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Dicionários escolares: políticas, formas & usos

RESENHA REVIEW

Kanavillil Rajagopalan

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Palavras chave: lexicologia; lexicografia; dicionários escolares; ensino.

Key-words: lexicology; lexicography; school dictionaries; teaching.

CARVALHO, O. L. de S. e BAGNO, M. (orgs.) (2011). Dicionários escolares: políticas, formas & usos. São Paulo: Parábola Editorial, 165 p.

Para que servem os dicionários no universo escolar? De que forma os dicionários confeccionados especialmente para uso escolar devem se distinguir dos demais dicionários, já que cada um deles tem seus fins específicos? Evidentemente, o assunto em pauta, e em torno do qual se debruçam os autores cujos textos se encontram reunidos no livro sob holofote, ocupa um lugar na interseção de, no mínimio, duas disciplinas independentemente constituídas, a saber, a lexicologia/lexicografia e a didática.

A segunda disciplina, isto é, a didática, a pedagogia, nos ajuda a "dosar" o rigor das definições dos verbetes e consequentemente o grau de dificuldade que elas apresentam para os leitores específicos previamente determinados – aspectos de significação que a lexicologia, enquanto estudo eminentemente teórico do léxico e de semântica, pode se dar ao "luxo" de ignorar. O lexicólogo tem como objetivo a exatidão das explicações e a incorporação, à exaustão, das diversas acepções de cada verbete. É isso que, enfim, torna a lexicologia uma ciência; a lexicografia, em contrapartida, é uma arte. A primeira exige disciplina e formação científica; a segunda depende, sobremaneira, de bom senso e sensibilidade aguda em relação aos usuários do dicionário em potencial e suas necessidades e possibilidades de compreensão.

Maria Luzia Coroa, uma dos colaboradores do livro, coloca a questão posta acima da seguinte forma:

As práticas escolares têm [...] conferido importância, às vezes maior, às vezes menor, ao dicionário na sala de aula. Desde mero repositório dos vocábulos de uma língua, a normatizador todo-poderoso de usos linguísticos, o dicionário tem constituído referencial para professores, alunos e usuários em geral. Mas, entre os dois extremos, as atividades de sala de aula podem fazer corresponder a essa constante presença do dicionário nas nossas vidas novas interlocuções nas práticas pedagógicas (p. 68).

Não são todos os autores do livro que se preocupam com o mesmo afinco com a questão pedagógica, embora o livro enalteça o uso escolar em seu próprio título, lado a lado à questão política que subjaz aos dicionários escolares. Alguns autores concentram quase todos os seus esforços na parte teórica, seja ela de ordem semântica, seja de lexicológica, deixando a parte escolar e a parte pedagógica em segundo plano. E, ao fazer isso, deixam de levar em conta o seu pano de fundo político. As consequências desse descaso são graves. Pois, o fato é que a questão escolar, da mesma forma que a pedagógica, são corolárias à questão política.

O ensino de línguas é, no fim das contas, parte integral da política linguística em vigor num determinado país. Ou, se ainda não é visto dessa forma, deveria ser. Ao longo da história, o dicionário muitas vezes foi usado e continua até os dias de hoje sendo encarado como um instrumento político de grande eficácia. Noah Webster, cujo nome se confunde em nossos dias com o mais famoso dicionário da língua inglesa em sua versão norte-americana, tinha plena consciência disso; além do lexicógrafo, também foi professor e ativista político. A elaboração do seu dicionário foi um ato de declaração da independência linguística dos Estados Unidos que, no seu entender, não havia ocorrido junto com a independência política da Grã Bretanha (Rollins, 1976). Não é de estranhar o fato de o nome de Webster ter sido lembrado tantas vezes durante o "Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada" na cidade de São Paulo em 1937, que teve, inclusive, participação ativa de celebridades da época, como Mário de Andrade* * Os trabalhos apresentados nesse evento foram publicados nos Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada (1938) São Paulo, Departamento de Cultura. .

Como bem avisam Rodolfo Ilari e Maria Luiza Cunha Lima em seu longo texto, na abertura do livro, "Sabemos menos do que gostaríamos sobre a maneira como se constrói a competência lexical da criança" (p. 13). Acontece que, embora o cérebro da criança ainda possa permanecer como uma "caixa preta", nada impede que nós não tomemos alguns cuidados na confecção de dicionários apropriados a cada idade. Pois sabemos que o cérebro de uma criança ainda está em processo de amadurecimento e que, em razão disso, ela pode ter dificuldades em lidar com raciocínios muito complicados e abstratos. Também não devemos perder de vista que um dicionário escolar é – ou, se não for, deve ser – fruto de trabalho colaborativo entre especialistas em lexicologia e em pedagogia.

Como já aludimos antes, a lexicologia, a rigor, não tem nenhum compromisso com pedagogia (nem tampouco a pedagogia com a lexicologia!). Isso fica gritante quando se leva em consideração dicionários bilíngues. Quando, por exemplo, o dicionário bilíngue português-inglês Michaelis define a palavra imponderável como

imponderável

im.pon.de.rá.vel

adj m+f (pl imponderáveis) impoderable: not capable of being weighed or evaluated.

é de se perguntar como uma explicação como essa pode ajudar a uma criança ou mesmo a um adulto que não saiba o que significa a palavra inglesa imponderable. Quem não sabe o que quer dizer imponderable dificilmente vai se contentar com a explicação de que imponderable significa imponderável. A situação permaneceria idêntica mesmo se fosse invertida a ordem, ou seja, "língua de partida/língua de chegada":

imponderable

im.pon.der.a.ble

adj imponderável: que não se pode calcular ou estimar,

É claro, o verbete pode esclarecer alguma coisa para usuário, quando se leva em conta a segunda parte da explicação "que não se pode calcular ou estimar", ou ainda para dirimir quaisquer dúvidas quanto à grafia exata, a quantidade sílabas etc.

Os dicionários monolíngues também não escapam dessa questão. Quando, por exemplo, uma criança, aprendiz da língua portuguesa, procura a palavra rato no dicionário Houaiss, ela vai encontrar, entre outras tantas a seguinte explanação:

• substantivo masculino

1 Rubrica: mastozoologia.

design. comum dos roedores da fam. dos murídeos, esp. daqueles do gên. rattus, como o rato-preto e a ratazana, atualmente disseminados por todo o mundo, responsáveis pela destruição de grandes quantidades de alimento e pela transmissão de diversas doenças, como a peste bubônica.

Verbete impecável. Não deixa quase nada fora da "explicação". O verbete num dicionário como Houaiss, que não foi feito com objetivos pedagógicos, não se importa se a definição oferecida é de alcance do usuário pretendido, no caso uma criança. Daí a pertinência da seguinte observação de Patrícia Viera Nunes Gomes (p. 145):

O primeiro e talvez o mais importante passo para o trabalho com o dicionário em sala de aula é a escolha do dicionário a ser adotado. É comum ouvir frases repetidas sobre esse tema, por parte de alunos, pais e professores, tais como: "Por que comprar um dicionário escolar, se em casa tenho um dicionário enorme?" [...]

Voltando ao problema de explicar o significado da palavra rato, para ajudar uma criança, muito provavelmente um não-falante de português, a entender o que significa a palavra rato em português, muitas vezes o caminho mais curto e eficaz seria utilização de uma ilustração do tipo:

O que faz com que o desenho acima funcione como um meio pedagogicamente mais eficaz do que qualquer explanação verbal é que ela utiliza um recurso extra-linguístico, inter-semiótico. É um gesto em direção ao referente no mundo real (Bedeutung), ao invés de permanecer preso na esfera de sentido (Sinn). Não é por acaso que dicionários ilustrados fazem tanto sucesso entre aprendizes de língua estrangeira. Para uma criança em fase de escolarização, a sua própria língua, carinhosamente chamada de "materna", pode, muitas vezes, ser uma língua verdadeiramente estrangeira. Daí a razão porque a ilustração está sendo reconhecida cada vez mais como um recurso altamente recomendável, até mesmo nos dicionários "monolíngues".

Os dicionários pensados e confeccionados com fins pedagógicos procuram transmitir o significado das palavras de forma extensional, ao invés de se sentirem obrigados a explicá-lo de forma rigorosamente intensional. Isso explica por que uma palavra tão simples e básica como homem encontra uma explanação acurada, porém um tanto bizarra:

• substantivo masculino

1 Rubrica: biologia.

mamífero da ordem dos primatas, único representante vivente do gên. Homo, da espécie Homo sapiens, caracterizado por ter cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis, inteligência dotada da faculdade de abstração e generalização, e capacidade para produzir linguagem articulada.

Maria da Graça Krieger trabalha com os problemas inerentes à ideia de incorporar aos dicionários termos técnicos e vocabulário específico das ciências. Por sua vez, Orlene Lúcia de Sabóia Carvalho nos apresenta "uma nova tipologia lexicográfica, novo modelo de definição" (p. 87). Ela ilustra o modelo costumeiro e o "novo" com os seguintes verbetes selecionados de diferentes dicionários:

Amargo am. 1. Em que há falta de açúcar. –Tomei um remédio amargo. [...] (Mattos, 2005; tipo 3);

Amargo a-mar-go Um gosto amargo é muito forte e nada doce, como o do café sem açúcar. Alguns remédios têm gosto muito amargo. (Caldas Aulete, 2005: tipo 1).

A diferença que Carvalho aponta é uma diferença significativa, sobretudo do ponto de vista pedagógico. A definição que o segundo verbete nos fornece é bem mais "camarada" (user-friendly). Isso acontece não só pelo emprego do registro coloquial, informal, como Carvalho frisa, mas também por não ter nenhuma pretensão de "cercar" o significado, caindo na armadilha de transgredir a linha tênue que divide a lexicologia do conhecimento "enciclopédico" (veja, por exemplo, a definição que o dicionário Houaiss nos dá para a palavra homem, citada anteriormente). A propósito, o uso de a-mar-go na entrada que consta do dicionário Caldas Aulete parece confirmar a suspeita levantada por Egon Rangel de que

"[...] dicionários escolares franceses, espanhóis ou de língua inglesa são, com muita frequência, e em todo mundo, tomados como referências inescapáveis" (p. 48), posto que a ortografia da língua portuguesa não apresenta tanta dificuldade para os estudantes neste particular.

Ieda Maria Alves começa sua contribuição ao livro dizendo que

O caráter pedagógico caracteriza as obras lexicográficas desde os primeiros embriões de dicionários. Landau (1984) menciona que muitos dos dicionários bilíngues latim-inglês do século XVI, e anteriores, tinham finalidade de auxiliar estudantes (p. 105).

É nisso que talvez resida uma das principais diferenças entre a lexicologia e a lexicografia. Ao contrário daquela, esta se preocupa com o usuário, ainda que um leitor em potencial. Contudo, é preciso ter cuidado em não generalizar a partir do que acontece no caso de dicionários bilíngues, pois estes visam primordialmente a aprendizes da língua de partida (conforme vimos anteriormente), quer crianças, quer adultos. O caso do dicionário monolíngue é bem diverso. A seguinte definição notória que Dr. Samuel Johnson, renomado lexicógrafo inglês, para a palavra inglesa oats (avelha) sinaliza mais preconceito contra os escoceses do que qualquer outra coisa; e nitidamente não tem o objetivo de esclarecer qualquer coisa, muito menos, o significado da palavra aveia (Lynch e McDermott, 2005):

OATS. n.s. [?, Saxon] A grain, which in England is generally given to horses, but in Scotland supports the people. (AVEIA. [? Saxão] Grão, que na Inglaterra é geralmente dado a cavalos, mas na Escócia sustenta o povo).

Uma forma mais apropriada de formular a questão levantada por Alves seria algo como: a preocupação pedagógica aparece com frequência em dicionário bilíngues, mas nem sempre se manifesta com igual força em dicionários monolíngues, onde o que sobressai são as questões de exatidão e de informações adicionais enciclopédicas.

Marcos Bagno, em seu texto, acerta na mosca quando diz: "Os dicionários têm constituído [...] um dos principais instrumentos de descrição, prescrição, codificação e legitimação do modelo idealizado de língua "correta" [...].

Vilma Reche Corrêa foca a problemática da nomenclatura que serve, muitas vezes, mais para dificultar a vida dos aprendizes do que auxiliá-los no esforço de usufruir dos dicionários escolares e das informações neles constantes. Informações metalinguísticas descabidas e desnecessárias acabam desestimulando os usuários pretendidos, à semelhança das regras gramaticais, cheias de "gramatiquês" que os alunos eram obrigados a decorar em tempos idos.

De todos os textos que compõem o livro, o da autoria de Egon de Oliveira Rangel é o único que vai diretamente ao assunto. Sob o titulo "Dicionários escolares e políticas públicas em educação: a relevância da 'proposta lexicográfica'", o autor abre sua discussão com a pergunta: "Que tipo de livro é, exatamente, o dicionário? Para que serve? Por que motivo os dicionários as tornaram objeto de políticas públicas em educação?". O texto de Rangel não só prima pela explicitação clara e objetiva dos princípios que norteiam a feitura de dicionários escolares, como também chama a atenção para a importância de levar em conta "os diferentes tipos de conhecimentos registrados ou implicados em dicionários" (p. 51). É, decididamente, a contribuição que mais faz jus ao título da obra e suas declaradas pretensões.

Indubitavelmente, o livro organizado por Orlene Lúcia de Sabóia Carvalho e Marcos Bagno é muito bem vindo para um público tão carente de fontes bibliográficas nesta área. Ele vai, sem dúvida, muito contribuir para despertar a atenção dos leitores e, quem sabe, gerar um amplo interesse no assunto. Os organizadores do livro estão de parabéns pela empreitada mais do que oportuna.

E-mail: rajagopalan@uol.com.br

  • JOHNSON, Samuel (1755). Dictionary of the English Language Londres: J. & P. Knapton.
  • LYNCH, Jack e MCDERMOTT, Anne (orgs.). (2005). Anniversary Essays on Johnson's Dictionary Cambridge: Cambridge University Press.
  • ROLLINS, Richard M. (1976). 'Words as social control: Noah Webster and the creation of the American dictionary'. American Quarterly. Vol. 28. nş 4. pp. 415-430.
  • *
    Os trabalhos apresentados nesse evento foram publicados nos
    Anais do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada (1938) São Paulo, Departamento de Cultura.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Set 2011
    • Data do Fascículo
      2011
    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
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