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“Aí vem eu doidão”: uma abordagem cognitivista para a inversão do sujeito no Português Brasileiro

Subject inversion in Brazilian Portuguese: a cognitive linguistics approach

RESUMO

Este artigo apresenta uma proposta de tratamento cognitivista para o fenômeno da inversão do sujeito no português brasileiro (PB). À luz de desenvolvimentos recentes da Teoria dos Espaços Mentais (Sanders, Sanders and Sweetser 2009SANDERS, Ted; José Sanders &Eve Sweetser. 2009. Causality, cognition and communication: a mental space analysis of subjectivity in causal connectives. In: Ted Sanders & Eve Sweetser (eds.). Causal categories in discourse and cognition. Berlin/New York: Mouton de Gruyter., 2012_____. 2012. Responsible subjects and discourse causality: how mental spaces and perspective help identifying subjectivity in Dutch backwards causal connectives. Journal of pragmatics. 44/2: 191-213.; Ferrari e Sweetser 2012_____ & Eve Sweetser. 2012. Subjectivity and upwards projection in mental space structure. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press. ), e com base na análise de dados reais de entrevistas e conversação espontânea, argumentamos que a inversão do sujeito está associada, no PB, à habilidade cognitiva de deslocamento do ponto de vista. Especificamente, sugere-se que as estruturas SV e VS evocam redes distintas de espaços mentais: a primeira instrui o ouvinte a posicionar o Ponto de Vista no Centro Dêitico da Comunicação, ao passo que a segunda sinaliza o deslocamento do Ponto de Vista para o Domínio do Conteúdo.

Palavras-chave:
Ordem VS; Teoria dos Espaços Mentais; Ponto de Vista; Deslocamento dêitico

ABSTRACT

This paper develops a cognitive linguistics approach to non-canonical VS order in spoken Brazilian Portuguese (BP). Based on recent developments of Mental Spaces Theory (Sanders, Sanders and Sweetser 2009SANDERS, Ted; José Sanders &Eve Sweetser. 2009. Causality, cognition and communication: a mental space analysis of subjectivity in causal connectives. In: Ted Sanders & Eve Sweetser (eds.). Causal categories in discourse and cognition. Berlin/New York: Mouton de Gruyter., 2012_____. 2012. Responsible subjects and discourse causality: how mental spaces and perspective help identifying subjectivity in Dutch backwards causal connectives. Journal of pragmatics. 44/2: 191-213.; Ferrari and Sweetser 2012_____ & Eve Sweetser. 2012. Subjectivity and upwards projection in mental space structure. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press. ), and drawing on attested linguistic data from oral interviews and spontaneous conversation, the research provides evidence that BP subject inversion is a viewpoint shift phenomenon. It is argued that SV and VS structures evoke different mental space networks: the former instructs the hearer to set Viewpoint in the Deictic Centre of Communication, whereas the latter signals Viewpoint shift to the Content Domain.

Key-words:
VS order; Mental Spaces Theory; Viewpoint; Deictic dislocation

1. Introdução

E agora vem você

Querendo aquela velha paz

Pode esperar que eu não volto mais

(Falou demais - Mauro Duarte, João Nogueira e Paulo César Pinheiro)

O que motiva a inversão do sujeito no português brasileiro (PB)? Que fatores estão associados à opção pela ordem VS (verbo-sujeito), em detrimento da ordem canônica SV (sujeito-verbo)? Ou ainda: como explicar a possibilidade ou impossibilidade de posposição do sujeito em diferentes contextos?

Depois de décadas de pesquisas, a quantidade de respostas sugeridas para essas perguntas é de tirar o fôlego. Um breve levantamento da literatura mostra que a ordem VS já foi associada, no PB, pelo menos aos seguintes fatores: a monoargumentalidade (Lira 1986LIRA, Solange de Azambuja. 1986. Subject postposition in Portuguese. D.E.LT.A. 2/1: 17-36.; Berlinck 1989BERLINCK, Rosane Andrade. 1989. A construção V SN no Português do Brasil: uma visão diacrônica do fenômeno da ordem. In: Fernando Tarallo (org.). Fotografias sociolingüísticas. Campinas: Pontes.), a inacusatividade (Figueiredo Silva 1996FIGUEIREDO SILVA, Maria Cristina. 1996. A posição sujeito no português brasileiro: frases finitas e infinitas. Campinas: Unicamp., Santos e Soares da Silva 2012SANTOS, Daniele & Humberto Soares da Silva. 2012. A ordem V-DP/DP-V com verbos inacusativos. In: Maria Eugênia Duarte (org.). O sujeito em peças de teatro (1833-1992): estudos diacrônicos. São Paulo: Parábola.), o peso fonético do sujeito (Figueiredo Silva 1996FIGUEIREDO SILVA, Maria Cristina. 1996. A posição sujeito no português brasileiro: frases finitas e infinitas. Campinas: Unicamp., Spanó 2008SPANÓ, Maria. 2008. A ordem verbo-sujeito no português brasileiro e europeu: um estudo sincrônico da escrita padrão. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro.), a indefinitude do SN, a função apresentativa da sentença (Ferrari 1990FERRARI, Lilian. 1990. Distribution and function of word order variation in Brazilian Portuguese. Journal of Pragmatics. 14/4: 649-666.), o baixo grau de transitividade do verbo (Abraçado 2003ABRAÇADO, Jussara. 2003. Ordem de palavras: da linguagem infantil ao português coloquial. Rio de Janeiro: EdUFF.), o caráter “novo” do referente do sintagma nominal (Berlinck 1989BERLINCK, Rosane Andrade. 1989. A construção V SN no Português do Brasil: uma visão diacrônica do fenômeno da ordem. In: Fernando Tarallo (org.). Fotografias sociolingüísticas. Campinas: Pontes., Ferrari 1990FERRARI, Lilian. 1990. Distribution and function of word order variation in Brazilian Portuguese. Journal of Pragmatics. 14/4: 649-666.) e a baixa topicalidade do sujeito (Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.). A despeito da sua diversidade, essas explicações podem ser divididas - com alguma simplificação inevitável - em dois grandes grupos: restrições de natureza formal (as quatro primeiras) e motivações funcionais (as quatro últimas).

Este trabalho, por seu turno, investe em uma terceira via: seu objetivo é explicar a inversão do sujeito no PB à luz da Linguística Cognitiva (LC). Nas próximas páginas, defenderemos que a inversão do sujeito é um fenômeno associado, no PB, à categoria conceptual de perspectiva ou ponto de vista. Para isso, recorremos, em particular, à Teoria dos Espaços Mentais (TEM). A opção se justifica: por se tratar de um modelo de tratamento de fenômenos de referenciação, a TEM parece particularmente bem equipada para lidar com fenômenos sensíveis ao gerenciamento de referentes no fluxo discursivo, como é sabidamente o caso da inversão do sujeito no PB.

O artigo está organizado como segue. Na próxima seção, expomos os fundamentos da TEM. Em seguida, apresentamos os procedimentos metodológicos do trabalho. Na sequência, as seções 3 e 4 constituem o cerne do trabalho: a primeira apresenta nossa hipótese básica e seus desdobramentos descritivos; a segunda propõe uma breve discussão teórica a partir do contraste entre a presente proposta e abordagens funcional-discursivas anteriores, com destaque para Naro e Votre (1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.). Finalmente, as considerações finais sintetizam a propostas e apontam para desenvolvimentos futuros.

2. Teoria dos Espaços Mentais: do modelo original aos desenvolvimentos recentes

Desenvolvida a partir de meados da década de 1970, graças ao trabalho pioneiro de Gilles Fauconnier (1994FAUCONNIER, Gilles. 1994 [1985]. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language. Cambridge: Cambridge University Press. [1985], 1997_____. 1997. Mappings in thought and language. Cambridge: University Press. ), a TEM surge como uma reação às abordagens realistas e lógico-formais do significado, tributárias da tradição da filosofia analítica. Em essência, o projeto de Fauconnier consiste em substituir uma visada realista por uma perspectiva mentalista, fundada da noção de espaço mental. Conceito-chave da teoria, os espaços mentais são entendidos como estruturas cognitivas efêmeras criadas continuamente durante o desenrolar da interação comunicativa e utilizadas para compartimentar e gerenciar o fluxo de informação.

Para termos uma ideia de como o modelo funciona na prática, vejamos as sentenças abaixo:

(1) a. O Rafinha é craque.

b. No futuro, o Rafinha será craque.

A sentença (1a) é interpretada, tipicamente, como uma informação relativa à realidade imediata dos interlocutores. Na TEM (ou, pelo menos, na sua versão clássica, como veremos adiante), isso significa que ela será construída no Espaço Base, definido como o ponto de partida do discurso e normalmente identificado com o aqui-e-agora da interlocução. Em (1b), diferentemente, a situação Rafinha ser craque é compreendida como uma informação que se aplica não à Base, mas a um outro domínio de interpretação, correspondente ao espaço mental de futuro. Na prática, portanto, a representação de (1b) irá se distinguir da de (1a) por incluir dois espaços mentais: para além do Espaço Base, também um Espaço de Futuro.

Uma segunda diferença entre (1a) e (1b) é a seguinte: enquanto (1a) conta com apenas um Rafinha (representado por r no Espaço Base), o exemplo (1b) inclui, por assim dizer, “dois Rafinhas”: o Rafinha do Espaço de Futuro (representado por r’), a quem se aplica o atributo “craque”, e o Rafinha do Espaço Base, que existe aqui e agora mas não é craque. A título de ilustração, vejamos o esquema abaixo:

Na figura 1, importa atentar para a linha que conecta os “dois Rafinhas”: ela traduz visualmente a ideia de que r e r’ se referem, em alguma medida, à mesma pessoa (mas só “em alguma medida”, porque o segundo tem uma propriedade que o primeiro não tem). Essa conexão entre elementos de espaços distintos é um dos mecanismos mais importantes da TEM. Em Fauconnier (1994FAUCONNIER, Gilles. 1994 [1985]. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language. Cambridge: Cambridge University Press.: 3), ele é formalizado por meio do Princípio da Identidade (ou Princípio do Acesso), que estabelece o seguinte:

Se dois objetos (em sentido maximamente abrangente), a e b, estão ligados por uma função pragmática F (b = F(a)), uma descrição de a, da, pode ser usada para identificar sua contraparte b.

Figura 1
Representação de No futuro, o Rafinha será craque.

É preciso lembrar, porém, que a TEM se propõe a representar o processo dinâmico de referenciação. Por isso, ela deve ser capaz de capturar as mudanças que ocorrem na representação mental dos referentes com o desenrolar do fluxo discursivo. Na prática, essa tarefa é levada a cabo pelos “primitivos discursivos” previstos no modelo (Cutrer 1994CUTRER, Michelle. 1994. Time and tense in narratives and everyday language. Ph.D. Dissertation. University of California, San Diego.). Para os fins deste trabalho, dois desses primitivos são diretamente relevantes: Foco e Ponto de Vista.

Resumidamente, o Espaço Foco (F) é aquele no qual se estrutura a informação que está sendo veiculada num dado momento: é sempre, portanto, o espaço correntemente ativado. O Espaço Ponto de Vista (PV), por outro lado, é aquele a partir do qual a informação contida em outro espaço é acessada: trata-se do “centro de conceptualização e consciência do self a quem o enunciado é atribuído” (Cutrer 1994CUTRER, Michelle. 1994. Time and tense in narratives and everyday language. Ph.D. Dissertation. University of California, San Diego.: 73). Para ilustrar esses conceitos, observem-se os exemplos abaixo:

(2) a. Armerinda tem 30 anos.

b. Em 2008, ela morou na Inglaterra.

c. Em 2009, ela se mudaria para Roma.

Em (2a), só há um espaço disponível: o Espaço Base, onde é interpretada a informação sobre a idade de Armerinda (entendida, assim, como fato real e presente) e onde se situam os primitivos F e PV. Já a informação de (2b) é construída em um Espaço de Passado, aberto pelo sintagma “Em 2008”. Aqui, embora F se desloque para esse novo espaço, PV segue na Base: afinal, é a partir do momento presente (da interação) que “olhamos” para esse evento passado e o conceptualizamos.

Por fim, em (2c), com a abertura de um novo espaço mental por meio do sintagma “Em 2009”, o PV é deslocado. Neste caso, a informação Armerinda mudar-se para Roma é apresentada como um fato futuro em relação a 2008, que é passado em relação ao momento de fala. Aqui, portanto, o espaço aberto pelo sintagma “Em 2008”, que na passagem anterior estava em Foco, passa a abrigar o PV. Na figura abaixo, é possível observar a representação do significado construído após a enunciação de (2c):

Figura 2
Representação de Em 2009, ela se mudaria para Roma.

O esquema da figura 2 ilustra os fundamentos do modelo clássico da TEM. No entanto, desenvolvimentos recentes têm produzido novos insights, levando à emergência de uma nova versão da teoria. Por razões que ficarão claras adiante, essa versão será referida pela sigla BCSN (Basic Communicative Spaces Network; Sanders, Sanders e Sweetser 2009SANDERS, Ted; José Sanders &Eve Sweetser. 2009. Causality, cognition and communication: a mental space analysis of subjectivity in causal connectives. In: Ted Sanders & Eve Sweetser (eds.). Causal categories in discourse and cognition. Berlin/New York: Mouton de Gruyter., 2012_____. 2012. Responsible subjects and discourse causality: how mental spaces and perspective help identifying subjectivity in Dutch backwards causal connectives. Journal of pragmatics. 44/2: 191-213.; Ferrari e Sweetser 2012_____ & Eve Sweetser. 2012. Subjectivity and upwards projection in mental space structure. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press. ).

As inovações trazidas pela versão BCSN decorrem de dois insights. O primeiro diz respeito à necessidade de estabelecer uma separação entre o ato de interação em si mesmo e o conteúdo efetivamente comunicado. No modelo clássico, o Espaço Base pode ser, ao mesmo tempo, o “lugar” onde estão os interlocutores, sujeitos de comunicação e conceptualização, e o espaço onde se situam os referentes sobre os quais se fala − ou seja, os objetos de comunicação e conceptualização. Uma das inovações da versão BCSN consiste em representar separadamente esses dois níveis. Assim, o plano do ato comunicativo tem sido chamado alternativamente de Centro Dêitico da Comunicação (Sanders, Sanders e Sweetser 2009SANDERS, Ted; José Sanders &Eve Sweetser. 2009. Causality, cognition and communication: a mental space analysis of subjectivity in causal connectives. In: Ted Sanders & Eve Sweetser (eds.). Causal categories in discourse and cognition. Berlin/New York: Mouton de Gruyter., 2012_____. 2012. Responsible subjects and discourse causality: how mental spaces and perspective help identifying subjectivity in Dutch backwards causal connectives. Journal of pragmatics. 44/2: 191-213.) e de ground (Ferrari e Sweetser 2012_____ & Eve Sweetser. 2012. Subjectivity and upwards projection in mental space structure. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press. ), ao passo que o plano do conteúdo comunicado/conceptualizado corresponde ao Domínio do Conteúdo (DC).

O segundo insight consiste na ideia de que o self não é unificado, mas heterogêneo. Dito informalmente, os interlocutores não são apenas sujeitos que, estando engajados em uma situação comunicativa, executam atos de fala. Eles têm pelo menos outras duas facetas: são pessoas físicas localizadas em um determinado espaço-tempo real e são seres dotados de estados mentais. Se o self é multifacetado, faz sentido que os interlocutores sejam representados diversas vezes no Centro Dêitico da Comunicação (CDC). Na versão BCSN, cada faceta dos interlocutores é representada em um espaço mental distinto, todos eles integrantes do CDC. As facetas mencionadas acima correspondem aos seguintes espaços: Espaço Real (falante e ouvinte como pessoas físicas), Espaço de Ato de Fala (falante e ouvinte como interlocutores engajados em uma ação comunicativa intersubjetiva) e Espaço Epistêmico (falante e ouvinte como sujeitos dotados de estados / processos mentais). Para além desses três espaços, dois outros têm sido citados como integrantes da rede de espaços mentais que compõem o ground: um Espaço Metalinguístico, que inclui um conjunto de pareamentos forma-significado, e um Espaço Metatextual, que registra o histórico da conversação em curso.

Como resultado, passa-se de uma Base monolítica, na versão clássica, para uma Base multifacetada − composta não apenas por um único espaço, mas por uma rede de espaços comunicativos básicos (BCSN, ou Basic Communicative Spaces Network, na sigla em inglês). Tudo somado, ficamos com a seguinte imagem. Toda situação comunicativa evoca uma rede de espaços mentais dividida em dois planos: CDC, ou ground, e DC. Esse ground corresponde a um conjunto de cinco espaços mentais, que podem ser divididos em dois grupos: de um lado, o Espaço Real, o Espaço de Ato de Fala e o Espaço Epistêmico (aqueles que incluem uma representação dos interlocutores, com suas diferentes facetas); de outro, o Espaço Metalinguístico e o Espaço Metatextual (que não incluem tal representação). A figura abaixo, adaptada de Ferrari e Sweetser (2012_____ & Eve Sweetser. 2012. Subjectivity and upwards projection in mental space structure. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press. ), representa essa rede:

Figura 3
Rede de Espaços Comunicativos Básicos (Ferrari e Sweetser 2012_____ & Eve Sweetser. 2012. Subjectivity and upwards projection in mental space structure. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press. ).

3. Procedimentos metodológicos

Para este estudo, dois corpora foram utilizados na coleta de dados: BBB 10 e Discurso & Gramática (D&G). O primeiro consiste na transcrição de aproximadamente 60 horas de gravações do pay-per-view (transmissão 24 horas) do programa Big Brother Brasil 10, veiculado pela Rede Globo de Televisão no ano de 20101 1 .A transcrição do corpus BBB 10 obedeceu às seguintes convenções: [ ] sobreposição de vozes localizada (+) pausa breve / truncamento brusco MAIÚSCULAS ênfase ou acento forte (( )) comentários do analista :: alongamento da vogal ” subida rápida ’ subida leve . O segundo inclui dados de língua falada e escrita divididos em cinco categorias: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião. Para este trabalho, foram utilizados apenas os dados de língua falada.

É importante destacar que a análise de dados restringiu-se às sentenças declarativas, afirmativas, ativas e sintaticamente independentes. Uma consequência dessa opção metodológica é a exclusão de construções mais idiomáticas, do tipo A gente vai à reunião, queira você ou não ou Fosse você menos teimoso, tudo estaria bem2 2 .Para uma análise preliminar das construções VS idiomáticas do PB, ver Pinheiro (2009). . Foram excluídas também as sentenças existenciais com os verbos “ter” e “haver”. Essa decisão, razoavelmente comum nos estudos sobre inversão do sujeito no PB (Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98., Spanó 2008SPANÓ, Maria. 2008. A ordem verbo-sujeito no português brasileiro e europeu: um estudo sincrônico da escrita padrão. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro.), foi motivada pelo fato de que essas sentenças são fortemente refratárias à anteposição do sujeito, virtualmente eliminando a possibilidade de alternância SV / VS.

4. Inversão do sujeito no português brasileiro: uma questão de ponto de vista

Nas próximas páginas, argumentaremos que a diferença entre uma sentença SV e sua “contraparte” VS envolve, crucialmente, a noção de ponto de vista. A ideia básica é a que segue. Ao construir um evento, o falante tem duas opções, no que concerne à perspectiva adotada. Uma possibilidade é preservar a situação default, na qual a cena evocada é construída a partir do seu próprio ponto de vista; uma segunda possibilidade é alinhar-se à perspectiva de outro sujeito cognoscente disponível (outra “subjetividade”, nos termos de Dancygier (2012DANCYGIER, Barbara. 2012. Conclusion: multiple viewpoints, multiple spaces. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (eds.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press.)), passando a construir o evento segundo o ponto de vista desse indivíduo. Aqui, defenderemos que a ordem SV está associada à primeira opção, enquanto a ordem VS manifesta a segunda alternativa.

Os exemplos abaixo, ambos retirados do corpus BBB 10, podem dar uma ideia de como isso funciona na prática. O primeiro foi produzido pela participante Fernanda e dirigido ao participante Dicésar (referido como Di); o segundo é uma pequena narrativa contada pelo participante Dourado.

(3) F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)

(4) DO: cara daí eu bah me apaixonei pelo bicho’ daí eu falei ah mãe deixa eu ficar’ daí minha mãe’ e ele não saía meu’ minha mãe tentava’ sai não sei o quê’ ele pegava saía e depois voltava (+) até que um dia mesma coisa ela’ sai sai’ aí ela foi fazer sei lá o que na rua’ quando ela volta tá ele dentro da casa (+) ele tinha conseguido entrar (Corpus BBB 10)

Ambas as sentenças em negrito designam uma cena de locação, lexicalizada pelo verbo “estar”: no primeiro caso, a locação do “chapéu” no espaço do “banquinho vermelho”; no segundo, a locação do cachorro (“ele”) no interior da casa. No entanto, a maneira como essa cena é construída difere em cada caso. Intuitivamente, parece razoável partir da seguinte distinção: se, em (3), o falante está apenas informando ou comunicando a localização do chapéu ao ouvinte, o uso em (4) parece simular uma experiência original de percepção, de maneira que a cena de locação é apresentada “pelos olhos” da personagem - a mãe do narrador - que, a certa altura, se depara com o animal dentro da sua casa.

Essa distinção pode ser representada por meio da versão BCSN da TEM. Como vimos, esse modelo pressupõe uma separação entre o CDC, ou ground comunicativo, e o DC. Enquanto o primeiro plano traduz os aspectos relativos ao aqui-e-agora interacional, o segundo diz respeito ao conteúdo efetivamente expresso. Nesse sentido, o Espaço Foco estará sempre situado no DC, mas o PV pode ser manipulado, posicionando-se ora no CDC, ora no DC.

É precisamente essa flutuação do Ponto de Vista que se vê nas figuras abaixo. A figura 4 representa o padrão SV, ilustrado em (3). Aqui, o posicionamento do PV no ground traduz o fato de que o cenário evocado - e representado no DC - está sendo construído por um sujeito distanciado. Vale dizer, um sujeito que fala sobre o evento (no aqui-e-agora da interação em curso), mas não o presencia diretamente (no aqui-e-agora dos fatos narrados).

Figura 4
Representação do padrão SV segundo a Teoria dos Espaços Mentais.

Por sua vez, a figura 5 representa o padrão VS, ilustrado em (4). Como vimos, a sentença em destaque nesse exemplo pressupõe, para além dos interlocutores, uma “subjetividade” adicional localizada no aqui-e-agora da narrativa: um personagem que presencia a cena designada “diante dos seus olhos”. Isso é representado pela localização desse sujeito no DC. Em (4), portanto, o ponto de vista é - em alguma medida - terceirizado: o falante opta por construir o evento a partir de uma perspectiva in loco.

Figura 5
Representação do padrão VS segundo a Teoria dos Espaços Mentais.

Em resumo, defendemos que a construção gramatical SV serve como pista para que o Ponto de Vista seja posicionado no Centro Dêitico da Comunicação; inversamente, a construção VS serve como pista para que o Ponto de Vista seja posicionado no próprio Domínio do Conteúdo. Na prática, isso significa que a inversão do sujeito associa-se a uma configuração de espaços mentais na qual Foco e Ponto de Vista compartilham o mesmo domínio na BCSN: o Domínio do Conteúdo.

Neste ponto, passamos a explorar os desdobramentos dessa hipótese. Observe-se que a figura 4 representa uma relação assimétrica entre interlocutores engajados em uma situação comunicativa (sujeitos conceptualizadores) e a cena evocada por um enunciado linguístico (objeto conceptualizado). Como vimos, o acesso desses interlocutores à cena focalizada não é direto (eles não veem a cena propriamente), mas indireto (eles se limitam a interpretar o enunciado linguístico que evoca a cena). Por essa razão, diremos que eles desempenham os papéis conceptuais de Falante e Ouvinte3 3 .Utilizamos inicial maiúscula para nos referirmos aos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte – ou seja, os papéis de interlocutores engajados em uma situação comunicativa. Isso permitirá distinguir o falante e o ouvinte como pessoas físicas ou seres-no-mundo (grafados com inicial minúscula) dos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte (grafados com inicial maiúscula). Seguindo Sanders, Sanders e Sweetser (2009, 2012), assumiremos neste trabalho, por padrão, a perspectiva do Falante. .

A figura 5, por seu turno, representa dois tipos de relações assimétricas. Além da relação entre interlocutores e significado da expressão linguística, esse diagrama representa, no DC, a relação que se estabelece entre um sujeito cognoscente in loco (PV’) e um evento não-linguístico (cena em Foco). Nesse caso, portanto, o conceptualizador não é um indivíduo que constrói o sentido de um enunciado linguístico, mas alguém que apreende diretamente um evento. Por essa razão, diremos que o sujeito conceptualizador próprio do padrão VS desempenha o papel de Observador4 4 .Como é praxe na LC, em especial nas vertentes de Leonard Talmy (2000a, 2000b) e Ronald Langacker (1987, 1991), recorremos ao domínio visual apenas como ponto de partida. Nesse sentido, nem sempre a palavra “Observador” será empregada em sua acepção literal. Às vezes, a sentença VS evoca uma percepção baseada em outro domínio sensorial (por exemplo, a audição), de maneira que o termo deverá ser interpretado metonimicamente. Em outros casos, temos um espaço abstrato (não sensorial), envolvendo, portanto, uma projeção metafórica. .

Essa distinção é capaz de explicar os efeitos de sentidos diversos que as sentenças SV e VS parecem produzir. No segundo caso, como o conteúdo proposicional da sentença é construído sob o ponto de vista de um Observador, tudo se passa como se tivéssemos sido projetados para o espaço-tempo onde se passam os eventos representados. A aproximação entre sujeito e objeto gera, como resultado, um efeito de experiência direta. Do ponto de vista estilístico, isso produz a impressão de que enunciados com sujeito pós-verbal são mais vívidos ou expressivos do que aqueles com sujeito anteposto5 5 .Interessantemente, Bolinger (1977), ao discutir a inversão verbos-sujeito no inglês, insiste bastante na ideia de vivacidade (“vividness”). Até onde temos conhecimento, esse efeito nunca foi associado à estrutura VS no português brasileiro. Parece intuitivo, contudo, que usos VS exibem uma vivacidade ou dramaticidade que contrasta com o distanciamento possibilitado pelos usos SV – e a proposta desenvolvida aqui, em termos de espaços mentais, permite explicar essa sensação. .

Por seu turno, sentenças SV são interpretadas segundo a perspectiva do próprio Falante, que se localiza no ground comunicativo. Em outras palavras, o sujeito conceptualizador é construído como um indivíduo espaço-temporalmente afastado do evento em Foco. Como resultado, a construção SV não produz o efeito de experiência direta. Na verdade, o conteúdo do enunciado será construído como algo que está sendo comunicado interacionalmente (em oposição a testemunhado diretamente). Do ponto de vista estilístico, o afastamento entre sujeito e objeto produz a impressão de que enunciados com sujeito pré-verbal são mais frios ou objetivos do que aqueles com sujeito pós-verbal.

O quadro delineado até aqui pode ser sintetizado como segue. A ordem VS ativa uma configuração de espaços mentais na qual tanto o PV quanto o Foco se localizam no DC. Isso implica que a cena focalizada seja interpretada segundo a perspectiva de um sujeito conceptualizador com acesso direto ao objeto conceptualizado (perspectiva in loco). Com isso, o padrão VS produz um efeito de experiência direta, o que significa que o conceptualizador se constrói como Observador. Por seu turno, a ordem SV ativa uma configuração de espaços mentais na qual o PV se localiza no CDC. Isso implica que o sujeito conceptualizador não tem acesso direto ao objeto conceptualizado (perspectiva distanciada). Com isso, o padrão SV produz o efeito de apreensão indireta da cena focalizada (via comunicação verbal), o que significa que o conceptualizador se constrói como Falante.

O alinhamento entre todas essas propriedades está sintetizado no quadro abaixo:

Quadro 1
Contraste entre as construções SV e VS

Em suma, até este momento procuramos desenvolver a hipótese central deste trabalho, segundo a qual a alternância SV / VS reflete uma flutuação do Ponto de Vista na rede de espaços mentais, de maneira que a inversão do sujeito está associada a uma situação em que o sujeito conceptualizador (PV) compartilha o mesmo espaço-tempo do objeto conceptualizado (F).

5. Alternância SV/VS e flutuação de Ponto de Vista: testando a hipótese

Como vimos, a hipótese apresentada envolve a ideia de que sentenças VS evocam uma experiência de percepção direta. Nos termos do formalismo da TEM, isso implica uma configuração específica da rede de espaços mentais, na qual F e PV se situam, ambos, no Domínio do Conteúdo.

Essa hipótese produz as seguintes previsões:

  • (i) se o frame verbal incluir o papel conceptual Observador, a ordem VS será licenciada; caso contrário, ela será bloqueada;

  • (ii) se o contexto linguístico ou extralinguístico fornecer o papel conceptual de Observador, a ordem VS será licenciada mesmo com verbos cujo frame não inclua esse papel;

  • (iii) se o contexto discursivo for incompatível com uma leitura de experiência direta, a ordem VS não será licenciada.

Na sequência desta seção, procuraremos verificar cada uma dessas previsões. A previsão (i) pode ser avaliada a partir do contraste entre (5) e (6):

(5) ele comprou o relógio... e voltou... quando voltou... para casa... estava um pouco/ ah... meu Deus... estava assustado... com... com medo... porque... se alguém... iria roubar o relógio...de repente... aparece do... dois garotos... que ro/ queriam roubar o relógio dele... (Corpus D&G - Narrativa recontada - Rio de Janeiro 2)

(6) F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)

A diferença entre esses exemplos parece redutível ao frame verbal. Por um lado, o verbo aparecer evoca, necessariamente, a figura de um Observador: o indivíduo que testemunha a situação de aparecimento. Por outro lado, o frame de estar envolve apenas um tema (a entidade cuja localização é identificada) e um locativo (a região espacial onde se localiza o referente do tema). Fundamentalmente, não há qualquer referência obrigatória a um Observador; trata-se simplesmente de um cenário de continência. Nossa hipótese nos leva, portanto, a esperar que a inversão do sujeito seja, no mínimo, pouco natural para uma sentença como (6). A previsão parece se confirmar:

(6b) # F: Di tá seu chapéu no banquinho vermelho6 6 .Mais aceitável aqui seria o emprego da construção de antitópico (Lambrecht 1994) – “Tá no banquinho vermelho, seu chapéu” –, mas, neste caso, já estamos diante de uma construção gramatical sensivelmente distinta. (Corpus BBB 10)

À luz da hipótese apresentada aqui, portanto, a baixa aceitabilidade de (6b) é efeito da indisponibilidade do papel de Observador no frame do verbo estar. Por outro lado, a disponibilidade desse mesmo papel no frame de aparecer explica a naturalidade de (5).

Se, no entanto, os fatos fossem tão simples, não seria possível encontrar qualquer sentença VS com o verbo estar. Interessantemente, porém, embora pouco aceitáveis em contextos de interlocução direta, como (6), elas se tornam bastante naturais em contextos narrativos, como (7).

(7) o caminhão foi andando uns duzentos metros... e ela está ali embaixo naquele desespero todo e em poder... tá entendendo? fazer nada... porque... o motorista não estava vendo... só quando o pessoal começou a gritar mesmo... que:: ele só/ foi escutar e parou o caminhão... quando ele parou o caminhão... estava a rua toda cheia de sangue... e ela estava toda... sabe? já estava... sem a/ o rosto... (Corpus D&G - Narrativa recontada - Rio de Janeiro 1)

Se o verbo estar não inclui um Observador em seu frame, por que a ordem VS é licenciada em (7)? O que ocorre aqui é que o contexto narrativo de (7), ausente de (6), fornece o Observador que não pode ser encontrado no frame semântico convencionalmente associado ao verbo estar. Na sequência acima, esse Observador é metonimicamente evocado pelo SN “o caminhão” e, pouco depois, diretamente referido pelo SN “o motorista”. Nesse sentido, a sentença em negrito não predica apenas um cenário em que a rua está cheia de sangue, mas reproduz, de maneira particularmente vívida, a percepção de um sujeito in loco (aqui, o motorista do caminhão) acerca desse cenário.

Em resumo, a possibilidade de inversão do sujeito em (7), sobretudo em contraste com a pouca naturalidade de (6b), aponta para a confirmação da previsão (ii): verbos que não incluam um Observador em seu frame semântico em princípio não exibirão sujeito pós-verbal (como em (6)), mas podem fazê-lo no caso de o papel de Observador ser fornecido pelo contexto discursivo (como em (7)). Esses fatos apenas reforçam a ideia de que a inversão do sujeito está ligada a um evento de experiência direta, com relação não mediada entre sujeito conceptualizador (PV) e objeto conceptualizado (F).

Em alguns casos, porém, embora o frame verbal disponibilize um Observador, pistas discursivas e contextuais desfavorecem a concep­tualização do cenário designado segundo a perspectiva desse Observador. Nesses casos, espera-se que a ordem VS não seja licenciada. É disso que trata a previsão (iii).

Para verificar como isso ocorre na prática, observemos os dois exemplos abaixo. Ambos foram extraídos do corpus D&G e não há entre eles qualquer ruptura ou descontinuidade. Aqui, eles foram separados apenas para facilitar a referência posterior.

(8) o Alexandre pegou o carro dele e foi... comprar cerveja... aí estava descendo pela Conde de Bonfim... né? e ia dobrar... numa rua à esquerda... que era contramão ((riso)) pra ir no/ na... na padaria que estava aberto lá pra comprar cerveja... no bar que estava aberto pra comprar cerveja... aí ele... pô... ligou a seta... reduziu... quando ele virou pra esquerda pra cruzar a Conde de Bonfim... vinha um táxi... ((interrupção de colega de trabalho)) vinha um táxi correndo pra caramba... e bateu... na porta dele... do lado dele assim... acabou o carro... pô... ele se machucou na cara... cortou a cara... entrou vidro dentro do olho dele... mas não chegou a se... a se ferir gravemente não... foi só assim leve... né? e pô:: o mais engraçado é que ele saltou do carro... pô... putão... e o motorista do táxi tranquilíssimo... ligando já pra::/ pegou o rádio lá que tem no táxi e ligando lá pra Central... pediu reboque e não sei o quê... não deu nem atenção pra ele... aí pararam ((riso)) parou uma porção de tá::xi... aí os caras do táxi começaram a arrumar confusão... com ele... pô... ele falou que... os caras do táxi falando pra ele assim “pô... ninguém vai pagar teu prejuízo mesmo... sai fora” ((riso)) e::... e não pagaram mesmo não... o cara/ veio a polícia... registraram a ocorrência... o próprio policial falou que não adiantava nada que... entrar na justiça... demora anos... e dificilmente a empresa de táxi vai pagar... você só leva prejuízo... (Corpus D & G - Narrativa recontada - Rio de Janeiro 1)

(9) E: mas ele também estava errado... né? entrar na contramão...

I: não... ele estava errado... mas o táxi veio cortando pela contramão também... o cara do táxi que estava mais errado do que ele ainda... e tanto o policial falou que o cara/ ele tinha toda chance de ganhar no tribunal... só que... pô... ia demorar anos e::... no final a companhia ainda ia recorrer... se bobear ne... nem pagava... (Corpus D & G - Narrativa recontada - Rio de Janeiro 1)

Os usos destacados em (8) e (9) fazem referência à mesma situação objetiva: o episódio no qual um táxi entra na contramão e se coloca em rota de colisão com o carro do protagonista da narrativa. A inversão do sujeito, contudo, parece bem menos natural no segundo caso:

(9b) não... ele estava errado... # mas veio o táxi cortando pela contramão também...

Para explicar a pouca naturalidade de (9b), comecemos observando que o uso VS em (9) está inserido em uma narrativa mais ampla, protagonizada pelo motorista Alexandre. De fato, toda a sequência de acontecimentos é apresentada sob a perspectiva desse personagem. À luz da TEM, diremos que o personagem Alexandre atua como um sujeito cognoscente descentrado que está disponível para a concep­tualização dos eventos apresentados.

A certa altura da narrativa, a sequência quando ele virou pra esquerda pra cruzar a Conde de Bonfim promove a abertura de um Espaço de Percepção. É dentro desse espaço mental que o evento subsequente será interpretado, de maneira que a cena da vinda do táxi será enquadrada como objeto de percepção direta do motorista Alexandre.

Ao final da narrativa, porém, a entrevistadora intervém, aparentemente incomodada com a tese implícita na fala do informante (segundo a qual o motorista Alexandre não teria tido responsabilidade pelo acidente). Procurando evidenciar a fragilidade dessa tese, ela comenta: mas ele também estava errado... né? entrar na contramão.... Neste ponto, o informante parece sentir-se na obrigação de contra-argumentar - e, com isso o que era uma narrativa se transforma, definitivamente, em um breve embate argumentativo. É nesse momento que ele enuncia a sentença SV em destaque. Por meio dela, o informante procura reafirmar sua tese.

Nesse contexto, a sentença destacada em (9) não é entendida - diferentemente do que se vê em (8) - como uma tentativa de reproduzir a experiência original de percepção vivenciada pelo Observador. Em vez disso, ela é interpretada como um argumento (um ato linguístico e intersubjetivo, portanto) trazido à tona pelo Falante, no interior de uma disputa retórica com o Ouvinte, a fim de refutar a tese contrária e reafirmar sua posição.

A esta altura, deve estar claro que a diferença de interpretação entre (8) e (9) pode ser está relacionada a uma diferença de Ponto de Vista: no segundo caso, atribuímos a construção do evento em foco ao próprio Falante; no primeiro, enxergamos o evento em foco “pelos olhos” de um Observador in loco, como se estivéssemos dentro da cena presenciando a aproximação do táxi.

Com efeito, a presença, no exemplo (9), do conectivo “mas” e do focalizador “também” são compatíveis com essa interpretação. Esses dois elementos atuam diretamente no gerenciamento da negociação intersubjetiva: o primeiro sinaliza a introdução de um argumento que contraria a tese do informante, enquanto o segundo é usado pela entrevistadora para focalizar uma informação presente na fala do informante (a informação expressa pelo sintagma “na contramão”). Como consequência, esses dois elementos sugerem que o próprio Falante é o responsável pela construção do evento designado (a vinda do táxi pela contramão).

A ordem VS, por outro lado, aponta para a perspectiva do Observador. Como resultado, produz-se um conflito entre a posição do sujeito, de um lado, e o contexto discursivo / situação interacional, de outro. Nesse sentido, (9b) corresponde a uma tentativa de evocar a perspectiva do Observador em um contexto que favorece fortemente a construção do enunciado segundo a ótica do Falante. Em conformidade com a previsão (iii), o conflito entre instrução sintática (ordem VS) e contexto discursivo produz uma sentença pragmaticamente mal-sucedida.

6. Ordem VS e mesclagem conceptual

Até aqui, argumentamos que o padrão VS funciona como pista formal que instrui o ouvinte a interpretar o evento em foco a partir de um centro dêitico deslocado, assumindo a perspectiva de um sujeito in loco. Mas há um porém: se a ordem linear verbo-sujeito sugere, ou promove, um afastamento em relação à situação comunicativa, é fato que enunciados VS concretos frequentemente exibem marcas formais que, atuando no sentido contrário, demandam acesso ao ground interacional. Aqui, iremos nos concentrar em duas delas: a morfologia do verbo e a forma do sintagma nominal em relação de sujeito7 7 .A opção não é gratuita. Segundo Langacker (2008), esses dois elementos têm o papel de ancorar os designata de nomes e verbos no ground comunicativo. .

Comecemos pelo exemplo (10), no qual o informante reconta uma situação trágica vivenciada por um “colega”:

(10) o meu colega me contou... que ele estava os dois indo... aí ele foi atravessar a rua... aí veio um carro disparado... e atropelou ele... (Corpus D&G - Narrativa recontada - Rio de Janeiro 2)

Neste exemplo, embora o SN não demande acesso a informações do ground, o tempo verbal toma como referência o aqui-e-agora da comunicação. Afinal, ao contrário da forma de presente quando usada no relato de fatos passados (presente histórico ou narrativo), a forma de pretérito não promove deslocamento dêitico - pelo contrário, ela mantém a ancoragem dêitica no ground. Portanto, neste caso, a forma verbal nos instrui a “olhar” para o fato passado (o evento designado pela sentença VS) a partir do ponto de vantagem do Centro Dêitico da Comunicação. Em outras palavras, interpretar essa forma verbal demanda que se acesse - e não que se abstraia - o momento da enunciação. Ocorre que só quem pode acessar esse momento são os interlocutores engajados na situação comunicativa - o Observador in loco (neste caso, o “colega”) naturalmente não tem essa possibilidade, já que ele “existe” em outro plano, participando do aqui-e-agora dos fatos narrados.

Na prática, isso significa que a sentença destacada em (12) apresenta duas marcas formais conflitantes: enquanto a ordem VS implica a adoção do PV’ do Domínio do Conteúdo (Observador), a opção pelo pretérito perfeito associa-se ao PV do ground (Falante). Neste caso, portanto, a interpretação da sentença demanda o monitoramento simultâneo de duas perspectivas: ao mesmo tempo em que “olhamos” para o evento em foco a partir do ponto de vantagem do aqui-e-agora interacional, conforme a instrução semântica da forma de pretérito, também o percebemos segundo uma perspectiva in loco, “pelos olhos” do personagem que se deparou com o carro.

Trata-se, portanto, de um caso de mesclagem de pontos de vista: se o uso concreto resulta da combinação de diferentes construções gramaticais, duas delas - o padrão verbo-sujeito e a construção morfológica de pretérito - fornecem instruções conflitantes, resultando em um enunciado concreto com ponto de vista mesclado, conforme o esquema abaixo:

Figura 6
Representação de aí ele foi atravessar a rua... aí veio um carro disparado...

Um caso ligeiramente distinto - mas idêntico no fundamental - é o de (11):

(11) C: daqui a pouco Bruno’ Bruno’ Bruno’ Bruno’ quando abre a porta do banheiro tá ele no vaso ó ((simula ronco)) dormindo (Corpus BBB 10)

Se em (10) o PV do ground está ligado à forma do verbo, em (11) ele fica evidenciado pela forma do SN sujeito. Na medida em que se trata de um sujeito pronominal de terceira pessoa, sua interpretação demanda acesso a informações disponibilizadas em porções anteriores do discurso, as quais, estando registradas no Espaço Metatextual, só podem ser acessadas a partir do ground. Ao mesmo tempo, e mais uma vez, a ordem linear verbo-sujeito aponta para a adoção do ponto de vista descentrado do Domínio de Conteúdo. Com isso, a mesclagem de perspectiva resultante se dá nos seguintes termos:

Figura 7
Representação de quando abre a porta do banheiro tá ele no vaso.

7. Discussão teórica

Como se sabe, o problema da posição do sujeito tem despertado o interesse de pesquisadores alinhados às mais diferentes orientações teóricas. Nesta seção, dialogamos, em particular, com a sólida e produtiva tradição funcionalista de pesquisas sobre a ordem VS no PB. Como não é possível fazer jus à totalidade das hipóteses e motivações funcionais já sugeridas na literatura, travaremos aqui um diálogo com a hipótese, desenvolvida por Naro e Votre (1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.), que vincula sujeito pós-verbal a baixa topicalidade.

Antes, porém, é preciso contextualizá-la. Sob uma perspectiva discursivo-funcional, é conhecida - ou, nos termos de Berlinck (1997_____. 1997. Nem tudo que é posposto é novo: estatuto informacional do SN e posição do sujeito em português. Alfa. 41/Especial: 57-78.: 57), “corrente” - a associação entre ordem VS e função apresentativa, de acordo com a qual o sujeito posposto corresponderia a “informação nova”. Como observa Pontes (1986, p. 34),

essa explicação é coerente com o ensinamento da Escola de Praga, ou seja, o princípio pelo qual a informação nova vem no fim da S: o sujeito posposto vem no fim da S porque ele não é tópico, ele carrega a informação nova.

Essa hipótese, contudo, já foi colocada em questão por diversos autores (Ferrari 1990FERRARI, Lilian. 1990. Distribution and function of word order variation in Brazilian Portuguese. Journal of Pragmatics. 14/4: 649-666., Berlinck 1997_____. 1997. Nem tudo que é posposto é novo: estatuto informacional do SN e posição do sujeito em português. Alfa. 41/Especial: 57-78., Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.). No corpus analisado por Naro e Votre (1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.), por exemplo, a frequência de referentes evocados ou disponíveis (portanto, não-novos) em sentenças VS foi bastante significativa, correspondendo a 77% dos casos. Ao mesmo tempo, sentenças SV apresentaram sujeitos parcial ou completamente novos em 7,5% dos casos. O que esses dados sugerem, naturalmente, é que a correlação entre posposição do sujeito e novidade referencial (e anteposição do sujeito e acessibilidade referencial) não chega a explicar todas as ocorrências.

É como reação à hipótese da função apresentativa do sujeito pós-verbal que Naro e Votre (1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.) propõem uma explicação alternativa, à qual iremos nos referir como Hipótese da Topicalidade Baixa (HTB). Os autores definem tópico como “o constituinte que é apresentado como central no nível oracional em um determinado momento da comunicação” (Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.: 77). Para fins operacionais, eles consideram como tópico o primeiro elemento (nominal) de cada cláusula. Segundo a HTB, sujeitos invertidos não podem corresponder a referentes com alta topicalidade. O contraste entre os exemplos abaixo ajuda a esclarecer esse ponto:

(12) O carro da minha senhora, ο ΤΝ 4937 - era um TL - foi roubado. Foi roubado e ficou três dias desaparecido. Depois esse carro apareceu aqui, numa delegacia aqui. (Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.: 79)

(13) Foi o cara, sabe? Ele estava perdido, assim. Apareceu uns homens. Ai, ele brigou, brigou. Ai, ele näo conseguiu, sabe? Não conseguiu liquidá-los. (Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.: 80)

Em (12), o referente carro “é o receptor de diversas informações, como o número da licença, o modelo, o fato de que ele foi roubado, o tempo durante o qual ficou desaparecido e o lugar onde reapareceu” (Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.: 79), apresentando, portanto, alto grau de topicidade. Nos termos da HTB, é precisamente o fato de que esse referente se estabelece como tópico na sequência discursiva precedente que justifica sua codificação como sujeito anteposto na sentença destacada.

Em (13), temos a situação inversa. Aqui, a passagem se inicia com a introdução de um tópico - o referente do SN “o cara” - que se mantém na sequência seguinte, já que a informação sobre estar perdido diz respeito ao mesmo referente. Neste caso, portanto, a sentença destacada representa uma interrupção da sequência tópica, fato que, segundo a HTB, licenciaria sua inversão.

Esse par de exemplos, contudo, poderia igualmente corroborar a hipótese da função apresentativa. A fim de demonstrar a insuficiência dessa hipótese, os autores recorrem ao seguinte dado:

(14) De noite eu ia para ali perto do - na rua Riachuelo, né? Tinha um depósito de jornal O Dia. Comprava o jornal ia para Copacabana vender dentro dos ônibus. Aí, quando dava assim três e meia, mais ou menos, acabava o jornal. Aí, quatro horas pegava o trem para Japeri. (Naro e Votre 1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.: 81)

Esse exemplo mostra que sujeitos invertidos não precisam, necessariamente, apresentar referentes novos − afinal, como se vê, o referente de “o jornal” já fora evocado em dois momentos anteriores. Naro e Votre observam que o tópico predominante em toda a passagem corresponde ao referente do pronome “eu”. Nesse sentido, nas duas menções anteriores ao “jornal”, sua topicalidade era baixa. Como, no momento em que a sentença em destaque é enunciada, o referente jornal apresenta baixa topicalidade, ele pode ser codificado como sujeito pós-verbal.

A HTB certamente dá conta da maioria dos usos VS em contextos narrativos, como os autores demonstram. Segundo Naro e Votre, dos 391 usos VS analisados, apenas 10 (2,6%) apresentavam sujeito com alto grau de topicalidade, dos quais seis “em passagens discursivas que exibem marcas independentes de expressão disfluente” (Naro e Votre 1999: 83). Excluídas essas passagens, o saldo é de apenas quatro contraexemplos à HTB.

Embora pouco significativos, do ponto de vista estatístico, na amostra de Naro e Votre (1999NARO, Anthony Julius & Sebastião Josué Votre. 1999. Discourse motivations for linguistic regularities: verb/subject order in spoken Brazilian Portuguese. Probus. 11/1: 73-98.), acreditamos que esses contraexemplos não podem ser descartados tão sumariamente. A rigor, defenderemos, nesta seção, que existe toda uma classe de usos VS que funciona como contraexemplo à HTB: trata-se dos enunciados do tipo (11), em que se verifica mesclagem de ponto de vista com a referência do sujeito ancorada no ground8 8 .Observe-se que o caso de (11) é diferente do de (10), em que a ancoragem ao ground se dá por meio do tempo verbal, e não por meio da estrutura do SN sujeito. . Em usos como esses, o sujeito invertido apresenta alto grau de topicalidade, sendo tipicamente codificado como pronome.

Este é o caso da letra de música em epígrafe. Abaixo, ela é repetida em um excerto mais extenso:

(15) Mas o que você fez comigo não se faz

Andou falando por aí da nossa vida

Fez o que pôde pra rasgar o meu cartaz

Disse pro povo que meu mal era a bebida

Que nem de dar casa e comida eu fui capaz

E agora vem você

Querendo aquela velha paz

Pode esperar que eu não volto mais

Nessa passagem, o referente de você é introduzido como tópico na primeira sentença e se estabelece, a partir daí, como o “receptor de diversas informações”, nos termos de Naro e Votre, sendo o responsável pelas ações de andar, fazer e dizer. Apesar disso, o mesmo elemento aparece, em sentença imediatamente posterior, como sujeito pós-verbal do verbo “vir”.

Exemplos da fala espontânea que exibem precisamente essa configuração discursiva talvez não sejam tão incomuns. Além de (11), ela pode ser identificada em (4) e também em (16), (17) e (18), abaixo:

(16) aí bati num Voyage ((riso)) perdi a direção do carro e fui raspando o carro pelo paredão do túnel assim... uns cem metros... aí eu parei o carro e pô... a garota que estava comigo... desesperada... que a foligem tinha ( ) crioula... assim legal ((riso)) aí eu tentei sair com o carro não tinha jeito... o carro quebrou tudo... aí... pô... saltei do carro pra... pedir ajuda... né? aí eu comecei a andar... aí na minha frente ((riso)) tinha um... um Voyage parado... batido também... aí eu fui conversar com os caras do carro... né? pô... vem ((riso)) eu doidão... não me lembrava de nada da batida mais... aí eu cheguei pros caras e perguntei “pô... cara... tu bateu com o carro aqui também? que coincidência...” aí o cara veio pra cima de mim... querer me bater... (Corpus D&G - Narrativa de experiência pessoal - Rio de Janeiro 1)

(17) C: ele’ não tô bem’ tô bem’ aí começo/ na hora que a mulher cutucou ele começou a desenrolar com a mulher’ aí pegou a menina’ ficou com a menina tipo’ aí daqui a pouco vem ele assim (Corpus BBB 10)

(18) C: aí teve uma hora BUM’ ele sumiu’ sumiu com a menina’ sumiu sumiu sumiu’ desapareceu’ e a gente querendo ir embora querendo ir embora’ cadê o bruno cadê o bruno cadê o bruno’ daqui a pouco a irmã da Mônica foi dar uma volta’ achou ele’ aí volta a irmã da Mônica’ Fernanda né o nome dela’ (Corpus BBB 10)

Nesses exemplos, observa-se, contrariamente ao que prevê a HTB, a codificação como sujeito pós-verbal de um elemento com referente altamente tópico. Ao mesmo tempo, todos eles se conformam sem problemas à hipótese da perspectiva in loco, na medida em que simulam uma situação de experiência direta: em (16), o evento expresso pela sentença VS é construído sob o ponto de vista dos “caras do carro”; em (17), ele é visto “pelos olhos” do amigo que presenciou “ele” − o referente do sujeito posposto − chegar com a mulher; em (18), o Observador é o grupo de pessoas (aí incluído o falante) que estavam “querendo ir embora” mas não encontravam um dos amigos.

Interessantemente, os três exemplos exibem, ainda, evidências adicionais de deslocamento dêitico. Em primeiro lugar, todos são construídos com presente histórico, que cumpre a função de criar uma situa­ção fictícia na qual sujeito conceptualizador e objeto conceptualizado compartilham o mesmo locus espaço-temporal (Langacker 1991_____. 1991. Foundations of cognitive grammar: descriptive application. Vol 2. Stanford: Stanford University Press. para o inglês; Gerhardt 2002GERHARDT, Ana Flávia Lopes Magela. 2002. A semântica das construções gramaticais e o tempo verbal em Português. Tese (Doutorado em Lingüística). Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. para o português). Além disso, o valor dêitico dos verbos empregados (“vir” e “voltar”) denuncia a posição espacial do Observador, sugerindo que ele se encontra in loco. Por fim, em (16), é possível que a opção pela forma verbal de 3a pessoa também esteja associada ao deslocamento dêitico: o Falante não codifica a si mesmo como 1a pessoa porque ele se constrói imaginativamente a partir de uma perspectiva externa (a dos “caras do carro”).

Mas, afinal, por que a HTB, não é capaz de explicar satisfatoriamente um enunciado como (16), (17) ou (18)? Para responder essa pergunta, comparemos (16), cuja parte final está repetida abaixo como (16a), com sua versão modificada (16b):

(16a) aí eu fui conversar com os caras do carro... né? pô... vem ((riso)) eu doidão... (Corpus D&G - Narrativa de experiência pessoal - Rio de Janeiro 1)

(16b) Tinha um Voyage parado, batido também... aí eu fui conversar com os caras do carro, né? Eles estavam lá meio desorientados, discutindo o que fazer... Aí vem eu doidão.

Como se vê, apenas (16b), a versão modificada, é compatível tanto com a HTB quanto com a abordagem proposta neste trabalho. Em um tratamento discursivo-funcional ancorado na HTB, diremos que o referente de “eu” inicialmente se estabelece como tópico (“aí eu fui conversar...”) e, em seguida, sofre destopicalização graças a uma sentença contextualizadora interveniente (“Eles estavam lá...”); é essa destopicalização que permitirá a posterior codificação desse referente como sujeito pós-verbal. Por outro lado, na abordagem cognitivista proposta neste trabalho, diremos que a tal sentença contextualizadora interveniente cumpre duas funções: (i) descrever a situação de estabilidade anterior ao evento de ruptura expresso pela sentença VS e (ii) estabelecer explicitamente o Observador in loco, que é realizado na posição de sujeito sintático.

Essa discussão ajuda a entender por que (16a) é um problema para a HTB, mas não para o tratamento sugerido neste artigo. Por um lado, a HTB não pode prescindir da sentença contextualizadora interveniente, já que ela tem o papel crucial de assegurar a baixa topicalidade do referente do sujeito pós-verbal. Por outro, lado, não há nada na explicação aqui proposta que demande a existência dessa mesma sentença. Isso porque nossa hipótese não faz qualquer exigência de que (i) a situação de estabilidade anterior ao evento de ruptura do enunciado VS seja explicitamente descrita e (ii) o Observador in loco seja codificado como sujeito de uma sentença anterior ao enunciado VS. Como, em (16a), o falante opta por não descrever essa situação de estabilidade, passando diretamente para o evento de ruptura, o resultado é a ausência de uma sequência destopicalizadora − o que é problemático para a HTB, mas não para a proposta que defendemos aqui.

A questão de fundo é a seguinte: em (16a), o “eu” de “eu fui conversar com os caras do carro” não é o mesmo “eu” de “aí vem eu doidão”. Isso fica evidente quando o fluxo discursivo é analisado com os instrumentos da TEM, o que permite sua compartimentação em espaços mentais distintos. Sob essa ótica, o exemplo (16a) inclui três “eus”: o Falante, ou seja, o informante que, situado no aqui-e-agora interacional, concede uma entrevista para a composição de um corpus; o eu-personagem construído sob o ponto de vista do Falante, em “eu fui conversar com os carros do carro”; e o eu-personagem construído como objeto da percepção de um Observador in loco (o grupo dos “caras do carro”), presente em “Aí vem eu doidão”. Na rede BCSN, cada um desses “eus” terá uma representação distinta, ainda que todas elas estejam conectadas.

Caso reconhecesse a complexidade dessa construção cognitiva, a HTB poderia considerar que o referente do segundo “eu” tem, de fato, topicalidade baixa − já que não se trata do mesmo referente previamente ativado. Isso, porém, parece estar além das possibilidades do modelo, cujo foco tende a recair sobre o encadeamento discursivo superficial − e não sobre as “acrobacias cognitivas” (Ferrari 2012_____. 2012. Acrobacias cognitivas: ponto de vista e subjetividade em redes condicionais. In: Rosângela Gabriel & Heronides Moura (orgs.). Cognição na linguagem: cérebro e uso. Santa Catarina: Insular.) subjacentes. Especificamente, o tratamento funcionalista clássico parece operar com duas assunções táticas: (i) a ideia de que o fluxo discursivo é uma sequência linguística linear ou indiferenciada e (ii) a ideia de que o único ponto de vista a ser considerado (a única “subjetividade” linguisticamente relevante) é o dos interlocutores. Este trabalho, com base na Teoria dos Espaços Mentais, sugere que uma análise do fluxo discursivo estará em melhor situação quando passar a compreender as cadeias referenciais em termos de redes complexas de espaços mentais, nas quais (i) representações são, ao mesmo tempo, compartimentadas e conectadas e (ii) os primitivos Foco e Ponto de Vista são dinamicamente manipulados.

8. Considerações finais

Neste trabalho, buscamos apresentar uma proposta cognitivista de explicação para a ordem não-canônica verbo-sujeito no português brasileiro. Em um primeiro momento, procuramos mostrar que a inversão do sujeito está associada, no PB, à categoria conceptual de ponto de vista ou perspectiva: recorrendo a versão recente da Teoria dos Espaços Mentais (Sanders, Sanders e Sweetser 2009SANDERS, Ted; José Sanders &Eve Sweetser. 2009. Causality, cognition and communication: a mental space analysis of subjectivity in causal connectives. In: Ted Sanders & Eve Sweetser (eds.). Causal categories in discourse and cognition. Berlin/New York: Mouton de Gruyter., 2012_____. 2012. Responsible subjects and discourse causality: how mental spaces and perspective help identifying subjectivity in Dutch backwards causal connectives. Journal of pragmatics. 44/2: 191-213.; Ferrari e Sweetser 2012_____ & Eve Sweetser. 2012. Subjectivity and upwards projection in mental space structure. In: Barbara Dancygier & Eve Sweetser (orgs.). Viewpoint in language: a multimodal perspective. Cambridge: Cambridge University Press. ), argumentamos que a ordem VS instrui o ouvinte a posicionar o Ponto de Vista no Domínio de Conteúdo, a passo que a ordem SV atua como pista sintática para o posicionamento do Ponto de Vista no Centro Dêitico da Comunicação.

A presente proposta se diferencia de abordagens anteriores porque não recorre, primariamente, seja a parâmetros formais (monoargumentalidade, inacusatividade, peso fonético, etc.) seja a parâmetros funcional-discursivos (acessibilidade referencial, topicalidade, etc.). Em vez disso, valemo-nos de uma categoria conceptual, buscando sondar os processos cognitivos subjacentes à construção do significado das sentenças com sujeito pré e pós-verbal. Naturalmente, novas pesquisas são necessárias para corroborar a pertinência desse tipo de explicação.

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  • _____. 2000b. Toward a cognitive semantics Vol. 2: typology and process in concept structuring. Cambridge: The MIT Press.
  • 1
    .A transcrição do corpus BBB 10 obedeceu às seguintes convenções: [ ] sobreposição de vozes localizada (+) pausa breve / truncamento brusco MAIÚSCULAS ênfase ou acento forte (( )) comentários do analista :: alongamento da vogal ” subida rápida ’ subida leve
  • 2
    .Para uma análise preliminar das construções VS idiomáticas do PB, ver Pinheiro (2009PINHEIRO, Diogo. 2009. A ordem VS como construção gramatical. In: Lilian Ferrari (org.). Espaços Mentais e construções gramaticais: do uso linguístico à tecnologia. Rio de Janeiro: Imprinta.).
  • 3
    .Utilizamos inicial maiúscula para nos referirmos aos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte – ou seja, os papéis de interlocutores engajados em uma situação comunicativa. Isso permitirá distinguir o falante e o ouvinte como pessoas físicas ou seres-no-mundo (grafados com inicial minúscula) dos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte (grafados com inicial maiúscula). Seguindo Sanders, Sanders e Sweetser (2009SANDERS, Ted; José Sanders &Eve Sweetser. 2009. Causality, cognition and communication: a mental space analysis of subjectivity in causal connectives. In: Ted Sanders & Eve Sweetser (eds.). Causal categories in discourse and cognition. Berlin/New York: Mouton de Gruyter., 2012_____. 2012. Responsible subjects and discourse causality: how mental spaces and perspective help identifying subjectivity in Dutch backwards causal connectives. Journal of pragmatics. 44/2: 191-213.), assumiremos neste trabalho, por padrão, a perspectiva do Falante.
  • 4
    .Como é praxe na LC, em especial nas vertentes de Leonard Talmy (2000aTALMY, Leonard. 2000a. Toward a cognitive semantics Vol. 1: concept structuring systems. Cambridge: The MIT Press., 2000b_____. 2000b. Toward a cognitive semantics Vol. 2: typology and process in concept structuring. Cambridge: The MIT Press.) e Ronald Langacker (1987LANGACKER, Ronald. 1987. Foundations of cognitive grammar: theoretical prerequisites. Vol 1. Stanford: Stanford University Press., 1991_____. 1991. Foundations of cognitive grammar: descriptive application. Vol 2. Stanford: Stanford University Press. ), recorremos ao domínio visual apenas como ponto de partida. Nesse sentido, nem sempre a palavra “Observador” será empregada em sua acepção literal. Às vezes, a sentença VS evoca uma percepção baseada em outro domínio sensorial (por exemplo, a audição), de maneira que o termo deverá ser interpretado metonimicamente. Em outros casos, temos um espaço abstrato (não sensorial), envolvendo, portanto, uma projeção metafórica.
  • 5
    .Interessantemente, Bolinger (1977BOLINGER, Dwight. 1977. Meaning and Form. London: Longman.), ao discutir a inversão verbos-sujeito no inglês, insiste bastante na ideia de vivacidade (“vividness”). Até onde temos conhecimento, esse efeito nunca foi associado à estrutura VS no português brasileiro. Parece intuitivo, contudo, que usos VS exibem uma vivacidade ou dramaticidade que contrasta com o distanciamento possibilitado pelos usos SV – e a proposta desenvolvida aqui, em termos de espaços mentais, permite explicar essa sensação.
  • 6
    .Mais aceitável aqui seria o emprego da construção de antitópico (Lambrecht 1994LAMBRECHT, Knud. 1994. Information structure and sentence form. Cambridge: Cambridge University Press.) – “Tá no banquinho vermelho, seu chapéu” –, mas, neste caso, já estamos diante de uma construção gramatical sensivelmente distinta.
  • 7
    .A opção não é gratuita. Segundo Langacker (2008_____. 2008. Cognitive grammar: a basic introduction. Oxford: Oxford University Press.), esses dois elementos têm o papel de ancorar os designata de nomes e verbos no ground comunicativo.
  • 8
    .Observe-se que o caso de (11) é diferente do de (10), em que a ancoragem ao ground se dá por meio do tempo verbal, e não por meio da estrutura do SN sujeito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    Set 2014
  • Aceito
    Set 2015
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