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Escolhas tradutórias como sistemas representacionais: um estudo dos processos no conto “Amor” de Clarice Lispector * * Uma versão preliminar desta pesquisa foi apresentada no VI Encontro SAL (Systemics Across Languages) e no V Seminário de Formação Docente PIBID-Português, ambos realizados entre 7 e 8 de abril de 2016 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Translation choices as representational systems: a study of the processes in the short story “Love” by Clarice Lispector

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo discutir as escolhas de transitividade, comparando o conto “Amor”, publicado pela escritora Clarice Lispector no livro “Laços de Família” em português, e sua tradução para o inglês. A análise contou com a utilização do software “UAM CorpusTool”, de caráter quanti/qualitativo que possibilita mapeamento de sistemas linguísticos em uma perspectiva funcional (O’Donnell 2016O’DONNELL, M. 2016. UAM CorpusTool - Versão 3.3. Recuperado de Recuperado de http://www.corpustool.com . Acesso em 10/abr./2016.
http://www.corpustool.com...
) e de uma ferramenta online de alinhamento de corpora (YouAlign 2016YOUALIGN. 2016. Recuperado de Recuperado de http://www.youalign.com/ . Acesso em 03/nov./2016.
http://www.youalign.com/...
). Os resultados apontam para algumas diferenças quanto ao uso e frequência de processos, havendo equivalência de escolhas na maioria dos casos. Os exemplos que destoam parecem servir à construção de sistemas textuais específicos, motivados por questões culturais da língua de chegada.

Palavras-chave:
Gramática Sistêmico-Funcional; Transitividade; Corpora; Tradução

ABSTRACT

This paper aims to discuss the transitivity choices, comparing the short story “Love”, published by Clarice Lispector in the book “Family Ties” in Brazilian Portuguese, and its translation into English. The analysis was based on the use of a “quantitative/qualitative software “UAM CorpusTool”, which allows the mapping of linguistic systems in a functional perspective (O’Donnell 2016) and an online alignment tool for corpora (YouAlign 2016). The results show some variation in the processes, with equivalence of choices in most cases. The examples that seem to be out of tune serve to construct specific textual systems, motivated by cultural aspects of the target language.

Key-words:
Systemic-Functional Grammar; Transitivity; Corpuses; Translation

1. Conceitos preliminares

Este trabalho tem por objetivo discutir as escolhas tradutórias como sistemas representacionais no sistema de Transitividade. O corpus de estudo é composto pelo conto “Amor” da escritora Clarice Lispector, publicado no livro “Laços de Família” de 1960 e sua tradução realizada por Katrina Dodson em “The Complete Stories: Fiction by Clarice Lispector” (Lispector 2015). Busca-se entender como a experiência e as representações são instanciadas em línguas portuguesa e inglesa. A análise realizada se baseia metodologicamente em estudos da Linguística do Corpus (McEnery & Hardie 2012MCENERY, T. & HARDIE, A. 2012. Corpus linguistics: method, theory and practice. Cambridge; New York: Cambridge University Press.; Sinclair 1991SINCLAIR, J. 1991. Corpus, Concordance, Colocation. Oxford: Oxford Universiy Press.) e tem sua fundamentação teórica na Linguística Sistêmico Funcional (doravante LSF) ou Sociossemiótica1 1 Os termos Sociossemiótica, Gramática Sistêmico Funcional e Linguística Sistêmico funcional são utilizados como equivalentes em vários momentos da obra de Michael Halliday, como é possível observar em Halliday (1978, 1994); Halliday e Hasan (1991); Halliday e Matthiessen (Halliday & Matthiessen 1999, 2004, 2014). A utilização de tais termos como correspondentes parte da percepção de tal abordagem como um construto teórico, no qual a significação é realizada por meio da linguagem e instanciada em escolhas em nosso contexto imediato de situação (Eggins & Martin, 1997), com grande importância dada ao seus componentes cultural e social. (Halliday & Hasan 1991HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. 1991. Language, context and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. Oxford: Oxford Univ. Press.; Halliday & Matthiessen 1999HALLIDAY, M. A. K. 1978. Language as social semiotic: the social interpretation of language and meaning. Baltimore: University Park Press., 2014_______. 2005. Computational and quantitative studies. London/New York: Continuum.; van Leeuwen 2005VAN LEEUWEN, T. 2005. Introducing Social Semiotics. London/New York: Routledge.).

A Sociossemiótica é uma abordagem que une significado e estrutura, buscando explicar como a instanciação se dá por meio de escolhas socialmente motivadas; a gramática, para Halliday, seria um sistema paradigmático que permite ao falante criar fraseados, (Halliday, 1994_______. 1994. An Introduction to Functional Grammar 2a. London: Edward Arnold.; Halliday & Matthiessen, 2004_______. 2005a. Some notes on “deep” grammar. In: J. Webster (Org.). On grammar. London/New York: Continuum. p. 106-117., 2014HALLIDAY, M. A. K. & MATTHIESSEN, C. M. I. M. 1999. Construing Experience through meaning: A language approach to cognition. London/New York: Continnuum.). Tais fraseados poderiam ser definidos como combinatórias de signos utilizadas com sentido específico dentro de um ato comunicacional; a forma como os constituintes linguísticos são organizados resulta de uma demanda do contexto e das funções comunicacionais que realizam (Kress, 2010_______. 2010. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. London/New York: Routledge.; van Leeuwen, 2005). Essas características levam tal abordagem a se preocupar com a linguagem em sua totalidade: forma e significado passam a ter a mesma importância dentro de um sistema que os vê como indissociáveis (Halliday, 1994HALLIDAY, M. A. K. & MATTHIESSEN, C. M. I. M. 2004. An introduction to functional grammar. London/New York: Arnold., p. 15). Logo, cada vez que um significado é expresso, a escolha de sua forma de instanciação se caracteriza como algo não arbitrário (Kress, 1993KRESS, G. 1993. Against Arbitrariness: The Social Production of the Sign as a Foundational Issue in Critical Discourse Analysis. Discourse & Society, 42, 169-191. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0957926593004002003.
https://doi.org/10.1177/0957926593004002...
; Stubbs, 1996STUBBS, M. 1996. Text and corpus analysis. London: Blackwell..), levando qualquer escolha no nível estrutural a ser refletida em uma escolha no nível semântico e vice-versa.

Assim, para a LSF, a relação entre as escolhas linguísticas e a representação de um significado, se dá dentro do que Halliday (1994_______. 1994. An Introduction to Functional Grammar 2a. London: Edward Arnold.) chama de potencial semiótico. Ao escolhermos uma forma de expressão, estamos pré-selecionando os significados que podem ser por ela realizados; ao mesmo tempo em que a expressão de determinado significado acontece, estamos também pré-determinando quais elementos são passíveis de utilização para sua expressão. Essa relação criaria um sistema de escolhas que seria, dentro da teoria de Halliday (1994HALLIDAY, M. A. K. & MATTHIESSEN, C. M. I. M. 2014. Halliday’s introduction to functional grammar. Fourth Edition. Milton Park, Abingdon, Oxon: Routledge.), semanticamente motivado. Em outras palavras, ao escolhermos um significado a ser expresso em uma determinada situação social, estamos ao mesmo tempo escolhendo a estrutura textual, lexicogramatical, fonética (ou grafológica) e fonológica em que ele será instanciado.

É por esse motivo que a escolha tem um papel tão importante dentro dessa teoria. Ao escolher uma forma de instanciação, o falante está desprezando outras formas prováveis (Thompson 1996THOMPSON, G. 1996. Introducing functional grammar. London: Arnold.). Por isso, a linguagem seria um sistema probabilístico de escolhas (Halliday 2005_______. 2005b. Text semantics and clause grammar: how is a text like a clause? In: J. Webster (Org.). On grammar. London/New York: Continuum, p. 219-260.), que está disponível de forma condicionada pelo contexto em que o falante se encontra.

Para Martin & Rose (2007MARTIN, J. R. & ROSE, D. 2007. Working with Discourse: Meaning beyond the clause. 2º ed. London/New York: Continnuum., p. 4-5), a atividade social, o discurso e a gramática são fenômenos, cada um deles operando em um nível de abstração. Tal interface se torna possível porque culturas se manifestam por meio de textos, instanciações sociais de linguagem, que se constituem por meio de unidades menores como frases, períodos e palavras. Para os autores, da mesma forma que uma cultura não é um amontoado de textos, por sua vez, um texto não deve ser visto como uma simples soma de unidades menores, o processo de instanciação seria exatamente isto: a recodificação das estruturas sociais em estruturas gramaticais que formam o texto, permitindo que níveis mais abstratos se transformem em escolhas palpáveis no nível da linguagem. Por isso, simbolizar é um aspecto importante e indispensável, dado que a gramática seria responsável por codificar o discurso, que, por sua vez, é responsável por codificar a atividade social (Martin & Rose 2007MARTIN, J. R. 2000. Grammar meets Genre. Language (Baltim), 1-31.). Isso faz com que cada texto seja o resultado da operação de escolha que ocorre em diferentes níveis (ou strata), responsáveis por um aspecto do significado e traduzível em um sistema.

Nessa tradição sociossemiótica, dois níveis de contexto são estabelecidos: o de situação e o de cultura. O contexto de cultura (ou gênero)2 2 Apesar de Halliday não realizar pesquisas relacionadas aos gêneros, diversos estudos na área de LSF (Eggins 1994; Eggins & Martin 1997; Martin 2000; Martin & Rose 2008, para citar apenas alguns), relacionam o contexto de cultura com tal Stratum, uma vez que ele seria responsável por estabelecer as relações textuais presentes em nossa cultura. pode ser entendido como o pano de fundo no qual a interação está inserida (Eggins 1994EGGINS, S. 1994. An introduction to systemic functional grammar. London: Printer Publishers.), disponibilizando um potencial de realização de significados. O contexto de situação (ou registro),3 3 O estabelecimento do conceito de Registro como realização da linguagem em nosso Contexto de Situação imediato, assim como suas variáveis, está presente em diversos trabalhos em LSF, tais como Halliday (1978, 2005b); Halliday e Hasan (1991); Hasan (2014) e Martin e Eggins (1997). por seu turno, está relacionado à situação imediata de realização do texto (Halliday & Hasan 1991HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. 1991. Language, context and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. Oxford: Oxford Univ. Press.). No contexto imediato de produção, a linguagem poderia variar de acordo com:

  • Campo ou aquilo que o texto trata;

  • Relações ou estrutura de papéis, suas relações de hierarquia e de solidariedade;

  • Modo ou organização simbólica: qual o papel da linguagem e sua organização.

Ao se manifestarem linguisticamente, as escolhas são instanciadas em Metafunções de linguagem. Dada a natureza semântico-funcional da comunicação, escolhas condicionadas por elas não são apenas de caráter estrutural, todas elas refletem fatores ideológicos e sociais do falante e seu contexto imediato e de cultura, sendo sistemas disponíveis para realização das escolhas nas proposições.

Tais Metafunções seriam:

  • Metafunção Interpessoal: engloba as atitudes em relação ao outro e os papéis sociais assumidos ou delegados

  • Metafunção Textual: organiza o texto e dá a ele seu caráter de mensagem.

  • Metafunção Ideacional: refere-se à representação de nossa experiência.

Este trabalho está especialmente direcionado para o estudo da transitividade, que realiza a Metafunção Ideacional. Para Thompson (1996THOMPSON, G. 1996. Introducing functional grammar. London: Arnold.), a transitividade é um sistema4 4 De acordo com Halliday (2005a) e com Matthissen et al. (2010), um sistema poderia ser definido como uma categoria central para a representação paradigmática de um Stratum. Em termos gerais ele pode se caracterizar por ser ou um princípio de contraste entre um ou mais termos, que seriam, assim, representados pelos seus componentes ou uma condição que especifica o contraste se coloca. Dentro desta abordagem, os sistemas formam redes nas quais seus componentes são instanciados por diferentes escolhas léxico-gramaticais. Por seu turno, tais sistemas poderiam ser vistos como uma “meta-regra”, definida dentro da semiose e da cultura de uma língua. cujo objetivo é significar nossas representações de mundo, o que incluiria tanto nosso mundo interior como exterior. Esse processo representacional se constitui pela escolha de processos, seus participantes e seus argumentos,5 5 O termo argumento não é utilizado como categoria gramatical do Sistema de Transitividade, mas sim como elemento constituinte do sistema, em termos de sua relação com o processo. Tal conceito, de fato, tem sofrido uma relativa flutuação terminológica na obra de Halliday. Como exemplo, observa-se o uso de “components” em Halliday (1994, p. 107) e em Halliday e Matthiessen (2014, p. 220); “arguments” em Halliday e Matthiessen (1999, p. 318); e “elements” em Halliday e Matthiessen (2004, p. 169). como podemos ver a seguir:

A menina não entregou o trabalho final no prazo Participante Processo Participante Circunstância

Para Halliday (1994_______. 1994. An Introduction to Functional Grammar 2a. London: Edward Arnold.), os processos são em número tangível e representam relações semânticas entre seus participantes, podendo ser categorizados em:

  1. Materiais (ações no mundo físico);

  2. Mentais (experiências em nosso mundo interior);

  3. Relacionais (significados ligados à identificação, à classificação e à posse);

  4. Comportamentais (ações com caráter físico e mental);

  5. Verbais (processos de dizer);

  6. Existenciais (processos de existir).

Pensar a tradução dentro desse contexto teórico requer encarar o texto como um conjunto de escolhas: tanto o texto fonte como o de chegada são, por conseguinte, fruto de seu contexto de situação, dos discursos e funções sociais que realiza. Para Halliday (2001_______. 2001. Towards a theory of good translation. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.), o processo tradutório pode estar relacionado à busca de equivalências em, pelo menos, dois níveis. O primeiro seria local e Metafuncional, estando ligado à procura de equivalências tradutórias no nível das escolhas léxico-gramaticais. Nesse sentido, a discussão sobre o ato tradutório estaria relacionada às escolhas no nível das proposições, sem que haja necessariamente uma relação de equivalências em níveis mais abstratos. Já no segundo, as equivalências estariam num nível semântico e representacional, no qual a gramática se manifestaria em níveis mais abstratos e contextuais. Dessa forma, ao centrarmos nossas pesquisas no segundo nível, deixamos de ter uma perspectiva puramente instancial (Halliday 2001) de forma a se analisar sistemas de representações tradutórios, o que necessariamente envolve exercícios de análise comparativos e não apenas descritivos (Halliday 2001; Matthiessen 2001MATTHIESSEN, C. M. I. M. 2001. The environments of translation. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.).

A equivalência entre as strata poderia ser responsável por carregar valores diferenciadores do ato tradutório. Ou seja, para Halliday (2001_______. 2001. Towards a theory of good translation. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.), os valores que se manifestam em um stratum mais elevados deveriam ser mais valorizados do que aqueles que se colocam exclusivamente no nível léxico-gramatical, fato que naturalmente levaria a equivalência contextual a ser a mais valorizada. Contudo, em determinados contextos, não seria impossível que níveis menos abstratos ganhassem relevância no processo de valorização. Isso se dá especialmente porque, em muitos contextos, a relação de equivalência se dá quando os textos (fonte e traduzido) parecem ser semelhantes no nível ideacional, fato comumente utilizado para qualificar uma tradução. Isso também pode ser ampliado para outros significados, como padrões de avaliatividade e de interpessoalidade, que podem, por vezes, sobrepor questões representacionais (Halliday, 2001). Tais situações, logo, seriam reflexo de diferentes valorizações dentro dos níveis da gramática, motivadas por variações no contexto de situação.

Yallop (2001YALLOP, C. 2001. The construction of equivalence. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.), assim como Halliday (2001_______. 2001. Towards a theory of good translation. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.), também discute a questão da equivalência. Por um lado, o autor parte do pressuposto que cada texto é um artefato único, sendo que a possibilidade de escolhas equivalentes é uma discussão que esbarra não apenas em questões relativas à gramática, mas em fronteiras culturais. Por outro, ele também coloca que, mesmo quando tradutores optam por uma tradução livre, sem o compromisso com correspondências diretas, ainda é possível encontrar pontos de convergência linguística.

Até certo ponto, para o autor, a possibilidade de manter uma relação de equivalência total nasce de uma perspectiva de pensamento na qual as diferentes identidades textuais e culturais estariam totalmente sob controle, um resultado de processos de padronização e massificação. Na verdade, o argumento de Yallop (2001YALLOP, C. 2001. The construction of equivalence. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.) parte do exemplo da tradução jurídica, em específico a de contratos: regras, processos legais estão em um contexto de cultura que já pressupõe inúmeras traduções similares e anteriores responsáveis por reger os princípios de equivalência. Todavia, à medida que o tradutor se depara com textos únicos, tal relação se coloca mais complexa: não há padrão cultural de equivalência nos valores tradutórios. Tal realidade pode colocar o tradutor em uma situação movediça, uma vez que os diferentes atos tradutórios podem ser condicionados por diversas variáveis culturais. Todavia, mesmo textos de caráter técnico não teriam sua tradução garantida em uma perspectiva puramente objetiva, o que encontramos são similaridades, pontos que nós, como humano, podemos discernir e relacionar (Yallop, 2001).

As abordagens sugeridas por Halliday (2001_______. 2001. Towards a theory of good translation. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.) e por Yallop (2001YALLOP, C. 2001. The construction of equivalence. In: E. Steiner & C. Yallop (Orgs.). Exploring Translation and Multilingual Text Production: Beyond Content. Berlin, Boston: DE GRUYTER.) são importantes para este artigo por possibilitarem o estudo comparativo do ato tradutório a partir da compreensão das escolhas realizadas dentro de um contexto situacional específico. Segundo Moser (2009MOSER, B. 2009. Why this world: a biography of Clarice Lispector. Oxford; New York: Oxford University Press., 2015), a obra de Clarice possui alguns elementos que a distinguem em comparação a outras do mesmo período. A primeira seria contextual, uma vez que a escritora busca estabelecer uma reflexão feminista sobre o papel da mulher, com um especial foco no locus social a ela designado (Moser, 2009). Nesse sentido, sua obra traz uma importante contradição entre os papéis de mãe e esposa, além das potencialidades sociais e profissionais que lhe são negadas, exatamente pela cobrança desses papéis. Para Moser (2009), tal fato parece ter uma relação ainda especial para Lispector, uma vez que sua biografia aponta para tal contradição: esposa de um diplomata e mãe, à autora está designado um locus que, certamente, não incluiria seu trabalho como escritora.

Para Moser (2015_______. 2015. Glamour and Grammar. In: B. Moser & K. Dodson (Orgs.). The Complete Stories. p. 9-31. New York: New Directions Publishing Corporation.), o fato de Clarice não ser brasileira nem falante nativa do português levanta ainda outras questões importantes. Primeiramente, porque a autora parece nunca ter necessariamente aderido às tradições sociais que lhe delegavam um papel doméstico. Isso leva a produção de uma obra ainda mais marcada pela resistência ao que poderia ser definido como o lugar apropriado da mulher. Nesse sentido, o feminismo da juventude, direto e ácido, é substituído por uma reflexão interior sobre o mundo feminino, seus problemas e contradições. Em segundo lugar, a estrutura do texto de Clarisse Lispector se colocaria de forma diferenciada de seus contemporâneos, que, para Moser (2015LISPECTOR, C. 2015. The Complete Stories. In: B. Moser & K. Dodson (Orgs.). New York: New Directions Publishing Corporation.), poderia ser associada à tradição de misticismo judaico no qual ela foi criada. O autor coloca que, num certo nível, Clarice não era muito diferente de suas personagens e suas leitoras, vivia uma contradição constante entre suas potencialidades e a vida burguesa que lhe era oferecida e cobrada, além de um constante sentimento de não pertencimento, fazendo com que a autora criasse uma linguagem e uma sintaxe específica a ponto de traduzir seu fluxo de pensamento em um texto materializado.

Clarice, portanto, se insere em um contexto de situação diverso daquele em que o texto foi traduzido, os EUA nos anos 2010. Por conta disso, haverá escolhas léxico-gramaticais que deverão, de alguma forma, refletir tanto o contexto de situação do ato tradutório, como possíveis diferenças motivadas pelos sistemas das línguas portuguesa e inglesa.

Existem diversos estudos que trabalham com o processo tradutório em LSF, entre eles seria relevante citar Alves & Pagano (2015ALVES, D. & PAGANO, A. 2015. Com palavras minhas: a tradução de verbos de elocução neutros no corpus paralelo The Adventures of Huckleberry Finn - As aventuras de Huck. Cadernos de Tradução, 36/1, 34-61. Disponível em: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2016v36n1p34.
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2016v3...
), Pagano et.al. (2016PAGANO, A. S.; FERREGUETTI, K. & RODRIGUES, J. 2016. Variáveis contextuais na produção de significado: a tradução de instrumentos de mensuração para uso nos serviços de Saúde. Letras & Letras, 3/21, 420-443. Disponível em: https://doi.org/10.14393/LL63-v32n1a2016-22.
https://doi.org/10.14393/LL63-v32n1a2016...
), Pagano et.al. (2014PAGANO, A.; SÁ, A. DE M. & FERREGUETTI, K. 2014. A equivalência tradutória de Partículas Modais: um estudo baseado em corpus. Letras & Letras, 30/2, 322-348.), Rodrigues Júnior (2005RODRIGUES JÚNIOR, A. S. 2005. An Exploratory Study of Representation of Gay Characters in a Parallel Corpus of Short Stories: a Systemic-Functional Approach. Cad. Tradução, 16, 83-104., 2007_______. 2007. A representação de personagens gays na coletânea de contos Stud e em sua tradução As Aventuras de um Garoto de Programa. Trabalhos em Linguística Aplicada, 46, 263-281., 2010_______. 2010. Representação gay em corpus literário paralelo. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, 10/3, 603-624. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1984-63982010000300006.
https://doi.org/10.1590/S1984-6398201000...
) e Ventura (2000VENTURA, C. S. M. 2000. Cultura e Tema na Tradução de Relatórios Anuais de Empresas. the ESPecialist, 21/2, 225-244.). Alves & Pagano (2015) discutem escolhas linguísticas de processos verbais em um corpus paralelo. Seu objetivo é observar padrões de escolha em processos de locução em recontextualizações do discurso direto e discurso direto livre; seus resultados mostram a existência de padrões de escolhas tradutórias. Rodrigues Júnior (2007) realiza uma investigação da construção das personagens em uma coletânea de contos gays e suas respectivas traduções para o português. Seu trabalho analisa elementos de transitividade de forma a estudar possíveis padrões em escolhas tradutórias, observando que as escolhas tendem a representar as personagens como agentes de ações sobre o mundo e sobre si. De fato, seus estudos mostram que a tradução destes contos tende a enfatizar uma representação muito próxima à original (Rodrigues Júnior 2010). Pagano et al. (2016) estudam o contexto de situação em traduções de questionários de serviço de saúde, com enfoque em suas realizações linguísticas. Sua pesquisa enfatiza questões relativas à análise deste nível de contexto e sua importância para os trabalhos tradutórios. Já Pagano et al. (2014) discutem a diferença entre o uso de partículas modais nos textos originais em inglês. Por fim, Ventura (2000) discute escolhas no sistema de Tema e Rema em traduções de relatórios anuais, evidenciando que, muitas vezes, as escolhas podem não estar adequadas à cultura de chegada.

Entretanto, é importante observar que, à exceção de Ventura (2000VENTURA, C. S. M. 2000. Cultura e Tema na Tradução de Relatórios Anuais de Empresas. the ESPecialist, 21/2, 225-244.), todos os trabalhos versam sobre a tradução de obras cujos textos fonte são em língua inglesa. Parte-se, então, da necessidade de ampliação das pesquisas em traduções em obras literárias cuja língua de origem é o português. Isso contribuiria para a compreensão do processo de tradução do sistema de transitividade entre as duas línguas, de forma a entender como as diferentes variantes contextuais podem influenciar este processo. Além disso, esta pesquisa pressupõe que possíveis diferenças devem ocorrer dada a natureza específica do contexto de produção de “Amor” e das inevitáveis particularidades da obra de Clarice.

2. Corpus e procedimentos

Esta pesquisa conta com um corpus paralelo formado pelo conto “Amor” da escritora Clarice Lispector, publicado no livro “Laços de Família” de 1960 e sua tradução realizada por Katrina Dodson em “The Complete Stories: Fiction by Clarice Lispector” (Lispector 2015).

“Amor” é um conto que reflete o universo interior de sua personagem principal: Ana, dona de casa de classe média, cuja ocupação única é zelar pelos afazeres domésticos e pelo conforto da família. Ao retornar das compras no centro da cidade, Ana avista um cego mascando chicles na esquina. Tal visão a leva a uma profunda reflexão no seu mundo interior, reavaliando seu papel social de mãe e esposa, repensando sua realidade em relação aos seus sonhos ao embarcar em um tempo e espaço próprios (Moser 2015_______. 2015. Glamour and Grammar. In: B. Moser & K. Dodson (Orgs.). The Complete Stories. p. 9-31. New York: New Directions Publishing Corporation.).

Tabela 1
Composição do corpus

Como mostra a tabela 1, há uma pequena diferença em torno do número de tipos e formas entre os textos em português e inglês, sendo o primeiro ligeiramente mais criativo lexicalmente. Isso porque o texto em inglês possui um número menor de palavras únicas e uma repetição maior destas. Apesar de não ser o objeto principal desta reflexão, é importante ressaltar que tal diferença parece ser fruto do uso de tempos compostos e dos sujeitos das orações em língua inglesa que contrastam com o texto em português, à medida que o último possui uma quantidade maior de tempos verbais sintéticos e não precisa da presença de sujeito em todas as proposições escritas.

Este trabalho contou com dois programas. O primeiro, UAM CorpusTool (O’Donnell 2016), é um software de análise qualitativa e quantitativa que oferece a possibilidade de classificação de dados linguísticos a partir de um sistema desenvolvido pelo usuário, permitindo tanto o estudo de palavras, como de segmentos subjetivamente definidos. Tais sistemas podem ser aplicados no texto de forma simultânea. Ele também serviu como ferramenta quantificadora dos tipos de processos presentes em cada um dos textos.

Já o software YouAlign (YouAlign 2016) é uma plataforma online para alinhamento de corpora que suporta todas as línguas de expressão europeia (incluindo o português). O processo de alinhamento se dá pela segmentação em períodos marcados por uma pontuação forte (“?”, “!” ou “.”). Os textos alinhados são posteriormente baixados em formato *.docx ou *.hmtl para o computador do analista. Essa plataforma foi utilizada para facilitar a análise qualitativa, uma vez que cada uma das instanciações também foi verificada comparativamente em uma análise do português e do inglês.

Dessa forma, o algoritmo desenvolvido para a análise dos dados deste trabalho foi:

  • 1. Digitalização dos textos (tanto em português como em inglês) em formato *.txt

  • 2. Inserção dos textos no programa UAM CorpusTool

  • a. Desenvolvimento de um sistema de classificação dos processos

  • i. Análise dos processos nos dois textos

  • ii. Levantamento de concordâncias e colocados dos processos.

  • 3. Aplicação do teste T-Student nos processos quantificados

  • 4. Preparação dos textos dentro do alinhador YouAlign.

  • a. Inserção dos textos no programa

  • b. Análise comparativa dos processos no corpus já alinhado.

3. Resultados

A Figura 1, a seguir, traz os resultados do levantamento inicial dos processos realizado nos dois corpora. Os números são bastante similares em termos da quantidade de processos em ambos os textos. No caso dos processos materiais, observa-se uma variação pouco maior que 0,5%, o mesmo é verdadeiro em relação aos processos existenciais, que variam 0,34%, e aos verbais, estes com uma diferença de 0.67%. Os processos mentais e os comportamentais são aqueles com maior variação, os primeiros com 2.77% e os últimos com 2.85%.

Figura 1
Distribuição dos processos no texto em português e na sua tradução para o inglês α = 0.4304836105.

Ao se verificar o resultado do teste-T, nota-se que a variação processual se mostrou significativa do ponto de vista estatístico. Isso talvez denote que, apesar das escolhas recaírem, em sua maioria, dentro de uma mesma tipologia processual, o texto traduzido pode ter algum tipo de variação em seu significado. Foi com base neste resultado que a análise dos processos que se segue foi articulada. Com foco nas possíveis mudanças de sentido, partiu-se dos processos que se mantiveram consistentes em termos de categoria processual para, em um segundo momento, dirigir o foco para os processos que sofreram modificações.

Constatou-se, então, que há processos que a manutenção da categoria processual não necessariamente mantém a consistência entre as representações do texto original e do texto de chegada. De forma consistente, há também exemplos de proposição cuja escolha processual parece ser alterada; como exemplo, vale citar processos verbais (português) que são instanciados como materiais (inglês), materiais (português) que são traduzidos como comportamentais (inglês), para citar apenas alguns casos. Exemplos serão discutidos a seguir.

Há proposições nas quais a tradução de processos em uma mesma categoria não implica necessariamente na manutenção do significado instanciado no texto fonte. Os exemplos 1 e 2 são instâncias desse tipo de questão. O primeiro mostra a escolha realizada para traduzir “percorrer”, um processo material que implica na passagem ao longo de algo. Tal processo foi substituído por “crisscross”, cujo sentido está em cruzar longitudinalmente. A diferença entre as instanciações afeta o significado à medida que a imagem construída por Clarice parece valorizar, especificamente, a construção de uma situação de aconchego relacionada com a ideia de um percurso que se constrói pela alameda.

Exemplo 1

Exemplo 2

Já o exemplo 2 nos mostra que foi realizada a escolha de “sense” como instanciação de “adivinhar”. Apesar de os dois processos serem mentais, a ação cognitiva parece não ser a mesma; no primeiro há um elemento de aleatoriedade, e até mesmo verbal - caso o processo se dê pela fala -, ao passo que o segundo tem uma relação com a percepção.

No caso do exemplo 3, o processo exigir de caráter verbal é substi­tuído por need, que poderia ser classificado como material. Essa mudança vai além de um simples processo classificatório e impinge algumas diferenças semânticas importantes. No texto em português, a relação de Ana com seus filhos não parece estar relacionada com seu papel materno, uma vez que o ato de exigir pode estar ligado ou a uma demanda ou ordem. Por outro lado, need parece projetar um papel de dependência em seus filhos e, consequentemente, tornando Ana a provedora.

Exemplo 3

O exemplo 4, a seguir, traz algumas instanciações relevantes para análise. Logo no início, observa-se que, apesar de o processo mental “descobrir” ser mantido, há a necessidade de adaptação em termos da presença do Ator em inglês, uma vez que em português ele é pressuposto pela desinência modo-verbal presente na partícula modal “parecia”. Além disso, cabe ressaltar que a necessidade impingida pelo sistema verbal do inglês faz com que a entidade responsável pela instanciação verbal esteja necessariamente presente. Em português, essa relação é algo difusa e parece contribuir para a construção do foco em torno das sensações de Ana. Algo similar acontece em “emprestar”: no original em português o processo está representado de forma impessoal, quase como se o processo ocorresse espontaneamente e marcado pela indefinição. Contrastivamente, em inglês, ele é atribuído à Ana, que, como comportante, passa a ser responsável direta pela ação.

Exemplo 4

No caso do verbo “fazer”,6 6 Neste estudo, os processos serão referidos no corpo do texto em sua forma infinitiva. ele é substituído pelo também material “wrought”. Isso, todavia, sem deixar de implicar em uma diferença semântica: “ser feita” pertence à linguagem corrente em português, ao passo que o equivalente escolhido em inglês é uma forma arcaica de uso quase estritamente literário. O exemplo acima ainda mostra uma escolha tradutória que parece inserir um processo no texto traduzido que não está presente no original: “could be perfected”. Em português, a autora optou por um uso nominalizado, que empacota o verbo e pressupõe sua ação sem, necessariamente, influenciar de forma direta escolhas no nível da transitividade. Assim, o que era antes representado por um processo relacional atributivo circunstancial, passa a ser representado por uma voz passiva. Claro que é possível argumentar que o particípio do passado “perfected” pode também ser encarado como um processo nominalizado, mas isso ainda implicaria no apagamento de “passível”, núcleo do grupo nominal original em português.

Exemplo 5

Exemplo 6

No corpus em inglês, foi possível observar situações nas quais processos Materiais eram traduzidos como processos comportamentais, como mostram os exemplos 5 e 6, o que pode ter um efeito de transformação na forma como a personagem é retratada. Primeiramente, é cabível observar que Halliday (Halliday 1994_______. 1994. An Introduction to Functional Grammar 2a. London: Edward Arnold.; Halliday & Matthiessen 1999, 2004, 2014) descreve os processos comportamentais como aqueles que instanciam significados entre os processos materiais e mentais, podendo ser definidos como ações materiais cujo desenrolar está ancorado em uma ação mental. Dessa forma, poderíamos estabelecer uma diferença entre “andar” e “caminhar”: o primeiro seria definido como uma ação motora, ao passo que o segundo seria caracterizado por uma ação mais complexa, pressupondo um princípio contemplativo de ordem mental. Efetivamente, estabelecer a diferença entre tais processos é uma tarefa subjetiva, isso porque a LSF trabalha com o princípio da motivação social do signo, como já discutido. Um resultado prático disso é o que Halliday & Matthiessen (1999) chamam de princípio da indeterminação; a experiência social do indivíduo é um pressuposto do processo analítico, enriquecendo-o.

No caso específico das instanciações presentes em 5 e 6 a tradução do processo material em momportamental tornou a ação mais complexa de forma a projetar papéis sociais e estados de espirito. O contraste entre “nourish” e “alimentar” caminha por essa seara: o primeiro está relacionado ao ato de suprir as necessidades básicas alimentícias, ao passo que o segundo traz em si uma ideia de nutrição, de crescimento. Ambos são claramente metáforas gramaticais: a vida é ora Meta ora Comportamento. A meta parece reforçar o significado de manutenção da existência desta mesma vida, uma vez que o ato de alimentar a mantém; por outro lado, “nourish” parece indicar um significado relacionado à maternidade. Já “trudg down” contrasta com “andar” à medida que este implica em uma ação de caráter mais motor, enquanto aquele está ligado a um relativo nervosismo, transparecido na ação.

O exemplo 7 traz uma transformação gramatical que parece partir de um processo Comportamental em direção a um Relacional. Por um lado, “get worried” é uma metáfora gramatical, uma vez que utiliza uma estrutura relacional de forma a enfatizar o processo de transformação mental passado pela personagem; “worried”, apesar de estar nominalizado, carrega boa parte da carga processual e funciona à moda de uma extensão. Por outro lado, “inquietar” instancia significados relacionados a um processo mental com claros efeitos corporais; algo que se perde em “get worried”, que se caracteriza por ser uma escolha que parece limitar a apenas um dos aspectos da ação em português.

A mesma questão de redução parece estar presente no exemplo 8. Ali se observa que “depositar” e “put” possuem cargas semânticas diferentes, uma vez que o primeiro pressupõe um cuidado maior na ação; ao passo que o segundo é uma ação menos pensada e com maior grau de automatização.

Exemplo 7

Exemplo 8

Exemplo 9

Vale observar que a transposição gramatical não apenas introduz significados relacionais, como discutido no exemplo 7, mas também os neutraliza em favor de formas mais sintéticas de expressão. Isso pode ser observado no exemplo 9, no qual a “estar rodeado”, uma expressão relacional atributiva é substituída por “encircle”, que instancia um significado material. A diferença nesse sentido está na relação estática que se perde em favor de uma situação de movimento, uma vez que processos relacionais tendem a refletir estados de caracterização, ao passo que os materiais trazem relações mais dinâmicas entre entidades. Essa relação estática poderia ser uma metáfora que instanciaria o estado de espírito de Ana, que perde a noção de tempo ao se ver revisitando e pensando sobre seu papel de esposa e mãe. A utilização de “encircle” é responsável por tornar Ana uma entidade alvo da ação de tal sonho, graças a seu papel de Meta na proposição em inglês. Essa relação léxico-gramatical é bem diferente no texto fonte, no qual a introdução do participante “meio sonho” se faz de forma indireta pelo elemento circunstancial.

Algumas escolhas que levam à variação processual parecem visar à manutenção de alguns significados no conto, em especial uma determinada indefinição nos agentes processuais. O exemplo 10 mostra como a estrutura gramatical do português e do inglês abrigam diferentes escolhas nesse sentido. No texto fonte, usa-se o verbo “fazer” acompanhado de uma partícula apassivante sintética. Tal configuração, aliada a possibilidade de indicação do modo-pessoa por meio da desinência verbal, torna a indicação do sujeito entendível ao leitor, ainda que não expresso.

Exemplo 10

No caso do inglês, não há processos sem a indicação de sujeito, dada a ausência de desinência específica (Quirk 1985QUIRK, R. (Org.). 1985. A Comprehensive grammar of the English language. London/New York: Longman.). Isso talvez seja um dos fatores que levou a substituição do processo material pelo existencial “to be”: o existente não requer uma ação criadora. Além disso, o pronome “there” faz as vezes de um sujeito gramatical indefinido, que ajuda a manter a noção de indeterminação do português.

Nos dados analisados, alguns processos parecem ser sistematicamente traduzidos de forma inconsistente. Essas traduções não necessariamente transformam as escolhas instanciadas em termos da estrutura gramatical ou da relação entre os participantes, mas, comumente enfatizam traços semânticos específicos.

Um exemplo desse tipo de fenômeno pode ser observado em 11. Nele há duas traduções para o termo “exigir” que, como já discutido anteriormente, poderia ser classificado como processo verbal. No caso específico de (a), há a manutenção de sua função verbal, ao passo que em (b), há a transposição para um significado material. No caso do texto fonte, os dois exemplos parecem enfatizar uma relação de reivindicação e cobrança. Esse significado parece se manter em (a), mas é transformado em (b), no qual a relação, como já discutida, parece enfatizar especialmente a relação materna.

Exemplo 11

“Depositar”, outro processo já discutido anteriormente, também sofre modificações em termos de sua ênfase em diferentes momentos. Em suas duas ocorrências (ver exemplo 12), o processo é traduzido por “put”, que enfatiza a representação material e procedural por “place”, que seria uma escolha comportamental.

Exemplo 12

Talvez o processo que tenha sido impactado de forma mais significativa por esse fenômeno seja “olhar”, dadas suas características polissêmicas em português. Como podemos observar no Quadro 1, “olhar” parece encapsular todos significados expressos em suas traduções para o inglês. No caso de (a), (b) e (c) optou-se por uma tradução que se aproxima daquela relacionada no texto fonte, utilizando “look” de forma genérica e com o mesmo significado comportamental. Talvez a única exceção ocorra em termos de arranjo, uma vez que, ao optar pela forma frasal em (f), houve uma relativa ênfase na questão aspectual.

Quadro 1
Concordâncias de ‘olhar’ e suas traduções

Já o exemplo (d), parece mostrar opção por uma instanciação de caráter comportamental. Isso porque “look around” pressupõe realização de uma varredura do local, observar se algo efetivamente se encontra ali ou não: um significado de procura que não parece estar presente no texto fonte. Por outro lado, tal tradução é bastante consistente com o significado instanciado em (e). “Gaze” (g) e “stare” (h, i e j) são processos que, por seu turno, também levam a uma instanciação responsável pela ênfase em possíveis significados encapsulados em “olhar”. A diferença semântica entre os dois processos é tênue, apesar de ambos instanciarem significados comportamentais relacionados ao olhar insistente, o primeiro pode remeter a uma observação contemplativa, ao passo que o segundo pressupõe uma relação de espanto ao se olhar. A escolha da instanciação entre tais processos parece seguir um padrão claro, a única instância de “gaze” está em uma proposição cujo comportamento é um fenômeno da natureza, ao passo que “stare”, por seu turno, é instanciado em proposições cujo comportamento representa um ser humano. Em outras palavras, as escolhas parecem construir uma imagem da personagem como aquele que se “surpreende” perante comportamentos humanos e que “contempla” fenômenos naturais.

4. Considerações finais

Neste artigo busquei comparar as escolas processuais em um corpus composto pelo conto “Amor” de Clarice Lispector e uma de suas traduções para o inglês. O trabalho teve sua base teórica na Linguística Sistêmico-Funcional, com especial ênfase em seus estudos da tradução e no sistema de transitividade.

De forma a conseguir cumprir tal objetivo, o trabalho contou com ferramentas de análise quali/quantitativas, tais como o marcador textual UAM CorpusTool (O’Donnell 2016) e o alinhador online de textos YouAlign (YouAlign 2016).

A pesquisa se iniciou com levantamento quantitativo de processos nos dois textos. Tal levantamento mostrou haver uma pequena variação na tipologia processual, o teste estatístico (T-Student) mostrou que tal variação é significativa. A partir de tais resultados passou-se a realizar uma análise qualitativa das escolhas processuais de forma comparativa.

Os resultados qualitativos demonstram que há algumas diferenças no que tange a categoria dos processos instanciados. Essas diferenças estão especialmente relacionadas à ênfase em determinados significados, que podem ser relevantes para a cultura de chegada, a questões de equivalência que, muitas vezes, não se torna possível, e a questões léxico-gramaticais, específicas da língua de chegada e de partida.

Além disso, e não menos importante, observou-se que o verbo “olhar” parece encapsular significados: a polissemia deste processo no texto de origem faz com que as escolhas tradutórias estabeleçam padrões baseados na ênfase de determinados significados, que dependem da interpretação do tradutor.

Por fim, este trabalho pode trazer importantes implicações para a formação de tradutores, em especial no que tange a construção da consciência do poder expressivo de escolhas gramaticais e de sua implicação no âmbito semântico globalizado do texto.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer à Prof. Lúcia Rotava pela leitura de versões preliminares deste artigo, à organização do VI Encontro SAL (Systemics Across Languages) e do V Seminário de Formação Docente PIBID-Português, realizados na UFRGS, pelo convite de participação que originou esta pesquisa e à Profª Drª Leila Barbara, por me introduzir nos caminhos da Linguística Funcional e da Linguística de Corpus.

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  • *
    Uma versão preliminar desta pesquisa foi apresentada no VI Encontro SAL (Systemics Across Languages) e no V Seminário de Formação Docente PIBID-Português, ambos realizados entre 7 e 8 de abril de 2016 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • 1
    Os termos Sociossemiótica, Gramática Sistêmico Funcional e Linguística Sistêmico funcional são utilizados como equivalentes em vários momentos da obra de Michael Halliday, como é possível observar em Halliday (1978, 1994); Halliday e Hasan (1991); Halliday e Matthiessen (Halliday & Matthiessen 1999, 2004, 2014). A utilização de tais termos como correspondentes parte da percepção de tal abordagem como um construto teórico, no qual a significação é realizada por meio da linguagem e instanciada em escolhas em nosso contexto imediato de situação (Eggins & Martin, 1997EGGINS, S. & MARTIN, J. R. 1997. Genres and Registers of Discourse. In: T. A. van Djik (Org.). Discourse as Structure and Process: Discourse Studies: A Multidisciplinary Introduction. London: SAGE Publications Ltd. p. 230-256. Disponível em: https://doi.org/10.4135/9781446221884.n9.
    https://doi.org/10.4135/9781446221884.n9...
    ), com grande importância dada ao seus componentes cultural e social.
  • 2
    Apesar de Halliday não realizar pesquisas relacionadas aos gêneros, diversos estudos na área de LSF (Eggins 1994; Eggins & Martin 1997; Martin 2000; Martin & Rose 2008, para citar apenas alguns), relacionam o contexto de cultura com tal Stratum, uma vez que ele seria responsável por estabelecer as relações textuais presentes em nossa cultura.
  • 3
    O estabelecimento do conceito de Registro como realização da linguagem em nosso Contexto de Situação imediato, assim como suas variáveis, está presente em diversos trabalhos em LSF, tais como Halliday (1978, 2005b); Halliday e Hasan (1991); Hasan (2014HASAN, R. 2014. Towards a paradigmatic description of context: systems, metafunctions, and semantics. Functional Linguistics, 1(1). Disponível em: https://doi.org/10.1186/s40554-014-0009-y.
    https://doi.org/10.1186/s40554-014-0009-...
    ) e Martin e Eggins (1997MATTHIESSEN, C. M. I. M.; TERUYA, K. & LAM, M. 2010. Key terms in systemic functional linguistics. London/New York: Continuum.).
  • 4
    De acordo com Halliday (2005a) e com Matthissen et al. (2010), um sistema poderia ser definido como uma categoria central para a representação paradigmática de um Stratum. Em termos gerais ele pode se caracterizar por ser ou um princípio de contraste entre um ou mais termos, que seriam, assim, representados pelos seus componentes ou uma condição que especifica o contraste se coloca. Dentro desta abordagem, os sistemas formam redes nas quais seus componentes são instanciados por diferentes escolhas léxico-gramaticais. Por seu turno, tais sistemas poderiam ser vistos como uma “meta-regra”, definida dentro da semiose e da cultura de uma língua.
  • 5
    O termo argumento não é utilizado como categoria gramatical do Sistema de Transitividade, mas sim como elemento constituinte do sistema, em termos de sua relação com o processo. Tal conceito, de fato, tem sofrido uma relativa flutuação terminológica na obra de Halliday. Como exemplo, observa-se o uso de “components” em Halliday (1994, p. 107) e em Halliday e Matthiessen (2014, p. 220); “arguments” em Halliday e Matthiessen (1999, p. 318); e “elements” em Halliday e Matthiessen (2004, p. 169).
  • 6
    Neste estudo, os processos serão referidos no corpo do texto em sua forma infinitiva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2017
  • Aceito
    01 Maio 2017
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