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Gênese dos Discursos

RESENHA REVIEW

Resenhado por Ana Raquel Motta

Unicamp - Fapesp. E-mail: anaraquelms@gmail.com

MAINGUENEAU, Dominique. 2005. Gênese dos Discursos. Tradução de Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições. 189 p. ISBN 85-8814-131-0.

Não é tão comum, em Análise do Discurso, que um mesmo trabalho consiga reunir uma formulação teórica original e rigorosa a um levantamento e análise de corpus amplo e criterioso. É o caso de Gênese dos Discursos, obra de Dominique Maingueneau lançada na França em 1984, que agora tem sua versão em português através da tradução de Sírio Possenti e da publicação da Criar Edições, de Curitiba.

Tratava-se da primeira vez em que Maingueneau postulava novos conceitos teóricos e metodológicos, e a proposta que apresenta articula, no nível do discurso, elementos como "enunciado e enunciação, linguagem e contexto, fala e ação, instituição lingüística e instituições sociais" (pp. 24 e 25). Essa visão ampla e integradora do que o autor chama de práticas discursivas perpassa toda a obra, que, com ousadia intelectual, sustenta com fôlego, de um capítulo a outro, o que conceitua.

Em sua introdução, Gênese dos Discursos apresenta uma caracterização geral do que são discursos, definindo-os "como integralmente lingüísticos e integralmente históricos" (p. 16), isto é, objetos que se constituem através de uma dupla restrição: a do dizível na língua e a do dizível num dado tempo-espaço histórico. O trabalho teórico da proposta de Maingueneau se pautará por dar relevância a esses dois aspectos do discurso, articulando-os na análise.

Em busca dessa articulação, não cabe pensar no texto como sendo composto de uma estrutura profunda e uma superficial, a primeira mais ligada à história e a segunda à realização lingüística final - ou terminal - do discurso. Ao invés dessa dicotomia, o autor ressalta a importância de explicitar a "semântica global" dos discursos, rejeitando a idéia de que eles tenham uma base "invisível" e uma camada que se mostra, considerandoos como apoiados concomitantemente em suas várias dimensões. Ao rejeitar a "concepção arquitetural do discurso" (p. 19), o autor evoca a crítica de Derrida às análises que procuram "forma", "sentido", mas se esquecem da "força", "da energia viva do sentido". Essa é uma das principais contribuições de Gênese dos Discursos aos estudos discursivos que, em muitos casos, até hoje limitam a visão do que seja discurso a um "ponto de vista" ou "ideologia subjacente", deixando de lado a tão fecunda formulação de Althusser, que tanta falta faz em algumas pesquisas: "...devemos à 'dialética' defensiva de Pascal a maravilhosa fórmula que nos permitirá subverter a ordem do esquema conceitual da ideologia. Pascal diz, aproximadamente: 'Ajoelhai-vos, orai e acreditareis'" (Althusser 1983: 91).

Além da introdução, o livro é dividido em sete capítulos, cada um enfocando uma das sete hipóteses fundamentais que o autor propõe a respeito do funcionamento dos discursos. Todas as sete hipóteses serão postuladas ao mesmo tempo em que são confrontadas com um corpus que Maingueneau conhece bem, por ter se debruçado sobre ele em pesquisas anteriores: o discurso de duas correntes religiosas da França no século XVII, o humanismo devoto e o jansenismo. O esforço para articular questões teóricas e analíticas é um fator de primordial relevância e vitalidade dessa obra, que se constitui num forte argumento para a validade de uma preocupação constante de Maingueneau, reafirmada no Prefácio: "Um analista do discurso precisa confrontar-se de maneira assídua com um terreno para alimentar sua reflexão teórica; sem isso, as perspectivas 'parafilosóficas' correm o risco de ter mais importância do que a preocupação de dar conta dos funcionamentos discursivos." (p.11).

Sua primeira hipótese, do "Primado do Interdiscurso", valoriza a heterogeneidade através de uma visão do interdiscurso como anterior e constitutivo do discurso. Nesse sentido, os discursos não existem previamente, sendo depois colocados em relação - de aliança ou polêmica, por exemplo - com outros, eles nascem justamente nas brechas dessa rede interdiscursiva. Tal formulação se insere nas mesmas preocupações das pesquisas de Jacqueline Authier-Revuz sobre heterogeneidade, inspiradas pela leitura dos textos do Círculo de Bakhtin. Nesse capítulo, Maingueneau estabelece os conceitos de universo, campo e espaço discursivo, sendo o último estabelecido pelo analista através de conhecimento do campo e hipóteses de pesquisa que serão confirmadas ou infirmadas na análise. Aqui Maingueneau postula que o espaço discursivo polêmico entre duas formações discursivas é privilegiado para constituição de um corpus, postulação que será reforçada pela quarta hipótese, da "Polêmica como Interincompreensão". Talvez se possa fazer uma ressalva ao conceito de espaço discursivo como necessariamente recortado através da polêmica entre duas formações discursivas, uma vez que nem sempre essa relação é tão claramente delineada e relevante para o objeto estudado quanto o é para o humanismo devoto e o jansenismo. Apesar dessa ressalva, é importante ressaltar que Maingueneau, embora se dedique detidamente às relações polêmicas, não reduz o interdiscurso a elas, conforme uma leitura da conceituação de campo discursivo pode esclarecer: "[campo discursivo] é um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo. 'Concorrência' deve ser entendida da maneira mais ampla; inclui tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente etc..." (p. 36).

Na segunda hipótese, Maingueneau conceitua "Uma Competência Discursiva" que permite que haja a incorporação do discurso por seus sujeitos. Ao reivindicar que existe uma competência discursiva, logo ressalva que o uso do termo "competência" não terá, neste caso, as mesmas razões de Chomsky ao propor a competência lingüística. O autor sabe que, para analistas do discurso, a noção de competência pode parecer incompatível com uma visão discursiva, historicamente construída. No entanto, ao falar em competência discursiva, Maingueneau propõe um conceito que integra o histórico à noção de competência, ao mesmo tempo em que delineia a possibilidade de ampliar o corpus de "aquilo que foi efetivamente dito" para "aquilo que pode ser dito" (p.51) a partir da semântica de uma formação discursiva. Nesse capítulo, há a análise de como as diferentes posições enunciativas são ocupadas pelos Sujeitos, como se dá o processo que faz um discurso enunciável. No Prefácio da tradução, ao comentar essa hipótese, o autor diz que ela foi mal compreendida por alguns que, na primeira metade dos anos 1980, viam incompatibilidade entre uma competência ser radicalmente histórica e também cognitiva. Certamente a noção de "Competência Discursiva" ainda tem muito a acrescentar a áreas de estudo pouco exploradas pela Análise do Discurso que, ao rejeitar o sujeito como fonte do sentido, "jogou fora a criança junto com a água do banho" e poucas vezes se detém em explicitar os processos de subjetivação que também estão implicados na enunciação.

Na terceira hipótese, o discurso é visto como um sistema de restrições globais, analisado como um todo, sem que nenhum de seus planos seja hierarquizado. Tal decisão metodológica parte de um princípio teórico corajoso - o de "Uma Semântica Global" -, por promover um deslocamento na maneira tradicional de pensar e analisar ideologias. Em Gênese dos Discursos, o tecido textual (verbal e não verbal) do corpus não é descartado, ou "higienizado", a fim de que somente o que é "profundo" ou "essencial" permaneça; pelo contrário, tudo do que se compõem as práticas discursivas é analisado. O que o autor nos apresenta nesse capítulo é um recorte de alguns planos do discurso humanista devoto, sem pretender que esses planos sejam tomados como privilegiados em pesquisas sobre outros corpora. Essa ressalva de que o que apresenta não deve ser tomado como um modelo cego destaca para o leitor a postura teórica de Maingueneau, avessa ao dogmatismo e ciente de que cada funcionamento discursivo tem suas marcas relevantes, que cabe ao analista especificar. Como primeiro plano da Semântica Global analisado, temos "a intertextualidade", que define como e que textos podem ser evocados por determinada formação discursiva. O capítulo analisa ainda "o vocabulário", "os temas", "o estatuto do enunciador e do destinatário", a "dêixis enunciativa", o "modo de enunciação" e o "modo de coesão". Ao analisar o "modo de enunciação", pela primeira vez apareciam, na obra de Maingueneau, conceitos relacionados ao que posteriormente tem sido analisado no âmbito do "ethos discursivo". Aqui o autor mobiliza uma preocupação de Bakhtin com a ausência de estudos sobre o tom, apesar de ser um dos aspectos mais importantes da vida verbal (p.95), além de evocar também o poderoso conceito de "héxis" de Bourdieu, que, a meu ver, deveria ser melhor considerado pela Análise do Discurso. Maingueneau define o tom como apoiado em dois componentes: o caráter e a corporalidade. Ao falar de corporalidade, introduz o conceito de incorporação, para evocar a ligação estreita entre um discurso e seu modo de enunciação. Tais postulações - e todo desenvolvimento posterior de sua obra ligado ao conceito de "ethos discursivo" - certamente abrem um campo importante e ainda não muito estudado pela área.

A quarta hipótese retoma a competência discursiva como interdiscursiva, analisando o processo de interincompreensão regrada que rege a relação entre discursos antagonistas. Nesse capítulo, "A Polêmica como Interincompreensão", é formulado um dos conceitos mais conhecidos de Gênese dos Discursos, o de "simulacro", que seria uma tradução depreciativa, em um discurso, de um valor de seu discurso oponente. Tal tradução depreciativa não acontece de maneira aleatória, mas segue a semântica global do discurso-agente para ler as práticas do discurso-paciente. O discurso só é capaz de compreender o outro através de "simulacros", isto é, de traduções dos valores do outro em suas próprias categorias de análise. Citando Kuhn e Feyerabend, Maingueneau faz um paralelo com o modelo da incomensurabilidade das teorias científicas, que não podem ser reduzidas umas às outras, pois têm ontologias diferentes, com as ressalvas de que, para o discurso plenamente ideológico, "as noções são construídas sobre um intertexto flutuante e (...) não acedem jamais à univocidade." (p.106). Frente a seu antagonista, o discurso tem as opções de recusá-lo totalmente, através da "exclusão polêmica simples" ou de tentar incorporá-lo em sua grade semântica, através da "integração do discurso do outro". Nos discursos analisados por Maingueneau, a formação discursiva jansenista, por suas características semânticas, opera a "exclusão polêmica simples" de sua opositora humanista devota. Já a formação discursiva humanista devota teria a tendência, também por suas características semânticas, de aceitar coexistir com o discurso jansenista, desde que este aceitasse ser mais uma possibilidade de devoção religiosa. Teria, então, a tendência a "integrar o discurso do outro", o que só não ocorre pela recusa dos jansenistas. O conceito de polêmica como interincompreensão é um daqueles que impressiona pela sua força de "verdade", de fato discursivo. É provável que rapidamente já venha à memória do leitor uma série de outros pares de discursos polêmicos que não se compreendem e se traduzem.

A quinta hipótese, "Do Discurso à Prática Discursiva", amplia o escopo da análise, que passa de prioritariamente verbal para a análise de práticas discursivas, o que inclui a institucional. Neste capítulo, Maingueneau analisa o lugar do espaço institucional na constituição de um discurso. Longe de ver a instituição como ambiente anterior e exterior ao discurso, ela é vista como parte da prática discursiva, tanto quanto os enunciados. Sendo assim, o funcionamento institucional também obedece ao sistema de restrições semânticas da formação discursiva. Trata-se de não considerar os aspectos institucionais de produção e consumo dos enunciados como fenômenos separados da realização material dos discursos, como se estivessem previamente organizados para possibilitar a existência dos enunciados. Maingueneau é bastante explícito ao dizer que "não há, antes, uma instituição, depois uma massa documental, enunciadores, ritos genéticos, uma enunciação, uma difusão e, enfim, um consumo, mas uma mesma rede que rege semanticamente essas diversas instâncias" (p. 142). Outra contribuição importante desse capítulo se dá no conceito de "foz discursiva", isto é, de como uma determinada formação discursiva tenta regular o "uso" que se faz de seus enunciados e práticas, tentando controlar a deriva irrepresável dos sentidos.

No sexto capítulo, "Uma Prática Intersemiótica", o foco é a produção discursiva não-verbal: das artes plásticas, do vestuário, da dança, da música, dos objetos etc. Desse modo, o capítulo 6 continua a trilhar a ampliação proposta pelo capítulo precedente, que, vendo o discurso como prática, lançou a análise para além das palavras. Essa era uma questão original no momento de publicação do livro, em 1984. Continua sendo inovadora hoje, pois ainda faltam esforços realmente comprometidos em integrar as diversas semioses na Análise de Discursos, intuito que qualquer analista contemporâneo julgará justificável. A esse respeito, o autor comenta, em seu Prefácio à tradução, que considera que o esforço por integrar os diferentes domínios de linguagem permanece ainda hoje marginal, apesar de alguns estudos integradores. Vê como principal obstáculo para essa integração a compartimentalização das disciplinas, com efeitos que ele chama "esterilizantes" (p. 13). A respeito do capítulo 6, a crítica que se poderia fazer hoje (obviamente não cobrando que Maingueneau tivesse feito isso há 22 anos, mas no sentido de apontar para possíveis e desejáveis mudanças em algumas práticas analíticas atuais) seria a de que não deveria ser necessário haver um capítulo específico para tratar da prática discursiva como intersemiótica. A consideração das diferentes semioses pode (deve) estar presente desde as primeiras aproximações a um corpus.

Por fim, o sétimo e último capítulo busca esboçar "Um Esquema de Correspondência" entre discurso e história. A hipótese é a de que os discursos são inscritos sócio-historicamente e essa inscrição passa pelo sistema de restrições semânticas de cada formação discursiva. Maingueneau afirma a dificuldade que se tem, em ciências humanas, de operar claramente o conceito de ideologia, dificuldade esta que aparece também quando se tenta articular a prática discursiva a uma formação social. Ressaltando a amplitude da questão, o autor não se propõe a esgotá-la, e, aliás, revela uma descrença a respeito de que as diferentes reflexões sobre as relações entre discurso e história possam ser integradas em um quadro teórico. Portanto, o que é proposto nesse capítulo é o que ele chama de "algo modesto" (p.169), embora não teoricamente desordenado: os "isomorfismos". O capítulo 7 examina, então, alguns isomorfismos entre ciência e religião no século XVII, não no sentido de determinar "o espírito de toda uma época" (p.181), o que seria redutor das complexidades históricas, mas no sentido de compreender como e por que um determinado discurso se torna dominante em determinado momento histórico. Quando se trata de "discursos abstratos" (p.171), que é como Maingueneau classifica as produções "literárias, filosóficas, religiosas, musicais, etc...", um cuidado extra é necessário, pois há dois riscos: ou o de considerar essas produções acima de qualquer ligação sócio-histórica ou o de, para analisar esse tipo de obra, reduzi-la ao seu "conteúdo ideológico", abstendo-se de apreender a singularidade de cada tipo de texto em sua estrutura. Tal cuidado é relevante quando se ampliam os corpora de pesquisa da Análise do Discurso. No Prefácio, o autor lamenta que, ainda atualmente, haja poucos estudos sobre o discurso religioso, apesar da forte presença desse tipo de discurso nas definições sociais e políticas da contemporaneidade.

Em suas sete hipóteses, Gênese dos Discursos põe em funcionamento, através de aprofundada explanação teórica e de excelente análise de um corpus amplo, questões de teoria e de análise inspiradoras para a Análise do Discurso. Tomadas separadamente ou no conjunto das hipóteses, tais questões convidam o analista a um debate complexo de conceitos e a novas possibilidades analíticas, uma vez que o livro é capaz de fazer repensar princípios e metodologias.

Já há alguns anos, Sírio Possenti fazia circular excertos e até o texto completo, mas ainda não concluído, dessa tradução, o que possibilitou que a versão publicada chegasse bastante bem elaborada à sua fase final. Tal circulação, além de servir para aprimoramento da tradução - processo que o tradutor menciona na Apresentação dessa edição - também possibilitou que alguns pesquisadores pudessem conhecer e dialogar com as teses da obra, uma vez que se tratava de um livro pouco acessível até mesmo na França. Por esses motivos, não era pequena a ansiedade que marcava a espera pela publicação dessa tradução, endossada, aliás, pelo próprio Maingueneau, que assina um Prefácio à edição brasileira. Para quem já conhecia o vigor da obra, é interessante ler esse Prefácio e conhecer a avaliação que o autor faz hoje de seu próprio livro e de alguns aspectos das condições de sua produção que podem nos auxiliar a compreender o impacto de Genèse du Discours na França em 1984.

Recebido em janeiro de 2007

Aprovado em novembro de 2007

  • ALTHUSSER, L. 1983. Aparelhos ideológicos de Estado (tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro); 1Ş edição. Rio de Janeiro: Graal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2009
  • Data do Fascículo
    2008
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