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A performance austiniana, atos de fala evanescentes e filósofos que riem

Austin's performance, evanescent speech acts and philosophers who laugh

RESUMO

Ensaio aqui um modo de dialogar com algumas formas de transmissão de saberes. Em permanente debate com John Langshaw Austin e seus comentadores, Kanavillil Rajagopalan vai fazendo de seu trabalho uma performance que conta com o riso que a constitui, e que resta em escritos nos quais o seu (não) saber serve, acima de tudo, para interrogar, e para que se transforme em um saber interrogar.

Palavras-chave:
Kanavillil Rajagopalan; John L. Austin; Performance; Riso/Humor

ABSTRACT

Here I experiment a way of dialogue with some forms of transmission of knowledge. While constantly debating J. L. Austin and his commentators, Kanavillil Rajagopalan turns his own work into a performance that relies on its constitutive laughter, a mode of thinking that dwells on writings in which its (un)knowledge serves, chiefly, to question and to convert itself into a questioning knowledge.

Key-words:
Kanavillil Rajagopalan; John L. Austin; Performance; Laughter/Humor

- Um filósofo que ri; agora vou ter com quem conversar. Quem é você?

- Eu... eu mal sei, Sir, neste exato momento... pelo menos sei quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças desde então... Até a descoberta desconcertante de que snarks são, na verdade, boojums!

- Ele espera que levemos suas próprias afirmações a sério ou não?

Rajan e Austin com Carroll

Nobody can truly own a cat

Como não desconfiar de um trabalho que remete, já em seu título, ao sorriso evanescente de um gato inglês que deveria estar, salva veritate, no capacho1 1 . The cat is on the mat é uma dessas frases que persistem nas filosofias, assim como "A neve é branca", "O rei da França é calvo", além de outras como "George likes Peking Duck", "Colorless green ideas sleep furiously". Diferentes, por exemplo, do guarda-chuva esquecido por Nietzsche à margem de um manuscrito ou do galo devido a Esculápio por Sócrates, o gato está ora no tapete, ora no capacho (minha tradução preferida), mas não tem nada de misterioso, não é alvo de especulações. É, simplesmente, verdade! Por que cat e mat? Talvez pelo prazer da rima. Talvez porque no capacho o gato está onde deveria estar, até que o irreverente Austin retira-o de lá. da filosofia, e com a cabeça no lugar?

E a epígrafe? Bom, será que ao menos a epígrafe pode servir como o machadiano par de lunetas para que o leitor penetre no que for menos claro ou totalmente escuro? Espero que sim. Alunos e leitores de Rajan sabem, sem precisar recorrer às explicações de Freud, que o humor é afirmação de um desejo, "um dom precioso e raro", que "tem algo de libertador", de "grandeza e elevação" ([1927]1980_______. 1980 [1927]. O humor. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. XXI.). O que talvez alguns não saibam, mas acredito que isso agora não os surpreenda mais, é que o livro Os chistes e sua relação com o inconsciente ([1905]-1989FREUD, S. 1989 [1905]. El chiste y su relación con lo inconciente, org. com. e notas de James Strachey com a colab. de Anna Freud, trad. direta do alemão de José L Etcheverry, Obras completas: Sigmund Freud, Buenos Aires: Amorrortu, 1989, v.8.), como relata Ernest Jones (1989JONES, Ernest. 1989. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.) em sua biografia de Sigmund Freud, foi considerado uma obra menor pela própria comunidade psicanalítica, a começar por seu tradutor para o inglês britânico2 2 . Para mais detalhes sobre as dificuldades reconhecidas pelo tradutor James Strachey, ver Veras (2009). Todas as traduções não referenciadas são de minha responsabilidade. . Na virada para o século XX, em uma Viena marcada por uma harmonia de fachada, antissemita e cega para a viva ascensão da nova direita ao poder, humor e riso eram absolutamente incompatíveis com a solene seriedade das academias.

Cinquenta anos depois do livro dos Chistes, as conferências proferidas por Austin na Universidade de Harvard em 1955 e reunidas no livro How to do things with words ([1962] 1975AUSTIN, John L. 1976 [1962]. How to do things with words. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press.) confirmam que humor e riso continuam a constranger a comunidade acadêmica, provocando o desconforto daqueles que lamentam esse estilo inconsistente que não cai bem a quem se diz filósofo. Mesmo que por ora reservemos o riso, convém lembrar, como o faz Rajan (2000a_______. 2000a. Austin's humorous style of philosophical discourse in light of Schrempp's interpretation of Oring's "incongruity theory" of humor. Humor. 13. 3:287-311.), que no prefácio à primeira edição J. O. Urmson informa que Austin havia publicado parte do que apresentara em Harvard3 3 . Diga-se de passagem que também nos ensaios escritos e publicados Austin faz de gato e sapato os enunciados filosóficos. Cf. "Truth", "Other Minds" e outros, em Philosophical Papers ([1961] 1979). e pede a compreensão do leitor... afinal, o amigo filósofo, houvesse tido chance, teria reescrito, reduzido, elaborado melhor, dado forma mais apropriada ao texto (1975: vi). A forma mais apropriada também excluiria da série de 12 conferências o que Barbara Cassin (2005_______. 2005. O efeito sofístico. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Maria Cristina Franco Ferraz e Paulo Pinheiro. São Paulo: Ed.34.) denomina "efeito sofístico", a insolência de uma performance "no modelo do oráculo: quando dizer/ler é fazer" (p. 195), um discurso epidítico considerado pela filosofia, segundo determinadas leituras de Aristóteles, o mais irrelevante, o mais vazio - o que leva sua característica social a passar despercebida, devido à sua tendência a tornar-se um espetáculo por si. Nesse caso, como sublinha Cassin (1993CASSIN, Barbara. 1993. Consenso e criação de valores - o que é um elogio? In: Cassin, N. Louraux & C. Peschanski (orgs.). Gregos, bárbaros, estrangeiros: a cidade e seus outros. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, p. 34-55.), não teria em vista a tão idealizada verdade, mas o prazer do espectador, a glória do orador, as sutilezas das técnicas. Para a autora, é justamente esse caráter espetacular que faz desse tipo de discurso que reconheço nas lectures austinianas não uma liturgia - embora siga algumas convenções -, mas um happening, que não se limita a reforçar os valores filosóficos já admitidos, e propõe a criação de novos valores, propõe uma adesão a uma ou outra opinião, que deverá ser confirmada e recriada (p. 42) não segundo a verdade da proposição, mas segundo a verdade do "a propósito", do momento oportuno, da ordenação circunstancial dos argumentos (Cf.: Veras, 2003_______. 2003. O ato de tornar público: a verdade da mídia, a opinião pública e o político. In: 50º Seminário do Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo, Revista Eletrônica dos Anais do 50º Seminário do GEL.).

A cat may look at a king

Austin encena de saída sua oposição aos positivistas lógicos segundo os quais certos pseudo-enunciados são nonsense porque, a despeito de poderem ser verificáveis, não são verdadeiros nem falsos. Mas o ponto em que de fato rompe com eles (considerando que outros filósofos já os haviam notado) está em ir além, em debruçar-se sobre esses pseudo-enunciados, ampliando sua lista, acrescentando outros que não pretendem ser verdadeiros ou falsos, e não se limitam a descrever o mundo; outros que, fazendo ser aquilo que dizem, agem sobre cada mundo, revelando o lado demiúrgico da linguagem. Austin isola, então, um tipo de enunciado que nomeia performative, projeta o palco e anuncia para sua plateia uma pantomima, um baile de máscaras, uma performance4 4 . Os performativos são chamados de masqueraders. A tradução brasileira por "expressões que se disfarçam" não dá ao leitor a chance de seguir o conselho do filósofo: consultar um bom dicionário. Em português temos a "mascarada", divertimento de origem italiana, constituído de cenas ou números alegóricos, mitológicos ou satíricos, que incluía música polifônica e dança e era representado por personagens mascarados; baile de máscaras; aquele que usa máscara; dissimulado; convencido... , e nela atua. Austin está ou não brincando quando imediatamente acrescenta: "tudo quanto for dito nestas seções é provisório e sujeito a reformulação à luz das seções posteriores"? Por um lado, essa fala posta em nota lembra avisos em filmes, do tipo: "qualquer semelhança é mera coincidência", mas também alerta o espectador para o movimento retroativo nas conferências. Como recomenda Rajan (2000a_______. 2000a. Austin's humorous style of philosophical discourse in light of Schrempp's interpretation of Oring's "incongruity theory" of humor. Humor. 13. 3:287-311.), é preciso estar atento ao modo de lidar com o saber, ao modo de filosofar, perguntando-se o tempo todo se é sério ou não e, sem resposta, conviver com a incerteza, e não se prender unicamente ao "como fazer coisas com as palavras". Para Rajan, os usos parasitários em Austin (1975AUSTIN, John L. 1976 [1962]. How to do things with words. 2ª ed. Oxford: Oxford University Press.:104) podem vir a ser, por exemplo, aquilo que, apontado em Philosophical Papers, frequentemente falta à filosofia: "a diversão da descoberta, os prazeres da cooperação e a satisfação de chegar ao consenso" (Austin, 1970: 175).

Rajan expõe, em quase todos os seus trabalhos sobre a performance austiniana, suas reticências em relação àqueles que se levam a sério demais e idealizam a filosofia, encenando, ele também, sua incorrigível vocação para pôr na berlinda os códigos do decoro acadêmico. A contínua interlocução com a obra de Austin, segundo entendo, deve-se antes de mais nada a uma série de afinidades eletivas que acabam por contagiar a sua obra e, consequentemente, seu trabalho de professor. Essa "diversão da descoberta", o humor que Rajan mais do que aprecia, pode ser entendida como a habilidade de reconhecer que toda verdade é parcial, e que não é preciso decidir entre saber e sabor: "minha tese de que o inusitado senso de humor de Austin e sua espirituosidade exuberante, aspectos de seu método filosófico geralmente ignorados ou subestimados por seus estudiosos [...] são, na verdade, centrais em sua obra filosófica" (Rajan, 2000a_______. 2000a. Austin's humorous style of philosophical discourse in light of Schrempp's interpretation of Oring's "incongruity theory" of humor. Humor. 13. 3:287-311.: 288).

Do cats eat bats?... Do bats eat cats?

Entre as conferências II e VII de How to do things with words, mantendo os espectadores em suspense, Austin equilibra-se buscando o caminho das pedras entre o que nomeou enunciados performativos e constativos.

É tentando distinguir diferentes tipos de atos falhos e falhas nos atos que Austin apresenta sua primeira categorização dos performativos. Observa que alguém "diz alguma coisa que realmente não queria dizer" - usa a palavra errada - e diz "O gato está no capacho" quando queria dizer o "morcego5 5 . Na tradução brasileira, bat é traduzido por "pato". Para manter a rima? Mas cats and bats é uma confusão da Alice de Carroll quando está meio sonolenta, no limiar entre o sono e o sonho, assim como snarks e boojums aparecem em "Other Minds" (Philosophical Papers). For the Snark was a Boojum, you see, é um verso de Carroll, fazendo humor com a contradição lógica (Cf. Notas de Martin Gardner na edição anotada de Através do Espelho, 2002:139). ". São trivialidades, admite, ou nem tão triviais. (p. 138). Mas se ninguém ouviu esse "não querer dizer" que escapou, terá havido falha? Entra então com a necessidade da participação da terceira pessoa, aquela que, como no chiste, vai assegurar o uptake, o reconhecimento que vai garantir que o ato terá sido performado.

A ordem é classificar, mesmo que tudo resulte numa pilha de destroços, como os que Rajan (1992_______. 1992. A irredutabilidade do ato ilocucionário como fator inibidor do êxito das tentativas taxonômicas. DELTA. 8. 1:91-133.) elenca, mostrando todo o esforço dirigido "à tarefa de aperfeiçoar os critérios de classificação, abrindo caminho para novas propostas taxonômicas cada vez melhores" (p. 105), mas o ímpeto vai arrefecendo, restam apenas semelhanças, e o apelo ao dicionário. Para Rajan (1992_______. 1992. A irredutabilidade do ato ilocucionário como fator inibidor do êxito das tentativas taxonômicas. DELTA. 8. 1:91-133.:93), uma classificação dos atos exigiria uma concepção atomística desse ato - sim, ele lê em Austin o esforço taxonômico, mas também o ceticismo do filósofo inglês em relação a seu próprio trabalho (p.111) dizendo que um bom dicionário poderia resolver o problema... Enfim, a saída pela identificação de cada ato só reafirma sua irredutibilidade, como a luta de Palomar, personagem de CalvinoCALVINO, Italo. 1994. Leitura de uma onda. In: Palomar. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras., tentando ler precisamente uma onda à beira-mar, predeterminando para cada um de seus atos um objetivo limitado e preciso...

Rajan se pergunta por que tantos estudiosos, entre eles Austin, "entregaram-se à tentação de classificar atos de fala, procurando para tal fim primeiro identificar positividades onde sabidamente só há diferenças". E oferece uma resposta - a preocupação com a cientificidade... Talvez fosse essa também a preocupação de Freud buscando classificar os chistes, mas ambos têm que lidar, cada um à sua maneira, com o que resiste a classificações (Cf.: Veras, 1995VERAS, Viviane. 1995. Mil e um chistes e atos de fala: Freud e Austin, apresentado no GEL - São Paulo, maio de 1995 (inédito).). Rajan reconhece a irredutibilidade dos atos de fala, a incoerência irremediável, a precariedade dos critérios, e o humor se entremeia então, freudianamente, ouso dizer, como uma forma de lidar com o saber de sua própria finitude e, repito, não levando tão a sério ideais em que aprendemos a acreditar.

Eis a virtude do humor. Ele não paralisa: "se a leitura que fizemos de Austin até aqui for correta, devemos concluir que o pensamento austiniano não é suscetível de uma formalização nos moldes conhecidos" (Rajan, 1989_______. 1989. Atos ilocucionários como jogos de linguagem. Estudos linguísticos. 18: 523-530.: 529). Assim, diferente da piada, que se esvai com o riso fácil e muitas vezes à custa do outro, o humor revela um posicionamento ético e político. A necessidade de outros moldes... mesmo sob a séria desconfiança de que podem nunca ser encontrados.

Austin apropriou-se das circunstâncias de seu tempo, em plena discordância com relação às concepções de linguagem que então vigoravam, e não é de admirar que escolhendo o nome performative tenha em mente o tempo todo o palco (1975, nota p. 10) e seus bastidores, iluminadores, diretor de palco, e mesmo o ponto... Seu primeiro exemplo - ironia on ou off - é o Sim frente ao juiz ou em um altar, que une duas pessoas, e cujas consequências vão certamente além dessa união, seguido de um Eu te batizo, que nomeia cristão, mas faz mais que isso. Eis aí a demiurgia, o fazer ser o que não era, uma autêntica criação ex-nihilo.

O performativo também se diferencia do constativo porque remete às circunstâncias, às situações em que os atos se dão e que haviam sido retiradas de cena pelo excesso de formalismo. Austin apela ao ato de fala total, no contexto de fala total, justamente porque ainda está em busca de uma abstração. Rajan (2000a_______. 2000a. Austin's humorous style of philosophical discourse in light of Schrempp's interpretation of Oring's "incongruity theory" of humor. Humor. 13. 3:287-311.) vai propor que se considere o aqui e agora de cada ato... que dê certo ou não dê, não há garantias, só a constatação a posteriori dirá. Austin especula, performativo e constativo vão mudando, como também o filósofo não pode ficar imune a essas voltas, e é esta a pergunta que Rajan deixa no ar: Ele espera que levemos suas próprias afirmações a sério ou não?

In vino, possibly, 'veritas', but in a sober symposium 'verum'

Encenando as desventuras de distinguir dizer e fazer, Austin faz e desfaz suas paradas teóricas, até o momento em que se deixa ele próprio deter pela "quarta parede6 6 . Pode-se dizer que o teatro moderno nasce com a proposta brechtiana de romper com a quarta parede, conferindo à ficção um peso de realidade e à vida real a força criadora da ficção. Nas palavras de Augusto Boal (1997: 9), Alguns de nós fazemos teatro, mas todos nós somos teatro... somos em parte espectadores e em parte atores; quando atravessamos a quarta parede tornamo-nos espectatores. ", como é chamada a linha virtual (a beira do palco, o trilho sobre o qual desliza a cortina) que nos garante a separação entre o mundo real e o mundo de ficção. No momento em que declara que existem atos de fala presentes na vida cotidiana, e atos de fala fictícios, representados no palco, Austin tenta preservar essa quarta parede; essa mesma que nos convida diversas vezes a atravessar: "Na vida real, ao contrário das situações simples previstas na teoria lógica, não se pode sempre responder de uma maneira simples se isto é verdadeiro ou falso"? (1975:143). A resposta de Rajan (2000a_______. 2000a. Austin's humorous style of philosophical discourse in light of Schrempp's interpretation of Oring's "incongruity theory" of humor. Humor. 13. 3:287-311.) é desconstruir de outra forma7 7 . Ver Jacques Derrida (1972). a dicotomia vida/ficção: "se o mundo é um palco e homens e mulheres meros atores, a própria performance de Austin não escapa à dramática ironia suprema de tudo isso". O principal fetiche, a desconstruir, revela-se afinal "a oposição clássica entre o discurso cômico e o sério" (p. 311). Podemos perguntar, então, por que não considerar que o autor de ficções está verdadeiramente e sinceramente engajado com o que diz? São atos de fala verdadeiros no sentido de que dizem/fazem, mas desprovidos da intenção de ligá-los ao mundo... Mas se no palco o personagem promete e faz o que prometeu, foi sincero ou não? E se o narrador é um personagem? Até que ponto multiplicar níveis de realidade?

Do palco da ficção teórica à plateia, da posição de espectadores à de atores, experimentamos correr o risco de atravessar essa quarta parede... sem esquecer de que é preciso sempre contar com ela para poder fazer a experiência, e sem esquecer também de que é preciso repeti-la muitas vezes (Derrida, 1972DERRIDA, Jacques. 1972. Signature événement contexte. In: Marges de la Philosophie. Paris: Les Editions de Minuit.). Uma vez adquirida a convicção da estabilidade das repetições, surge a noção de causa e, com ela, a noção de saber como algo efetivo - embora não revelado ao observador - se enraíza. Evidentemente, não se trata de contestar a necessidade de alguma intenção para que o ato de fala funcione, mas é preciso levar em conta que, uma vez posta em ato, toda fala implica algo de imprevisível, de incalculável, de contingente. Se precisa ser repetível, e é sempre datado e situado, está sempre exposto à infelicidade - e talvez esteja aí a razão de Austin chegar a declarar sua busca pelo ato de fala total no contexto de fala total (p. 52). Um desejo que é, como todo desejo, irrealizável, e lembrando, com Derrida, que a infelicidade não é um acidente, mas a própria lei da linguagem (1972DERRIDA, Jacques. 1972. Signature événement contexte. In: Marges de la Philosophie. Paris: Les Editions de Minuit.: 387).

O apelo ao ato de fala total confirma a inutilidade da dicotomia constativo/performativo. Por um lado, pode-se rapidamente tomar essa invenção de Austin como um ovo de Colombo. Ora, é isso mesmo, é claro que todos sabemos que há enunciados que batizam, casam, condenam, como manda o figurino... Em princípio, o que haveria aí de mais surpreendente? De saída, o fato de que a sessão esteja de fato aberta quando esse enunciado é pronunciado em condições de felicidade (ele dá certo, abre-se a sessão); em seguida, constatamos que a sessão está aberta, o que faz desse enunciado feliz um enunciado verdadeiro. Enfim, podemos dizer que o constativo é um performativo feliz que se tornou verdadeiro, e o masquerader é agora o constativo.

Eis então o momento da virada. A primeira dificuldade é distinguir estritamente, à luz da primeira taxonomia, o performativo do constativo. As regras derivam dos tropeços, das infelicidades que podem afetar qualquer enunciado - deduz certas regras de uso - por exemplo, que não faço uma promessa a um gato... E Austin não faz delas regras a priori e necessárias para o sucesso dos atos. Acontece que esse paralelo constativo, verdadeiro/falso, e performativo, feliz/infeliz não se sustenta. Um enunciado constativo também está sujeito a falhas, logo, sua felicidade dependerá também das circunstâncias.

Buscando dar conta de todas as características dos usos, Austin traz à cena, além do que havia distinguido como o aspecto locucionário e a força ou valor ilocucionário, uma terceira espécie de ato, o perlocucionário, como recurso para resolver a dificuldade. Ora, essa transformação que produz uma nova taxonomia de três elementos - locucionário, ilocucionário, perlocucionário - resulta em uma segunda dificuldade: distinguir estritamente ilocucionário do perlocucionário - sem mencionar que o locucionário já não está mais realmente distinto dos demais.

Austin sai da dicotomia constativo/performativo para a classificação do que chama agora de atos de fala, em três tipos de atos:

Dizer alguma coisa produzirá frequentemente, ou mesmo normalmente, como consequências certos efeitos sobre os sentimentos, os pensamentos ou as ações dos ouvintes, ou do falante, ou de outras pessoas: e isso pode ser feito com o desejo, a intenção, ou o objetivo de provocar esses efeitos [...]. Chamaremos a performance de um ato dessa espécie de ato 'perlocucionário', e o ato performado [...] de 'perlocução'" (1975: 101).

O locucionário é também um ilocucionário, porque ele é em princípio um ato - o ato de dizer. O constativo perde seu posto de mais importante e torna-se um ato entre outros. O problema está no controle dos efeitos produzidos pelo ato; nesse momento, a diferença entre ilocucionário e perlocucionário escapa... O ilocucionário faz alguma coisa "ao dizer algo" ("eu me desculpo"), tem uma "força" e é suscetível ao "sucesso" ou ao "insucesso" (felicity/infelicity). Já o perlocucionário faz alguma coisa by saying "pelo dizer"; através do dizer, ele tem um "efeito" e produz consequências, mas a diferença entre força e efeito é ainda mais instável.

O ato ilocucionário é "ligado a" efeitos - ele abre de fato a sessão... se e somente se ... isso for compreendido assim. Se ninguém compreendeu que a sessão está aberta é como se o juiz não tivesse dito nada - do mesmo modo que um tropeço, um ato falho, só vai ser reconhecido como um chiste se uma terceira pessoa rir. O que marca o ilocucionário é, portanto, a convenção, mas traçar a linha continua difícil, e caímos no arbitrário da linha: digo "sim" no dia do meu casamento, mas, cabe a pergunta: Será que a consequência convencional (eu me casar) seria separável dos efeitos reais decorrentes de toda e qualquer forma de convivência?

A impossibilidade de definir a partir de traços intrínsecos um enunciado ou uma enunciação perlocucionária é corroborada pelo fato de que, se as circunstâncias são apropriadas e oportunas, qualquer ato perlocucionário está sujeito a ser produzido, de forma premeditada ou não, por qualquer enunciado, mesmo o constativo. Se Austin mantém o nome performativo, que nomeia o fato de o enunciado ser o ato, o perlocucionário, ligado ao efeito, põe em cena a retórica epidítica, que se dirige ao espectador. Enfim, se Austin plays Old Harry, faz o diabo, com os fetiches verdade/falsidade e fato/valor, essa brincadeira também se volta contra ele, e o obriga a mudar. Rajan (1992_______. 1992. A irredutabilidade do ato ilocucionário como fator inibidor do êxito das tentativas taxonômicas. DELTA. 8. 1:91-133.: 122) comenta em uma nota a ironia de Austin ter de levar a sério seu humor.

I put my cats on the table

Se Rajan tem tanto prazer em ler Austin, é porque esse filósofo tira o gato filosófico de cima, ou de baixo, do capacho, mostra suas cartas e não oculta nada dos pontos que possam contrariar todo esse maquinário de fazer coisas com palavras que está arquitetando. Ao contrário: explicitar esses pontos é justamente o que o faz ir adiante...

Em "On Searle [on Austin] on Language" (2000b_______. 2000b. On Searle [on Austin] on language. Language & Communication. 20:347-391.), para mim o texto mais pungente de Rajan, expõe-se a apropriação e o expurgo de Austin, de Searle em diante, tendo suas especulações teorizadas e rotuladas com um made in USA. Ordenando com precisão cirúrgica seus argumentos, vai sobrepondo ao Austin do qual a linguística não tomou conhecimento (Rajan, 1996_______. 1996. O Austin do qual a Linguística tomou conhecimento e a Linguística com a qual Austin sonhou. Cadernos de estudos linguísticos. 30:105-116.) o filósofo desejante, transgressor. E é assim que Rajan lê Austin, levando adiante e valorizando os mecanismos que estavam em ação nos dizeres/fazeres austinianos nas circunstâncias em que se deram suas conferências, e na forma com essa especulação sobre a força ilocucionária foi sistematizada por John Searle para uso próprio, fechando mais uma vez o círculo dos filósofos.

A despeito de nos ter legado uma obra fragmentária, e mesmo rarefeita, a persistência das perguntas, as tentativas de acerto, e a fidelidade a esses problemas de fundo conferem-lhe uma peculiar unidade... É natural que Rajagopalan ressalte que nesse estilo repousa também todo o risco de ser varrido, ele também, para baixo do capacho. Contudo, se o trabalho de Austin não se coloca fora da lei que estabelece, as "definições" precisas, que se distanciam a cada tentativa de aproximação, atestam, com seus fracassos, a força que as faz fracassar - talvez a mesma que tenha causado o interesse de Rajan. Pode-se dizer que Austin started the joke... mas que continua, mesmo depois de perceber que the joke was on him.

Em seu mais recente trabalho publicado na revista DELTA, Rajan (2012RAJAGOPALAN, K. 2012. Performativity and the claims of scientificity of modern linguistics. DELTA 28 (1): 85-103.) afirma o que chama de "inevitabilidade de nosso envolvimento pessoal em nossos projetos de pesquisa", chamando nossa atenção para o impacto desses projetos não só em nossas vidas, mas na vida daqueles que estão a nossa volta. Não o ego sum, mas o nós somos... Nas palavras do autor:

O que nos interessa aqui é a ideia de que nossas enunciações atestam, sobretudo, certas ações que performamos em ou por falar uma língua - o que significa dizer que atrás de cada porção de língua que pensamos ser concreta e autossuficiente há um sujeito falante que pretende que essa enunciação signifique certas coisas... Se não há enunciados constativos, mas apenas performativos engenhosamente camuflados para parecer com eles, a que isso nos leva quando a questão da verdade científica está concernida? (Rajan, 2012RAJAGOPALAN, K. 2012. Performativity and the claims of scientificity of modern linguistics. DELTA 28 (1): 85-103.: 94).

O que Rajan nos mostra com suas reivindicações é que o político se constitui falando, escrevendo. Para ele, o saber é desse mundo, é o saber dos embates entre os homens, as classes, os gêneros, as raças, a mediocridade e a fineza, a violência e a tolerância, o esquecimento e a memória.

Queiram ou não admitir isso, o trabalho dos linguistas é uma forma de intervir no próprio fenômeno que observam - acreditavam no passado que podiam descrever uma língua sem prescrever usos específicos - mas graças a Austin e outros sabemos que a descrição é outro nome da constatividade e que a pura constatividade é uma miragem (Rajan, 2012RAJAGOPALAN, K. 2012. Performativity and the claims of scientificity of modern linguistics. DELTA 28 (1): 85-103.: 98-99).

Austin só podia nos fazer acompanhá-lo em seu percurso, e é na práxis austiniana que Rajan vai reafirmando seu caminho. Se não há experiência sem risco, ela vem sempre, como lembra Derrida, pela primeira vez, e precisa contar com o tempo que se leva para compreender, para apreender o alcance de sua intuição inaugural. O paradoxal dessa teorização, como em Freud no livro dos chistes, é que nenhuma das análises de Austin isola, de fato, um saber que se possa constatar ou demonstrar, de forma que se transmita algo como uma substância... O que aí se transmite é de outra ordem... mas é humano, demasiado humano, que cada um de nós encontre e responda - cada um com sua escuta - a essa transmissão. E Rajan sai desse encantamento levando os atos de fala para fora do círculo de iniciados, levando-os para o plano da ação social, dentro agora das condições sociais em que vive, ensina, pesquisa, denunciando a negligência dos estudos da linguagem8 8 . Rajan observa, na p. 36, que "mesmo a psicanálise freudiana" [...] "baseou-se no conceito de indivíduo". Permito-me discordar, e levar essa discussão adiante, em outra ocasião. para com a sociedade (2010_______. 2010. Aspectos sociais da pragmática. In: Nova pragmática: fases e feições de um fazer. Trad. Claudiana Alencar. São Paulo: Parábola.).

Austin se mostra no ato mesmo de ser apanhado no mecanismo que tenta compreender e que resiste à explicação (não se (des)dobra). Eis aí seu estilo, o modo de transmitir que constitui sua transmissão; uma transmissão em que nos deixamos seduzir pelas artimanhas desse evanescente performativo. Quanto ao humor, tanto em Austin quanto em Rajan, ele é ético porque é afirmação do desejo; é estético, porque se revela criativo ao contornar os interditos; e político, desconstruindo pelas margens e a partir do centro mesmo, o poder instituído, sem perder a graça!

Referências bibliográficas

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  • _______. 1980 [1927]. O humor. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. XXI.
  • JONES, Ernest. 1989. Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
  • RAJAGOPALAN, K. 2012. Performativity and the claims of scientificity of modern linguistics. DELTA 28 (1): 85-103.
  • _______. 2010. Aspectos sociais da pragmática. In: Nova pragmática: fases e feições de um fazer. Trad. Claudiana Alencar. São Paulo: Parábola.
  • _______. 2000a. Austin's humorous style of philosophical discourse in light of Schrempp's interpretation of Oring's "incongruity theory" of humor. Humor. 13. 3:287-311.
  • _______. 2000b. On Searle [on Austin] on language. Language & Communication. 20:347-391.
  • _______. 1996. O Austin do qual a Linguística tomou conhecimento e a Linguística com a qual Austin sonhou. Cadernos de estudos linguísticos. 30:105-116.
  • _______. 1992. A irredutabilidade do ato ilocucionário como fator inibidor do êxito das tentativas taxonômicas. DELTA. 8. 1:91-133.
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  • VERAS, Viviane. 1995. Mil e um chistes e atos de fala: Freud e Austin, apresentado no GEL - São Paulo, maio de 1995 (inédito).
  • _______. 2003. O ato de tornar público: a verdade da mídia, a opinião pública e o político. In: 50º Seminário do Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo, Revista Eletrônica dos Anais do 50º Seminário do GEL.
  • _______. 2009. A tradução e sua relação com o Inconsciente: transmitir a psicanálise. Tradução em Revista (Online), v. 7, p. 1-12.
  • 1
    . The cat is on the mat é uma dessas frases que persistem nas filosofias, assim como "A neve é branca", "O rei da França é calvo", além de outras como "George likes Peking Duck", "Colorless green ideas sleep furiously". Diferentes, por exemplo, do guarda-chuva esquecido por Nietzsche à margem de um manuscrito ou do galo devido a Esculápio por Sócrates, o gato está ora no tapete, ora no capacho (minha tradução preferida), mas não tem nada de misterioso, não é alvo de especulações. É, simplesmente, verdade! Por que cat e mat? Talvez pelo prazer da rima. Talvez porque no capacho o gato está onde deveria estar, até que o irreverente Austin retira-o de lá.
  • 2
    . Para mais detalhes sobre as dificuldades reconhecidas pelo tradutor James Strachey, ver Veras (2009_______. 2009. A tradução e sua relação com o Inconsciente: transmitir a psicanálise. Tradução em Revista (Online), v. 7, p. 1-12.). Todas as traduções não referenciadas são de minha responsabilidade.
  • 3
    . Diga-se de passagem que também nos ensaios escritos e publicados Austin faz de gato e sapato os enunciados filosóficos. Cf. "Truth", "Other Minds" e outros, em Philosophical Papers ([1961] 1979_______. 1979 [1961]. Philosophical Papers. Oxford University Press.).
  • 4
    . Os performativos são chamados de masqueraders. A tradução brasileira por "expressões que se disfarçam" não dá ao leitor a chance de seguir o conselho do filósofo: consultar um bom dicionário. Em português temos a "mascarada", divertimento de origem italiana, constituído de cenas ou números alegóricos, mitológicos ou satíricos, que incluía música polifônica e dança e era representado por personagens mascarados; baile de máscaras; aquele que usa máscara; dissimulado; convencido...
  • 5
    . Na tradução brasileira, bat é traduzido por "pato". Para manter a rima? Mas cats and bats é uma confusão da Alice de Carroll quando está meio sonolenta, no limiar entre o sono e o sonho, assim como snarks e boojums aparecem em "Other Minds" (Philosophical Papers). For the Snark was a Boojum, you see, é um verso de Carroll, fazendo humor com a contradição lógica (Cf. Notas de Martin Gardner na edição anotada de Através do Espelho, 2002CARROLL, Lewis. 2002. Alice: edição comentada. Introdução e notas de Martin Gardner e ilustrações de John Tenniel. Tradução de Maria Luiza X. A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.:139).
  • 6
    . Pode-se dizer que o teatro moderno nasce com a proposta brechtiana de romper com a quarta parede, conferindo à ficção um peso de realidade e à vida real a força criadora da ficção. Nas palavras de Augusto Boal (1997BOAL, A. 1996. O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.: 9), Alguns de nós fazemos teatro, mas todos nós somos teatro... somos em parte espectadores e em parte atores; quando atravessamos a quarta parede tornamo-nos espectatores.
  • 7
    . Ver Jacques Derrida (1972DERRIDA, Jacques. 1972. Signature événement contexte. In: Marges de la Philosophie. Paris: Les Editions de Minuit.).
  • 8
    . Rajan observa, na p. 36, que "mesmo a psicanálise freudiana" [...] "baseou-se no conceito de indivíduo". Permito-me discordar, e levar essa discussão adiante, em outra ocasião.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Maio 2014
  • Aceito
    Fev 2015
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