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Recortes interculturais: na sala de aula de línguas estrangeiras

RESENHA

Resenhado por: Kanavillil Rajagopalan

Unicamp

MOTA, Kátia e SCHEYRL, Denise (orgs.). Recortes Interculturais: na Sala de Aula de Línguas Estrangeiras. Salvador, BA: EDUFBA. ISBN: 85-232-0325-7. p. 329. 2004.

A epígrafe estampada logo na primeira página deste livro resume o espírito que norteia todos os 12 trabalhos que compõem esta obra, escritos em sua grande maioria por pesquisadores lotados em centros de ensino e pesquisa no estado da Bahia. Diz o trecho, da autoria de Ruth Landes (1908-1991), etnóloga norte-americana cujas teses ousadas (entre elas, sobre a tradição do candomblé e o lugar da mulher nessa tradição), bem como estilo pessoal de viver nos interstícios interculturais, lhe impuseram uma carreira cheia de amarguras: "A sedução de outra cultura não pode ser jamais ignorada porque é a sedução do si mesmo envolta em outras vestes." O esforço empenhado pelas organizadoras e por cada um dos autores participantes em direcionar os holofotes para o aspecto intercultural do ensino e aprendizagem da língua estrangeira é oportuno e muito bem vindo.

Para começar, a ênfase no aspecto intercultural se destaca em meio consagrada tradição de pensar a aquisição da segunda língua como um processo estrita e predominantemente lingüístico, isto é, um processo que envolve tão somente o domínio de um código diferente daquele que o aprendiz já possui. No afã de elaborar teorias mirabolantes a respeito, muitos pesquisadores esquecem do simples e incontestável fato de que as línguas são muito mais que meros meios de comunicação e esta, por sua vez, muito mais que mera troca de informações proposicionais. O enfoque dispensado no livro também contrasta com a tendência, por parte de alguns pesquisadores, de prestar atenção tão somente ao pano de fundo cultural da língua estrangeira. Estes deixam de levar em conta que a experiência de aprender uma língua estrangeira é uma aventura de experimentar as delícias de uma outra cultura, resultando na transformação da personalidade do próprio aprendiz, no alargamento dos seus horizontes culturais, enfim na reinvenção de sua própria pessoa.

Ou seja, em última instância, talvez devêssemos deixar de falar em aprendizagem da língua estrangeira ou, passar a encarar tal expressão como fruto de força de hábito. Pois o que se aprende não é, se pararmos para pensar seriamente a respeito, mais uma língua estrangeira. Toda língua estrangeira, quando bem aprendida, passa a fazer parte do nosso próprio self. A aprendizagem de uma língua estrangeira seria, portanto, antes e depois de tudo, uma experiência em "self-fashioning" para usar um termo cunhado pelo filósofo Charles Taylor.

Os 12 capítulos do livro são agrupados em 3 partes: (1) Línguas estrangeiras, interculturalidade e desenvolvimento da consciência humanizadora (2) (Re)Construção de identidades na aprendizagem da língua estrangeira (3) Linguagens interculturais, intertextualidade e ensino de línguas estrangeiras. As partes 1 e 2 contêm, cada uma, dois capítulos. O restante dos capítulos, 8 ao todo, se encontram na parte 3.

O primeiro capítulo do livro é assinado por Francisco Gomes de Matos, que se destaca no cenário acadêmico brasileiro e fora dele como um dos infatigáveis defensores de uma abordagem ao ensino e à aprendizagem de línguas que vise à paz e harmonia entre os povos. Kátia Maria Santos Mota, autora do capítulo 2, tece considerações acerca da relação língua-cultura, enfocando no encontro de culturas no ensino de línguas estrangeiras.

O terceiro capítulo, da autoria de Denise Scheyerl, se alicerça sobre o pensamento do filósofo francês e psicanalista lacaniano Felix Guattari e propõe como um aprendiz bem sucedido na aprendizagem de língua estrangeira aprende a lidar com a nova cultura e incorporá-la na reconstrução do seu próprio self. Milenna Brun, autora do capítulo 4, também parte de uma perspectiva psicanalítica para explorar a questão de como o encontro com a língua estrangeira, sobretudo mediante textos literários, propicia o encontro do próprio aprendiz consigo mesmo.

Os oito capítulos que seguem versam sobre uma gama bastante variada de temas relacionados ao ensino de língua estrangeira, a saber: poesia e consciência cultural crítica (Antonio Luciano de Andrade Tosta), cinema como linguagem pedagógica/ideológica (Décio Torres Cruz), o uso de canções no ensino de inglês (Luciano Rodrigues Lima), artes plásticas no ensino de línguas estrangeiras (Márcia Paraquett), reflexões do imaginário brasileiro no ensino do português como língua estrangeira (Patrícia Isabel Santos Sobral e Clémence Jouët-Pastré), a questão feminina na literatura e artes plásticas (Raimunda Bedasee), acesso a novas tecnologias no ensino de línguas estrangeiras (Sávio Siqueira e Anamaria Camargo), e resgate da resiliência do aprendiz do inglês por intermédio dos contos de Hemingway (Silvia Maria Guerra Anastácio e Célia Nunes Silva).

O livro traz ainda um prefácio assinado por José Carlos Paes de Almeida Filho que saúda a publicação do livro e celebra a perspectiva, por ele descortinada, de estimular mais pesquisadores a dirigirem suas atenções a questões trazidas a baila pelos colaboradores da coletânea em enfoque. Em sua apresentação ao volume, as organizadoras, Kátia Mota e Denise Scheyerl, fazem questão de chamar atenção para a importância da obra do saudoso Paulo Freire na empreitada de democratização do processo ensino-aprendizagem como antídoto eficaz à "reconhecida 'alienação' dos programas de ensino de línguas estrangeiras".

No fim das contas, o esforço empenhado pelos colegas que contribuíram para este volume deve ser entendido como um valioso passo em direção ao que convencionou chamar de empowerment education (educação para fins de fortalecimento do aprendiz). Todos eles estão de parabéns pela produção deste verdadeiro banquete de trabalhos academicamente sólidos e socialmente relevantes.

No mundo cada vez mais sendo globalizado em que vivemos é preciso encarar a atividade de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras não como saneamento de um déficit cultural do aprendiz (como crêem alguns desavisados), mas como um processo de troca e enriquecimento mútuo entre culturas distintas. Faço minhas as seguintes palavras de Gomes de Matos que conclui sua nota na contra-capa do livro: "Que a tradição brasileira continue e outras vozes interculturais se façam ouvir, daqui e de outros países, com os quais compartilhamos nossa cidadania intercultural planetária".

E-mail: rajagopalan@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2006
  • Data do Fascículo
    2006
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