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GUMBRECHT, Hans Ulrich. The powers of philology. Dynamics of textual scholarship. Champaign: University of Illinois Press. 2003

GUMBRECHT, Hans Ulrich. . The powers of philology. Dynamics of textual scholarship.Champaign: University of Illinois Press. 2003

Key-words:
Philology; Editing Texts; Fragments; Comments; Historicizing; Teaching

Palavras-chave:
Filologia; Edição de textos; Fragmentos; Comentários; Historicização; Ensino

The Powers of Philology de Hans Ulrich Gumbrecht1 1 . Hans Ulrich Gumbrecht (1947) é professor da Universidade de Stanford. trabalha conceito contemporâneo de filologia, intrínseco a certas práticas e finalidades, desenvolvido em cinco capítulos: i) identificação de fragmentos textuais históricos, ii) edição desses fragmentos, iii) elaboração de comentários para a reconstrução do texto em questão, iv) compreensão de seu valor histórico e v) ensino do conteúdo recomposto. Gumbrecht acredita que todo esse processo deve ser motivado sobretudo pelo estudo acadêmico e escolar em geral, “dentro dos contextos institucionais de ensino”2 2 . Todas as traduções do livro que se seguem são de nossa autoria. . A abordagem do livro foi pensada em um contexto de desentendimento geral acerca do termo “filologia”, compreendido por muitos como quaisquer atividades centradas no estudo da produção de linguagem e literatura, e por outros - incluindo Gumbrecht - como curadoria de textos históricos que se refere exclusivamente a textos escritos. Vendo que essa noção se faz dúbia mesmo no âmbito acadêmico, o autor também propõe reformular os métodos de formação filológica nas universidades. É de se destacar ainda que, segundo Petrônio (2014), “desde Materialidade da comunicação (1994), Gumbrecht tem se dedicado a uma teoria não hermenêutica da literatura, ou seja, a uma abordagem que contemple os suportes materiais das obras e não apenas seu sentido”.

Partindo do que chama de “um verdadeiro desejo de posse, um desejo próximo do apetite físico” (p. 6) - desencadeado pela contemplação de artefatos históricos -, propõe que a prática filológica trabalhe com o desejo de absorver e incorporar o texto e seu autor durante a edição, bem como com o de acumular e bem encaixar notas e comentários explicativos ao redor do texto. Percebe-se, então, a paixão com que tratará do assunto dali em diante.

Esse texto subjetivo e, às vezes, digressivo a que Gumbrecht recorre não é de todo prejudicial ao andamento da obra, cujas teses principais permanecem objetivas. Não obstante tais opções textuais, seus propósitos, destacados no primeiro parágrafo, não se obscurecem. Em contrapartida, seu discurso rende momentos ligeiramente cômicos e alguns até mesmo patéticos - no sentido original da palavra grega páthos -, como é o caso do desfecho da introdução, em que afirma que reconhecer os poderes da filologia “é como gozar de algo disruptivo e fascinante, um espetáculo de fogos e efeitos especiais belo e intelec­tualmente desafiador” (p. 8). Ainda no campo da crítica formal, percebe-se um excesso de comentários entre parênteses e travessões, em sua maioria dispensáveis para a compreensão do texto. O conteúdo fluiria mais espontaneamente sem a constante interrupção autoral.

Após a introdução, seguem-se cinco capítulos, conforme já mencionados, nos quais o autor pormenoriza os aspectos que, segundo ele, compõem a filologia: “Identificar Fragmentos”, “Editar Textos”, “Redigir Comentários”, “Historicizar Objetos” e “Ensinar”.

Em “Identificar Fragmentos”, Gumbrecht apresenta a metáfora do Castelo de Heidelberg de Walter Benjamin (1972BENJAMIN, Walter. 1972. “Einbahnstraße”, In: Gesammelte Schriften, vol. 4, pt. 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp.), em que a mutação das nuvens é vista pelas torres dessa ruína, suscitando uma sensação de constante emergência e dissolução da presença física no mundo. O autor faz, então, paralelo com o trabalho do filólogo de identificar porções textuais, fragmentadas seja por intenção do próprio escriba, por censura de terceiros ou por efeito do tempo. Diz Gumbrecht nesse capítulo:

Se nos lembrarmos de que o fascínio do Ocidente por ruínas e fragmentos passou por um período de intensificação durante as décadas seguintes ao surgimento do Iluminismo, isto é, por volta de 1800, e se levarmos ainda em consideração que essas décadas também foram caracterizadas como o momento histórico marcado pela crise da representação, então descobriremos uma base epistemológica - ou pelo menos uma ressonância epistemológica - para o fascínio que acompanha os trabalhos arqueológico e filológico com ruínas e fragmentos (p. 12-13).

No segundo capítulo, Gumbrecht utiliza a figura de Ramón Menéndez Pidal, renomado filólogo espanhol, reconhecido por muitos como o fundador da tradição filológica nacional na Espanha, para lançar a seguinte tese:

Podemos ver que Menéndez Pidal assume um papel nesse processo de ressurgimento cultural que se aproxima do clássico papel do cantor de folclore: memorizar diversos textos, recitá-los (republicá-los), enriquecê-los com suas próprias variações e, finalmente, retorná-los à nação que, segundo a compreensão “neotradicional” de Menéndez Pidal, produziu tais textos. (p. 25)

É minha tese, de fato, que todo editor assume papéis que são próximos àqueles dos cantores, poetas ou autores (embora costume fazê-los com menos consciência que Menéndez Pidal) e que, sem seguir essas etapas, o papel do editor sequer existe. (p. 26)

Logo, sua concepção do processo filológico parece inclinada ao conceito strictu sensu de Said (2007), isto é, à leitura verticalizada e à limitação do papel do filólogo ao de editor de textos. Entretanto, segundo Gumbrecht, o editor, em contato com o fragmento editado, inevitavelmente assumirá em algum momento o papel de autor da obra - isso porque, ao editar esses fragmentos, resgatará uma prática muitas vezes extinta à produtividade literária ou textual de sua época. Ou seja, devido ao desejo de identificar o editor ao autor e ao leitor da obra, o ato filológico seria exercido por meio da alternância de três papéis: a de editor propriamente dito, de autor e de leitor hipotético.

No que tange à recuperação e atualização de tradições literárias, a exemplo de Menéndez Pidal, poderíamos acrescentar outros mais conhecidos, como Giovanni Boccaccio: tendo se especializado na vida e obra de Dante Alighieri, tornou-se, à parte do próprio, seu mais importante copista e editor. Conforme diz Barolini (2005BAROLINI, Teodolinda. 2005. “Editing Dante’s rime ande Italiana cultural history: Dante, Boccaccio, Petrarca... Barbi, Contini, Foster-Boyde, De Robertis”. In: Letrarei italiane, fascicolo 4, nano LVI (2004). Firenze: Leo S. Olschki.):

Boccaccio copiou 15 das canzoni de Dante em Toledano 104.6, um códice que inclui sua primeira redação de Vita di Dante e no qual ele também copiou a Vita Nuova e a Commedia; ele copiou as mesmas 15 canzoni, na mesma ordem, em Chigiano L.V.176, onde também copiou sua Vita di Dante, a Vita Nuova de Dante, Donna mi prega de Cavalcanti, seu poema a Petrarca Italie iam certus honos e a forma inicial das líricas de Petrarca reunidas pelo autor (...) Boccaccio, desse modo, moldou um grupo de poemas líricos de Dante, todos canzoni, que se tornaram, de fato, o cânone.3 3 . T. Barolini. “Editing Dante’s rime and Italian cultural history: Dante, Boccaccio, Petrarca... Barbi, Contini, Foster-Boyde, De Robertis”, p. 513. Tradução nossa.

Esse exemplo é interessante para darmos seguimento à leitura do livro, posto que outro processo componente da filologia, analisado por Gumbrecht no terceiro capítulo do livro, é o da composição de comentários em torno da obra recuperada. Além de editar as canzioni, o autor do Decameron escreveu Dal commento sopra la commedia di Dante, três extensos volumes visando à elucidação de passagens do Inferno na obra cujo nome ele mesmo posteriormente mudaria. De fato, esta é uma das pedras angulares da prática filológica: um editor que espera que o resgate de textos históricos seja minimamente pertinente a seu tempo deve orientar a leitura por meio de notas linguísticas, explicações, traduções, “tipoias” que suportem o peso histórico da obra, reproduzam seu significado e, mais que simplesmente apresentar o conteúdo, tornem-no significativo à contemporaneidade. Não exatamente o make it new de Ezra Pound, pois aí haveria o risco de se perderem aspectos formais ou temáticos do original em prol da recriação da obra em outra língua ou sistema linguístico; antes, algo próximo do trabalho de Moreira (2009MOREIRA, Marcello. 2009. “Edição crítica da écloga piscatória de Santa Rita Durão (ou um pequeno ensaio filológico)”. In: REEL - Revista eletrônica de estudos literários, Vitória, s. 1, a. 5, n. 5.) ao editar a Écloga piscatória de Santa Rita Durão:

O que aqui se propõe é um ensaio filológico em que, a par de uma proposta de edição crítica do texto atribuído a Santa Rita Durão, se dê ao leitor interessado na poesia lusobrasileira um texto de mais fácil entendimento, porque modernizado em sua ortografia - desde que esta modernização não comprometa os componentes prosódicos, rítmicos e rímicos, por exemplo - e em sua pontuação.4 4 . Marcello Moreira. Edição crítica da écloga piscatória de Santa Rita Durão (ou um pequeno ensaio filológico), p. 2.

O filólogo deve (e quer) preservar ao máximo o aspecto primordial dos fragmentos coletados. O que se constrói, destrói, reconstrói em constante atualização são justamente os comentários em torno desses fragmentos, e o que resta deles é o rastro de várias mãos.

Gumbrecht analisa em seguida a historicização e objetos históricos/ historicizados, levantando os seguintes questionamentos:

Acima de tudo, deveríamos considerar o início do século XIX um momento de descontinuidade produtiva (no sentido de uma “decolagem histórica”) dentro da história dos clássicos? Tal visão tornou-se verdadeiramente consensual para a história da Nova Filologia, ao ponto que, hoje em dia, dificilmente alguém afirmaria a existência de uma pré-história disciplinar antes de 1800 - apesar de que diferentes histórias podem ser contadas para explicar por que a Nova Filologia surgiu apenas depois de 1800. Outra questão específica quanto aos clássicos é onde e com que intensidade a cultura da antiguidade foi “cooptada” - paradoxalmente, enfatizemos - como parte de certas imagens de sociedade específicas da nação (esse foi exatamente o caso em Alemanha/Prússia, mas o caso do Primeiro Império da França é talvez igualmente interessante e menos investigado). Ademais: se é verdade que a presença cultural da antiguidade passou por uma onda de historicização na virada do século XVIII (pelo menos é assim que os historiadores da literatura francesa propõem entender a Querela dos Antigos e dos Modernos), poderíamos, então, dizer que a cultura histórica do século XIX gerou uma segunda onda de historicização de impacto similar? E, se isso estiver correto, teriam as duas ondas de historicização produzido algum efeito de interferência? Finalmente, que influência cada ambiente disciplinar específico de nação - por exemplo, as filologias concebidas como disciplinas históricas na Alemanha versus o ideal de crítica literária de Matthew Arnold - tem no desenvolvimento dos clássicos em diferentes países? (p. 56-57)

Analisa também a historicização do papel do autor, do qual, segundo a tradição, tem-se uma imagem pré-concebida que dá coerência às leituras, projeções que acabam por influenciá-las, em contraste ao conceito de Foucault (1979FOUCAULT, Michel. 1979. “What is an author?” In: Textual strategies: perspectives in post-structuralist criticism, ed. Josué Harari. Ithaca, N.Y: Cornell University Press.), para o qual a historicização é direcionada a questões mais específicas como inventividade, originalidade, propriedade intelectual e responsabilidade pessoal do autor em questão. Para Gumbrecht, a leitura que fazemos não só de dada obra, mas de seu autor, é sempre ou quase sempre condicionada pelo editor. E, de fato, a prática cotidiana mostra que ao lermos uma edição crítica de um livro de poemas, por exemplo, quase certamente pensaríamos no poeta como o responsável por todos os elementos contidos na página, desde o poema datilografado ao histórico de modificações por edição, às notas de rodapé e componentes afins acrescentados por alguém que sequer suspeitamos que exista.

A questão da historicização dos artefatos culturais é um ponto muito importante destacado pelo autor: após traçar um quadro comparativo da compreensão do historicismo entre nações vitoriosas e perdedoras de embates históricos, Gumbrecht conceitua-a como “a prontidão do observador para sobrepujar a inércia inicial e assumir que ele ou ela sabe o bastante para fazer um uso bom ou ao menos adequado de um objeto encontrado. ” (p. 60). É uma definição bastante apropriada. Ter consciência histórica, diz ele, é como ser cosmopolita, no sentido de que todo ambiente e toda época exprimem ao ser historicamente consciente algo manuseável, tangível. É, em suma, saber lidar com fragmentos textuais de séculos de existência sem sucumbir à estranheza decorrente da lacuna temporal.

Entretanto, se até então Gumbrecht demonstra certa fluidez temática, o fim do ensaio parece desvirtuar-se do tópico original, a saber, dos “poderes” da filologia. O último capítulo, “Ensinar”, é talvez o mais complexo de todos - complexo não por usar linguagem críptica ou referências obscuras, embora o excesso de expressões em alemão suscite certa dificuldade para interessados no assunto que não dominem o idioma; antes, complexo justamente por apresentar mudança temática inesperada. Um apanhado de conselhos e admoestações ao meio acadêmico das humanidades toma o lugar das discussões acerca do editor: ora critica o linguajar pedante e vazio das instituições acadêmicas, ora afirma que tais profissionais são todos pessimistas, e até mesmo se anuncia um possível sepultamento histórico da profissão. O olhar se volta à instituição e às filosofias que a mantêm, e o estudo da filologia, em si, desaparece - ao menos enquanto estudo das técnicas filológicas, viés que atravessou o texto desde sua introdução até o final do quarto capítulo. Embora se destacasse logo na introdução do livro a tese do autor de que a filologia e as práticas filológicas devem ter como principal fim o contexto das instituições de ensino, a mudança súbita de abordagem causa estranheza.

Por fim, talvez este seja o ponto em que mais se diferem as abordagens à filologia estudadas até então da de Gumbrecht: enquanto os demais autores prezam por um discurso mais técnico em relação a ela - por exemplo, a separação dessa ciência em stricu e lato sensu por Said (2007) e os tipos de edição rigorosamente esquematizados por Cambraia (2005CAMBRAIA, César Mandelli. 2005. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes.) -, ele, embora não negue nenhum daqueles, assume ao longo dos cinco capítulos uma abordagem muito mais historicista - por acreditar que “objetos históricos/ historicizados podem nos ajudar a vencer as barreiras da morte” (p. 64) - e subjetivista, na medida em que cria associações entre exemplos universais e pessoais para a construção de seus argumentos. Como quando, ao explicar a prática de historicização que sacraliza determinados objetos, estabelece um paralelo entre certo vagão de trem no norte da França, que ficou famoso por tornar-se palco da rendição da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e da França na Segunda, e os artefatos religiosos de sua mãe.

Embora tenha sido publicado há mais de uma década, The Powers of Philology mostra-se uma leitura avançada no tempo, desconsiderando a atribuição generalizada do termo “filologia” a práticas diversas e estabelecendo o papel do filólogo como curador de textos históricos. Ainda que apresente um escopo limitado ao não tratar da crítica textual moderna, isto é, do estudo filológico sobre originais presentes, constitui uma relevante colaboração à área da linguística.

Referências bibliográficas

  • BAROLINI, Teodolinda. 2005. “Editing Dante’s rime ande Italiana cultural history: Dante, Boccaccio, Petrarca... Barbi, Contini, Foster-Boyde, De Robertis”. In: Letrarei italiane, fascicolo 4, nano LVI (2004). Firenze: Leo S. Olschki.
  • BENJAMIN, Walter. 1972. “Einbahnstraße”, In: Gesammelte Schriften, vol. 4, pt. 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp.
  • CAMBRAIA, César Mandelli. 2005. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes.
  • FOUCAULT, Michel. 1979. “What is an author?” In: Textual strategies: perspectives in post-structuralist criticism, ed. Josué Harari. Ithaca, N.Y: Cornell University Press.
  • GUMBRECHT, Hans Ulrich & PFEIFFER, Ludwig. 1994. Materialities of communication. Stanford. Stanford University Press.
  • GUMBRECHT, Hans Ulrich. 2003. The powers of philology. Champaign: University of Illinois Press.
  • MOREIRA, Marcello. 2009. “Edição crítica da écloga piscatória de Santa Rita Durão (ou um pequeno ensaio filológico)”. In: REEL - Revista eletrônica de estudos literários, Vitória, s. 1, a. 5, n. 5.
  • PETRÔNIO, Rodrigo. 2004. “De passagem pelo Brasil, Gumbrecht lança dois livros”. In: O Estado de São Paulo, Caderno Cultura de 29/8/04, disponível em In: O Estado de São Paulo, Caderno Cultura de 29/8/04, disponível em http://bit.ly/YboNF2 Consultado em 03/06/2017.
    » http://bit.ly/YboNF2
  • SAID, Edward W. 2004. “O regresso à filologia”. Em seu Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Companhia das Letras.
  • 1
    . Hans Ulrich Gumbrecht (1947) é professor da Universidade de Stanford.
  • 2
    . Todas as traduções do livro que se seguem são de nossa autoria.
  • 3
    . T. Barolini. “Editing Dante’s rime and Italian cultural history: Dante, Boccaccio, Petrarca... Barbi, Contini, Foster-Boyde, De Robertis”, p. 513. Tradução nossa.
  • 4
    . Marcello Moreira. Edição crítica da écloga piscatória de Santa Rita Durão (ou um pequeno ensaio filológico), p. 2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2017
  • Aceito
    17 Jun 2017
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