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Sujeito da enunciação: singularidade que advém da sintaxe da enunciação

Enunciative subject: singularity derived from the enunciative syntax

Resumos

Este texto, a partir da leitura da teoria enunciativa criada por Émile Benveniste, desenvolve a noção de sujeito da enunciação ligando-a, metodologicamente, à noção de sintaxe de enunciação como forma de propor uma possibilidade de análise de fatos de língua. O texto ilustra a proposta metodológica em um dado de linguagem infantil.

enunciação; sujeito da enunciação; sintaxe da enunciação; singularidade enunciativa


This text, based on the reading of the enunciative theory created by Emile Benveniste, develops the notion of enunciative subject, methodologically linking it to the notion of enunciative syntax in order to propose a possibility for analyzing facts of language. The text illustrates this methodological proposal using data from child language.

utterance; enunciative subject; enunciative syntax; enunciative singularity


ARTIGOS ARTICLES

Valdir do Nascimento Flores

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, E-mail: vnf.ufrgs@gmail.com

RESUMO

Este texto, a partir da leitura da teoria enunciativa criada por Émile Benveniste, desenvolve a noção de sujeito da enunciação ligando-a, metodologicamente, à noção de sintaxe de enunciação como forma de propor uma possibilidade de análise de fatos de língua. O texto ilustra a proposta metodológica em um dado de linguagem infantil.

Palavras-chave: enunciação, sujeito da enunciação, sintaxe da enunciação, singularidade enunciativa.

ABSTRACT

This text, based on the reading of the enunciative theory created by Emile Benveniste, develops the notion of enunciative subject, methodologically linking it to the notion of enunciative syntax in order to propose a possibility for analyzing facts of language. The text illustrates this methodological proposal using data from child language.

Key-words: utterance, enunciative subject, enunciative syntax, enunciative singularity

INTRODUÇÃO

Este texto1 1 . Este texto decorre de meu estágio de Pós-doutorado desenvolvido em Paris, sob a supervisão de Claudine Normand (Paris X, Nanterre) e de Dominique Ducard (Paris XII - Val de Marne). Esse estágio foi subsidiado pelo CNPq, através da concessão de uma bolsa de estudos. Agradeço a Claudine Normand a leitura que fez do texto. As imperfeições que nele ainda podem ser encontradas devem ser atribuídas exclusivamente a mim. Cabe ainda um agradecimento aos meus orientandos. Boa parte deste trabalho não teria sido possível sem a incansável ajuda deles: Daniel da Costa Silva, Heloísa Monteiro Rosário, Lia Cremonese e Paula Ávila Nunes. Agradeço também à professora Carmem Luci Costa Silva (UFRGS) que forneceu, através da disponibilização de seu Banco de Dados, o fato de língua que analiso na Parte 3 deste trabalho. foi produzido no seio de um projeto maior que visa a estudar o conjunto de textos de Émile Benveniste publicados nos dois volumes dos Problèmes de linguistique générale de forma a tomá-los como base para a formulação de uma perspectiva própria de análise da linguagem que fale da condição única do homem na língua. Essa perspectiva é aqui chamada de singularidade que advém de uma sintaxe da enunciação2 2 . Cabe observar, também, que este texto é parte de um trabalho bem mais longo. Cf. Flores, valdir do nascimento. "Sujet de l'énoncé et ébauche d'une réflexion sur la singularité énonciative". In: Normand, Claudine (Org.). Paralleles floues: vers une théorie du langage. No prelo. .

O ponto de partida é considerar que a expressão o homem na língua - utilizada pelo próprio Benveniste - evoca a indissociabilidade do singular (homem) e do repetível (língua). Na perspectiva benvenistiana, o homem não só está na língua, mas sua existência se singulariza na repetibilidade da língua. Assim, busca-se alargar essa teoria de forma a produzir uma reflexão que, embora não oposta à formulação teórica de Benveniste, não pode ser, pari passu, identificada a ela.

Parto da constatação de que é comum, no âmbito da lingüística em geral, mas também em outros campos teóricos, a referência a Benveniste quando se quer fazer a distinção entre sujeito da enunciação (sujet de l'énonciation) e sujeito do enunciado (sujet de l'énoncé) ou mesmo entre enunciação e enunciado. No entanto, uma leitura atenta de sua teoria permite ver que Benveniste não fez tais distinções com a clareza que lhes é atribuída.

Considere-se a dupla enunciação/ enunciado: essa distinção, mesmo que possa ser inferida das idéias de Benveniste, mereceria ser mais bem explicada. Em O aparelho formal da enunciação, um dos textos mais complexos da teoria benvenistiana, há apenas duas ocorrências de enunciado em contexto que alterna com enunciação3 3 . Há outra ocorrência de énoncé, nesse mesmo texto, mas sem alternar com énonciation: " Le sens de chaque énoncé ne peut être relié avec le comportement du locuteur ou de l'auditeur, avec l'intention de ce qu'ils font " (PLG II :87) [grifo meu]. . Leia-se:

Le discours, dira-t-on, qui est produit chaque fois qu'on parle, cette manifestation de l'énonciation, n'est-ce pas simplement la " parole " ? - Il faut prendre garde à la condition spécifique de l'énonciation : c'est l'acte même de produire un énoncé et non le texte de l'énoncé qui est notre objet. (PLG II4 4 . Problèmes de linguistique générale I (1966) e Problèmes de linguistique générale II (1974) são referidos no texto, respectivamente, como PLG I e PLG II, seguidos da página das edições em questão. : 80) [Grifo meu]

Nesse caso, Benveniste parece estabelecer uma diferença entre o que é da ordem do "acte de produire un énoncé", a enunciação, e o que é da ordem do "énoncé" propriamente dito. Porém, cabe ressaltar, essa diferença não recebe ênfase no texto em questão.

Considere-se, em segundo lugar, a dupla sujeito do enunciado/sujeito da enunciação. Essas expressões parecem também não ter lugar nos escritos de Benveniste.

A respeito, especificamente, do sintagma sujet de l'énonciation, Claudine Normand, em Les termes de l'énociation chez Émile Benveniste, observa que nem sujet de l'énonciation nem sujet d'énonciation são utilizados por Benveniste. Para Normand, "la théorie de l'énonciation implique donc un sujet mais n'en fait pas la théorie" (Normand: 1986 : 202). Para ela, Benveniste empenha-se, na verdade, em formular uma teoria da significação e, por esse viés, é levado a encontrar o sujeito:

liée à la signification, la question du sujet est à la fois ce qui suscite et alimente l'élaboration de cet ensemble de notions et ce qui l'empêche de s'achever dans la pseudo-solution du sémiotique/sémantique. [...] le terme sujet d'énonciation serait l'élément central d'une théorie achevée ; son absence est alors significative (Normand 1986 : 202).

Admitida a pertinência dessas observações, ainda assim poder-se-ia indagar: o fato de Benveniste não ter operado textualmente com os dois pares de distinções inviabilizaria que ambos fossem decantados do seu sistema de pensamento?

Nesse caso, a pergunta não se dirige ao que há de explícito na teoria de Benveniste. Ao contrário disso, para respondê-la é necessário interpretar o que se acredita estar implícito, melhor dizendo, é necessário instaurar um ponto de vista de leitura. Em outras palavras: entre afirmar a existência de termos, noções e conceitos em um autor e depreender algo da leitura que se faz de sua obra há uma diferença de natureza epistemológica. Meu trabalho, logo direi por que, se coaduna com esta segunda atitude.

Assim, este texto objetiva depreender do trabalho fundador de Émile Benveniste princípios que possibilitem formular uma noção de sujeito da enunciação que dê lugar à análise de fatos de língua. O resultado pretendido é o que, na falta de melhor designação, chamo de esboço de uma reflexão sobre a singularidade enunciativa 5 5 . Essa reflexão é, aqui, apenas resumidamente apresentada, uma vez que o conjunto da reflexão só é possível de ser verificado em trabalho anterior (cf. nota 2). que, em minha opinião, está diretamente ligada à noção de sintaxe da enunciação (cf. item 2).

Acredito que é possível ler nas entrelinhas da teoria de Benveniste indicações programáticas que permitem vislumbrar uma reflexão que inclui algo que até poderia ser nomeado de sujeito da enunciação. No entanto, isso não poderia ser feito sem, de um lado, se perceber que há em Benveniste apenas indicações e não instruções absolutas e, de outro lado, sem se alargar o quadro teórico explicitado por Benveniste.

Dito de outra forma, considero que a teoria de Benveniste deixa entrever um lugar para o sujeito da enunciação, que pode ser inferido da compreensão da rede conceitual que sustentaria essa noção. Penso poder demonstrar - sem, com isso, ferir princípios epistemológicos que norteiam a reflexão do autor - os termos pelos quais se constrói essa rede, o que farei na primeira parte deste texto. Essa interpretação implicará, necessariamente, o alargamento da teoria benvenistiana.

O leitor verá, então, que este texto se constrói na simultaneidade de dois movimentos: de um lado, busca identificar em Benveniste princípios que, mesmo não admitidos pelo autor, autorizariam falar em sujeito (ao qual, creio, se poderá acrescentar o restritivo da enunciação); de outro lado, busca reinterpretá-los, estendendo-os a uma outra perspectiva de análise do fatos de língua, a da sintaxe da enunciação.

Feitos esses esclarecimentos iniciais, encontra-se adiante o seguinte percurso: na primeira parte, explicito a rede conceitual da teoria de Benveniste que, segundo penso, autorizaria pensar na noção de sujeito da enunciação. Na segunda parte, esboço os princípios do que chamo de singularidade enunciativa, que, acredito, apresenta um viés de análise de fatos de língua que considera o sujeito da enunciação e a sintaxe de da enunciação, conforme são aqui definidos. Finalmente apresentam-se as conclusões

1. A ENUNCIAÇÃO

Explicito, a seguir, como acredito que é possível depreender da teoria de Benveniste uma noção de sujeito da enunciação. Para tanto, apresento o modelo de leitura da teoria utilizado (cf. 1.1) para em seguida proceder à definição dos termos implicados na noção de sujeito da enunciação (cf. 1.2; 1.3; 1.4). Finalmente, teço considerações acerca do alargamento da teoria benvenistiana decorrente da circunscrição da noção.

1.1. O ponto de vista de leitura

Parto de um princípio epistemológico de leitura: a teoria de Benveniste aceita ser lida como uma complexa rede conceitual cujos termos e noções estão interligados a partir de diferentes relações - hierárquicas, paralelas, transversais etc. - entre si. Nesse sentido, muitos dos conceitos propostos por Benveniste têm valor primitivo, na medida em que integram outros conceitos. Ou seja, os termos e as noções que fazem parte de um dado conceito contêm outros termos e noções e estes, por sua vez, estão contidos em muitos outros.

Tome-se apenas um exemplo. Diz Benveniste: " La 'subjectivité' dont nous traitons ici est la capacité du locuteur à se poser comme 'sujet'" (PLG I : 259). O entendimento do que vem a ser "subjetividade" - considerando-se essa formulação de Benveniste - exigiria do leitor que tivesse presente também o que o autor entende por "locutor" e "sujeito" os quais, por sua vez, remetem a outras noções ("língua" e "linguagem", por exemplo).

Admitido este raciocínio, pode-se dizer que há em Benveniste conceitos, termos e noções cuja compreensão decorre das relações que mantêm com outros conceitos, termos e noções. Isso significa que é difícil, nessa teoria, estudar-se um elemento isoladamente.

Este é o meu viés de leitura da teoria enunciativa de Benveniste: considerá-la como uma rede de primitivos teóricos.

A partir desse ponto de vista de leitura, cabe perguntar: haveria algum princípio de base da reflexão de Benveniste? Haveria uma espécie de a priori a partir do qual se desenharia toda a teoria? Em havendo, como ele se configuraria?

Em minha opinião, o princípio primeiro - aquele que é condição de inteligibilidade da teoria - está formulado no texto De la subjectivité dans le langage, de 1958. Diz Benveniste:

Nous n'atteignons jamais l'homme réduit à lui-même et s'ingéniant à concevoir l'existence de l'autre. C'est un homme parlant que nous trouvons dans le monde, un homme parlant à un autre homme, et le langage enseigne la définition même de l'homme. (PLG I : 259)

Sublinhe-se isto - e a repetição aqui não é um exagero: le langage enseigne la définition même de l'homme porque est un homme parlant que nous trouvons dans le monde. O homem é homem porque tem linguagem. Opor o homem à linguagem é opô-lo à sua própria natureza. Eis o a priori radical de Benveniste6 6 . Esse a priori recebe muitas versões no conjunto dos textos de Benveniste e mereceria um estudo mais detalhado. Por vezes, por exemplo, esse princípio está associado a uma noção de cultura. É esse o caso, quando Benveniste afirma que " nous voyons toujours le langage au sein d'une société, au sein d'une culture " (PLG II :24). E também: " et si j'ai dit que l'homme ne naît pas dans la nature, mais dans la culture, c'est que tout enfant et à toutes les époques, dans la préhistoire la plus reculée comme aujourd'hui, apprend nécessairement avec la langue les rudiments d'une culture. Aucune langue n'est séparable d'une fonction culturelle " (PLG II :24). : o homem é de natureza intersubjetiva porque é constituído pela linguagem. Esse princípio é reiterado inúmeras vezes e em vários textos de Benveniste. A seguir eu o retomarei em relação a outras noções. Por ora, quero apenas sublinhar sua existência7 7 . A conseqüência de se admitir a existência de tal princípio é clara: a organização em blocos temáticos dos PLG I e II propicia a escolha de um percurso de leitura sem que, com isso, se tenha algum prejuízo quanto à leitura, pois os fundamentos da teoria se fazem presentes em cada um dos textos. .

Enfim, explicitado o modo como leio Benveniste, passo, propriamente, a apresentar os termos pelos quais acredito ser possível entrever o lugar reservado ao sujeito da enunciação. Para esse propósito, creio que, tomando o termo intersubjetividade como ponto de partida, deve ser considerado o seguinte percurso: linguagem, língua, línguas, intersubjetividade, subjetividade, categoria de pessoa, homem, sujeito e locutor.

1.2. Linguagem, língua, línguas

Começo este item lembrando um episódio bastante conhecido dos leitores de Benveniste. Trata-se da forma como ele nomeia a parte "O homem na língua", no Avant-propos do Problemas de lingüística geral I . Ele a chama de "O homem na linguagem". Diz ele: "L'homme dans le langage est le titre de la partie suivante" (PLG I: 2) [grifo meu]. Essa troca de palavras não passou despercebidamente por atentos leitores de Benveniste e já serviu de argumento para conclusões bem diferentes entre si8 8 . Para contextualizar: Claude Hagège diz que " [...] la 5ème partie des Problèmes (p. 223-285), qui rassemble les six articles fondant la théorie de l'énonciation, s'intitule 'L'homme dans la langue' (par une étrange erreur, Benveniste, dans l'Avant-propos, s'y réfère sous le titre 'l'homme dans le langage'" (HAGEGE, 1986, p. 108). Aya Ono (2007), em nota na página 140 de seu livro, refere essa passagem de Hagège acrescentando que " [...] dans l'optique de Benveniste, l'homme est en même temps dans la langue et dans le langage ". Apenas para não deixar de fazer ouvir a voz de Benveniste nesse debate, vale lembrar a passagem de De la subjectivité dans le langage, em que o autor, falando da ausência de simetria entre "eu" e "tu" diz: " unique est la condition de l'homme dans le langage" (PLG I :260). .

Não quero tomar este "engano" senão pelo que ele deixa entrever do vínculo que há entre as noções implicadas (homem, linguagem e língua). Penso que ele sugere que língua e linguagem - mas também línguas - são de suma importância no pensamento de Benveniste e que todas são relevantes para o autor.

Tomemos apenas um exemplo: o artigo Le langage et l'expérience humaine, datado de 1965, presente no PLG II. O estudo que ali se desenvolve é da ordem da linguagem - o título já atesta isso - , da ordem da língua - já que a análise conclui em favor de uma generalização sistêmica da temporalidade lingüística - e da ordem das línguas - já que há análises do francês, certamente, mas também do chinook "parlée dans la région du fleuve Columbia" (PLG II : 75).

Talvez, então, o mais adequado seja supor que Benveniste fala em "homem na língua", mas também "na linguagem", já que isso é sobejamente mostrado nas análises que faz "das línguas".

Em Benveniste, linguagem, língua e línguas têm direito à existência e integram o sistema conceitual do autor sem se recobrirem teoricamente. Poder-se-ia dizer, sem medo de faltar com a verdade, que Benveniste é um lingüista das línguas - já que era conhecedor de muitas e a elas recorre para validar seu ponto de vista teórico - , mas também o é da língua e da linguagem. Mesmo que muitas vezes Benveniste utilize um termo no lugar de outro, a compreensão do conjunto de seus textos impede ver sinonímia entre eles ou mesmo hierarquização de valor.

Um pequeno exercício, não exaustivo, de contraposição entre os três termos - linguagem, língua e línguas - , em alguns textos de Benveniste, é suficiente para dar a conhecer as diferentes e complexas relações que eles instauram na teoria benvenistiana.

Primeiramente, a respeito de linguagem encontrei ocorrências em que:

a) linguagem alterna com faculdade, com condição humana ligada a aspectos de expressão simbólica:

[...] le langage représente la forme la plus haute d'une faculté qui est inhérente à la condition humaine, la faculté de symboliser (PLG I : 26) [Grifo meu]

[...] la faculté symbolique chez l'homme atteint sa réalisation suprême dans le langage, qui est l'expression symbolique par excellence. (PLG I : 28) [Grifo meu]

b) linguagem é apresentada relativamente a uso ordinário e a uso poético:

Notre domaine sera le langage dit ordinaire, le langage commun, à l'exclusion expresse du langage poétique... (PLG II : 216) [Grifo meu]

c) linguagem ocorre alternando com língua:

[...] le langage se réalise toujours dans une langue, dans une structure linguistique définie et particulière, inséparable d'une société définie et particulière. (PLG I : 29) [Grifo meu]

L'intersubjectivité a ainsi sa temporalité, ses termes, ses dimensions. Là se reflète dans la langue l'expérience d'une relation primordiale, constante, indéfiniment réversible, entre le parlant et son partenaire. En dernière analyse, c'est toujours à l'acte de parole dans le procès de l'échange que renvoie l'expérience humaine inscrite dans le langage. (PLG II : 78) [Grifo meu]

d) linguagem ocorre alternando com línguas:

L'universalité de ces formes [des pronoms] et de ces notions conduit à penser que le problème des pronoms est à la fois un problème de langage et un problème de langues, ou mieux, qu'il n'est un problème de langues que parce qu'il est d'abord un problème de langage. (PLG I: 251) [Grifo meu]

e) linguagem ocorre alternando com língua e com línguas:

On arrive ainsi à cette constatation - surprenante à première vue, mais profondément accordée à la réelle du langage - que le seul temps inhérent à la langue est le présent axial du discours9 9 . Mesmo não sendo objeto de minha análise neste momento, não poderia deixar de registrar que, nessa passagem, o termo discurso instaura uma relação muito particular entre os outros três termos. , et que ce présent est implicite. [...] Telle paraît être l'expérience fondamentale du temps dont toutes les langues témoignent à leur manière. (PLG II : 75) [Grifo meu]

f) linguagem ocorre alternando com linguagem10 10 . Em minha opinião, essa é uma das passagens mais complexas do uso do termo linguagem. :

Ce signe [je] est donc lié à l'exercice du langage et déclare le locuteur comme tel. C'est cette propriété qui fonde le discours individuel, où chaque locuteur assume pour son compte le langage entier. L'habitude nous rend facilement insensibles à cette différence profonde entre le langage comme système de signes et le langage assumé comme exercice par l'individu. Quand l'individu se l'approprie, le langage se tourne en instances de discours (PLG I : 254-255) [Grifo meu]

Em segundo lugar, a respeito de língua encontrei ocorrências em que:

a) língua é apresentada em contexto de ocorrência que alterna com língua:

[...] Au plan du signifié, le critère est : cela signifie-t-il ou non ? Signifier, c'est avoir un sens, sans plus. Et ce oui ou non ne peut être prononcé que par ceux qui manient la langue, ceux pour qui cette langue est la langue. Nous élevons donc la notion d'usage et de compréhension de la langue à la hauteur d'un principe de discrimination, d'un critère. C'est dans l'usage de la langue qu'un signe a une existence ; ce qui n'entre pas dans l'usage de la langue n'est pas un signe, et la lettre n'existe pas. Il n'y a pas d'état intermédiaire ; on est dans la langue ou hors de la langue, " tertium non datur (PLG II : 222) [Grifo meu]

b) língua é apresentada como idioma alternando com língua como sistema de formas:

[...] il y a la langue comme idiome empirique, historique, la langue chinoise, la langue française, la langue assyrienne et il y a la langue comme système de formes signifiantes, conditions premières de la communication. (PLG II : 94) [Grifo meu]

c) língua é apresentada relativamente a discurso:

Sur ce fondement sémiotique, la langue-discours construit une sémantique propre, une signification de l'intenté produite par syntagmation des mots où chaque mot ne retient qu'une petite partie de la valeur qu'il a en tant que signe. (PLG II : 229) [Grifo meu]

Em terceiro lugar, a respeito de línguas encontrei ocorrências em que:

a) línguas é apresentada no sentido de diferentes sistemas lingüísticos em geral:

[...] dans toutes les langues qui possèdent un verbe, on classe les formes de la conjugaison d'après leur référence à la personne. (PLG I : 225) [Grifo meu]

b) línguas é apresentada no sentido de sistemas lingüísticos específicos:

Dans les langues paléosibériennes, [...] les formes verbales du gilyak ne distinguent en général ni personne ni nombre (PLG I : 227) [Grifo meu]

A partir desse exercício não quero que se conclua que estou a cobrar alguma coerência terminológica do autor, já que ficam evidentes os diferentes sentidos que cada termo pode assumir. Essa questão é secundária para o meu raciocínio. O breve levantamento de ocorrências dos termos acima me permite, neste momento - e sem que eu possa argumentar mais - , apenas dizer que há em Benveniste uma preocupação em resguardar três instâncias que poderiam ser designadas por linguagem, língua e línguas, mesmo que, como espero ter demonstrado, esses termos, por vezes, sejam usados indistintamente.

Meu interesse é mostrar que as noções co-existem em Benveniste, sem que isso implique que elas ocorram, nos textos efetivos do autor, ligadas sempre aos mesmos itens lexicais. A noção, nesse caso, não corresponderia diretamente ao item lexical utilizado pelo autor em seu texto.

Enfim, desse roteiro de indagações acerca dos termos linguagem, língua e línguas em Benveniste, que instruções programáticas podem ser depreendidas para esboçar os princípios de uma abordagem enunciativa que releve do sujeito da enunciação?

Por ora, considero-as pressupostas no sistema de Benveniste. Nada há que se possa falar na teoria benvenistiana sem antes reconhecer que há em sua teoria as três instâncias. Diria que a admissão da validade dessa interpretação é condição necessária, mesmo que não ainda suficiente, do que passarei a abordar.

1.3. Intersubjetividade, subjetividade e categoria de pessoa

Como disse anteriormente, os termos e as noções da teoria benvenistiana estão de tal maneira interligados que é praticamente impossível falar em um sem falar em outro. No entanto, para fins de construção do meu raciocínio - o que busca entrever um lugar para o sujeito da enunciação na teoria, lugar esse que, creio, pode ser inferido da compreensão da rede conceitual que sustenta essa noção - tentarei estabelecer um viés de leitura.

O tema da intersubjetividade é recorrente em Benveniste, porém, o uso da palavra intersubjetividade é menos comum se comparado a subjetividade e a pessoa. Observe-se, a seguir:

Bien des notions en linguistique, peut-être même en psychologie, apparaîtront sous un jour différent si on les rétablit dans le cadre du discours, qui est la langue en tant qu'assumée par l'homme qui parle, et dans la condition d'intersubjectivité, qui seule rend possible la communication linguistique. (PLG I : 266) [Grifo meu]

[...] Le temps du discours n'est ni ramené aux divisions du temps chronique ni enfermé dans une subjectivité solipsiste. Il fonctionne comme un facteur d'intersubjectivité, ce qui d'unipersonnel qu'il devrait être le rend omnipersonnel. La condition d'intersubjectivité permet seule la communication linguistique. (PLG II : 77) [Grifo meu]

O que parece saltar aos olhos nessas duas passagens é a idéia de intersubjetividade como "condição de", o que se coaduna com a interpretação que apresentei anteriormente sobre a indissociabilidade entre homem e linguagem - e que por força retórica chamei de a priori radical - a partir da leitura de De la subjectivité dans le langage. A linguagem é "condição do" homem - já que é ela que "enseigne la définition même de l'homme" - que nela está sob a "condição de intersubjetividade".

Isso se confirma na passagem seguinte, em que Benveniste fala de uma "expérience humaine inscrite dans le langage", ao que faz um acréscimo fundamental: trata-se de uma experiência que "se reflete dans la langue". Diz ele:

L'intersubjectivité a ainsi sa temporalité, ses termes, ses dimensions. Là se reflète dans la langue l'expérience d'une relation primordiale, constante, indéfiniment réversible, entre le parlant et son partenaire. En dernière analyse, c'est toujours à l'acte de parole dans le procès de l'échange que renvoie l'expérience humaine inscrite dans le langage. (PLG II : 78) [Grifo meu]

Aqui, intersubjetividade aparece como correlativa a uma "experiência humana" que "se reflète dans la langue".

É nesse ponto que se coloca um tema bastante delicado da teoria benvenistiana. Benveniste apresenta a linguagem - e isso fica claro em De la subjectivité dans le langage - como condição de existência do homem e como tal sempre referida ao outro, o que acaba por vincular linguagem e intersubjetividade. A linguagem é constitutiva do homem na justa medida em que a intersubjetividade lhe é inerente, sem o que não se poderia encontrar "dans le monde, un homme parlant à un autre homme".

Assim, poder-se-ia dizer que a mesma linguagem que "est dans la nature de l'homme, qui ne la fabrique" (PLG I : 259) é constitutiva desse homem sob a "condition d'intersubjectivité". E é essa condição que "se reflète dans la langue".

E como se poderia entender este "se reflete dans la langue"?

Em De la subjectivité dans le langage, ele diz: "c'est dans et par le langage que l'homme se constitue comme sujet..." (PLG I : 259). Esse "dans et par le langage" é fundamental porque confere à linguagem a propriedade de ser, ao mesmo tempo, "condição de" e "meio para". O "dans le langage" diz respeito à condição do homem; o "par le langage" diz respeito ao "se reflete dans la langue".

É preciso atentar ainda para algumas marcas tipográficas do texto De la subjectivité dans le langage. Diz Benveniste:

[...] c'est dans et par le langage que l'homme se constitue comme sujet ; parce que le langage seul fonde en réalité, dans sa réalité qui est celle d'être, le concept d'" ego ". (PLG I : 259)

O itálico de sa o remete indubitavelmente a sujet, também em itálico. Há a passagem de uma visão de homem para uma visão de sujeito, e isso ocorre em "dans et par le langage".

A partir desse raciocínio é que, creio, se inclui a questão da subjetividade. Observe-se:

[...] la " subjectivité " dont nous traitons ici est la capacité du locuteur à se poser comme " sujet ". (PLG I : 259)

Agora são as aspas que garantem a coesão da frase. Trata-se, nesse caso, de uma "subjectivité" que marca a passagem de "locuteur" a "sujet". Essa passagem se dá "dans et par le langage".

Para Benveniste, tal "subjectivité" "se determine par le statut linguistique de la 'personne' " (PLG I : 260).

A noção de "personne" tem "statut linguistique" e, por isso, pode ser assimilada ao que "se reflete dans la langue". O fundamento da subjetividade é dado pela categoria de pessoa, presente no sistema da língua através de determinadas formas (o pronome eu, por exemplo). A intersubjetividade - onde "Je n'emploie je qu'en m'adressant à quelq'un, qui sera dans mon allocution un tu" (PLG I : 260) e que foi antes apresentada como correlativa à "experiência humana" que "se reflète dans la langue" - aparece agora como também constitutiva da categoria de pessoa, já que "le langage n'est possible que parce que chaque locuteur se pose comme sujet, en renvoyant à lui-même comme je dans son discours" (PLG I : 260).

A discussão em torno da noção de pessoa é uma das primeiras elaboradas por Benveniste no escopo da sua reflexão. Ela está presente já em Estruturas das relações de pessoa no verbo, de 194611 11 . O tema aparece também em La nature des pronoms¸de 1956. , onde é formulada uma teoria lingüística da pessoa verbal - obtida a partir do questionamento relativo à noção clássica de pessoa, característica do verbo e dos pronomes pessoais - com base na estrutura opositiva entre as pessoas eu/tu e a não-pessoa ele. O autor as distingue a partir de duas correlações: a de personnalité - presente em eu/tu e ausente em ele - e a de subjectivité - marca exclusiva do eu. Benveniste volta-se contra a simetria que coloca eu, tu e ele no mesmo plano conceitual.

O princípio utilizado por Benveniste para explicar a oposição entre "eu", "tu" e "ele" decorre do que chama de "la langue en emploi et en action"12 12 ." La notion de sémantique nous introduit au domaine de la langue en emploi et en action ; nous voyons cette fois dans la langue sa fonction de médiatrice entre l'homme et l'homme, entre l'homme et le monde, entre l'esprit et les choses [...] " (PLG II :224) . É a partir dela que o autor pode afirmar que a "primeira pessoa" e a "segunda" se opõem à "terceira", porque as duas primeiras estão implicadas na "língua em emprego", ao passo que a "terceira" não. " 'Je' désigne celui qui parle et implique en même temps un énoncé sur le compte de 'je': disant 'je', je ne puis ne pas parler de moi" (PLG I :228). Em outras palavras, "est 'ego' qui dit 'ego' " (PLG I :260), o que instaura uma diferença de "je" em relação a "tu", já que " 'tu' est nécessairement designé par 'je' et ne peut être pense hors d'une situation posée à partir de 'je' " (PLG I :228).

Desfaz-se, assim, a simetria entre "eu" e "tu". Entre um e outro há oposição e complementaridade, uma vez que a referência é atribuída, simultaneamente, a ambos. O mesmo ato que dá existência a "eu" dá existência a "tu". A noção de pessoa é, ela mesma, constituída pela reciprocidade: o dizer que implica a subjetividade também implica a intersubjetividade. Disso decorre a dualidade e a indissociabilidade da noção de pessoa. Estão na língua, juntas, subjetividade e intersubjetividade.

Em termos de encaminhamento de meu raciocínio, diria que as três instâncias antes identificadas no pensamento de Benveniste - linguagem, língua e línguas - se fazem acompanhar, mesmo que não com estatutos equivalentes, de intersubjetividade, subjetividade e pessoa.

1.4. Homem, locutor, sujeito

Meu ponto de partida para tratar a relação entre os três termos listados no título desta seção é a segunda parte do texto Coup d'oeil sur le développement de la linguistique, publicado em 1963 e constante da Parte I, Transformation de la linguistique, do PLG I. O texto se propõe a avaliar os desenvolvimentos recentes da lingüística. Interessa-me, especialmente, a discussão que é dedicada à "fonction du langage", apresentada após a primeira parte, que é dedicada à análise da "forme linguistique".

Benveniste, para falar da "fonction du langage", utiliza sobremaneira a palavra homem num sentido muito próximo daquele presente em De la subjectivité dans le langage, de 1958. Diz ele, em 1963:

[...] c'est qu'il n'y a pas de relation naturelle, immédiate et directe entre l'homme et le monde, ni entre l'homme et l'homme. Il y faut un intermédiaire, cet appareil symbolique, qui a rendu possibles la pensée et le langage. Hors de la sphère biologique, la capacité symbolique est la capacité plus spécifique de l'être humain. (PLG I: 29) [Grifo meu]

A vinculação da linguagem ao próprio do homem não é estranha ao pensamento benvenistiano. Exemplos que ilustram isso não faltam no conjunto dos textos. Assim é que se podem encontrar as seguintes passagens: em De la subjectivité dans le langage: "Le langage est dans la nature de l'homme, qui ne l'a pas fabriqué" (PLG I :259); em Communication animale et langage humaine, de 1952: "Appliquée au monde animal, la notion de langage n'a cours que par un abuse de termes" (PLG I :56); em Catégories de pensée et catégories de langue, de 1958: "... la possibilité de la pensée est liée à la faculté de langage" (PLGI:74); em Le langage et l'expérience humaine, de 1965: "... c'est toujours à l'acte de parole dans le procès de l'échange que renvoie l'expérience humaine inscrite dans le langage" (PLG II :78). Parece possível, então, resguardar esta conclusão: em Benveniste, antes de qualquer coisa, linguagem e homem são indissociáveis.

O termo locutor, por sua vez, tem muitas nuances no raciocínio de Benveniste. Para falar em locutor no escopo da teoria benvenistiana, é fundamental recorrer aqui à leitura de Aya Ono (2007), em La notion d'énonciation chez Émile Benveniste.

Ono (2007) precisa a necessidade teórica do termo no pensamento de Benveniste. Ao falar de "la phrase comme réalisation", a autora, comentando a resposta dada por Benveniste à pergunta de Paul Ricoeur sobre a possibilidade de a frase ser admitida no nível do semiótico (cf. La forme et le sens dans le langage), considera que:

[...] la phrase se réalise dans le temps et dans l'espace par une combinaison syntagmatique des mots, et elle est actualisée par un locuteur qui réalise cette double opération - la syntagmation et l'actualisation - dans le discours. Le concept de locuteur est donc indispensable pour articuler sémiotique et sémantique. (Ono 2007:71)13 13 . Ou ainda, por apreço à clareza: " Benveniste souligne à plusieurs reprises que le sémantique est le domaine de la langue en action et en emploi. Cette actualisation du système introduit nécessairement l'idée du locuteur qui utilise la langue. En effet, le locuteur intervient dans la théorisation du sémantique comme concept qui déclenche l'ensemble des opérations " (ONO 2007 : 126) [grifo meu]. " Ainsi, l'actualisation de la langue suppose le locuteur qui réalise la langue en un discours muni de sens et de référence " (ONO 2007 : 126) [grifo meu]. [Grifo meu]

Essa referência a Aya Ono cumpre aqui o duplo propósito de, por um lado, apresentar uma interpretação sobre a noção de locutor em Benveniste sobre a qual, em minha opinião, não cabe emenda e, por outro lado, para assinalar que, admitidas as informações de Ono, é possível concluir que o termo locutor reveste-se de um sentido, no mínimo, distinto daquele que pode ser atribuído a homem e também, como se verá adiante, a sujeito.

Isso posto, gostaria de fazer alusão ainda a outras observações de Aya Ono. A questão do locutor volta a ser abordada pela autora no item "Troisième instance: la subjectivité hors du langage" de seu livro. Ono, nesse item, parte do texto de Claudine Normand, também aqui lembrado, Les termes de l'énociation chez Benveniste, para destacar a ausência do sintagma sujet de l'énonciation (e também sujet d'énonciation). A autora formula uma observação que é de sumo interesse para mim. Diz ela:

Bien qu'il [Benveniste] ne développe le concept du sujet ni dans la théorisation du sémantique ni dans la problématique des déictiques, il laisse une place vide, assigné au sujet, dans sa linguistique. (Ono 2007:163)

Para desenvolver essa idéia, Ono elabora duas hipóteses das quais apenas a primeira será aqui retomada, ou seja, a hipótese de que "oppose le locuteur au e sujet" (Ono: 2007:163). A autora argumenta que "Il faut préciser le statut du locuteur" (Ono: 2007:164). Retomando a idéia de "appropriation"14 14 . "... l'énonciation peut se définir, par rapport à la langue, comme un procès d' appropriation" (PLG II :82) , presente em L'appareil formel de l'énonciation, de 1970, e a idéia do "s'approprier"15 15 . "Le langage est ainsi organizé qu'il permet à chaque locuteur de s'approprier la langue entière en se désignant comme je" (PLG I :262) , presente em De la subjectivité dans le langage, de 1958, Ono explica ainda que tais palavras podem enviar a uma "initiative individuelle" (Ono: 2007:164), "Benveniste semble ici viser autre chose" (Ono: 2007:164). Para ela:

Benveniste souligne indiscutablement l'initiative du langage dans ce procès d'appropriation. Le langage conduit chaque locuteur à s'approprier de la langue. Autrement dit, le locuteur se laisse entraîner par le langage au sein du procès de l'énonciation. Le locuteur est invité à parler, et en conséquence, s'approprie la langue. (Ono 2007:165)

A conseqüência desse raciocínio de Aya Ono é que "dans cette terminologie, le locuteur n'est pas le sujet." (Ono 2007:165), conclusão com a qual estou de pleno acordo e nada penso acrescentar.

Precisados os termos homem e locutor, é chegado o momento de melhor entender o termo sujeito. Para dele falar, embora eu esteja de acordo com Aya Ono quando diz que "... il laisse une place vide, assignée au sujet, dans sa linguistique" (Ono 2007:163), pretendo seguir um caminho próprio, um caminho que, em minha opinião, abre a teoria de Benveniste à exterioridade teórica da lingüística e, por essa abertura, penso poder falar algo sobre sujeito da enunciação.

Em primeiro lugar cabe lembrar que não se trata de precisar em Benveniste o termo sujeito da enunciação, uma vez que se admite, com Normand (1986), a inexistência do termo na teoria benvenistiana. Também não se trata de procurar o termo sujeito do enunciado, esse também não utilizado por Benveniste.

O que está em questão aqui é apenas o termo sujeito em algumas de suas numerosas ocorrências O termo aparece, nos textos de Benveniste, em diferentes sentidos e, evidentemente, transcenderia os meus objetivos o levantamento de todos. Meu propósito, aqui, é mais simples: quero apenas verificar se, dos usos do termo sujeito feito por Benveniste, é possível depreender algo do que chamo de sujeito da enunciação, ou, ainda, do que considero ser um ponto de abertura da lingüística de Benveniste à exterioridade teórica.

Excetuadas as ocorrências em que sujeito tem uso próximo a estudos da tradição gramatical ou relativos à sintaxe em seu aspecto formal, um breve levantamento me permitiu vislumbrar algumas ocorrências e seus respectivos sentidos aproximativos.

Encontrei usos que se poderia chamar de não-teóricos, já que eles não têm grandes implicações no conjunto da reflexão: trata-se, nesse caso, de sujeito relativo a indivíduo que fala. Em Structure des relations de personne dans le verbe, de 1946, Benveniste, comentando a ordem social presente nas distinções verbais do coreano, diz que "les formes sont diversifiées à l'extrême selon le rang du sujet et de l'interlocuteur, et varient suivant qu'on parle à un supérieur, à un égal ou à un inférieur" (PLG I :226) [grifo meu].

Não muito distante desse uso está uma ocorrência de sujeito em L'appareil formel de l'énonciation. Ao falar da realização vocal da língua e da prática científica que procura eliminar ou atenuar os traços individuais da enunciação, Benveniste diz que o lingüista recorre "... à des sujets différents" (PLG II :80) para multiplicar os registros e alerta que a noção de identidade, em se tratando de realização vocal, é apenas aproximativa, já que "... chez le même sujet, les mêmes sons ne sont jamais reproduits exactement..." (PLG II :81).

Há, também, usos cuja especificidade decorre da alternância com outros termos. Como em Structure de la langue et structure de la societé, de 1968, em que a especificidade de sujeito decorre da alternância com parlant: "Pour chaque parlant le parler émane de lui et revient à lui, chacun se détermine comme sujet à l'égard de l'autre ou des autres" (PLG II :98).

As nuances de sentido podem se complexificar ainda mais em função dos termos que co-ocorrem com sujeito. Observe-se a passagem a seguir, presente em La nature des pronoms, em que Benveniste utiliza, primeiramente, a expressão "sujet parlant" entre aspas e, em seguida, diz: "c'est en s'identifiant comme personne unique prononçant je que chacun des locuteurs se pose tour à tour comme 'sujet' " (PLG I :254) [grifo meu]. Há aqui termos que não se recobrem teoricamente: sujet parlant, personne, locuteurs e sujet.

Essa co-ocorrência de termos destacada acima é bastante importante para o desenvolvimento da leitura que faço de Benveniste, porque dela, em minha opinião, é possível depreender uma idéia de "passagem" de uma instância a outra.

Por motivos óbvios, o termo adquire grande relevância teórica em De la subjectivité dans le langage, de 1958. Nesse texto, Benveniste parece deixar entrever que o sujeito não é nem homem - "C'est dans et par le langage que l'homme se constitue comme sujet." (PLG I :259) [grifo meu] - , nem locutor - "La 'subjectivité' dont nous traitons ici est la capacité du locuteur à se poser comme 'sujet' " (PLG I :259) [grifo meu]16 16 . Ou ainda: " Le langage n'est possible que parce que chaque locuteur se pose comme sujet, en renvoyant à lui-même comme je dans son discours" (PLG I :260) . " C'est dans l'instance de discours où je désigne le locuteur que celui-ci s'énonce comme ' sujet' " (PLG I :262) [grifo meu]. .

Na leitura que faço, o sujeito poderia ser pensado como um efeito da apropriação, como um efeito do "mise en fonctionnement de la langue par un acte individuel d'utilisation" (PLG II :80), da "conversion individuelle de la langue en discours" (PLG II :81). Isso me permite dizer que a apropriação da qual fala Benveniste não pode ser vista como um mero "tomar posse de", o que estaria em oposição às idéias do autor. O sentido de apropriação, para mim, é mais próximo de "tornar próprio de si". Nesse sentido, não seria um contra-senso dizer que o sujeito seria da enunciação porque ele adviria da enunciação.

No entanto, para desenvolver essa idéia, a de um sujeito que advém da enunciação, é necessário problematizar - e eu não farei mais do que anunciar isso aqui - as noções de semiótico e semântico e as de forma e sentido, em Benveniste. Isso porque, na interpretação que faço, enunciar, na medida em que é "... cette mise en fonctionnement de la langue par um acte individuel d'utilisation", é também um ato de "agencement des mots", um "agencement syntagmatique" (PLG II :225) que implica uma relação específica entre a forma e o sentido.

Não é de estranhar, portanto, que Benveniste vá falar - e o termo é fundamental para o que estou propondo - em uma "syntaxe d'énonciation" exatamente quando fala do locutor "se poser" como sujeito: Diz ele:

Chaque locuteur ne peut se poser comme sujet qu'en impliquant l'autre, le partenaire qui, doté de la même langue, a en partage le même répertoire de formes, la même syntaxe d'énonciation et la même manière d'organiser le contenu. (PLG I :25) [Grifo meu]

Esta "syntaxe d'énonciation" é, ao meu ver, a condição única de presença do homem na língua, cuja característica principal é a relação singular entre a forma e o sentido que se dá pela "conversion individuelle de la langue en discours", ou seja, pela enunciação.

O sujeito seria da enunciação na justa medida em que ele adviria, como um efeito semântico, dessa "syntaxe d'énonciation".

Para falar desse sujeito que advém pela enunciação, eu gostaria de me apropriar de uma consideração de Normand (2001) - mesmo que correndo o risco de descontextualizá-la. A autora encerra seu texto, que avalia as relações entre lingüística e psicanálise, dizendo:

Dans ce type d'écoute où l'oreille analytique et l'oreille linguistique se confortent, on s'aperçoit que le sujet de l'énonciation, loin de se limiter à une catégorie d'unités linguistiques dont le rôle et la place seraient bien cernés (les fameux shifters), peut se manifester et multiplier les significations n'importe où, là où on l'attendrait le moins ; ce que pressentait, je crois, Benveniste quand il distinguait le sémantique du sémiotique, mais sans accepter toutes les conséquences de cette inquiétante découverte. (Normand 2001:29) [Grifo meu]

Eu também acredito que o sujet de l'énonciation não se limita ao lugar classicamente concedido ao "fameux shifter"; eu também acredito que ele "peut se manifester et multiplier les signications n'importe où, là où on l'attendrait" e eu também acredito que é isso "que pressentait, (...), Benveniste quand il distinguait le sématinque du sémiotique".

Para mim, esse sujet de l'énonciation está indelevelmente ligado à syntaxe d'énonciation.

De minha parte, a presença na reflexão lingüística desse sujeito da enunciação - que advém da enunciação, que se inscreve numa "syntaxe d'énonciation" e que "dans et par" ela tem existência - exige do lingüista a convocação de uma exterioridade teórica à lingüística, exatamente porque essa "syntaxe d'énonciation", longe de se apresentar como uma fórmula generalista qualquer, é a marca específica de uma relação singular (dissimétrica?) entre forma e sentido.

2. ESBOÇO DE UMA REFLEXÃO SOBRE AS SINGULARIDADES ENUNCIATIVAS OU SOBRE A SYNTAXE D'ÉNONCIATION

Finalmente, passo a apresentar o já tão anunciado esboço de uma reflexão sobre as singularidades enunciativas17 17 . Evidentemente não se desconhece que supor uma reflexão lingüística que tome por princípio a noção de singularidade é, no mínimo, tocar em questões muito caras à lingüística geral. Em outros termos: é possível fazer teoria sobre o singular? A palavra teoria não seria refratária à noção de singularidade? Qual a validade de uma teoria que se propõe a discorrer sobre o que não é generalizável? que, como o título acima já diz, é, em minha opinião, relativa à syntaxe d'énonciation. E começo fazendo uma distinção que é fundamental para o que estou propondo.

De um lado, o conceito de enunciação está ligado ao princípio da generalidade do específico. Explico-me: o aparelho formal da enunciação - expressão cunhada por Benveniste para designar os dispositivos que as línguas têm para, por um ato singular de utilização, os locutores se proporem como sujeitos - é geral - alguns diriam universal, já que não se admite língua que não o tenha - e específico, simultaneamente. A especificidade, por sua vez, se apresenta em dois planos distintos e interligados: a) no plano das línguas, já que cada língua apresenta seus próprios mecanismos; b) no plano da singularidade que advém de cada instância de discurso.

Assim, a enunciação é um conceito, a um só tempo, universal (geral) e particular (específico). Isso pode receber a seguinte formulação axiomática: é universal que todas as línguas tenham dispositivos que permitam um uso singular na instância de discurso. A essa formulação axiomática chamo de noção teórica18 18 . Quando uso a expressão quase tautológica "noção teórica" é para assinalar que não se está, ainda, no campo da descrição lingüística. A seguir, a enunciação será também definida quanto aos aspectos descritivos que supõe. de enunciação.

Por outro lado, o conceito de enunciação está ligado a uma noção que chamo de descritiva, relativa à análise dos fatos de língua. Para mim, do ponto de vista descritivo, a enunciação é o ato de tentar afunilar o sentido19 19 . Esse ato é constituído por "tudo não se diz", uma espécie de eixo associativo que se faz presente pela ausência; ausência convocada pelo elemento que está na cadeia. Trata-se de uma ausência radical, ausência barrada ao campo no simbólico, mas que nele aparece numa singular à syntaxe d'énonciation. .

É nesse ponto que vislumbro a possibilidade de falar no sujeito da enunciação, no sujeito que advém da enunciação, que se marca via syntaxe d'énonciation cuja característica mais óbvia, mas não a única, é ser uma relação singular entre forma e sentido. Para usar uma metáfora, a enunciação é uma espécie de "funil" mesmo por onde o locutor faz passar a língua na tentativa de assegurar um sentido20 20 . O locutor pode, inclusive, fazer uso inverso desse "funil", quando exatamente o que está em jogo é não assegurar um sentido. No primeiro caso, estão os discursos que visam ao monossemismo, no segundo caso, os que visam à polissemia. .

O sujeito da enunciação advém do ato de tentar afunilar o sentido. Essa tentativa de afunilar requer e, por isso mesmo, produz uma syntaxe d'énonciation.

Resta ainda explicitar o que estou entendo pela palavra "tentativa" usada acima. Ela, em suma, resguarda a instabilidade constitutiva de todo o dizer21 21 . A isso que estou chamando de "tentativa" faço corresponder, no campo lingüístico, as implicações decorrentes da clivagem do sujeito estabelecida, no campo da psicanálise, por Jacques Lacan. . Explico-me: se, por um lado, o ato de afunilar o sentido é sempre um esforço para tudo dizer, para direcionar, para cercar o sentido; por outro lado, a syntaxe d'énonciation mostra o que há de vão nesse esforço; mostra a impossibilidade que o sentido dirigido seja integralmente construído.

A eterna tentativa de afunilar o sentido é, em última instância, uma apropriação imaginária que se marca no simbólico por operações específicas. Tais operações fazem parte da syntaxe d'énonciation.

Isso posto, cabe ainda fazer algumas observações, mesmo que introdutórias, a respeito dos "dados" que sustentariam, do ponto de vista da análise lingüística, essa abordagem da syntaxe d'énonciation, ou ainda, a respeito do que chamei, inspirado em Benveniste, de fatos de língua. Em outras palavras, que mecanismos lingüísticos, que fatos de língua, permitiriam ver que o sujeito da enunciação dela advém por um recurso singular à syntaxe d'énonciation.

Para falar disso, começo com uma observação que, apesar de aparentemente banal, é instigante: trata-se do fato de que é constitutivo do homem que ele tenha de se expressar na língua. Podemos até não falar a mesma língua, mas precisamos estar em uma língua, seja ela qual for. Essa é a condição de existência do homem, e sobre isso Benveniste discorre com maestria, como espero ter demonstrado acima.

De certa maneira, Roland Barthes também fala disso, em aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária no Collège de France: "... la langue, comme performance de tout langage, n'est ni réactionnaire, ni progressiste; elle est tout simplement fasciste; car le fascisme, ce n'est pas d'empêcher de dire, c'est d'obliger à dire" (1978:14).

A questão que se coloca é, então, como se coaduna o "fascismo" da língua que parece evocar a repetibilidade com o que tenho colocado sob o rótulo - genérico, é verdade - da singularidade enunciativa.

A primeira observação que salta aos olhos é que, considerada uma situação trivial de diálogo, não se teria dificuldade em dizer se os interlocutores falam, ou não, a mesma língua, o português, por exemplo. Reconhecem-se nos enunciados proferidos estruturas gramaticais e lexicais que permitem afirmar se falam, ou não, uma dada língua.

Por outro lado, não se poderia negar que cada um fala essa língua de maneira muito singular. Essa singularidade não é acessória, mas, ao contrário, ela contribui definitivamente para que se possa atribuir este ou aquele sentido ao que foi dito. É tal singularidade que é colocada em relevo quando, por exemplo, se retoma em discurso citado as palavras de alguém. O falante comum sabe bem da dificuldade que constitui todo o ato de retomar a - e retornar à - palavra alheia, e não raras vezes traduz isso em comentários próprios à metalinguagem natural. São as dúvidas - "não sei se foi bem isso que ele disse" - , são as indagações acerca da verdade do dito - "mas o que ele quis dizer com isso?" - , são as recomendações em prol da exatidão - "diga exatamente o que ele disse", entre outras.

Penso que a essa obviedade é possível fazer corresponder um princípio cujo alcance precisa ser mais bem avaliado. Chamo-o de princípio da irredutibilidade do dizer de um ao dizer do outro. Segundo esse princípio, aquilo que é enunciado comporta especificidades que, em minha opinião, são relativas à syntaxe d'énonciation. Essa irredutibilidade constitutiva implica admitir certa intraduzibilidade do dizer de um pelo dizer do outro.

Esse princípio se assenta na admissão de certa "assimetria" constitutiva de toda a enunciação. Essa assimetria está para além da acomodação no face a face - sua mais óbvia manifestação - , ela diz respeito à inexistência da total equivalência entre duas coisas, quando o que está em questão é o sujeito.

O princípio da irredutibilidade do dizer de um ao dizer do outro, a meu ver, dá indicações sobre a natureza dos fatos de língua que podem ser analisados sob a ótica do que estou esboçando aqui. Se a enunciação pode ser vista como uma tentativa de afunilar o sentido, os mecanismos inerentes a isso marcam uma relação entre a forma e o sentido que é sempre da ordem do singular e que configura a syntaxe d'énonciation.

Os fatos de língua eleitos para a análise - para cada análise - estão na dependência da escuta que o lingüista possa ter deles. A minha hipótese é que tanto os fatos como a análise que se faz deles decorrem da escuta do lingüista no après-coup, o que coloca em relevo a syntaxe d'énonciation e o sujeito da enunciação que "dans et par" ela tem existência.

O après-coup, da forma como o entendo aqui, nada mais é do que um tempo ligado a um sentido decorrente da organização do enunciado. A syntaxe d'énonciation se oferece à interpretação somente no après-coup. Esse tempo é-lhe constitutivo.

Para ilustrar o que estou dizendo, gostaria de tomar em análise um fato de língua que, ao menos na interpretação que dele faço, ilustra a syntaxe d'énonciation.

O fato22 22 . Originalmente usado em artigo de Silva (2002) e também em Silva (2006). diz respeito à fala de Franciele, uma menininha de pouco mais de um ano e oito meses. O episódio é o seguinte: Franciele usava com freqüência a expressão de xingamento "droga" (na fala de Franciele, na verdade, ouve-se "dóga") sempre que algo não dava certo em suas brincadeiras, motivo pelo qual a mãe seguidamente a repreendia. Certo dia, a criança estava brincando, sua mãe estava por perto e algo deu errado na brincadeira. Então Franciele começou a dizer: ... A mãe, imediatamente, antes mesmo que Franciele acabasse a palavra, repreendeu-lhe dizendo: Franciele!, ao que a menina encadeia dizendo doguinha.

Do ponto de vista da morfologia do Português do Brasil (PB), - inha/ - inho pode aparecer ligado a substantivos (mesinha), adjetivos (bonitinho), advérbios (agorinha), pronomes (tudinho) etc. O sentido que ele pode receber no uso é bastante variado na Língua Portuguesa e inclui, no mínimo23 23 . Os exemplos são retirados de Basílio (2004). : descrição do "tamanho" do objeto acompanhada de alguma avaliação (Eram duas caixas, com vinte ovinhos de chocolate cada); função denotativa do "tamanho" do objeto (cafezinho, colherinha); marcação de depreciação (pedacinho, livrinho); função de atenuação (Pode me dar um momentinho só); marcação de afetividade em relação ao objeto referido (Eu fiz um franguinho especial para você!); indicação de afetividade em relação ao interlocutor (Filhinho, toma a sopinha).

Não ficarei listando mais usos que os lingüistas que descrevem a morfologia do (PB) identificam, detalhadamente, para as ocorrências de - inha/ - inho. Minha questão aqui é mostrar que o recurso a - inha instaura na fala de Franciele algo muito distinto se comparado a essas descrições.

Proponho que - inha, na fala de Franciele, seja tomado como uma negação. Explico-me: pelo uso de - inha, em doguinha, Franciele nega em várias instâncias: primeiro, na instância relativa à expectativa de que ela diria dóga - expectativa que está presente na repreensão que lhe é dirigida pela mãe - ; segundo, na instância que rejeita o traço negativo de "droga", ao mesmo tempo em que o reconhece, contido no coletivo da língua; terceiro, na instância que, em minha opinião, toca mais de perto o ponto que busco enfatizar, trata-se da negação à interdição de enunciar que a fala da mãe produz. Franciele nega que a mãe lhe negue a condição de quem pode enunciar. Ao menos da forma como escuto este fato de língua, doguinha - uma reformulação de doga - permite a Franciele manter (ou talvez, restaurar) sua posição de quem pode enunciar, sua posição de quem pode fazer da língua algo que lhe é próprio e disso decorre o efeito de absoluta singularidade de sua fala.

Essa interpretação decorre do que estou chamando de après-coup da análise, a partir do qual é possível visualizar o que chamo de syntaxe d'énonciation, ou seja, de uma sintagmação muito singular, não generalizável.

Em outras palavras, não creio que se possa dizer, sem incorrer em alguma impropriedade, que - inho/ - inha é marca de negação no Português do Brasil. Minha conclusão é apenas a de que - inho/ - inha é, na fala de Franciele, tomada com relação à fala da mãe e nos termos que descrevi acima, uma negação. Essa análise que apenas esboço é da ordem da syntaxe d'énonciation, entendida não como uma concatenação de formas, mas como uma relação não linear e não limitada a categorias lingüísticas apriorísticas de forma e sentido. O sujeito da enunciação na proposta aqui apresentada advém da enunciação, dessa relação singular entre a forma e o sentido na linguagem.

Afunilar o sentido, ou seja, enunciar é, vale repetir, em última instância, uma apropriação imaginária marcada no simbólico por operações singulares que integram a syntaxe d'énonciation. O sujeito da enunciação, nessa formulação, não está na origem da enunciação; ele advém da enunciação.

Enfim, tenho clareza de que a proposta que fiz está ainda numa dimensão embrionária. Desenvolvê-la é objetivo que tenho. Por ora, creio que posso argumentar a seu favor o fato de ser ainda um esboço.

Recebido em fevereiro de 2012

Aprovado em outubro de 2012

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  • _____. 2006. A instauração da criança na linguagem: princípios para uma teoria enunciativa em aquisição da linguagem. Doutorado em Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Brasil.
  • Sujeito da enunciação: singularidade que advém da sintaxe da enunciação

    Enunciative subject: singularity derived from the enunciative syntax
  • 1
    . Este texto decorre de meu estágio de Pós-doutorado desenvolvido em Paris, sob a supervisão de Claudine Normand (Paris X, Nanterre) e de Dominique Ducard (Paris XII - Val de Marne). Esse estágio foi subsidiado pelo CNPq, através da concessão de uma bolsa de estudos. Agradeço a Claudine Normand a leitura que fez do texto. As imperfeições que nele ainda podem ser encontradas devem ser atribuídas exclusivamente a mim. Cabe ainda um agradecimento aos meus orientandos. Boa parte deste trabalho não teria sido possível sem a incansável ajuda deles: Daniel da Costa Silva, Heloísa Monteiro Rosário, Lia Cremonese e Paula Ávila Nunes. Agradeço também à professora Carmem Luci Costa Silva (UFRGS) que forneceu, através da disponibilização de seu Banco de Dados, o
    fato de língua que analiso na Parte 3 deste trabalho.
  • 2
    . Cabe observar, também, que este texto é parte de um trabalho bem mais longo. Cf. Flores, valdir do nascimento. "Sujet de l'énoncé et ébauche d'une réflexion sur la singularité énonciative". In: Normand, Claudine (Org.).
    Paralleles floues: vers une théorie du langage. No prelo.
  • 3
    . Há outra ocorrência de
    énoncé, nesse mesmo texto, mas sem alternar com
    énonciation: " Le sens de chaque
    énoncé ne peut être relié avec le comportement du locuteur ou de l'auditeur, avec l'intention de ce qu'ils font " (PLG II :87) [grifo meu].
  • 4
    .
    Problèmes de linguistique générale I (1966) e
    Problèmes de linguistique générale II (1974) são referidos no texto, respectivamente, como PLG I e PLG II, seguidos da página das edições em questão.
  • 5
    . Essa reflexão é, aqui, apenas resumidamente apresentada, uma vez que o conjunto da reflexão só é possível de ser verificado em trabalho anterior (cf. nota 2).
  • 6
    . Esse
    a priori recebe muitas versões no conjunto dos textos de Benveniste e mereceria um estudo mais detalhado. Por vezes, por exemplo, esse princípio está associado a uma noção de
    cultura. É esse o caso, quando Benveniste afirma que " nous voyons toujours le langage au sein d'une société, au sein d'une culture " (PLG II :24). E também: " et si j'ai dit que l'homme ne naît pas dans la nature, mais dans la culture, c'est que tout enfant et à toutes les époques, dans la préhistoire la plus reculée comme aujourd'hui, apprend nécessairement avec la langue les rudiments d'une culture. Aucune langue n'est séparable d'une fonction culturelle " (PLG II :24).
  • 7
    . A conseqüência de se admitir a existência de tal princípio é clara: a organização em blocos temáticos dos
    PLG I e
    II propicia a escolha de um percurso de leitura sem que, com isso, se tenha algum prejuízo quanto à leitura, pois os fundamentos da teoria se fazem presentes em cada um dos textos.
  • 8
    . Para contextualizar: Claude Hagège diz que " [...] la 5ème partie des
    Problèmes (p. 223-285), qui rassemble les six articles fondant la théorie de l'énonciation, s'intitule 'L'homme dans la langue' (par une étrange erreur, Benveniste, dans l'Avant-propos, s'y réfère sous le titre 'l'homme dans le langage'" (HAGEGE, 1986, p. 108). Aya Ono (2007), em nota na página 140 de seu livro, refere essa passagem de Hagège acrescentando que " [...] dans l'optique de Benveniste, l'homme est en même temps dans la
    langue et dans le
    langage ". Apenas para não deixar de fazer ouvir a voz de Benveniste nesse debate, vale lembrar a passagem de
    De la subjectivité dans le langage, em que o autor, falando da ausência de simetria entre "eu" e "tu" diz: " unique est la condition de l'homme dans le langage" (PLG I :260).
  • 9
    . Mesmo não sendo objeto de minha análise neste momento, não poderia deixar de registrar que, nessa passagem, o termo
    discurso instaura uma relação muito particular entre os outros três termos.
  • 10
    . Em minha opinião, essa é uma das passagens mais complexas do uso do termo linguagem.
  • 11
    . O tema aparece também em
    La nature des pronoms¸de 1956.
  • 12
    ." La notion de sémantique nous introduit au domaine de la langue en emploi et en action ; nous voyons cette fois dans la langue sa fonction de médiatrice entre l'homme et l'homme, entre l'homme et le monde, entre l'esprit et les choses [...] " (PLG II :224)
  • 13
    . Ou ainda, por apreço à clareza: " Benveniste souligne à plusieurs reprises que le sémantique est le domaine de la langue en action et en emploi. Cette actualisation du système introduit nécessairement l'idée du
    locuteur qui utilise la langue. En effet, le locuteur intervient dans la théorisation du sémantique comme concept qui déclenche l'ensemble des opérations " (ONO 2007 : 126) [grifo meu]. " Ainsi, l'actualisation
    de la langue suppose le locuteur qui réalise la langue en un discours muni de sens et de référence " (ONO 2007 : 126) [grifo meu].
  • 14
    . "... l'énonciation peut se définir, par rapport à la langue, comme un procès d'
    appropriation" (PLG II :82)
  • 15
    . "Le langage est ainsi organizé qu'il permet à chaque locuteur de s'approprier la langue entière en se désignant comme
    je" (PLG I :262)
  • 16
    . Ou ainda: " Le langage n'est possible que parce que chaque
    locuteur se pose comme
    sujet, en renvoyant à lui-même comme
    je dans son discours" (PLG I :260) . " C'est dans l'instance de discours où
    je désigne le
    locuteur que celui-ci s'énonce comme '
    sujet' " (PLG I :262) [grifo meu].
  • 17
    . Evidentemente não se desconhece que supor uma reflexão lingüística que tome por princípio a noção de singularidade é, no mínimo, tocar em questões muito caras à lingüística geral. Em outros termos: é possível fazer teoria sobre o singular? A palavra
    teoria não seria refratária à noção de singularidade? Qual a validade de uma teoria que se propõe a discorrer sobre o que não é generalizável?
  • 18
    . Quando uso a expressão quase tautológica "noção teórica" é para assinalar que não se está, ainda, no campo da descrição lingüística. A seguir, a enunciação será também definida quanto aos aspectos descritivos que supõe.
  • 19
    . Esse ato é constituído por "tudo não se diz", uma espécie de eixo associativo que se faz presente pela ausência; ausência convocada pelo elemento que está na cadeia. Trata-se de uma ausência radical, ausência barrada ao campo no simbólico, mas que nele aparece numa singular à
    syntaxe d'énonciation.
  • 20
    . O locutor pode, inclusive, fazer uso inverso desse "funil", quando exatamente o que está em jogo é não assegurar um sentido. No primeiro caso, estão os discursos que visam ao monossemismo, no segundo caso, os que visam à polissemia.
  • 21
    . A isso que estou chamando de "tentativa" faço corresponder, no campo lingüístico, as implicações decorrentes da clivagem do sujeito estabelecida, no campo da psicanálise, por Jacques Lacan.
  • 22
    . Originalmente usado em artigo de Silva (2002) e também em Silva (2006).
  • 23
    . Os exemplos são retirados de Basílio (2004).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      Fev 2012
    • Aceito
      Out 2012
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