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A norma brasileira em construção: fatos lingüísticos em cartas pessoais do século XIX

NOTAS SOBRE LIVROS BOOKNOTES

Por/by: Márcia Cristina de Brito Rumeu

Faculdade de Letras/UFRJ

LOPES, Célia Regina dos Santos (org.) 2005. A Norma Brasileira em Construção: Fatos Lingüísticos em Cartas Pessoais do Século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, Pós-Graduação em Letras Vernáculas: FAPERJ.

O livro A Norma Brasileira em Construção: fatos lingüísticos em cartas pessoais do século XIX apresenta uma seleta reunião de trabalhos lingüísticos, com base em uma amostra de 41 cartas pessoais redigida no contexto sócio-histórico de fins do século XIX, por um casal de brasileiros cultos (Christiano Benedicto Ottoni e Barbara Balbina de Araújo Maia Ottoni) e direcionadas aos seus netos (Mizael e Christiano). A obra em análise, produzida pelo grupo de estudos do Rio de Janeiro, vinculado ao Projeto Para A História do Português Brasileiro, se divide em duas partes. Na primeira parte, apresentam-se cinco investigações morfossintáticas alicerçadas nas correspondências pessoais de um casal de brasileiros idosos da família Ottoni. Na segunda parte, expõe-se, à comunidade acadêmica, uma edição das cartas pessoais oitocentistas, comprometida com a transcrição conservadora das missivas fac-similadas, sobre a qual se embasaram as análises lingüísticas apresentadas. Em "Tratamento dos Corpora de sincronias passadas da língua portuguesa no Brasil: recortes grafológicos e lingüísticos", Afranio Gonçalves Barbosa concebe as etimologizações gráficas como um parâmetro concreto de caracterização da norma culta oitocentista objetivamente explicitada através da produção escrita dos avós Ottoni, assumindo os folhetins cariocas do século XIX como referencial para a escrita culta. Além de atentar para as etimologizações gráficas, o autor ainda se ocupa da distribuição da forma nominal gerúndio em suas estruturas sintética e analítica com o intuito de comprovar que tais indícios gramatical e grafológico representam critérios objetivos para a caracterização da escrita culta brasileira do século XIX.

No estudo "Tradição e inovação: indícios do sincretismo entre a segunda e a terceira pessoas nas cartas dos avós", Célia Regina dos Santos Lopes e Ana Carolina Morito Machado observam as distintas preferências dos avós Christiano e Barbara, ao evocarem os sujeitos de 2ª pessoa do discurso com as estratégias pronominais tu e você. As autoras discutem, à luz dos princípios de gramaticalização persistência e decategorização, conforme Hopper (1991), a combinação das formas pronominais tu e você com os pronomes complementos e possessivos de 2ª e 3ª pessoas, o que as levaram a detectar, na escrita de brasileiros cultos de fins do século XIX, a tão condenada "mistura de pronomes" no português.

O trabalho "Gênero e norma: avós e netos, classes e clíticos no final do século XIX", confeccionado por Emílio Gozze Pagotto e por Maria Eugenia Lamoglia Duarte, esclarece que as cartas da avó Barbara Ottoni expressam a preferência pela colocação pronominal proclítica, tendência assumida pela norma brasileira do português, ao passo que as missivas do avô Christiano Ottoni evidenciam a produtividade da ênclise, ordem de colocação pronominal peculiar à norma portuguesa e que possivelmente foi retida pelo avô através do ensino formal de português ou por força da interação lingüística com os brasileiros letrados do século XIX. O estudo da ordem dos clíticos, com base na amostra de cartas pessoais oitocentistas, comprova a hipótese de que houve, segundo Pagotto (1998), em terras d'aquém mar, a imposição intencional da norma lusitana do português, sustentada por uma subserviência lingüística à gramática portuguesa como o ideal de língua a ser ensinado nas escolas brasileiras.

O texto "Estruturas de futuridade em cartas pessoais do século XIX", escrito por Dinah Callou, Sílvia Eleutério e Josane Moreira, trata do uso do futuro em suas formas simples e perifrástica, com base na Sociolingüística Quantitativa Laboviana. Nas cartas pessoais oitocentistas dos avós Ottoni, as autoras chegam a admitir que o futuro demonstra mais modalidade que tempo verbal e que a preferência pelo futuro perifrástico apresenta-se como um processo de mudança em progresso na língua portuguesa.

Em "Advérbios qualitativos em cartas familiares do século XIX", Mario Eduardo Martelotta enfoca a ordenação dos advérbios qualitativos bem, mal e dos advérbios qualitativos em -mente nas cartas pessoais oitocentistas. Na produção escrita dos avós Ottoni, o autor constata uma gradual mudança lingüística em direção à extinção da produtiva ordenação pré-verbal dos advérbios, o que está em conformidade com as conclusões de Martelota (2004) que prevê, para o português contemporâneo, uma tendência à ordenação pós-verbal dos advérbios qualitativos bem e mal.

Os estudos morfossintáticos da obra em questão se sobressaem não só por desvelarem, em fins do século XIX, o processo de construção da norma brasileira do português, mas também por se pautarem em uma amostra de cartas criteriosamente editada. Além de todos os méritos da edição, como a identificação do perfil sócio-histórico dos autores dos textos e a transcrição conservadora em fac-símile que permite a conferência e a revisão da leitura apresentada, o conjunto de cartas dos avós Ottoni poderá certamente nortear outros trabalhos lingüísticos sobre "a vida cotidiana da Corte carioca oitocentista.".

E-mail: rumeu@bol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2007
  • Data do Fascículo
    2007
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