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Um desafio na Linguística Aplicada contemporânea: a construção de saberes locais

A challenge in contemporary Applied Linguistics: the construction of local knowledge

RESUMO

O objetivo deste trabalho é discutir a relação teoria e prática e a partir daí, desenvolver os conceitos de saber local e saber global. A gênese da escolha deste tema nasceu de meu envolvimento com a coordenação de um curso de Especialização para professores de Inglês da escola pública brasileira. Acreditava-se que talvez o curso não estivesse apresentando os resultados esperados justamente porque a relação teoria e prática não era claramente entendida ou talvez apresentada aos participantes. Não acontecia o entendimento de conhecimento global, apresentado no curso como teoria, em conhecimento local, necessário para atender necessidades de uma escola em particular ou até de uma classe, em um momento também particular. Neste caso, a experiência e o manejo de classe poderiam ajudar mais. Como tornar o conhecimento global, local? Aparentemente, no exemplo mencionado, estava havendo uma desconexão sobre o que se tratava do ponto de vista teórico, isto é, do ponto de vista das teorias de ensino-aprendizagem, com possíveis problemas que estivessem ocorrendo em uma sala de aula específica ou, talvez, por um aluno ou grupo de alunos, em particular. Neste caso o problema seria local e não poria em questão a teoria. Haveria, no entanto, necessidade de se adaptar a teoria para aquela situação específica, ou até de esquecer a teoria para tratar daquele caso em particular. Aí entra certamente a voz da experiência em sala de aula. O texto desenvolve os conceitos de local e global e mostra os pressupostos que os envolvem.

Palavras-chave:
teoria; prática; local; global; adaptação

ABSTRACT

The objective of this paper is to discuss the relation between theory and practice and from there to develop the concepts of local knowledge and global knowledge. The decision to deal with this subject was the result of my involvement with the graduate course Reflective Practices and the teaching of English in public schools. It was felt that the course was not producing the results expected because the difference between theory and practice was not clearly understood or was not made clear to the student-teachers. How can one make global knowledge become local and perceive that what is true for one particular theory is not particularly true for all similar situations in which the theory might be applied? What is typical of a problem connected with theory? It might be a false interpretation of one of the fundamental concepts in the theory; for instance, if Global knowledge, presented as theory, as a path to be taken, was perhaps interpreted as valid for every and all classrooms. To what extent was there no connection between global knowledge, presented in the course as theory, i.e. theory coming from "places of knowledge" and what might be seen as a local problem? Here experience and expert classroom management might apply better. It is important to recognize as local a problem which is characteristic of a particular group or classroom. Apparently there was a disconnection between what was being treated from a theoretical point of view as a teaching-learning problem and what might be happening in a particular classroom or by a group of students in a classroom. In this case the problem is a local problem and would not put the theory into question. There would be a need, however, to adapt the theory to that particular case or forget theory and use teacher experience itself. The text develops the concepts of local and global and shows the presuppositions related to them.

Key-words:
theory; practice; global; local; adapting

Introdução

Partimos de duas citações, que valem como epígrafe.

Larsen-Freeman, em relação ao papel da teoria diz: "Uma teoria nos ajuda a aprender a olhar"1 1 .A theory helps us learn to look. (2000LARSEN-FREEMAN, D. 2000. Does TESOL share theories with other fields? Symposium: Theory in an Applied Field. TESOL Quarterly. Vol. 42/2, p. 285-313.:292).

O próprio Chomsky perguntado sobre o valor prático da teoria, diz:

"Use seu bom senso e sua experiência e não dê ouvidos por demais aos cientistas, a menos que você veja algum valor prático e de ajuda na compreensão dos problemas que você enfrenta, como pode de fato acontecer" (1988CHOMSKY, N. 1988. Language and problems of knowledge. The Managua Lectures. Cambridge Mass.: The MIT Press.:183)2 2 .Use your common sense and use your experience and don't listen too much to the scientists, unless you find that what they say is really of practical values and of assistance in understanding the problems you face, as sometimes it truly is. .

Mas, como dosar adequadamente o que acontece em um curso de Especialização para professores de Inglês da escola pública brasileira? Foi encontrado o ponto justo? Foi imposto um modelo como o único viável? A dúvida da imposição de modelos para discutir aspectos teóricos (Roggi, 2013ROGGI, G., 2013. Presença de modelos teóricos em um curso de formação contínua. Trabalho de conclusão de pesquisa de Iniciação Científica. PUC-SP.) sempre está presente, em busca do que é supostamente certo, porque é o que circula nos meios acadêmicos dos chamados "centros do saber", ou seja, nas universidades. O que diz a teoria, os modelos teóricos, no que se refere ao ensino de uma língua estrangeira no contexto da escola pública corresponde à realidade das salas de aula dessas escolas? De todas elas, ou será necessária uma adaptação para uma sala de aula em particular? Todas as salas de aula são iguais? E como é a minha sala de aula? São perguntas que todo professor deveria se fazer.

É o que pretendo discutir neste texto.

Ensino de Inglês, Formação Contínua e Linguística Aplicada

Vejo o ensino de Inglês e a formação contínua de professores dessa língua como parte da Linguística Aplicada. Vejo, também, dada a variedade dos contextos culturais e econômicos da escola pública brasileira, a oportunidade de uma possível contribuição para se repensar o lugar do saber local na teorização das práticas linguísticas não só na Linguística Aplicada, mas também do que se faz na escola pública. Tenho sempre em mente o conteúdo e a maneira de trabalhar e, principalmente, de apresentar o conteúdo do curso de especialização Práticas Reflexivas e Ensino de Inglês na Escola Pública, particularmente aqueles módulos que dependem prioritariamente de um componente que pode ser entendido como teórico. Penso particularmente nos módulos Fonologia do Inglês, O Componente Reflexivo, O Componente Afetivo, Planejamento, Linguagem e Letramento.

Meu conceito de Linguística Aplicada segue (Moita Lopes 2006MOITA LOPES, L. P. 2006. (org.). Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial.): é mestiça, nômade, explode a relação teoria e prática, não quer adotar ou construir teorias sem considerar as vozes dos que vivem as práticas sociais, compreende os novos tempos. É INdisciplinar.

Meu conceito de formação contínua para professores de inglês está explicitado em vários textos (Celani e Magalhães, 2002CELANI, M. A. A.; MAGALHÃES, M. C. C. 2002. Representações de Professores de inglês como Língua Estrangeira sobre suas Identidades Profissionais: Uma Proposta de Reconstrução. In: MOITA LOPES, L. P. da e BASTOS, L. Cabral (orgs.). Identidades: Recortes multi e interdisciplinares. Campinas, SP: Mercado de Letras. p. 319-338.; Celani, 2003CELANI, M. A. A. (org.) 2003. Professores e Formadores em Mudança: Relato de um Processo de Reflexão e Transformação da Prática Docente. Campinas, SP: Mercado de Letras.; Celani e Collins, 2003CELANI, M. A. A.; COLLINS, H. 2003. Formação Contínua de Professores em Contexto Presencial e à Distância: Respondendo aos Desafios. In: BARBARA, L.; RAMOS, R. C. G. (orgs.). Reflexão e Ações no Ensino-Aprendizagem de Línguas. Campinas, SP: Mercado de Letras. p. 69-105.; Celani, 2004CELANI, M. A. A. 2004. Culturas de aprendizagem: risco, incerteza e educação. In: MAGALHÃES, M. C. C. (org.). A Formação do Professor como um Profissional Crítico. Linguagem e reflexão. Campinas, SP: Mercado de Letras. p. 37-56.; Celani e Collins, 2005CELANI, M. A. A.; COLLINS, H. 2005. Critical thinking in reflective sessions and in online interactions. In: RAJAGOPALAN, K. (org.). AILA Review. Applied Linguistics in Latin America, 18. Amsterdam: John Benjamins. pp. 41-57.; Celani, 2006CELANI, M. A. A. 2006. Language teacher educators in search of 'Locally Helpful Understandings'. In: GIEVE, S. and MILLER, I. K. (ed.). Understanding the Language classroom. Basingstoke: Palgrave Macmillan.).

Ainda mais, vejo o ensino de uma língua estrangeira, como um direito inalienável de todo ser humano, conforme expresso no XIX World Congress da Fédération Internationale des Professeurs de Langues Vivantes, ocorrido na Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil de 24 a 26 de Março de 1997.

Por outro lado, vejo o ensino da língua inglesa como uma necessidade premente, tendo em vista o papel que essa língua passou a desempenhar nos tempos atuais.

Tendo exposto minhas posições em relação ao contexto desta discussão, passo, agora, a apresentar os vários cenários em que ela poderia acontecer. Nada melhor do que partir de uma discussão sobre o papel da teoria e da prática na formação de professores e, particularmente, de professores de inglês para a escola pública3 3 .O curso de Especialização Práticas Reflexivas e Ensino de Inglês na Escola Pública consta de 1 a 6 semestres de língua inglesa, dependendo das necessidades de cada participante, e, após essa base linguística, além dos vários módulos, tem até três anos para a entrega de uma monografia que trate de algum problema encontrado em sala de aula. É totalmente financiado pela Associação Cultura Inglesa São Paulo e conta com a colaboração do Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, que organizou e coordena o curso. .

Teoria X Prática

A questão da teoria versus prática tem suas origens no projeto modernista da globalização, por fins do século XIX até aproximadamente 1930, e no projeto pós-moderno da localização, até as últimas décadas do século XX.

O projeto modernista visava à universalidade, à estandardização e à sistematização, com previsibilidade e eficiência, à adoção de valores que definem o progresso. Temos o tempo vencendo o espaço. Do mesmo modo, é o civilizado versus o primitivo, baseado no tempo.

O projeto pós-moderno, como uma versão revista do projeto anterior, incorpora o saber local de acordo com suas próprias regras, de modo que o saber local encontra representações apenas de acordo com seus objetivos e formas. Apropria-se das diferenças.

É o espaço superando o tempo.

O grande desafio é: o saber local passa a ser global. Incorpora o saber local de acordo com suas próprias regras. Não sem razão os colonizadores não tinham interesse em promover o saber local; pelo contrário, os colonizadores queriam suprimir o que ainda não se denominava saber local, sem saber que estavam produzindo algo que, depois, quereriam impor como saber local.

E como essa questão afeta os efeitos da homogeneidade global em relação à linguagem e à construção de conhecimento? Se estamos envolvidos em um curso para professores de inglês, a linguagem tem prioridade absoluta. Como tornar uma aula algo que não seja puramente relativo ao sistema linguístico em si, algo que seja um real meio de comunicação? Chegamos à famosa questão, que, particularmente no ensino de línguas, vem atormentando a academia: como tornar a aula de língua estrangeira relevante para o aluno, especialmente o aluno da escola pública, que não vê sentido em algo que não faz parte de sua vida imediata, e cujo valor não percebe de pronto? No fundo, como interessá-lo, como fazer com que veja relevância no que é feito em sala de aula? O que se espera encontrar em uma sala de aula de língua estrangeira do ponto de vista de atividades, uso de materiais e atmosfera geral? Se estamos ensinando uma língua viva, instrumento de comunicação entre indivíduos, a sala de aula deveria refletir essa situação. Neste caso entra em ação nossa concepção de linguagem e de aprendizagem e também de domínio de classe. Entra também a experiência. Mas a experiência só não basta; é necessário a experiência com base em algum tipo de teoria.

Essa é uma questão que tem implicações profundas com o que acontece na sala de aula. Se, por um lado, faz parte da responsabilidade profissional estar informado sobre as teorias pertinentes à própria área de atuação, teoria sendo entendida, aqui, não como arcabouços descritivos ou heurísticas, isto é, técnicas informadas teoricamente para resolver problemas, por outro lado, o que se espera é uma síntese do conhecimento a partir de princípios. Uma teoria única com interpretações variadas, dependendo do contexto de uso. Mas, no mundo real há restrições de toda ordem: políticas, institucionais e interpessoais. Além do mais, as situações e os interesses são por demais variados para permitirem uma teoria única ao redor do mundo.

As teorias deveriam servir para informar e aprimorar práticas e oportunidades. Mesmo porque, há cismas profundas entre teorias na mesma área. Veja-se, por exemplo, a conceituação de aprendizagem na psicolinguística ou no behaviorismo e na perspectiva sociocultural.

O que gostaria de deixar claro, aqui, é que as teorias existem para serem transformadas em prática, na sala de aula, por exemplo. O que interessa para que haja aprendizagem é a transformação de uma determinada teoria em procedimentos de sala de aula que mantenham os alunos, no caso da escola pública, interessados e percebendo a relevância do que acontece na sala de aula. As teorias são necessárias nos cursos de formação, inicial e contínua, mas deve haver sempre a transposição para a realidade da sala de aula. A boa formação, se parte da teoria, e, às vezes, é necessário partir dela (Chomsky, 1988CHOMSKY, N. 1988. Language and problems of knowledge. The Managua Lectures. Cambridge Mass.: The MIT Press.) deveria, sempre, no caso de ensino de línguas, particularmente, e em um curso de especialização para professores da escola pública, levantar questões da prática de sala de aula e analisá-las e discutí-las. É a minha sala, aquela que me dá tanta preocupação, e que deve ser levada em conta para se ver se a teoria vai ajudar ou não. E é bem possível que a teoria não ajude, porque há outros problemas, na minha sala de aula, que nada têm a ver com a relação teoria e prática.

Há necessidade de se adotar uma perspectiva diferente para se relacionar com a linguagem, com a identidade, com o saber e com as relações sociais. Quais são os efeitos da homogeneidade global em relação à linguagem e à construção de conhecimento? O saber local afeta a maneira como a linguagem é, não só usada, mas também estudada, e a língua passa a ser vista como algo mutável, não estático, que passa por transformações. Isso vai afetar a ideia de correção, e, em última instância, poderá ainda ser tratado como crenças e sabedoria recebida.

Como o conhecimento e o saber-fazer são construídos, talvez explique o preconceito: generalização, sistematização e construção de modelos que envolvem uma certa abstração apagando a variabilidade da experiência em contextos diversos. A experiência não pode ser desprezada, desde que entendida como reflexão a respeito dos problemas enfrentados. A reflexão (Schön, 1983______. 1983. The Reflective Practitioner. How Professionals Think in Action. London: Temple Smith., 1987SCHÖN, D. 1987. Educating the Reflective Practitioner. San Francisco: Jossey-Bass.) é parte fundamental de qualquer tipo de formação, inicial ou contínua. Há de se pensar, refletir, sobre porque certas atitudes são comuns em minha sala de aula e não em outras, talvez. Discutir com os colegas abertamente pode ser benéfico.

Outro aspecto que, no caso específico do Brasil, vai afetar o ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras refere-se às políticas linguísticas. Como são estabelecidas as políticas linguísticas no que se refere ao ensino de línguas estrangeiras? Podemos dizer que não há políticas de ensino de línguas estrangeiras no país, apesar da Lei de Diretrizes e Bases de 1956. A desigualdade de forças do poder é muito grande. O custo humano, social e cultural da globalização necessita de mais estudos e isso para se evitar o custo humano, social e cultural dessa mesma globalização.

Conceito de saber local

O conceito de saber local pode se aplicar a várias áreas do saber. Por exemplo, na antropologia pode se referir a crenças e orientações que emergem das práticas sociais de uma comunidade, através de sua história, por exemplo. É o caso dos rituais sociais (Geertz, 1983GEERTZ, C. 1983. Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology. New York: Basic Books.). Têm fundamento lógico e validade próprios e podem diferir das formas de conhecimento valorizadas em nível global. Por exemplo, maneiras de se despedir em comunidades específicas (Canagarajah, 2005______. 2005 (ed.). Reconstructing local knowledge, reconfiguring language studies. In: CANAGARAJAH, S. (ed.). Reclaiming the Local in Language Policy and Practice. Mawhaw, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers.:3-24).

No mundo acadêmico refere-se ao saber que diverge do que é estabelecido ou legitimado nas diferentes disciplinas (Foucault, 1972FOUCAULT, M. 1972. The Discourse on Language. In: _____ The Archeology of Knowledge. New York: Pantheon.). Trata-se de crenças que não se coadunam com os paradigmas estabelecidos e continuam a circular extra-oficialmente em nível local, entre grupos menores. Podem variar de área para área (Canagarajah, 2005______. 2005 (ed.). Reconstructing local knowledge, reconfiguring language studies. In: CANAGARAJAH, S. (ed.). Reclaiming the Local in Language Policy and Practice. Mawhaw, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers.:3-24).

Pode-se, também, encontrar exemplos no mundo profissional. Isto é, os profissionais desenvolvem um saber para efetuar seu trabalho de maneiras não reconhecidas ou recomendadas pelas autoridades ou especialistas da área. Podem, ainda, se referir ao ensino, por exemplo (Canagarajah, 2005______. 2005 (ed.). Reconstructing local knowledge, reconfiguring language studies. In: CANAGARAJAH, S. (ed.). Reclaiming the Local in Language Policy and Practice. Mawhaw, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers.:3-24).

No que se refere especificamente ao ensino de línguas estrangeiras, pode levar a procedimentos não recomendados ou valorizados pela área especializada. Trata-se do saber gerado em contextos diários de trabalho sobre estratégias efetivas de ensino-aprendizagem. Pode não gozar de reconhecimento profissional ou acadêmico e é, necessariamente, resultado de prática e reflexão cuidadosas (Pennycook,1994PENNYCOOK, A. 1994. The Cultural Politics of English as an International Language. London: Longman.; Canagarajah, 1993CANAGARAJAH, S. 1993. Up the garden path: Second language writing approaches, local knowledge, and pluralism. TESOL Quarterly 27, 301-306.; Canagarajah, 2005______. 2005 (ed.). Reconstructing local knowledge, reconfiguring language studies. In: CANAGARAJAH, S. (ed.). Reclaiming the Local in Language Policy and Practice. Mawhaw, New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers.:3-24).

Mas é, sempre, resultado da experiência e de um estudo acurado do contexto de ensino-aprendizagem. Por que é possível desenvolver um tipo de atividade em uma sala de aula e não em outra da mesma escola? O que há de comum entre esses vários domínios?

Quais são as pressuposições que caracterizam a expressão saber local?

Saber local é ligado ao contexto e não, necessariamente, determinado pela teoria, é específico de uma comunidade: uma sala de aula, por exemplo. É não sistemático porque gerado de baixo para cima (Allwright, 2013ALLWRIGHT, D. 2013. Theorising "Down" Instead of "Up": The Special Contribution of Exploratory Practice. Plenary speaker. KOTESOL 2013. The 21st Annual Korea TESOL International Conference. Exploring the Road Less Travelled: From Practice to Theory. Seoul, Korea.) por práticas sociais na vida cotidiana, práticas advindas da experiência, que se mostraram bem sucedidas, práticas resultado de rebeldia. A experiência tem como justificar as práticas. Recorremos, novamente, a (Chomsky 1988CHOMSKY, N. 1988. Language and problems of knowledge. The Managua Lectures. Cambridge Mass.: The MIT Press.) e sua recomendação de que não devemos confiar demasiadamente nos especialistas em ensino de línguas, embora, em alguns casos, eles nos possam ajudar. Será que o especialista conhece minha sala de aula, conhece meu contexto? Como ele atuaria em uma situação semelhante à minha?

Mas, o que significa saber local entendido como a adoção de uma prática? Nesta acepção, necessariamente, saber, cultura e linguagem não devem ser entendidos como conceitos descontextualizados e homogêneos, mas sim como conceitos dinâmicos, em contínua produção e reconstrução. Neste sentido, localidade é um discurso em um contexto e só pode ser definido em relação ao global. É múltiplo e diversificado, tem um caráter dinâmico.

Utilizo saber local com este significado, neste texto.

Teorizando práticas linguísticas em Linguística Aplicada: o lugar do saber local

Há uma desconexão entre o saber da globalização e a globalização do saber. Como conectá-los? O global é sem fronteiras, ilimitado, com relações fluidas entre as comunidades. Há, então, uma necessidade de reorganização disciplinar. A negociação global-local deve ser conduzida do ponto de vista local, a fim de que o saber acadêmico seja construído no centro, unilateralmente. O paradoxo é que as comunidades discursivas acadêmicas são ao mesmo tempo locais e globais. Isto tem efeito bastante complexo em um programa de formação, tanto inicial quanto contínua. Mais particularmente, contínua, já que os professores tiveram contato com a sala de aula e têm suas experiências, nem sempre agradáveis, a respeito desse contato.

Como tratar da desconexão entre o saber da globalização e a globalização do saber?

Seria necessário uma mudança de direção em relação ao saber local. Traria uma posição alternativa de localidade ao invés de paradigmas impostos. Seria ver e interpretar construtos sociais globais a partir de um posicionamento local. Seria ver e entender o global a partir de uma perspectiva local. Levaria a um empoderamento do local. É o contexto que dá forma ao saber produzido. Aqui pode ser útil a analogia com a ideia de um amálgama.

Appadurai, quando fala em "globalização a partir de baixo" (2000APPADURAI, A. 2000 (ed.). Globalization. London. Duke University Press.: 1-20) trata do efeito crítico sobre os paradigmas globais, levando a práticas de investigação mais equilibradas. Recomenda a necessidade de se explorar a base ideológica que sustenta as teorias, para se entender e enfrentar questões de poder; é uma produção dinâmica e contínua com reconstrução, mas com desconstrução e reconstrução para fins locais. É uma reconstrução como processo contínuo de reinterpretação crítica, negociação contradiscursiva e aplicação imaginosa. Não se trata apenas do acréscimo de mais um componente aos paradigmas dominantes. Em suma, é uma prática informada, isto é, possibilitando escolhas, e estas com acesso ao saber global, para possibilitar as escolhas.

Como dissemos anteriormente, uma perspectiva diferente deve ser adotada para estabelecer um relacionamento com a linguagem, com o saber e com as relações sociais. O desenvolvimento do saber local em relação à linguagem e como a linguagem é usada e estudada é ainda tratado como crenças e sabedoria recebida. Em geral, a língua não é vista como algo mutável, não estático, o que vai influir na concepção de erro e na noção de correção. Isso influencia a maneira como são estabelecidas e realizadas as políticas linguísticas, que acabam impondo uma variedade apenas, sempre a partir da norma culta e do falante nativo. A desigualdade das forças de poder está sempre presente.

O custo humano, social e cultural da globalização passa a ser muito grande quando a variabilidade da experiência em contextos diversos é apagada.

Em direção ao "glocal"?

Para (Kumaravadivelu 2006KUMARAVADIVELU, B. 2006. A Linguística Aplicada na Era da Globalização. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parabola Editorial.), com a menção de global localizado + local globalizado há o global em conjunção com o local, isto é, o local modificado para acomodar o global e o global modificado para acomodar o local. (Kumaravadivelu 2006KUMARAVADIVELU, B. 2006. A Linguística Aplicada na Era da Globalização. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parabola Editorial.) usa a forma glocal para se referir ao global localizado, mais o local globalizado. É o amálgama. Trata-se do local em conjunção com o local. É o local modificado para acomodar o global, e ao mesmo tempo, o global modificado para acomodar o local.

O que será necessário para que isso aconteça?

Manter uma conversa contínua tanto com o saber local quanto com o saber global, questionar os paradigmas estabelecidos face à realidade da prática, construir redes de trocas de saberes locais e trabalhar "de dentro para fora" (Holiday, 2005HOLIDAY, A. 2005. The Struggle to Teach English as an International Language. Oxford: Oxford University Press.), particularmente na realização de projetos. Quando Holiday diz "de dentro para fora" estaria pensando em "de baixo para cima" (Allwright, 2013ALLWRIGHT, D. 2013. Theorising "Down" Instead of "Up": The Special Contribution of Exploratory Practice. Plenary speaker. KOTESOL 2013. The 21st Annual Korea TESOL International Conference. Exploring the Road Less Travelled: From Practice to Theory. Seoul, Korea.)? Efeitos da homogeneidade global em relação à linguagem e à construção de conhecimento podem ser de difícil detecção e, mais ainda, de difícil reconhecimento.

O professor terá de desenvolver sua experiência e capacidade de reconhecimento como missão interminável de sua prática em sala de aula, a fim de distinguir problemas advindos da teoria ou de outras causas, e, consequentemente, agir conforme cada caso.

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  • 3
    .O curso de Especialização Práticas Reflexivas e Ensino de Inglês na Escola Pública consta de 1 a 6 semestres de língua inglesa, dependendo das necessidades de cada participante, e, após essa base linguística, além dos vários módulos, tem até três anos para a entrega de uma monografia que trate de algum problema encontrado em sala de aula. É totalmente financiado pela Associação Cultura Inglesa São Paulo e conta com a colaboração do Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC-SP, que organizou e coordena o curso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    Nov 2015
  • Aceito
    Mar 2016
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