fretta", "grande", "crescita", etc.).
    As causas para este tratamento diferente das laterais e das vibrantes na evolução histórica dos grupos Obstruinte+Líquida, quer em português, quer em italiano, não se inscrevem no âmbito dos objectivos centrais do nosso estudo, pelo que não as discutiremos neste trabalho. Todavia, podemos admitir como hipótese para exploração futura, tal como defendido em Veloso (2003:402), a existência de propriedades fonéticas (articulatórias) inerentes a cada um desses tipos consonânticos como possível explicação para a disparidade registada.
  • 16
    Para uma discussão mais alargada deste tópico, de natureza eminentemente teórica, cf.: Veloso (2003:75-80).
  • 17
    Na transcrição das quadras, indicamos não só a página da compilação de Delgado (org. 1980) em que cada exemplo se encontra, como também o número de ordem que lhe é atribuído pelo organizador na sua recolha (vol. I). Na transcrição, seguiremos todas as opções ortográficas e tipográficas adoptadas pela edição de Delgado (org. 1980), excepto no sublinhado e na indicação do [
    ] epentético que indicam, respectivamente, o verso e o ponto exactos em que essa epêntese se torna obrigatória, segundo o ponto de vista que expusemos no corpo do texto, para a conformação de tais versos ao esquema métrico observado em todas as quadras recolhidas (a redondilha maior).
  • 18
    A recolha destes exemplos, como referido no texto, resultou de um levantamento não-exaustivo a partir do material publicado por Delgado (org. 1980), não nos sendo possível, nesta fase da pesquisa, indicar outros dados, nem respeitantes à ocorrência do fenómeno descrito com outras sequências consonânticas ou com outros lexemas, nem no que tange à sua quantificação relativa no total do
    corpus. Trata-se, na verdade, de uma via de análise que merece um ulterior desenvolvimento, inclusive a nível da repetição da recolha em cancioneiros de outras regiões, a fim de se questionar uma eventual interferência, p. ex., de variáveis de natureza dialectal.
  • 19
    Um maior desenvolvimento, teoricamente enquadrado, da importância das operações metalinguísticas explícitas na caracterização do conhecimento da língua interiorizado dos sujeitos – numa perspectiva focalizada no conhecimento fonológico – poderá ser encontrado em Veloso (2003:166-176).
  • 20
    Descrição mais detalhada da metodologia seguida pode ser encontrada em Veloso (2003:218). O material linguístico utilizado e reproduzido no
    Quadro 2 é apresentado em Veloso (2003:295, 361).
  • 21
    As divisões silábicas explícitas foram repartidas, no estudo citado, por duas categorias, de acordo com os critérios especificados em Veloso (2003:239-240): foram consideradas como
    segmentações tautossilábicas todas aquelas em que as duas consoantes da sequência foram associadas a um mesmo Ataque de uma mesma sílaba (sem epêntese de qualquer vogal entre ambas; p. ex.:
    , para
    "planta";
    , para
    "fraco") e como
    segmentações heterossilábicas todas aquelas em que a primeira consoante é associada ao Ataque simples de uma sílaba cujo Núcleo é preenchido, nas segmentações efectuadas, por uma vogal epentética (normalmente um [
    ]). Constituem exemplos destas segmentações heterossilábicas respostas como
    (para
    "planta") e
    (para "fraco").
  • 22
    As intuições fonológicas
    "profundas" a que aqui nos referimos são aquelas designadas em Veloso (2003:402) como
    "genuínas" e reportam-se ao conhecimento fonológico não influenciado pelo conhecimento ortográfico dos sujeitos, uma vez que, como adiante explicitaremos, se aceita a possibilidade de o conhecimento ortográfico dos sujeitos interferir sobre a caracterização de aspectos essenciais do seu conhecimento fonológico (sendo este, aliás, o tópico central da investigação de Veloso 2003).
  • 23
    Vd. nota 26.
  • 24
    Vd. nota 22.
  • 25
    Como foi referido em 4.1, um dos instrumentos para se consumar esta imposição, quer para as sequências de Tipo I, quer para as de Tipo II, terá sido a escrita, mais concretamente a normalização ortográfica renascentista que, entre outros efeitos, resultou numa relatinização parcial (e artificial) das formas de numerosas palavras (cf.: Câmara 1971:56-57; Teyssier 1980:68-70; Paiva 2002:vol. IV, p. 106). Este facto, juntamente com uma das conclusões do presente estudo – a de que o conhecimento ortográfico pode, em certa medida, influenciar (ou mesmo "filtrar", segundo Pinto 1998:182) aspectos centrais do conhecimento fonológico –, leva-nos a aceitar a influência da escrita sobre as propriedades estruturais da língua de uma forma mais lata do que aquela que se admite normalmente na linguística, que normalmente considera a escrita como um mero reflexo secundário da língua e uma transposição directa das propriedades desta (para uma revisão dos argumentos favoráveis e contrários a esta posição, cf., entre outros, Veloso (2003:133-155), bem como as fontes aí referidas).
  • 26
    Eventualmente, e levando esta revisão de alguns pontos de vista estabelecidos a limites mais longínquos, poderiam igualmente discutir-se as regras ortográficas que inibem a translineação, na escrita, de todas as sequências Obstruinte+Líquida. O abandono ou a revisão de tais regras originariam, caso se concretizassem, uma ruptura com uma tradição que em português remonta pelo menos ao tratado de ortografia de Leão (1576) ("(...) se há-de pressupor que toda letra muda, que depois de si leva líquida, são ambas compatíveis, e não se podem separar, como
    ma-dre, ale-gre." – Leão 1576:106), por sua vez presumivelmente baseado numa outra tradição segundo a qual as sequências Obstruinte+Líquida representariam, já em latim, a única excepção admissível à partição heterossilábica de todas as sequências C
    1C
    2. Refira-se, porém, que mesmo relativamente a esta última tradição, há autores que discutem a possibilidade de os grupos Obstruinte+Líquida serem considerados, ainda no próprio latim, heterossilábicos
    ou tautossilábicos (cf., p. ex.: Allen (1965:89) e Steriade 1988:371), o que, a nosso ver, reforça a pertinência de aprofundarmos este tópico no português contemporâneo.
  • 27
    Para uma breve referência a eventuais causas que possam estar na origem desta distinção, vd. novamente a parte final da nota 15.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2006
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Recebido
      Out 2004
    • Aceito
      Jul 2005
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