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Estratégias de impolidez como propriedades definidoras de interações polêmicas

Impoliteness strategies as properties that define controversial interactions

RESUMO

Adotando contribuições teórico-metodológicas da Análise do Discurso interacionista, partimos da hipótese de que as interações polêmicas possuem três propriedades estruturais características: 1) expansão da interação com reações negativas e contra-proposições, 2) ausência de ratificação e 3) processos de negociação secundários. Por meio da análise de um excerto de uma sessão do Superior Tribunal Federal, verificamos que essas propriedades atuam como estratégias de impolidez que permitem caracterizar uma interação como polêmica ou conflituosa.

Palavras-chave:
processo de negociação; interação polêmica; estratégias de impolidez, Superior Tribunal Federal

ABSTRACT

Using theoretical-methodological contributions from interactionist Discourse Analysis, we start from the hypothesis that the polemical interactions have three characteristic structural properties: 1) expansion of interaction with negative reactions and counter-propositions, 2) lack of ratification and 3) secondary negotiation processes. With the study of an excerpt from a session of the Federal Superior Court, we verified that these properties function as impoliteness strategies that allow to characterize an interaction as controversial or conflictual.

Key-words:
negotiation process; controversial interaction; impoliteness strategies, Federal Superior Court

Introdução

Em diferentes vertentes dos estudos da linguagem, estudiosos têm buscado definir as propriedades que tornam uma interação conflituosa, agressiva ou polêmica, bem como suas condições de emergência. Assim, ao lado de abordagens históricas, sociológicas e psicológicas que procuram compreender as razões do surgimento da violência e do conflito entre indivíduos, grupos humanos de proporções diversas ou mesmo estados nacionais (Simmel 1955SIMMEL, Georg. 1955. Conflit/The web of group-affiliations. New York: The Free Press., Foucault 1975FOUCAULT, Michel. 1975. Surveiller et punir. Paris: Gallimard., Coser 1982COSER, Lewis A. 1982. Les fonctions du conflit social. Paris: Presses Universitaires de France., Bourdieu 1989BOURDIEU, Pierre. 1989. O poder simbólico. Lisboa: Difel., Hobsbawn 1995HOBSBAWN, Eric. 1995. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras., Ianni 2004IANNI, Octavio. 2004. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., Žižek 2014“ŽIZEK, Slavoj. 2014. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo.”), os estudos da linguagem, de modo mais ou menos explícito e sistemático, têm buscado descrever e explicar as características linguísticas e paralinguísticas das interações marcadas pela violência e pelo conflito.

Em diferentes vertentes da Linguística, autores como Amossy e Kerbrat-Orecchioni, na Análise do Discurso, Haugh e Leech, na Pragmática (interpessoal), Labov, na Sociolinguística Variacionista, e Culpeper e Bousfield, na Sociolinguística Interacional, revelaram ou têm revelado que o uso agressivo da linguagem pode constituir objeto de investigação de um (sub)campo de estudos autônomo e com contornos claros. O interesse da pesquisa linguística por esse uso agressivo da linguagem se manifesta na multiplicidade de estudos que, nos (sub)campos mencionados, vêm surgindo em torno de conceitos como impolidez, descortesia, polêmica, controvérsia, rudeza, violência (conflito, agressividade, transgressão) verbal (Roulet 1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18., Locher e Bousfield 2008LOCHER, Miriam A.; BOUSFIELD, Derek. 2008. Introduction: impoliteness and power in language. In: LOCHER, Miriam A.; BOUSFIELD, Derek (Orgs.). Impoliteness in language: studies on its interplay with power in theory and practice. Berlim: Mouton de Gruyter., Culpeper 2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press., Kerbrat-Orecchioni 2013KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. 2013. Politeness, Impoliteness, Non-Politeness, “Polirudeness” The Case of Political TV Debates. In: JAMET, Denis; JOBERT, Manuel. (Eds.). Aspects of Linguistic Impoliteness. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing: 16-45., Amossy 2017AMOSSY, Ruth. 2017. Apologia da polêmica. São Paulo: Contexto.).

Neste trabalho, que se filia ao (sub)campo da Análise do Discurso interacionista2 2 . Apresentações dos pressupostos que caracterizam a perspectiva interacionista da Análise do Discurso encontram-se em Kerbrat-Orecchioni (1992), Roulet, Filliettaz e Grobet (2001, cap. 1) e Vion (1992). , o objetivo é evidenciar que o modo como os interactantes participam da interação, coordenando as ações recíprocas ao longo de um processo de negociação, pode constituir um meio precioso para se definir uma interação como polêmica, já que o modo de participação estrutura o discurso (Moeschler 1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif., Roulet et al 1985ROULET, Eddy et al. 1985. L’articulation du discours en français contemporain. Berne: Lang., Roulet, Filliettaz e Grobet 2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang.). Assim, partimos da hipótese de que as interações polêmicas ou conflituosas possuem três propriedades estruturais características: a) expansão da interação por meio de contra-proposições e reações negativas, b) ausência de ratificação motivada por falta de acordo entre os interactantes e c) interações (processos de negociação) secundárias, em que o ofendido, para reparar sua face, torna-se ofensor. Bem descritas do ponto de vista estrutural no âmbito da abordagem genebrina da organização do discurso3 3 . Essa abordagem da organização do discurso se desenvolveu em torno de Eddy Roulet, na Universidade de Genebra. Surgindo no final dos anos 1970 com a finalidade de descrever a articulação dos atos de fala na estrutura de discursos autênticos (não fabricados pelo próprio pesquisador) (Roulet et al 1985), essa abordagem incorpora contribuições de pesquisadores que se centraram em aspectos isolados da organização do discurso, para descrever, por meio de uma metodologia modular de análise, essa organização como sendo o resultado da combinação de informações de três dimensões: linguística, textual e situacional (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001). , essas propriedades não foram suficientemente analisadas como caracterizadoras de interações polêmicas, em que o confronto de ideias e o ataque de imagens identitárias definem o comportamento dos interactantes. Nesse sentido, nosso intuito, mais do que descrever essas propriedades formalmente, é identificar suas funções no processo de figuração (face work (Goffman 1967GOFFMAN, Erving. 1967 [1955]. On face-work: an analysis of ritual elements in social interaction. In: GOFFMAN, Erving. Interaction Ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Pantheon Books: 5-45.[1955])).

Para isso, realizaremos o estudo de excerto de uma sessão do Superior Tribunal Federal, ocorrida em 26 de outubro de 2017, sobre uma ação para validar a extinção do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará. No excerto escolhido para análise, os interactantes são os Ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. O estudo de uma interação polêmica ocorrida em sessão de julgamento do Superior Tribunal Federal se justifica pelo fato de que subjaz ao próprio funcionamento dessa instância do judiciário brasileiro o pressuposto de que quaisquer ações que impliquem ameaça à Constituição Federal de 1988 devem ser apreciadas e discutidas por uma Suprema Corte que, composta por onze ministros, constitui a mais alta instância do poder judiciário do Brasil. Dessa maneira, a própria existência do Superior Tribunal Federal confere à argumentação, de que fazem parte a polêmica, o conflito e o embate de opiniões, um lugar simbólico de destaque na configuração do Estado brasileiro e em decisões que, direta ou indiretamente, afetam toda a sociedade civil4 4 . Para um estudo aprofundado do Superior Tribunal Federal, bem como do papel da linguagem em suas sessões de julgamento, cf. Neves (2017). .

Antes da análise do excerto, abordaremos, inicialmente, o que caracteriza uma interação conflituosa, agressiva ou polêmica e, em seguida, em que medida as propriedades estruturais mencionadas, nosso objeto de estudo, podem auxiliar na caracterização desse tipo de interação.

1. O uso agressivo da linguagem em interações polêmicas

Em estudo sobre a controvérsia, Roulet (1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.) propõe uma distinção entre três tipos de interações agonais: a controvérsia, a polêmica e a briga (no original, scène no sentido de scène de ménage). Em linhas gerais, a polêmica e a briga têm como propriedades comuns um contexto fortemente passional, levando a uma interação com forte intensidade axiológica pejorativa e mesmo difamatória, bem como o exagero e a apresentação de contra-verdades como estratégias argumentativas. Esses tipos de interações se diferenciam, porém, pelo fato de que a briga apresenta como propriedades o caráter privado e oral, a ligação pessoal estreita entre os interactantes, a brevidade e a perda de controle verbal, ao passo que na polêmica os interactantes se comportam de modo mais calculado e monitorado, a duração da interação é mais extensa e há uma finalidade de desqualificação pública, o que faz com que as polêmicas frequentemente ocorram na modalidade escrita. Já a controvérsia, embora oponha pontos de vista, se distingue das duas categorias anteriores por se caracterizar pela serenidade dos interactantes, pela ausência de conotações negativas e pelo uso de uma argumentação mais rigorosa e de termos axiológicos mais moderados.

Ainda que Roulet (1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.), em análise de um programa televisivo em que críticos avaliam uma peça teatral, o defina globalmente como uma controvérsia oral, esclarece o autor que uma mesma interação pode sofrer modificações e, por exemplo, passar da controvérsia para a briga, o que vai depender do modo como os interactantes desenvolvem a interação.

No âmbito da Análise do Discurso e da Retórica, Amossy (2017AMOSSY, Ruth. 2017. Apologia da polêmica. São Paulo: Contexto.: 49), definindo a polêmica como “um modo particular de gestão do conflito”, observa que a marca da polêmica é o antagonismo de opiniões: “O antagonismo das opiniões apresentadas no seio de um confronto verbal é sua condição sine qua non”. Não por acaso, as interações que tipicamente se caracterizam pelo uso de uma linguagem agressiva são aquelas em que se espera exatamente um embate de ideias ou de posicionamentos entre os interactantes, como debates eleitorais, brigas face a face ou a distância (redes sociais), audiências, reuniões (de trabalho, de condomínio) etc.

Nessas interações, o comportamento dos interactantes se define pelo dissenso ou pela dificuldade em chegarem a um acordo. Em outros termos, essas interações são favoráveis à emergência da modalidade polêmica5 5 . Na busca por definir o modo como a argumentação modela e atravessa os diversos gêneros do discurso, Amossy (2008) propõe a noção de modalidades argumentativas ou “modalidades do empreendimento da persuasão”. A autora propõe estas categorias de modalidades: demonstrativa, patética, pedagógica, de co-construção, negociada e polêmica. , que se manifesta “sob a forma de uma troca fundada na confrontação violenta de teses antagônicas: dois adversários medem suas forças, frequentemente com a intenção de obter a adesão de um terceiro” (Amossy 2008AMOSSY, Ruth. 2008. As modalidades argumentativas do discurso. In: LARA, Glaucia Muniz Proença; MACHADO, Ida Lúcia; EMEDIATO, Wander (Orgs.). Análises do discurso hoje. v. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 231-254.: 232). Nessa modalidade argumentativa, “cada uma das partes se reapropria do discurso do outro, integrando-o, por inversão, ao seu sistema próprio” (Amossy 2017AMOSSY, Ruth. 2017. Apologia da polêmica. São Paulo: Contexto.: 55). É essa forma de participar da interação que faz com que as interações polêmicas tenham por característica “uma tendência à dicotomização, que torna problemática a busca por um acordo” (Amossy 2017AMOSSY, Ruth. 2017. Apologia da polêmica. São Paulo: Contexto.: 55).

Na Sociolinguística Interacional, Culpeper (2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.), ainda que não se valha do termo “polêmica”, assume perspectiva próxima das de Roulet e Amossy, ao entender que o uso agressivo da linguagem ou a impolidez linguística envolve incompatibilidade e oposição de interesses e opiniões entre os interactantes e, por isso, é “intimamente conectada com conflito” (Culpeper 2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.: 5). Culpeper (2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.: 23) concebe a impolidez como “uma atitude negativa para comportamentos específicos ocorrendo em contextos específicos”. Embora, para o autor, a impolidez se manifeste na interação e, por isso, constitua um fenômeno que só se compreende quando analisado em contexto, ela é “sustentada por expectativas, desejos e/ou crenças sobre organização social, incluindo, em particular, como identidades de uma pessoa ou de um grupo são mediadas por outros na interação” (Culpeper 2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.: 23). Nesse sentido, a avaliação de um interactante acerca da impolidez de dado comportamento é largamente tributária do lugar social que esse interactante ocupa em relação aos demais interactantes e a outros grupos sociais.

Ressaltando o componente social dos julgamentos acerca da impolidez de dado comportamento, Culpeper (2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.: 23) observa: “Comportamentos situados são vistos negativamente - considerados ‘impolidos’ - quando entram em conflito com o modo como alguém espera que eles sejam, quer que eles sejam e/ou pensa que eles devem ser”. Desse modo, a impolidez envolve violação de “normas sociais de comportamento” (2011: 37), e o interactante que avalia o comportamento do outro como impolido vê-se na posição de alguém cuja face (“imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados” (Goffman 1967GOFFMAN, Erving. 1967 [1955]. On face-work: an analysis of ritual elements in social interaction. In: GOFFMAN, Erving. Interaction Ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Pantheon Books: 5-45.[1955]: 5)) foi ofendida.

A visão da impolidez como violação de normas sociais de comportamento é complementar ao modo como Moeschler (1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.) define o acordo. Para o autor, essa noção pressupõe o atendimento a normas implícitas que regulam cada tipo de interação, o que faz com que as restrições necessárias para a obtenção do acordo não sejam as mesmas em um debate, em uma transação comercial e em uma conversa informal entre amigos e familiares. Embora Moeschler não estude a impolidez, compreende-se que, na proposta do autor, a violação das normas sociais que regulam cada tipo de encontro terá como resultado o desacordo e, consequentemente, a emergência de uma troca polêmica ou impolida. Essa é a perspectiva de Roulet (1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.: 12), ao abordar o papel do desacordo na emergência de interações agonais:

O desenvolvimento de uma troca agonal é desencadeado pela expressão de um desacordo, que pode ser marcado de maneira mais ou menos explícita e recair sobre objetos bastante variados, em particular sobre diferentes aspectos da forma, do conteúdo e da legitimidade do discurso do outro.

Enquanto forma de gestão da interação, o comportamento violento ou impolido exerce funções importantes, não devendo ser entendido como uma degenerescência da interação ou como uma ruptura irracional de acordos, contratos ou quadros que subjazem à interação (Coser 1982COSER, Lewis A. 1982. Les fonctions du conflit social. Paris: Presses Universitaires de France., Locher e Bousfield 2008LOCHER, Miriam A.; BOUSFIELD, Derek. 2008. Introduction: impoliteness and power in language. In: LOCHER, Miriam A.; BOUSFIELD, Derek (Orgs.). Impoliteness in language: studies on its interplay with power in theory and practice. Berlim: Mouton de Gruyter.). Desse modo, aquele que se vale de estratégias de impolidez na condução de uma interação pode ter como fim reforçar, reivindicar ou contestar um lugar de poder, expressar insatisfação, revelar habilidades em relação ao uso da linguagem, como ocorre com os insultos rituais estudados por Labov (1972LABOV, William. 1972. Language in the inner city: studies in the black english vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.), ou mesmo provocar humor.

Na busca por sistematizar as funções das estratégias de impolidez, Culpeper (2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.: 220-239) propõe três categorias funcionais: i) impolidez afetiva: o ofensor expressa de maneira irrestrita suas emoções de raiva, ódio ou cólera em contextos onde essa expressão não é esperada e com o fim de revelar que o alvo de seu ataque é a causa de seu estado emocional; ii) impolidez coerciva: o ofensor busca um realinhamento de valores para se beneficiar ou ter seus atuais benefícios reforçados ou protegidos e, por isso, envolve ação coerciva que não é do interesse do alvo do ataque; iii) impolidez para entretenimento: o ofensor transforma o interlocutor em alvo de críticas, chacotas e deboches, com o objetivo de divertir um terceiro. De acordo com Culpeper (2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.), não há uma relação biunívoca entre formas e funções de impolidez, o que significa que uma mesma estratégia de impolidez, como um xingamento, pode, ao mesmo tempo, ser uma forma de expressar ódio (impolidez afetiva) e de obter poder (impolidez coerciva).

Como informado na Introdução, este estudo tem por finalidade verificar em que medida três propriedades estruturais ligadas ao modo como os interactantes escolhem participar da interação podem ser definidoras de interações conflituosas ou polêmicas: a) expansão da interação por meio de contra-proposições e reações negativas, b) ausência de ratificação motivada por falta de acordo e c) abertura de interações (processos de negociação) secundárias. Mais especificamente, nosso intuito é revelar que a presença dessas propriedades em uma interação constitui um indício importante, porque materializado na estrutura do texto, de que essa interação é polêmica, ou seja, de que os interactantes optaram por desenvolver a interação de forma conflituosa. Por isso, o próximo item descreve essas propriedades e seu papel na emergência de interações polêmicas.

2. Algumas propriedades estruturais de interações polêmicas

Como já exposto, as três propriedades estruturais mencionadas ao final do item anterior foram descritas no âmbito da abordagem genebrina para o estudo da organização do discurso (cf. nota 2). Segundo Roulet (1999ROULET, Eddy. 1999. La description de l’organisation du discours: du dialogue au texte. Paris: Didier., 2003ROULET, Eddy. 2003. Une approche modulaire de la problematique des relations de discours. In: MARI, Hugo et al (Orgs.). Análise do discurso em perspectivas. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG: 149-178.), a interação deve ser concebida como um processo de negociação entre interlocutores, processo em que estes iniciam proposições, reagem a elas e as ratificam, como neste diálogo: A: Vamos ao cinema? (proposição), B: Vamos sim! (reação), A: Que ótimo! (ratificação). Com a ratificação, os interlocutores concordam que a interação chegou ao fim e alcançam o duplo acordo (Roulet, Filliettaz e Grobet 2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang.).

Porém, nas interações efetivas, o mais comum é os interlocutores alcançarem o duplo acordo, se este vier a ser alcançado, apenas ao final de muitas contra-proposições e reações negativas. Assim, no exemplo dado, B poderia reagir negativamente ao convite de A para o cinema, dizendo: Não posso ir ao cinema. Preciso estudar. Como resposta a essa reação negativa, o autor do convite poderia elaborar uma contra-proposição (Mas o filme é imperdível!), à qual poderia seguir uma reação positiva de B (Tudo bem! Vamos ao cinema), reação que, finalmente, poderia motivar a ratificação de A: Que ótimo!. Para Roulet, o alcance do duplo acordo está ligado a uma restrição conversacional, que é a restrição de completude dialógica.

Mas o alcance do duplo acordo está ligado ainda a uma outra restrição segundo a qual, para que os interactantes desenvolvam o processo de negociação, cada etapa desse processo (proposição, reação, ratificação) deve ser suficientemente completa e adequada. Essa é a restrição de completude monológica. Assim, se o interlocutor avalia como inadequada a proposição do locutor, ele pode iniciar um processo de negociação secundário, com o fim de torná-la adequada, para só então produzir sua reação. No exemplo dado, uma negociação secundária ocorreria se, após a realização do convite por A (Vamos ao cinema?), B perguntasse: Qual é o filme?. Com a pergunta, B evidenciaria que julgou o convite mal formado ou incompleto, o que o teria impedido de reagir, aceitando ou recusando.

Roulet representa o processo de negociação por meio da Figura 1. A linha superior do esquema representa o processo de negociação principal, que, se se caracterizar por contra-proposições e reações negativas, pode se expandir, o que é indicado pelas setas horizontais. As demais linhas representam a possibilidade de processos de negociação secundários, cuja finalidade é tornar cada etapa do processo suficientemente adequada.

Figura 1
esquema do processo de negociação

Na perspectiva que assumimos neste trabalho, entendemos que o modo como os interactantes desenvolvem o processo de negociação está intimamente ligado à co-construção de imagens identitárias, ou seja, à maneira como os interactantes reivindicam, ameaçam, preservam as faces (imagens do eu) e os territórios (conjunto de informações e direitos que se tenta preservar) (Goffman 1967GOFFMAN, Erving. 1967 [1955]. On face-work: an analysis of ritual elements in social interaction. In: GOFFMAN, Erving. Interaction Ritual: essays on face-to-face behavior. New York: Pantheon Books: 5-45.[1955], 1973). Dessa forma, são três os modos de desenvolvimento do processo de negociação que, a nosso ver, permitem aos interactantes fazerem emergir uma interação polêmica e agressiva para as faces e os territórios em jogo. Uma interação é polêmica quando os interactantes:

  1. expandem a interação por meio de contra-proposições e reações negativas, evidenciando dificuldades em alcançar o duplo acordo, bem como o antagonismo de seus pontos de vista. Nesse caso, essa expansão sinaliza uma ausência, mesmo que momentânea, de “equilíbrio interacional” (Goffman 1973GOFFMAN, Erving. 1973. La mise em scène de la vie quotidienne: les relations em public. v. 2. Paris: Les éditions de minuit.), já que as contra-proposições de um interactante às reações negativas do outro permitem ao primeiro reiterar e explicitar o caráter injustificado ou inaceitável das reações do segundo (Roulet 1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.). Conforme Moeschler (1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.: 171), “insistir pesadamente (...) sobre o caráter injustificado de um comportamento, uma atitude ou uma opinião constitui uma violação tal da restrição do equilíbrio interacional que ela se volta geralmente contra aquele que está em posição de força”. Nesse sentido, expandir uma troca por meio de reiteradas contra-proposições e reações negativas é uma linha de conduta ameaçadora das faces e dos territórios não só daquele cujo comportamento é condenado, mas também daquele que condena;

  2. não alcançam o duplo acordo, ou seja, não atendem à restrição de completude dialógica, o que faz com que a interação não apresente uma ratificação. Para Moeschler (1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.: 112), a toda interação subjazem restrições interacionais que correspondem ao “conjunto dos princípios de natureza social determinando o bom andamento do ritual interacional”, restrições formuladas pelo autor deste modo: “toda conversação obriga seus participantes a satisfazerem os rituais de abertura, de encerramento e de reparação impostos pela obrigação interacional de respeitar o território do outro e de não ameaçar sua face”. Como a ausência de ratificação corresponde à não-satisfação do ritual de encerramento, infere-se que essa ausência constitui, ao mesmo tempo, um desrespeito ao território do outro e uma ameaça à sua face;

  3. abrem processos de negociação secundários, com o fim de revelar e corrigir um problema em dada intervenção. Aquele que inicia uma negociação secundária suspende momentaneamente o desenvolvimento do processo de negociação principal, para revelar a incompletude da intervenção produzida pelo outro. Nesse sentido, essa suspensão possui implicações importantes para as faces e os territórios em jogo. De um lado, quem inicia a negociação revela que a intervenção do outro é ofensiva por violar expectativas (normas) que subjazem à interação. De outro lado, aquele cuja intervenção foi avaliada como inadequada é atacado tanto em sua face, já que percebe ter adotado uma linha de conduta equivocada para a interação, quanto em seu território, já que o interactante que inicia a negociação secundária lhe nega o direito de propor uma direção para a troca (Moeschler 1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.).

Como hipótese, quanto mais recorrentes forem quaisquer dessas propriedades ou todas em conjunto, mais uma interação poderá ser caracterizada como polêmica, violenta ou conflituosa. É o que procuraremos verificar, no item a seguir, com o estudo de um excerto de uma sessão de julgamento do Superior Tribunal Federal.

3. Análise de uma interação polêmica em sessão do Superior Tribunal Federal (STF)

Como exposto na Introdução, analisaremos um excerto de uma sessão do STF que ocorreu em 26 de outubro de 2017. Nessa sessão, o Plenário do STF decidiu ser possível ou constitucional a extinção de Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará (TCM-CE), por meio de emenda constitucional estadual. O julgamento teve como relator o Ministro Marco Aurélio e foi presidido pela Ministra Carmen Lúcia. No excerto escolhido para análise, os interactantes são os Ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, os quais discutem não a (in)constitucionalidade da extinção do TCM-CE, mas a prisão do ex-Ministro José Dirceu. Há ainda intervenções pontuais da Ministra Carmen Lúcia6 6 . A transcrição completa do excerto encontra-se no anexo deste trabalho. As normas de transcrição adotadas foram as do NURC, como apresentadas em Koch (2004: 105-106). No excerto, a numeração indica sua segmentação em atos. O ato é a unidade mínima de análise da abordagem de Roulet (Roulet, Filliettaz e Grobet 2001). No excerto e ao longo da análise realizada nos próximos itens, os interactantes serão referidos pelas siglas: CM (Carmen Lúcia), GM (Gilmar Mendes) e LRB (Luís Roberto Barroso). Informações detalhadas sobre o processo de que a sessão faz parte podem ser consultadas em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5249161>. .

Nos itens a seguir, verificaremos que, do ponto de vista da forma como os ministros conduzem o processo de negociação, o que faz do excerto selecionado uma interação polêmica é a expansão desse processo, que se caracteriza por reações negativas motivando contra-proposições, a ausência de ratificação, decorrente do não-atendimento à restrição de completude dialógica, e ainda a abertura constante de negociações secundárias.

3.1. Expansão do processo de negociação

Como exposto, uma negociação se expande quando o interlocutor reage negativamente à proposição do locutor. Essa reação negativa pode motivar a elaboração de uma nova proposição ou contra-proposição. Se a essa contra-proposição o interlocutor também reage negativamente, o locutor pode insistir, elaborando nova contra-proposição. Por isso, uma interação pode conter número indefinido de contra-proposições e reações. Em interações cotidianas, a reiteração de reações negativas, como, por exemplo, as várias recusas a um convite para ir ao cinema, torna a interação conflituosa, pois aquele que recusa reiteradamente um convite causa danos à face do autor do convite (Oliveira, Cunha e Avelar 2018OLIVEIRA, Ana Larissa Adorno Marciotto; CUNHA, Gustavo Ximenes; AVELAR, Fernanda Teixeira. 2018. Emojis como estratégias de reparo em pedidos de desculpas: um estudo sobre conversas em ambiente digital. Trabalhos em Linguística Aplicada, 57(3): 1643-1663.). Em ambientes formais, como uma sessão de julgamento do STF, a reiteração de reações negativas por parte de um dos interactantes pode ter consequências ainda mais nocivas para a face do outro (Neves 2017NEVES, Daniel Monteiro. 2017. Debates orais no Supremo Tribunal Federal: um modelo de interação polêmica. 409f. Tese (Doutorado em Linguística), Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais.).

No excerto em análise, os atos (01-16) formam a proposição inicial do processo de negociação. Nessa proposição, GM acusa LRB de ter libertado José Dirceu: “(15) vossa excelência quando chegou aqui... (16) éh soltou o Zé Dirceu::...”7 7 . A estrutura interna dessa proposição será analisada adiante, quando estudarmos as negociações secundárias. . Essa acusação constitui o “evento ofensivo” (Bousfield 2007BOUSFIELD, Derek. 2007. Beginnings, middles and ends: a biopsy of the dynamics of impolite exchanges. Journal of Pragmatics, 39: 2185-2216.) que desencadeia a discussão entre os interactantes. A essa acusação LRB reage negativamente, argumentando, para se defender, que José Dirceu foi solto “(17) porque recebeu inDULto do presidente da República...”. Como reações negativas costumam motivar contra-proposições e, consequentemente, a expansão da negociação, GM reelabora sua proposição, reiterando a acusação: “(18) não não não... (19) vossa excelência disse... (20) vossa excelência julgou os embargos infringentes...”. Em todo o restante do excerto, os ministros adotam esta mesma linha de conduta: a acusação de GM sempre recebe como reação a autodefesa de LRB, acompanhada às vezes de acusações, reação à qual se segue a formulação de nova contra-proposição (acusação) de GM.

Essa expansão estrutural se explica, assim, pelo modo como cada interactante responde à intervenção do outro. Culpeper, Bousfield e Wichmann (2003CULPEPER, Jonathan; BOUSFIELD, Derek; WICHMANN, Anne. 2003. Impoliteness revisited: with special reference to dynamic and prosodic aspects. Journal of Pragmatics, 35: 1545-1579.) e Boulsfield (2007) propõem um conjunto de respostas que costumam seguir eventos ofensivos. Aquele que, numa interação, é alvo de evento ofensivo pode responder ou não responder (permanecer em silêncio). Caso opte por responder, ele pode aceitar a ofensa, submetendo-se ao (poder do) outro, ou pode contra-atacar. Se escolher o contra-ataque, esse interactante pode se defender ou ofender o agressor. Como se percebe, as opções de respostas a um evento ofensivo se dispõem segundo uma ordem crescente de agressividade, que vai da opção menos perigosa (o silêncio) até à mais perigosa (contra-ataque ofensivo) para as faces e os territórios.

Na interação em análise, os interactantes optam sempre pelo contra-ataque ou pela elaboração de uma contra-verdade (Roulet 1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.). LRB opta majoritariamente pelo contra-ataque defensivo (“(27) então gostaria de dizer que José Dirceu foi SOLto... (...) (29) por inDULto da presidente da República...”), embora também faça contra-ataques ofensivos (“(24) [é menti/... (25) aliás vossa excelência normalmente não trabalha com a verdade...”), ao passo que GM opta predominantemente pelo contra-ataque ofensivo (“(15) vossa excelência quando chegou aqui... (16) éh soltou o Zé Dirceu::...”)8 8 . A nosso ver, apenas a última intervenção de GM (“(77) he... imagine... he... imagine...”) pode ser interpretada como uma autodefesa, ainda que muito breve e indireta. . Não se verificam, nessa interação, outras categorias de resposta, o que se explica pelo equilíbrio de poderes e status entre os interactantes (Neves 2017NEVES, Daniel Monteiro. 2017. Debates orais no Supremo Tribunal Federal: um modelo de interação polêmica. 409f. Tese (Doutorado em Linguística), Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais.), inviabilizando, por exemplo, o silêncio de um diante da ofensa do outro ou a aceitação da ofensa.

Desde as versões iniciais da abordagem genebrina, a análise do processo de negociação se representa por meio de estruturas hierárquicas em que o processo de negociação completo se materializa na estrutura de troca e as várias proposições, reações e ratificações desse processo se materializam em intervenções e em atos (Roulet, Filliettaz e Grobet 2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang.). As estruturas representam ainda as relações que se estabelecem entre os constituintes do texto, as quais podem ser de dois tipos: ilocucionárias e interativas. As ilocucionárias (iniciativas - pergunta, pedido e asserção - e reativas - resposta e ratificação) ligam os constituintes da troca, enquanto as interativas (argumento, contra-argumento, reformulação, topicalização, sucessão, preparação, comentário, clarificação) ligam os constituintes da intervenção (Roulet, Filliettaz e Grobet 2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang.). Na Figura 2, a estrutura hierárquica representa o processo de negociação do excerto em análise9 9 . Na troca (T), cada intervenção (I) ou ato (A) materializa uma etapa do processo de negociação (proposição, reação, contra-proposição). A primeira intervenção da troca se liga à intervenção seguinte por uma relação iniciativa de informação (IN), enquanto a última intervenção se liga à anterior por uma relação reativa de resposta (RE). Cada intervenção intermediária se liga à anterior por uma relação de resposta e à seguinte por uma relação de informação (IN/RE). Para facilitar a compreensão da troca, acrescentamos as informações entre parênteses sobre o valor ilocucionário específico de cada intervenção (acusação e/ou defesa). .

Figura 2
processo de negociação principal

Essa estrutura evidencia que a marca das interações agonais (Roulet 1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.) e da polêmica (Amossy 2017AMOSSY, Ruth. 2017. Apologia da polêmica. São Paulo: Contexto.) é o antagonismo de opiniões. A reiteração de reações negativas por parte de LRB e de contra-proposições por parte de GM aponta para a dificuldade que ambos experimentam em alcançarem um acordo ou um consenso, o que leva CM, na condição de presidente da sessão, a interromper a discussão. Como revela a Figura 2, entre as trocas de que CM participa e as intervenções produzidas pelos ministros não se verificam elos textuais. Em outros termos, essas trocas não se ligam às intervenções e aos atos que as antecedem e as sucedem por nenhuma relação textual, como, por exemplo, relações de argumento, contra-argumento, clarificação ou comentário. Isso se explica pelo fato de que a finalidade de CM, ao intervir na troca dos ministros, é apenas interrompê-la e não trazer (contra)argumentos para defender um ou outro, comentar passagens da discussão ou pedir esclarecimentos sobre acusações ou defesas. Nesse sentido, essas trocas se ligam às demais passagens da interação por uma relação de natureza acional ou praxiológica que é a relação de interrupção10 10 . Na abordagem de Roulet, as ações que os interactantes realizam (ações mínimas, fases, episódios, transações, incursões) podem se ligar por três tipos de relações: etapa (um objetivo determinado está sendo executado), reorientação (o objetivo em execução foi mal sucedido, o que leva os interactantes a uma reorientação local ou global da interação) e interrupção (o objetivo é momentânea ou definitivamente abandonado) (Roulet, Filliettaz e Grobet 2001, Filliettaz 2004). A análise do modo como os interactantes agem em dado contexto é representada por meio da estrutura praxiológica. Por motivo de espaço e tendo em vista os objetivos deste trabalho, não analisaremos a estrutura praxiológica do excerto. .

A estrutura hierárquica evidencia ainda que a expansão da interação exerce implicações sobre sua classificação enquanto tipo de interação agonal: controvérsia, polêmica ou briga (Roulet 1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.). Até os atos (15-16) (“(15) vossa excelência quando chegou aqui... (16) éh soltou o Zé Dirceu::...”), a interação constitui uma controvérsia, por se caracterizar pela ausência de conotações negativas, pela presença de atos de fala indiretos e pelo uso de termos axiológicos moderados. Mas, a partir desse ponto, que, como exposto, traz o evento ofensivo que desencadeia a discussão, a interação passa a poder ser interpretada como uma polêmica (clara finalidade de desqualificação pública) ou mesmo como uma briga (brevidade e intensidade da disputa, bem como perda de controle verbal dos interactantes, como atestam as trocas de acusações pessoais), ainda que a interação não tenha um caráter privado. Essa modificação de enquadre (Goffman 2012GOFFMAN, Erving. 2012 [1986]. Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise. Petrópolis: Vozes.[1986]) promovida pelos interactantes se explica pela forte intensidade axiológica pejorativa e difamatória que passa a definir sua linha de conduta, à medida que expandem a interação por meio das contra-proposições e reações negativas.

A forma escolhida pelos ministros de participação na interação, expandindo-a, é avaliada negativamente ou como impolida pelos próprios ministros, como evidencia este trecho extraído de uma das reações de LRB:

(1)

LRB: (35) vossa excelência tá queixoso (36) porque perdeu o caso dos precatórios (37) e tá ocupando tempo do plenário com assunto que NÃO é pertinente...

GM: (38) nós escutamos vossa excelência...

LRB: (39) [pra destilar esse Ódio constante que vossa excelência tem (40) e agora o dirige contra o Rio... (41) vossa excelência devia ouvir a última música do Chico Buarque... (42) “a RAIva é filha do medo e MÃE da covardia”... (43) vossa excelência fica destilando ódio o tempo inteiro... (44) não julga... (45) não fala coisas racionais... articuladas... (46) sempre fala coisa contra alguém... (47) tá sempre com ódio de alguém... (48) tá sempre com raiva de alguém... (49) use um argumento... o mérito do argumento...

Nesse trecho, LRB mostra-se ofendido pela linha de conduta adotada por GM, que, ao reiterar sua acusação em várias contra-proposições, estaria violando as normas sociais que regulam uma sessão do STF (“(37) e tá ocupando tempo do plenário com assunto que NÃO é pertinente...”), bem como expressando estado emocional caracterizado pelo ódio e pela raiva (termos em destaque), estado emocional que não seria compatível com a natureza de tal sessão. A autodefesa de LRB ilustra bem a observação de Moeschler (1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.), segundo a qual aquele que insiste sobre o caráter injustificado de um comportamento, no caso GM, viola de tal forma a restrição do equilíbrio interacional que essa violação pode ser prejudicial mais para sua face do que para a face do adversário.

3.2. Ausência de ratificação

Mesmo que os interactantes optem por expandir o processo de negociação, produzindo uma interação polêmica, um deles pode, ao final, ceder e produzir uma ratificação. Assim, a pessoa que recusa um convite várias vezes pode decidir, ao final, aceitá-lo, para evitar maiores danos à face do autor do convite. Da mesma forma, uma pessoa que rechaça reiteradas vezes uma acusação pode, ao final, reconhecer-se parcialmente culpado, para admitir que nenhuma das partes é totalmente isenta de responsabilidade. Com a ratificação, os interactantes alcançam o duplo acordo, atendendo à restrição de completude dialógica, e concordam com o fim da interação. Como se percebe, a ratificação produz um efeito apaziguador para as faces atacadas ao longo de uma interação conflituosa e revela aos combatentes que, apesar do combate travado ao longo do processo de negociação, as fronteiras entre eles não são intransponíveis e que um acordo, mesmo que provisório ou até insincero, é possível.

Porém, não é o que ocorre no excerto em análise, uma vez que o excerto, como revela a Figura 2, não possui uma ratificação. Assim, GM não modifica sua linha de conduta e insiste em elaborar contra-proposições de acusação contra LRB. Com isso, nenhuma das reações de LRB recebe uma ratificação, o que poderia ocorrer se GM, submetendo-se ao oponente (Bousfield 2007BOUSFIELD, Derek. 2007. Beginnings, middles and ends: a biopsy of the dynamics of impolite exchanges. Journal of Pragmatics, 39: 2185-2216.), dissesse algo como: Tudo bem. Aceito suas justificativas. Em interações altamente formais, como a em análise, o locutor que aceita o ponto de vista do outro ataca sua própria face, já que, em interações desse tipo, “escolher o encerramento [da interação] significa renunciar a um ponto de vista anterior, o que, em nossa concepção clássica da racionalidade, é geralmente condenável, enquanto escolher o desenvolvimento [da interação] significa implicar-se no debate e adiar o encerramento” (Moeschler 1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.: 114).

Por isso mesmo, a interação apenas termina quando a presidente da sessão, CM, após duas tentativas fracassadas de interrupção (trocas 50-51 e 53-56), consegue por fim à disputa: “(78) ministro... ministro... eu peço por gentileza... (79) estamos no plenário de um Supremo Tribunal (80) e eu gostaria que... vamos voltar...”. Conforme Bousfield (2007BOUSFIELD, Derek. 2007. Beginnings, middles and ends: a biopsy of the dynamics of impolite exchanges. Journal of Pragmatics, 39: 2185-2216.) e Culpeper (2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.), a intervenção de um terceiro pondo fim à disputa ou empregando estratégias de retaliação é uma consequência possível e esperada nas interações cujos participantes se valem intensamente de estratégias de impolidez coerciva, em que, como vimos, o ofensor busca um realinhamento de valores para se beneficiar ou ter seus atuais benefícios reforçados ou protegidos.

Sem chegar a ser uma estratégia de retaliação, embora o silenciamento dos ministros não deixe de constituir uma intromissão em seus territórios, essa intervenção final de CM é significativa, porque, com ela, a ministra infringe a máxima da quantidade11 11 . “1. Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversação). 2. Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido” (Grice 1982[1975]: 87). , ao dizer o que todos sabem (“(79) estamos no plenário de um Supremo Tribunal”), para implicar que os ministros estão adotando um comportamento que viola as expectativas ou normas acerca do comportamento esperado (polido) em uma sessão de julgamento no STF. Nesse sentido, essa intervenção possui uma natureza metapragmática (Culpeper 2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.) ou, mais propriamente, metainteracional (Moeschler 1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.)12 12 . “[A] negociação metainteracional recai sobre os direitos e as obrigações dos participantes de uma interação. Trata-se de uma negociação visando a colocar o que é requerido, permitido ou proibido de se fazer na interação” (Moeschler 1985: 175). , porque expõe as expectativas que tipicamente regulam uma sessão no STF.

3.3. Negociações secundárias (trocas subordinadas)

O interactante que inicia uma negociação secundária expressa que julgou a intervenção produzida pelo outro como inadequada para o desenvolvimento do processo de negociação. Assim, iniciar negociações secundárias é revelar ao outro que seu comportamento, sua linha de conduta não condiz com o que dele se espera na interação ou com as normas que implicitamente a regulam (Roulet 1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.). Nessa perspectiva, uma negociação secundária constitui uma forma de aquele que a inicia evidenciar ao outro que este violou as expectativas para o encontro e que, por isso, seu comportamento constitui um evento ofensivo (Bousfield 2007BOUSFIELD, Derek. 2007. Beginnings, middles and ends: a biopsy of the dynamics of impolite exchanges. Journal of Pragmatics, 39: 2185-2216.). Ao mesmo tempo, revelar ao outro que seu comportamento foi ofensivo não deixa de ser uma ofensa a ele. Desse modo, o que torna a abertura de negociações secundárias uma estratégia importante de impolidez é o fato de que, com essas negociações, o ofendido, para reparar sua face, torna-se ofensor (Cunha 2017CUNHA, Gustavo Ximenes. 2017. O impacto da dimensão situacional do discurso sobre a articulação textual. Calidoscópio, 15(2): 375-387.).

Na sessão do STF em análise, a abertura de negociações secundárias é recurso bastante explorado por ambos os ministros, mas sobretudo por GM. No fragmento abaixo, que integra a proposição inicial do processo de negociação (atos 01-16), há duas negociações secundárias, a primeira aberta por LRB e a segunda, por GM.

(2)

GM: (01) a prova de que falta criatividade ao administrador é o caso do Rio de Janeiro... (02) gente... citar o Rio de Janeiro como exemplo...

LRB: (03) devem achar que é Mato Grosso...

GM: (04) não não... (05) é o Rio de Janeiro mesmo...

LRB: (06) onde tá todo mundo PREso...

GM: (07) éh ah não... (08) no no Rio não estão...

LRB: (09) não não sim...

Na intervenção formada pelos atos (01-02), GM faz uma crítica indireta ao Rio de Janeiro (“(02) gente... citar o Rio de Janeiro como exemplo...”), estado de origem de LRB. Conforme Bousfield (2007BOUSFIELD, Derek. 2007. Beginnings, middles and ends: a biopsy of the dynamics of impolite exchanges. Journal of Pragmatics, 39: 2185-2216.), a referência a traços identitários dos participantes da interação (idade, gênero, grupo étnico, atributos físicos etc.) pode ser ofensiva e, portanto, desencadeadora de impolidez, tendo em vista a chance de esses traços, em dado contexto, se tornarem fonte de estigmatização (Goffman 1975GOFFMAN, Erving. 1975. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores.). É o que ocorre nesse fragmento. Com o ato (03) (“devem achar que é Mato Grosso...”), LRB evidencia que, de seu ponto de vista, a intervenção de GM com referência pejorativa ao estado do Rio é inadequada ao processo de negociação e sugere que os que defendem a inconstitucionalidade da extinção do TCM-CE se equivocaram, porque exemplo melhor seria o Mato Grosso, estado de origem de GM. Como se percebe, tanto um ministro quanto o outro, ao realizarem asserções sobre seus estados de origem, trocam críticas pessoais indiretas.

Ao evidenciar que a intervenção (01-02) de GM é inadequada para o desenvolvimento do processo de negociação, LRB, com o ato (03), inicia uma negociação secundária ou abre uma troca subordinada, por meio da qual busca reparar o ataque de que foi alvo em (02), atacando o interactante. Nessa troca subordinada, o ato (03) de LRB constitui a proposição, à qual GM reage, dizendo: “(04) não não... (05) é o Rio de Janeiro mesmo...”. Porque a reação de GM é negativa e, além disso, reitera a crítica indireta feita em (02), LRB elabora uma contra-proposição (“(06) onde tá todo mundo PREso...”), na qual o conector onde encadeia não em Rio de Janeiro, mas em Mato Grosso, alvo explícito do ataque de LRB. Por isso, com essa contra-proposição, LRB também reitera a crítica indireta a GM.

Com os atos “(07) éh ah não... (08) no no Rio não estão...”, GM inicia uma negociação secundária, por meio da qual revela que, para ele, a contra-proposição de LRB (“(06) onde tá todo mundo PREso...”) é inadequada para o desenvolvimento do processo de negociação. Com a abertura dessa troca subordinada ao ato (06), GM busca reparar o ataque de que foi alvo nesse ato, ofendendo seu ofensor, que reage dizendo: “(09) não não sim...”. Essa interpretação da forma como os ministros desenvolvem o processo de negociação pode ser representada na Figura 3 13 13 . Troca = T, intervenção = I, ato = A, principal = p, subordinado = s, clarificação = cla, informação = IN, resposta = RE. .

Figura 3
negociações secundárias 1

Apesar de nessa passagem os ataques serem indiretos, o que constitui uma estratégia de polidez (Brown e Levinson 1987BROWN, Penelope; LEVINSON, Stephen. 1983. Politeness: some universals in language use. Cambridge: Cambridge University Press., Kerbrat-Orecchioni 2001KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. 2001. Les actes de langage dans le discours: théorie et functionnement. Paris: Armand Colin.), as aberturas de negociações secundárias são estratégias com que os interactantes constroem conjuntamente um processo de negociação conflituoso, em que cada um busca revelar ao outro e a terceiros (outros ministros e espectadores presentes e à distância) a percepção de que uma ofensa foi cometida e precisa ser reparada. Por isso, na proposição formada pelos atos (01-16), os atos (01-09) entram na composição de uma intervenção cujas informações funcionam como argumentos para GM realizar, pela primeira vez no excerto, esta acusação: “(15) vossa excelência quando chegou aqui... (16) éh soltou o Zé Dirceu::...”, acusação que, como exposto anteriormente, será reiterada pelo ministro em várias contra-proposições.

Como informado, ainda que, no excerto, ambos os ministros se valham da estratégia de iniciar negociações secundárias para se defender e atacar, GM é o interactante que mais recorreu a essa estratégia. Ao longo da interação, ele inicia essas negociações secundárias após reações negativas de LRB, tendo como fim não apenas interromper a autodefesa de LRB, o que por si só já constitui um ataque a seu território (Goffman 1973GOFFMAN, Erving. 1973. La mise em scène de la vie quotidienne: les relations em public. v. 2. Paris: Les éditions de minuit.), mas ainda revelar (a terceiros) que os argumentos de seu interlocutor e, consequentemente, o próprio interlocutor não merecem crédito e que entre eles há uma nítida divergência de pontos de vista. No fragmento abaixo, que integra a intervenção formada pelos atos (24-49) do processo de negociação principal (Figura 2), GM inicia duas negociações secundárias.

(3)

LRB: (27) então gostaria de dizer que José Dirceu foi SOLto...

GM: (28) não não...

LRB: (29) por inDULto da presidente da República...

GM: (30) [vossa excelência julgou...

LRB: (31) não...

GM: (32) vossa excelência julgou (demais)...

A primeira negociação secundária é aberta por GM com o ato (28), por meio do qual ele contesta antecipadamente o argumento que LRB dará na sequência. É como se, com esse ato, GM dissesse: Nem adianta trazer argumentos. Como reação à proposição dessa troca subordinada, LRB insiste em trazer um argumento para justificar a libertação de José Dirceu: “(29) por inDULto da presidente da República...”. Por isso, os atos (28-29) formam uma troca subordinada com função de argumento em relação ao ato (27).

Com o ato (30) (“[vossa excelência julgou...”), GM inicia outra negociação secundária, com a qual evidencia que, para ele, a autodefesa de LRB expressa nos atos (27-29) é inadequada, já que, se “vossa excelência julgou...”, não pode, então, se eximir de responsabilidade pela libertação de José Dirceu. Com a abertura dessa troca, GM busca revelar que a autodefesa de LRB é inaceitável e ofensiva, por trazer um argumento que ele, GM, não considera legítimo, verdadeiro ou adequado. À proposição dessa troca subordinada LRB reage negativamente: “(31) não...”. Essa reação negativa motiva uma contra-proposição de GM em que reafirma a crítica feita em (30): “(32) vossa excelência julgou (demais)...”. Essa análise pode ser representada na Figura 4 14 14 . Troca = T, intervenção = I, ato = A, principal = p, subordinado = s, clarificação = cla, argumento = arg, informação = IN, resposta = RE. .

Figura 4
negociações secundárias 2

A nosso ver, no excerto em análise, a abertura recorrente de processos de negociação secundários é a principal característica da linha de conduta de GM que leva LRB, em passagem já citada anteriormente (excerto 1), a avaliar o comportamento do interlocutor como o de alguém cujo estado emocional se define pelo ódio e pela raiva. A recorrência dessa propriedade estrutural ainda contribui fortemente, como já exposto, para o reenquadramento da interação, que passa, nos termos de Roulet (1989ROULET, Eddy. 1989. Une forme peu étudiée d’échange agonal: la controverse. Cahiers de praxématique, 13: 7-18.), da controvérsia, até o ato (16), para a polêmica e para a briga, no restante do excerto.

Considerações finais

Neste trabalho, nosso intuito foi o de evidenciar que o modo como os interactantes escolhem desenvolver o processo de negociação, por estruturar o discurso, fornece indicações preciosas acerca da natureza mais ou menos polêmica, violenta ou impolida da interação. Como se verificou com as análises de um excerto de uma sessão do STF, uma interação torna-se polêmica quando os interactantes a) a expandem por meio de contra-proposições e reações negativas, b) não elaboram uma ratificação e c) iniciam negociações secundárias. Além da função geral de tornar a interação polêmica, cada uma dessas propriedades estruturais auxilia os interactantes a alcançarem determinados efeitos, funcionando como estratégias de impolidez coerciva e afetiva (Culpeper 2011CULPEPER, Jonathan. 2011. Impoliteness: using language to cause offense. Cambridge: Cambridge University Press.).

Assim, a expansão da troca por meio de contra-proposições e reações negativas permite a cada interactante tentar, com as contra-proposições, perpetrar ataques à face do outro (atribuição de valores sociais negativos) e, com as reações negativas, reparar ataques à própria face (reivindicação de valores sociais positivos). Essa expansão reflete, assim, a existência de um antagonismo forte entre os interactantes, que, agindo desse modo, buscam um realinhamento de valores que seja favorável para um e desfavorável para o outro.

Já a ausência de ratificação contribui para eliminar ou enfraquecer vínculos de proximidade entre os interactantes. Por isso, reforça o antagonismo entre eles e entre os (sub)grupos que representam. Assim, essa ausência evidencia, mesmo que implicitamente, a existência de um conflito e a impossibilidade de um (duplo) acordo entre os interactantes.

Por fim, com a abertura de negociações secundárias, um interactante pode, ao mesmo tempo, perpetrar ataques à face do outro e reparar ataques à própria face, já que com essas negociações o ofendido torna-se ofensor. Além disso, um interactante pode usar essa estratégia para reivindicar poder (autoridade) sobre o outro e sobre o (sub)grupo que este representa, ao passo que o outro pode acusar aquele que utiliza essa estratégia de estar dominado pelas emoções de ódio, raiva, cólera etc.

Ao lado de uma análise centrada em aspectos lexicais, sintáticos e prosódicos do discurso, aspectos para os quais a tradição dos estudos sobre im/polidez sempre dedicou atenção especial (cf. Culpeper e Terkourafi 2017CULPEPER, Jonathan; TERKOURAFI, Marina. 2017. Pragmatic approaches (im)politeness. In: CULPEPER, Jonathan; HAUGH, Michael; KÁDÁR, Dániel (Eds.). The Palgrave Handbook of Linguistic (Im)politeness. London: Palgrave: 11-38.), a análise do processo de negociação, tal como a que realizamos neste estudo, fornece meios para se chegar a uma explicação mais concreta e a uma descrição menos intuitiva, porque baseada na estrutura do texto, de propriedades que tornam uma interação polêmica, conflituosa ou impolida, bem como das funções que essas propriedades podem exercer na interação.

Referências

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  • “ŽIZEK, Slavoj. 2014. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo.”
  • 2
    . Apresentações dos pressupostos que caracterizam a perspectiva interacionista da Análise do Discurso encontram-se em Kerbrat-Orecchioni (1992KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. 1992. Les interactions verbales. Paris: Armand Colin.), Roulet, Filliettaz e Grobet (2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang., cap. 1) e Vion (1992VION, Robert. 1992. La communication verbale: analyse des interactions. Paris: Hachette.).
  • 3
    . Essa abordagem da organização do discurso se desenvolveu em torno de Eddy Roulet, na Universidade de Genebra. Surgindo no final dos anos 1970 com a finalidade de descrever a articulação dos atos de fala na estrutura de discursos autênticos (não fabricados pelo próprio pesquisador) (Roulet et al 1985ROULET, Eddy et al. 1985. L’articulation du discours en français contemporain. Berne: Lang.), essa abordagem incorpora contribuições de pesquisadores que se centraram em aspectos isolados da organização do discurso, para descrever, por meio de uma metodologia modular de análise, essa organização como sendo o resultado da combinação de informações de três dimensões: linguística, textual e situacional (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang.).
  • 4
    . Para um estudo aprofundado do Superior Tribunal Federal, bem como do papel da linguagem em suas sessões de julgamento, cf. Neves (2017NEVES, Daniel Monteiro. 2017. Debates orais no Supremo Tribunal Federal: um modelo de interação polêmica. 409f. Tese (Doutorado em Linguística), Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais.).
  • 5
    . Na busca por definir o modo como a argumentação modela e atravessa os diversos gêneros do discurso, Amossy (2008) propõe a noção de modalidades argumentativas ou “modalidades do empreendimento da persuasão”. A autora propõe estas categorias de modalidades: demonstrativa, patética, pedagógica, de co-construção, negociada e polêmica.
  • 6
    . A transcrição completa do excerto encontra-se no anexo deste trabalho. As normas de transcrição adotadas foram as do NURC, como apresentadas em Koch (2004KOCH, Ingedore G. Villaça. 2004. Introdução à Linguística Textual. São Paulo: Martins Fontes.: 105-106). No excerto, a numeração indica sua segmentação em atos. O ato é a unidade mínima de análise da abordagem de Roulet (Roulet, Filliettaz e Grobet 2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang.). No excerto e ao longo da análise realizada nos próximos itens, os interactantes serão referidos pelas siglas: CM (Carmen Lúcia), GM (Gilmar Mendes) e LRB (Luís Roberto Barroso). Informações detalhadas sobre o processo de que a sessão faz parte podem ser consultadas em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5249161>.
  • 7
    . A estrutura interna dessa proposição será analisada adiante, quando estudarmos as negociações secundárias.
  • 8
    . A nosso ver, apenas a última intervenção de GM (“(77) he... imagine... he... imagine...”) pode ser interpretada como uma autodefesa, ainda que muito breve e indireta.
  • 9
    . Na troca (T), cada intervenção (I) ou ato (A) materializa uma etapa do processo de negociação (proposição, reação, contra-proposição). A primeira intervenção da troca se liga à intervenção seguinte por uma relação iniciativa de informação (IN), enquanto a última intervenção se liga à anterior por uma relação reativa de resposta (RE). Cada intervenção intermediária se liga à anterior por uma relação de resposta e à seguinte por uma relação de informação (IN/RE). Para facilitar a compreensão da troca, acrescentamos as informações entre parênteses sobre o valor ilocucionário específico de cada intervenção (acusação e/ou defesa).
  • 10
    . Na abordagem de Roulet, as ações que os interactantes realizam (ações mínimas, fases, episódios, transações, incursões) podem se ligar por três tipos de relações: etapa (um objetivo determinado está sendo executado), reorientação (o objetivo em execução foi mal sucedido, o que leva os interactantes a uma reorientação local ou global da interação) e interrupção (o objetivo é momentânea ou definitivamente abandonado) (Roulet, Filliettaz e Grobet 2001ROULET, Eddy; FILLIETTAZ, Laurent; GROBET, Anne. 2001. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang., Filliettaz 2004FILLIETTAZ, Laurent. 2004. Négociation, textualisation et action: le concept de négociation dans le modèle genevois de l’organisation du discours. In: GROSJEAN, Mireille; MONDADA, Lorenza (Eds.). La négociation au travail. Lyon: Presses universitaires de Lyon: 69-96.). A análise do modo como os interactantes agem em dado contexto é representada por meio da estrutura praxiológica. Por motivo de espaço e tendo em vista os objetivos deste trabalho, não analisaremos a estrutura praxiológica do excerto.
  • 11
    . “1. Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversação). 2. Não faça sua contribuição mais informativa do que é requerido” (Grice 1982GRICE, Herbert Paul. 1982 [1975]. Lógica e conversação. In: DASCAL, Marcelo. Fundamentos metodológicos da Linguística. v. 4. Campinas: Editora da UNICAMP: 81-103.[1975]: 87).
  • 12
    . “[A] negociação metainteracional recai sobre os direitos e as obrigações dos participantes de uma interação. Trata-se de uma negociação visando a colocar o que é requerido, permitido ou proibido de se fazer na interação” (Moeschler 1985MOESCHLER, Jacques. 1985. Argumentation et conversation: éléments pour une analyse pragmatique du discours. Paris: Hatier-Credif.: 175).
  • 13
    . Troca = T, intervenção = I, ato = A, principal = p, subordinado = s, clarificação = cla, informação = IN, resposta = RE.
  • 14
    . Troca = T, intervenção = I, ato = A, principal = p, subordinado = s, clarificação = cla, argumento = arg, informação = IN, resposta = RE.

ANEXO

GM: (01) a prova de que falta criatividade ao administrador é o caso do Rio de Janeiro... (02) gente... citar o Rio de Janeiro como exemplo...

LRB: (03) devem achar que é Mato Grosso...

GM: (04) não não... (05) é o Rio de Janeiro mesmo...

LRB: (06) onde tá todo mundo PREso...

GM: (07) éh ah não... (08) no no Rio não estão...

LRB: (09) não não sim... (10) aliás nós prendemos... (11) tem gente que solta...

GM: (12) veja veja o caso... (13) solta cumprindo... a... Constituição... (14) quem gosta de prender? (15) vossa excelência quando chegou aqui... (16) éh soltou o Zé Dirceu::...

LRB: (17) porque recebeu inDULto do presidente da República...

GM: (18) não não não... (19) vossa excelência disse... (20) vossa excelência julgou os embargos infringentes...

LRB: (21) absolutamente... é mentira...

GM: (22) [não:::... (23) vossa excelência dizia que o mensalão...

LRB: (24) [é menti/... (25) aliás vossa excelência normalmente não trabalha com a verdade...

GM: (26) [eh... eh...

LRB: (27) então gostaria de dizer que José Dirceu foi SOLto...

GM: (28) não não...

LRB: (29) por inDULto da presidente da República...

GM: (30) [vossa excelência julgou...

LRB: (31) não...

GM: (32) vossa excelência julgou (demais)...

LRB: (33) e vossa excelência tá fazendo um comício que não tem nada que ver com extinção de tribunal de contas no CeaRÁ...

GM: (34) tem... tem sim...

LRB: (35) vossa excelência tá queixoso (36) porque perdeu o caso dos precatórios (37) e tá ocupando tempo do plenário com assunto que NÃO é pertinente...

GM: (38) nós escutamos vossa excelência...

LRB: (39) [pra destilar esse Ódio constante que vossa excelência tem (40) e agora o dirige contra o Rio... (41) vossa excelência devia ouvir a última música do Chico Buarque... (42) “a RAIva é filha do medo e MÃE da covardia”... (43) vossa excelência fica destilando ódio o tempo inteiro... (44) não julga... (45) não fala coisas racionais... articuladas... (46) sempre fala coisa contra alguém... (47) tá sempre com ódio de alguém... (48) tá sempre com raiva de alguém... (49) use um argumento... o mérito do argumento...

CL: (50) [ministros... [eu pediria que a gente voltasse... ah... voltasse... ao julgamento do caso... por favor...

GM: (51) [mas eu vou voltar... vou voltar... (52) só... eu só queria lembrar que os embargos infringentes do José Dirceu foram decididos aqui com...

CL: (53) ministro... se pudesse...

GM: (54) uhn...

CL: (55) voltar ao caso do Tribunal de Contas... (56) este... este é o caso em julgamento...

GM: (57) e se dizia que o mensalão era caso fora da curva...

LRB: (58) Zé Dirceu permaneceu preso... sob minha jurisdição... (59) inclusive recorri à prisão domiciliar (60) porque achei imprópria... (61) e concedi a ele indulto com base no decreto... eh... aprovado pela presidente da República... (62) porque ninguém é melhor nem pior do que ninGUÉM... (63) e portanto apliquei a ele a lei que vale para todo mundo... (64) quem decidiu foi o Supremo... (65) aliás não fui EU... (66) porque o Supremo tem onze ministros... (67) e portanto a maioria entendeu

GM: (68) [o senhor não venha... o senhor não venha...

LRB: (69) que não havia o crime... (70) e depois ele cumpriu a pena... (71) e só foi SOLto... por inDULto... (72) e mesmo assim permaneceu preso... (73) porque estava preso por determinação da 13ª Vara Criminal de Curitiba... (74) e agora só está solto (75) porque a SeGUNda turma determinou que ele fosse solto... (76) portanto... não transfira pra mim esta parceria que vossa excelência tem com a leniÊNcia em relação à criminalidade do colarinho branco...

GM: (77) he... imagine... he... imagine...

CL: (78) ministro... ministro... eu peço por gentileza... (79) estamos no plenário de um Supremo Tribunal (80) e eu gostaria que... vamos voltar...

(https://www.youtube.com/watch?v=ROzEZyf6EAk, TV Justiça. Normas de transcrição: NURC.)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2018
  • Aceito
    24 Mar 2019
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