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Leitura e compreensão de imagens táteis por estudante cego congênito: estudo de caso

Reading and comprehension of tactual images by congenital blind student: a case study

RESUMO

Este trabalho se propôs a apreender como cegos congênitos compreendem imagens a partir de recursos táteis. Para alcançar este objetivo, aporta-se na perspectiva histórico-cultural de Lev Vigotski. Participou da pesquisa um estudante cego congênito. O caminho metodológico caracterizou-se pela realização de cinco entrevistas: uma entrevista inicial, outra após a leitura de cada material e uma entrevista final e sessões de leitura que foram realizadas com um total de três imagens adaptadas com recursos táteis: em relevo, em 3D e pontilhado. Como proposta de análise para as entrevistas com o participante foram utilizados os Núcleos de Significação e para a análise das leituras de imagens adaptadas, foram utilizadas categorias baseadas nas teorias de Jolly (2007) e Santaella (2012Santaella, L. (2012). Leitura de Imagens. Editora Melhoramentos.). Os achados apontam para a influência da história do sujeito como leitor e seu conhecimento prévio sobre a compreensão das imagens táteis nos momentos de leitura, bem como as experiências anteriores com adaptações táteis. O material pontilhado foi aquele apontado como o que proporciona melhor leitura, enquanto o material em alto relevo, foi identificado como o mais difícil de realizar a leitura tátil.

Palavras-chave:
Cegueira; Leitura; Imagens táteis

ABSTRACT

This work aimed to learn how congenital blind people understand images from tactile resources. To achieve this goal, it is based on Lev Vigotski’s historical-cultural perspective. A congenitally blind student participated in the research. The methodological path was characterized by five interviews: an initial interview, another after reading each adapted material, and a final interview and reading sessions were carried out with a total of three images adapted with tactile resources - with embossed image; with 3D image; and with dotted image. As a proposal for data analysis, the Nuclei of Meaning perspective for interviews with participant, and for the analysis of adapted image readings, theoretical categories on image reading were used based on the theories of Jolly (2007) and Santaella (2012Santaella, L. (2012). Leitura de Imagens. Editora Melhoramentos.). The findings point out the influence of the subject’s history as a reader and his previous knowledge on the understanding of tactile images in the moments of reading, as well as previous experiences with tactile adaptations. The material in stippling, which was that the subjects pointed out as the one that provides the best reading, while the material with embossed images, was identified as the most difficult to perform the reading through touch.

Keywords:
Blindness; Reading; Tactile Images

1. Introdução

A importância de compreender as imagens no mundo atual está, principalmente, na aquisição de novos conceitos e acesso a diferentes formas culturais produzidas e transmitidas pelo homem, sendo necessário que se ensine e se aprenda a lê-las.

Inegavelmente, por conta da deficiência visual, como comenta Amiralian (1997Amiralian, M. L. T. M. (1997). Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estórias. Casa do Psicólogo.), a pessoa cega pode não apreender contornos, conceitos e sentidos de forma visual, mas, neste caso, acontecerá uma transformação no acesso sensorial da imagem, portanto, ela poderia utilizar outras formas para apreender conceitos ou características ligadas à compreensão imediata de diferentes aspectos presentes nas imagens como: ambiente, forma, tamanho, espaço, posição relativa e cor. Apesar dos aspectos biológicos da deficiência, é possível ao cego ler imagens com as devidas adaptações e adequações, usando outros sentidos como acesso à imagem. Dizendo de outra forma, apesar de não possuir o sentido da visão, o cego pode, por meio da diversidade sensorial, conhecer formas, tamanhos, ambientes e espaços através de uma abordagem multissensorial que irá favorecer o desenvolvimento dos processos superiores.

Na visão sócio-histórica de Vigotski (2012Vigotski, L. S. (2012). Obras Escogidas V: Fundamentos de defectologia. Machado Libros.), a criança cega adquire conceitos, assim como os enxergantes3 3 Optamos por usar o termo enxergantes no lugar de videntes, baseado no que diz Vigata (2016) para evitar qualquer tipo de conotações indevidas, que podem ser interpretadas, erroneamente ou inocentemente, como superioridade dos que enxergam. , mas essa função cultural é garantida por um aparato psicofisiológico completamente diferente das pessoas sem deficiência, a partir de caminhos alternativos. Para ele, a educação surge em auxílio na criação de técnicas artificiais, culturais, de um sistema especial de signos ou símbolos culturais adaptados às peculiaridades da organização psicofisiológica da criança com deficiência.

Surge, então, as seguintes questões: como se dá compreensão de imagens por cegos congênitos ao utilizar recursos táteis? Quais as estratégias utilizadas pela pessoa cega ao realizar a leitura de imagens táteis? Assim, esta pesquisa tem como objetivo geral compreender como o cego congênito compreende imagens a partir de recursos táteis, apresentando em tela um estudo de caso.

2. O pensamento não se exprime na palavra, mas nela se realiza

Com o propósito de embasar a pesquisa, nesse momento serão apresentados autores e teorias que sustentam o debate sobre a leitura de imagem e adaptações para cegos e a teoria sócio-histórico de Vigotski, incluindo os Fundamentos da Defectologia do mesmo autor.

Em sua teoria do desenvolvimento, neste caso voltada para as pessoas com deficiência, Vigotski (2012Vigotski, L. S. (2012). Obras Escogidas V: Fundamentos de defectologia. Machado Libros.) apresenta o conceito de caminhos alternativos do desenvolvimento, aqueles que podem ser percorridos usando outros sentidos preservados. Outro conceito apresentado é o de compensação, elencando como pressuposto básico de que a compensação não é um fenômeno biológico, como, por exemplo, costuma-se pensar a respeito das pessoas com deficiência visual como possuidoras de uma audição mais acurada, que naturalmente se desenvolve para compensar a deficiência visual. Para Vigostski (2011Vigotski, L. (2011). A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Educação e Pesquisa, 37(4), 863-869.), a compensação é de âmbito social, ou seja, refere-se à noção de superação de limitações com base em instrumentos, estratégias e meios para compensar a deficiência, o que seria realizado através de caminhos indiretos - formas diferentes de aprender, utilizando caminhos não-esperados - que podem ser empregados no desenvolvimento e aprendizagem da pessoa com deficiência. No caso da leitura de imagens por cegos, por exemplo, isso é possível ao se adaptar imagens essencialmente visuais para o acesso dessas pessoas de forma tátil, entendendo também que há o acesso por via auditiva, como no caso da audiodescrição de imagens, a qual não será discutida nesta pesquisa.

Diferentes pesquisadores (e.g. Nuernberg, 2010Nuernberg, A. H. (2010). Ilustrações táteis bidimensionais em livros infantis: considerações acerca de sua construção no contexto da educação de crianças com deficiência visual. Revista de Educação Especial, 23 (36), 131-144.; Almeida, Carijó & Kastrup, 2010Almeida, A. C.; Carijó, F. & Kastrup, V. (2010). Por uma estética tátil: sobre a adaptação de obras de artes plásticas para deficientes visuais. Fractal: Revista de Psicologia, 22 (1), 85-100.; Duarte, 2010Duarte, M. L. B. (2010). A possibilidade de produção e leitura de desenhos tátil-visuais por crianças e adolescentes cegos. Revista Brasileira de Tradução Visual, 5, 1-14.; Lima, 2004Lima, F. J. (2004). Ensinando reconhecer desenhos pelo tato: o efeito do treino no desempenho de pessoas cegas na nomeação de figuras examinadas hapticamente. Anais do Educere., 2011Lima, F. J. (2011). Breve Revisão no campo de pesquisa sobre a capacidade de a pessoa com deficiência visual reconhecer desenhos hapticamente. Revista Brasileira de Tradução Visual, 6 (6).; Silva, 2015; Kastrup, 2015Kastrup, V. (2015). O tátil e o háptico na experiência estética: considerações sobre arte e cegueira. Revista Trágica, 8 (3), 69-85.; Kohler & Foerste, 2014Kohler, A. D., & Foerste, G. M. S. (2014). As imagens na visão do cego: experiências de quem vê com o corpo. Pró-Discente, 20 (2).) abordaram diversas formas de apresentar imagens a pessoas cegas, estudando, sob ângulos díspares, como garantir a acessibilidade de conteúdos visuais - táteis ou não - a esses sujeitos.

Deste modo, destaca-se a importância de tornar acessível materiais visuais a pessoas cegas, compreendendo quais estratégias utilizam ao realizar a leitura de imagens e, consequentemente, possibilitando o seu acesso aos bens culturais construídos como leitor e participante da cultura visual - aquela que se tem acesso através do sentido da visão. Entende-se que este acesso à cultura imagética e sua bagagem social são pontos chaves na autorregulação dos processos psicológicos, pois, como comenta Vigotski (2010Vigotski, L. S. (2010). A Construção do Pensamento e da Linguagem. Editora WMF.), as funções psicológicas superiores, que permitem esta autorregulação, têm sua gênese nas trocas sociais mediadas pela cultura. Além disso, as pessoas cegas poderão ter maior acesso ao mundo imagético, utilizando diferentes recursos táteis adaptados adequadamente às suas necessidades de leitores.

Vigotski (2012Vigotski, L. S. (2012). Obras Escogidas V: Fundamentos de defectologia. Machado Libros.) aponta que as pessoas que nascem cegas não sofrem diretamente a experiência da perda, mas, habitando um mundo cujos códigos sociais e demais parâmetros utilizados na vida diária são, na maioria das vezes, visuais, não tardam a ter a experiência da deficiência, tornando-a social. Ademais, a plenitude de suas vidas e a amplitude de seus territórios existenciais dependem bastante dos cuidados e da estimulação que recebem, bem como das oportunidades que lhes são oferecidas, nesse caso, entende-se que a leitura da imagem seria mais uma possibilidade de desenvolvimento.

De fato, a perspectiva quantitativa e positivista da deficiência percebe a condição do cego como a falta da experiência com o mundo visual, reduzindo o sujeito apenas à falta de visão. Por outro lado, Vigotski (2012Vigotski, L. S. (2012). Obras Escogidas V: Fundamentos de defectologia. Machado Libros.) aborda o desenvolvimento da pessoa cega de forma qualitativa com um olhar justamente sobre o desenvolvimento no contexto da deficiência visual, para ele, essa condição será de fato reestruturante de todo o desenvolvimento e das funções psicológicas que assumirão uma função distinta quando comparada com os sujeitos enxergantes.

No âmbito educacional, deve-se entender que o objetivo da educação de pessoas com deficiência visual deve ser o mesmo das pessoas enxergantes. A escola é o lugar do aprendizado intencional da leitura e dentre elas, a leitura de imagens, objeto cultural presente no cotidiano escolar e social, portanto, devem-se garantir as mediações necessárias, adequando-se as estratégias e os recursos no sentido de atingir os caminhos indiretos, para que, enfim, o aluno cego possa ter acesso ao mundo visual de outras formas, como é o caso da significação das imagens.

Santaella (2012Santaella, L. (2012). Leitura de Imagens. Editora Melhoramentos.) e Joly (2009Joly, M. (2009). Introdução à análise da imagem. Papirus.), autoras escolhidas para embasar a discussão teórico-metodológica da imagem, compartilham em seus escritos a afinidade com a teoria semiótica, assim, entendem a imagem como um conjunto de signos, alicerçadas na teoria do signo de Peirce (1978Peirce, C. S. (1978). Écrits sur le signe. Seuil.).

A escolha das autoras em apoiar-se na semiótica peirciana se dá pelo motivo desta perspectiva se amparar na significação da imagem e não em critérios unicamente estéticos, considerando que o estudo em seu aspecto semiótico se relaciona à produção de sentidos, ou seja, como estabelecem significações e interpretações. Além disso, a semiótica permite o esboço de uma trajetória “metodológica-analítica” que contempla as questões relacionadas às diferentes manifestações que as imagens possuem e ainda aos processos de que se referem ou se aplicam, assim como, aos modos que os leitores recebem e compreendem as imagens.

Santaella (2012Santaella, L. (2012). Leitura de Imagens. Editora Melhoramentos., p. 11) defende que a imagem pode e deve ser lida, o que é tomado como base para as discussões sobre leitura de imagens nesta pesquisa. Para esta autora, ler não é somente seguir a ordem das letras em uma palavra, vai além “desde os livros ilustrados e, depois, com os jornais e revistas o ato de ler passou a não se limitar apenas a decifração de letras, mas veio incorporando cada vez mais, as relações entre palavra e imagem”. A autora afirma, ainda, que existe uma expressão na língua inglesa que pode ser utilizada para identificar a leitura de imagens, que seria a visual literacy, e que leitor não é somente o que lê livros mas também aqueles que leem imagens, pois há uma multiplicidade de tipos de leitores.

Para Joly (2009Joly, M. (2009). Introdução à análise da imagem. Papirus.), a imagem não é apenas visual, mas corresponde de fato ao que representa visualmente. Enquanto para Santaella (2012Santaella, L. (2012). Leitura de Imagens. Editora Melhoramentos., p. 13), ler imagens significa “desenvolver a observação de seus aspectos e traços constitutivos, detectar o que se produz no interior da própria imagem, sem fugir dos pensamentos que nada tem a ver com ela”. Joly (2009Joly, M. (2009). Introdução à análise da imagem. Papirus.) não traz a denominação “leitura”, usando “análise” para indicar esse momento, além de enaltecer o aspecto interior do leitor da imagem e seu contexto.

3. Método

Participou do estudo um aluno cego, nomeado nesta pesquisa, de maneira fictícia, como Bruno, matriculado nos anos finais do Ensino Fundamental (Fase IV), modalidade EJA, turno noturno, de uma escola pública estadual em Recife, Pernambuco.

Essa pesquisa assume a perspectiva de estudo de caso, que, permite, conforme Gil (2007, p. 54), “o objeto estudado tenha preservada sua unidade, mesmo que ele se entrelace com o contexto onde está inserido; que sejam formuladas hipóteses e teorias; e permite a explicação de variáveis em situações ainda que complexas”.

A construção dos dados foi realizada em dois momentos diferentes, seguindo a mesma ordem de apresentação dos materiais, a fim de compreender como o participante realizou a leitura das imagens táteis neste contexto, de forma individualizada, sem interferências de outros mediadores que não fosse a pesquisadora e que eles poderiam naturalmente desvelar suas impressões sobre a experiência.

O Material Adaptado 1 (MA1), em relevo, adaptado pelo software Cura ® que organiza a imagem digital para a produção em uma impressora 3D, surge da adaptação da imagem que representa o Ciclo da Água. Enquanto que o Material Adaptado 2 (MA2), em 3D, surge da adaptação da imagem que ilustra o coração humano e o Material Adaptado 3 (MA3), pontilhado, foi adaptado usando o software Monet ®, gerador de gráficos táteis.

No primeiro encontro, no começo da sessão, foi realizada a Entrevista Inicial e, depois, a primeira Situação de Leitura de Imagem. O processo de apresentação e leitura foi videogravado a fim de melhor compreender quais percursos o aluno realizou para ler a imagem, além de suas inferências vocalizadas ou questionamentos que surgiram durante a manipulação do material.

A imagem base para o MA1 foi a ilustração do livro didático de Ciências: colorida e retangular, representa o Ciclo da Água. Para o MA2 foi a ilustração colorida do coração humano na posição anterior, pertencente ao livro didático de Ciências e para o MA3 foi a ilustração de uma planta, com um fino caule e poucas folhas está representada acima da terra, suas raízes abaixo.

A pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), de acordo com a Resolução CNS 466/12 e aprovada, tendo como número CAAE 22292619.5.0000.5208.

Os textos produzidos pela transcrição das entrevistas (inicial, final e após leituras dos materiais) passaram por uma análise baseada nos Núcleos de Significação, de Aguiar e Ozella (2006Aguiar, W. M. J., & Ozella, S. (2006). Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição de sentidos. Psicologia Ciência e Profissão, 26 (2), 22-245.; 2013Aguiar, W. M. J., & Ozella, S. (2013). Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 94 (236).), que está fundamentada na Teoria Histórico-Cultural de Vigotski. E a produção de leitura dos materiais táteis foi analisada dentro de categorias adaptadas de acordo com as teorias de Joly (2009Joly, M. (2009). Introdução à análise da imagem. Papirus.) e Santaella (2012Santaella, L. (2012). Leitura de Imagens. Editora Melhoramentos.).

4. Resultados

Bruno é um adolescente de 17 anos e está matriculado na Fase IV ano da EJA, que corresponde ao 8º ano do ensino regular do Ensino Fundamental. Entrou na escola tardiamente, aos 11 anos. Foi diagnosticado com a perda total da visão aos 6 meses de idade e desde os 2 anos de idade recebe o benefício da previdência social para pessoas com deficiência. A causa da deficiência visual é desconhecida, mas a mãe relata que ele nasceu prematuro e passou alguns dias na Unidade de Terapia Intensiva. É acompanhado por um professor brailista e é frequentador assíduo da Sala de Recursos Multifuncionais.

A entrevista inicial realizada teve como objetivo conhecer as concepções e práticas de leitura de textos e imagens pelo sujeito. Após a transcrição literal, realizou-se uma leitura flutuante e exaustiva da entrevista e, posteriormente, um levantamento dos assuntos que se destacaram em suas respostas, os quais foram expressos através do discurso e que se revelaram em 16 pré-indicadores, Após essa fase inicial, os pré-indicadores foram sistematizados em indicadores e conteúdos temáticos para apresentarem a essência dos tópicos expressadas pelo sujeito, de acordo com critérios de semelhança, complementaridade e contraposição (Aguiar & Ozella, 2013Aguiar, W. M. J., & Ozella, S. (2013). Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 94 (236).).

Após a estruturação dos indicadores e conteúdos temáticos, passou-se para a próxima etapa, com a realização da sistematização que geraram os Núcleos de Significação, a partir da relação dos indicadores, ponderando novamente sobre os critérios de semelhança, complementaridade e contraposição. Os dois Núcleos de Significação resultantes da construção e análise de indicadores e pré-indicadores foram: “Que pelo menos a gente possa entender como é aquilo que o professor tá falando” e “O importante é isso tem que ter alguma percepção com o tato”

A partir daqui cada núcleo será analisado da seguinte forma: primeiro individualmente, o que se denomina análise intranúcleo e, posteriormente, será articulado com o outro núcleo de significação, dessa vez, no processo denominado análise internúcleos. Tendo isso em consideração, seguem as análises e discussões dos dois Núcleos referentes à Entrevista Inicial de Bruno.

Núcleo 1 - “Que pelo menos a gente possa entender como é aquilo que o professor tá falando”

Percebemos que Bruno teve uma aprendizagem tardia do sistema Braille, que ocorreu somente aos 11 anos de idade, pouco tempo antes de entrar na escola, através de uma ação social. Inferimos que o retardo no ingresso à escola na idade apropriada e ao aprendizado do braile pode ter como base o pouco conhecimento da família sobre as especificidades do aprendizado da criança cega, bem como na esperança dessa família acerca da “normalização da visão” de Bruno com a consequente falta de tentativa de inclusão e acesso à escola.

Ao responder de que forma realiza a leitura, Bruno imediatamente responde “pelo tato”, porém, em seguida, declara que a sua vida como leitor é caracterizada, sobretudo, pelo uso da tecnologia dos computadores e leitores de tela. Sabemos da importância para a pessoa cega do contato e uso do sistema tátil, bem como do desenvolvimento do sistema háptico, para a inserção social, independência e autonomia dessa pessoa, como indicativo de alfabetização. O uso do tato, nas diversas atividades de vida, apresenta um espectro de acesso, através da experiência social, aos diferentes conhecimentos, acarretando um maior desenvolvimento cognitivo. Portanto, “ler com a mão como faz uma criança cega e ler com a vista são processos psicológicos diferentes, ainda que cumpram a mesma função cultural na conduta da criança e tenham, basicamente, um mecanismo fisiológico similar.” (Vigotski, 2012Vigotski, L. S. (2012). Obras Escogidas V: Fundamentos de defectologia. Machado Libros., p. 27-28).

Em se tratando da leitura de imagens, Bruno carrega em suas ponderações algumas contradições sobre a importância desses aspectos visuais no seu desenvolvimento, uma vez que por ter chegado tarde à escola, aprendeu tarde o braille e isso parece indicar que teve pouca estimulação precoce, ou ainda, pouco contato com materiais táteis ou adaptações em geral.

No tocante ao discurso de Bruno sobre o processo de compreensão da imagem, ao ser questionado, responde: “Que dá pra eu perceber com o tato, a essência é essa como eu não enxergo não adianta tá ali escrito se não der para perceber com o tato, o importante é isso tem que ter alguma percepção com o tato.” Nesse caso, Bruno aponta a necessidade de ter acesso ao material através do tato, ressaltando que naturalmente se não houver adaptação de alguma forma esse conteúdo não será efetivamente compreendido por ele, ou seja, a mediação pelo discurso do outro, mas especialmente, pelo tato. Além disso, enfatiza que se não há como perceber pela via háptica, não será de grande valia para o seu conhecimento, o que pode indicar que Bruno já passou por experiências nas quais não teve acesso à informação predominantemente visual por outra via. Provavelmente isso ocorreu porque não houve preocupação em adaptá-la, o que pode ter sido, por exemplo, uma experiência não exitosa com algum material didático impresso à tinta e que pode ter gerado esse tipo de posicionamento de Bruno sobre a importância de se avaliar que se não for adaptado, não funciona.

Na aprendizagem escolar, em se tratando das disciplinas curriculares, ao explorar os conteúdos e conceitos, é importante ressaltar que o desenvolvimento dos conceitos científicos se inicia a partir do momento em que o sujeito possui domínio empírico e avança em direção ao concreto e à experiência pessoal. Sendo assim, os conceitos científicos são reconhecidos quando efetivamente há a relação entre o que foi estudado e aquilo que o estudante já conhece. Para Vigotski (2010Vigotski, L. S. (2010). A Construção do Pensamento e da Linguagem. Editora WMF.), o desenvolvimento desses conceitos científicos implica certo nível de desenvolvimento dos conceitos corriqueiros. Em contrapartida, os conceitos científicos reorganizarão os conceitos cotidianos, fazendo emergir a Zona de Desenvolvimento Proximal, em que o sujeito mudará de posição no momento que o novo conhecimento, através da mediação, fará parte de seu desenvolvimento. Então, adiante, no próximo Núcleo, serão elencadas as experiências de Bruno, mediadas pelo outro e pela linguagem no acesso às imagens.

Núcleo 2 - “O importante é isso: tem que ter alguma percepção com o tato”

Nesse segundo Núcleo, são consideradas as falas de Bruno sobre o acesso e experiência especificamente com a leitura de imagens. São reflexões sobre esses momentos de compreensão das imagens, o que ele já conhece ou ainda o que não conhece, além disso, suas preferências por materiais que possam contribuir para o acesso às imagens através das experiências de mediação pelos discursos do outro e pela linguagem que serão focadas nessa análise. Tais indícios se confundem com a própria história de Bruno, de modo que suas concepções estão intimamente relacionadas com a forma como ele se constituiu como sujeito e leitor.

Ao responder, em sua entrevista inicial, sobre o contato com imagem no seu cotidiano, Bruno enfatiza, inicialmente, que essa vivência não lhe acontece. Nota-se, então, que a falta de interesse provavelmente está relacionada com o (não) acesso a esse tipo de informação. Aqui, Bruno deixa claro o pouco contato com informações predominantemente visuais e que seu interesse também é diminuto. No seu discurso fica evidente que na própria escola não há trabalho com imagens, como se o aluno cego não precisasse delas, mesmo essas sendo tão importantes para o processo de aprendizado. Essa ausência de acesso também é vista na escola onde Bruno estuda, como relata a seguir: “Quem tenta trabalhar com a gente é o professor de ciências, ele trabalha tentando descrever. O professor de matemática também ajuda às vezes a tentar passar um pouco coisa de gráfico, das coisas, mas a gente não tem acesso não.”

Nesse caso, ainda é possível perceber a ênfase no papel do professor como mediador ao realizar a leitura de imagem e promover a constituição de um sujeito que tem acesso à imagem através do outro, surgindo uma manifestação recíproca, uma espécie de troca, pela linguagem, assim como, o surgimento da Zona de Desenvolvimento Proximal. Isso denota a importância do outro, da mediação, para a constituição do sujeito e na construção do contexto social.

Ressalta-se que a tentativa dos professores em promover esse acesso mostra-se importante para o aluno, uma vez que demonstra despertar nele a consciência inicial de que o acesso a esse tipo de leitura é importante para a constituição de sua subjetividade. Afinal, como comenta Vigotski (2012Vigotski, L. S. (2012). Obras Escogidas V: Fundamentos de defectologia. Machado Libros., p. 19), “tanto o desenvolvimento quanto a educação da pessoa cega não tem tanta relação com a cegueira em si, mas com as consequências sociais da cegueira”. O que indica que, a deficiência em si, primária, como denomina Vigotski, tem um papel coadjuvante nesse processo, considerando que a sociedade não está pronta ou não se organiza para receber e atender a pessoa cega em seus diferentes níveis, como é o caso da escola que nem sempre está preparada para trabalhar e propor formas de desenvolvimento para o aluno com deficiência.

Ao relatar sua experiência como leitor de símbolos imagéticos, Bruno além de expor seu êxito ao ler um material adaptado, também informa como acredita que deveria ser o processo de adequação das imagens para pessoas cegas: “A melhor adaptação que peguei foi era uma das de um material que tinha na escola, o mapa mundi em braile que era o desenho em relevo, o desenho dele todinho em relevo, fizeram em braile mesmo os desenhos, tem impressora braille que consegue fazer esse desenho, tem alguns livros que têm desenhos, o de matemática tem os gráficos mas só quem consegue fazer esse desenho é a impressora.”

A imagem do Mapa Mundi faz parte do cotidiano escolar e, geralmente, está visível em algum espaço bastante frequentado pelos alunos. Para o aluno enxergante, aquela imagem é conhecida na sua totalidade e nas suas divisões. Para o aluno cego, apesar de ser um material comum, precisa ser adaptado.

É relevante situar a falta de experiência e conhecimento de Bruno com materiais em 3D e o consequente não uso desse tipo de material, apesar de serem os materiais que ultimamente estão sendo utilizados para as adaptações culturais em museus, por exemplo, com as obras de arte em terceira dimensão. Porém, pelo seu relato, podemos entender que há, portanto, pouca inserção das pessoas cegas nesses espaços, apesar do movimento de inclusão. Como afirma Vigotski (2012Vigotski, L. S. (2012). Obras Escogidas V: Fundamentos de defectologia. Machado Libros.), a experiência é concomitantemente independente e inseparável do sujeito e do meio social.

Em seu relato de experiência, Bruno aponta para o uso da linguagem como forma de discernir as cores de uma imagem, trazendo o papel social das cores, além disso, ele coloca em foco o papel do outro social nesse processo. Afinal, há experiência, para o seu entendimento de conceitos, por exemplo, que só são possíveis pela mediação da linguagem do outro. Sendo assim, é necessário que o outro informe qual a cor representada, ou com o que aquela determinada cor se parece, onde ela é mais comum, trazendo analogias e sentimentos para tentar explicar a cor usada no objeto ou imagem (Posca & Agreli, 2019Posca, L. M., & Agreli, J. H. L. (2019). Sinestesia, arte e deficiência visual: aplicação de um método didático-pedagógico para apreciação de pinturas por alunos não visuais na Educação Básica. Revista Artes, Educação e Inclusão. 15 (3), 08-33.).

Para além disso, sabe-se que é possível à pessoa cega compreender as cores além do visual, através de sensações, emoções ou elementos da natureza ligados a elas, contribuindo para a construção de uma representação mental sobre o objeto explorado pelo pensamento. Como comentam Bianchi, Ramos e Barbosa-Lima (2016Bianchi, C.; Ramos, K., & Barbosa-Lima, M. C. (2016). Conhecer as cores sem nunca tê-las visto. Revista Ensaio, 18 (1), 147-164., p. 154), “Na cegueira congênita não existem referenciais visuais (imagem mental), e, desse modo, o sujeito possui uma representação intelectualizada do ambiente (cores, perspectivas, volumes, relevos) sem possuir um conceito visual”, que é justamente o que foi apontado por Bruno em seu discurso, quando afirmou não se importar com cores, justamente por não ter ideia visual de como são, mas entende que existem e que são usadas em casos e ocasiões determinadas na realidade e nas representações dos objetos do mundo.

Sobre as estratégias de leitura de imagens, ao ser questionado como costuma realizar essa atividade, Bruno explica o seguinte parâmetro: “até hoje eu não sei, mas eu acho que é da esquerda para a direita, né? Daqui para cá [aponta para o lado esquerdo e depois pro lado direito] vai sentindo a imagem. Começando da esquerda para a direita eu vou passando e vou sentindo.”

Na experiência de Bruno como leitor de imagens, entende-se que os caminhos percorridos para a usual leitura de textos, em braile ou em tela, pode ser a fórmula usada por ele para ter contato com a imagem de forma sistemática, levando em consideração os elementos que irão aparecer no “caminho” da leitura. Essa explanação sobre o momento de leitura é crucial para entendermos como se dá o processo na prática, que será analisado em uma seção posterior.

Ao ser questionado, por exemplo, sobre o caminho percorrido no momento da leitura da imagem tátil, Bruno comenta que faz a leitura “daqui para cá”, da esquerda para a direita, semelhante ao processo de leitura textual ocidental. O desenvolvimento dessa percepção, de como se dá o processo da percepção háptica, é imprescindível para que as pessoas cegas possam organizar, transferir e abstrair conceitos de forma hábil (Liberto, Ribeiro & Simões, 2017Liberto, A.; Ribeiro, C., & Simões, C. (2017). As representações de imagens grafo-táteis para o aluno cego no contexto educativo inclusivo. Revista Educação Especial, 30 (57), 9-26.).

As experiências de leitura de imagem por Bruno e seu relato sobre o acesso a elas, bem como as reflexões aqui realizadas em torno dos Núcleos de Significação podem, inicialmente, sugerir partes isoladas de uma análise, daí a importância da apreciação dos internúcleos, como apresentado a seguir.

Análise Internúcleos - Relações entre o acesso e a experiência com leitura de imagens

Ao mencionar sobre sua vida de leitor e de que forma tem acesso a textos, primeiramente, afirma realizar a leitura pelo tato e, em seguida, afirma realizar a leitura via computador, o que acaba deixando de ser uma leitura via tátil para sê-la através do uso de sintetizadores que transformam o texto em voz, ou seja, o acesso se dá por meio da audição. Isso indica que Bruno faz pouco uso do sistema braile no seu dia a dia, dando preferência às tecnologias quando possível.

Pode-se destacar também outras contradições na fala de Bruno ao relatar que não tem interesse por imagem, principalmente, no seu dia a dia, ou que não “liga” para as informações relacionadas a cores, porém admite que a imagem e o acesso à ela é importante para seu desenvolvimento para ter noção do que se trata quando o professor, por exemplo, fala sobre imagem em determinada aula, que para ele é necessário esse apoio ao entender o que se encontra exposto de forma visual.

Sessões de Leitura de Imagem adaptada

Ao oferecer o material adaptado optamos por não explicar o conteúdo-contexto ou ainda o que está sendo apresentado na adaptação em que está inserido no currículo escolar pois o aluno já teve acesso a esse conteúdo anteriormente.

Ao realizar a leitura do Material Adaptado1, Bruno demonstra alguma dificuldade de entender os diferentes elementos presentes na imagem, apesar de conhecer as formas que se assemelham a eles, como “bola”, “triângulo” e “retângulo”, assim como tem conhecimento prévio da temática, pois o conteúdo abordado, nesse caso o ciclo da água, faz parte do currículo escolar e já fora trabalhado em sala de aula pelo professor de ciências.

Bruno adota uma forma de explorar a imagem tátil que contempla todo o material superficialmente mas focando em determinados elementos, não parando as mãos em determinados locais, pois se apresa em determinados momentos em pontos chave da imagem que podem trazer maior entendimento da sua totalidade. Para isso, usa predominantemente a mão direita e as pontas dos dedos indicador, polegar e médio e, em poucos momentos, usa o dedo indicador da mão esquerda. Inicia a leitura na parte esquerda inferior e se detém nessa localização por muito tempo.

Percebe-se, então, que um elemento que chama a atenção de Bruno na margem inferior da figura, que mais tarde, ao interpretar a imagem, ele denominaria de “jacaré”, e que na verdade, é o rio, estaria relacionado aquilo que Joly (2009Joly, M. (2009). Introdução à análise da imagem. Papirus.) aponta ao explicar que imagem é aquilo que se refere à figura, representação, semelhança ou aparência de algo, portanto essa interpretação de Bruno, acontece a partir daquilo que ele já conhece.

Em relação à detecção de presença dos elementos interiores da imagem, várias vezes Bruno se remete, em interpretação, às pequenas partes e não à totalidade da imagem. Aponta o “jacaré”, mas não o percebe como um rio e os demais elementos não são encontrados durante o momento da leitura. Sendo assim, ele percebe apenas o “jacaré” porque não explora toda a imagem e dá um significado a partir de uma parte dela. Além disso, Bruno nomeia a figura de jacaré e lhe atribui um sentido a partir de um elemento que caracteriza a imagem, ou seja, o fato de não perceber os traços da imagem porque o movimento da mão é restrito provoca uma limitação na detecção de elementos interiores, que aqui leva ao erro porque ele não explora toda a imagem. O que apresenta o processo de percepção da pessoa cega, que tal como identificado em Bruno, ocorre do analítico, das partes para o todo, em direção ao sintético, do todo para as partes, diferentemente dos enxergantes, o que corrobora com a ideia de Dias e Vieira (2017Dias, E. M., & Vieira, F. B. A. (2017). O processo de aprendizagem de pessoas cegas: um novo olhar para as estratégias utilizadas na leitura e escrita. Revista Educação Especial, 30 (57), 175-188.) de que a visão recebe a informação sinteticamente, o que possibilita a agilidade na visualização de palavras inteiras e além disso, como frases e páginas completas, já o tato, no entanto, recebe a informação fracionada, por parte, de forma analítica.

Considerando o contexto de referência já vivenciado por Bruno, com suas convenções, histórias e cultura adquiridas anteriormente, percebemos que ao relacionar o elemento com o “jacaré”, aparenta conhecer o fenótipo do animal, o que também ocorre quando questiona sobre o formato da imagem, perguntando “é um retângulo?” (forma geométrica citada), além do quadro da imagem realmente ser retangular, o que ativa os seus conhecimentos já interiorizados e que passam a interferir na compreensão.

Com isso, podemos compreender que o entendimento do que a imagem indica despertou em Bruno dificuldades em sua compreensão. Ao dizer que “é difícil” e “muito difícil” (de entender), não fica claro se por não assimilar a representação adaptada com a imagem original que costumamos ter acesso nas aulas de Ciências sobre o Ciclo da Água, ou se a adaptação em alto relevo, na forma que foi apresentada pode não ter favorecido a percepção de Bruno para a imagem, apesar da imagem representar a realidade.

Por fim, sobre o entendimento de cores e texturas, Bruno ficou em dúvida sobre se aquela era realmente a adaptação a ser realizada e perguntou: “a figura é isso aqui?” O que nos demostra a importância do uso de diferentes texturas para cada elemento ao se realizar a adaptação e a leitura da imagem. Apesar de fazer uso desse contexto, a adaptação parece não proporcionar essa experiência de forma suficiente para Bruno.

Na leitura do Material Adaptado 2, em 3D, Bruno apresenta seu conhecimento sobre o tema, baseado nas informações escolares sobre o sistema circulatório, porém parece não identificar, a princípio, o coração humano. Em relação à leitura dos aspectos e traços constitutivos da imagem, ele manipula como um todo e com ambas as mãos o material, com a possibilidade desse novo comportamento surgir após a experiência da sessão anterior, além do que, nessa nova adaptação, o formato e tamanho proporcionam essa melhor percepção do todo. Bruno também percebe com curiosidade elementos que estão presentes no topo do material, que são as saídas dos vasos sanguíneos, devido a sua forma de organização peculiar.

Ao realizar a detecção da presença de elementos no interior da imagem, fica claro que Bruno percebe a diferença entre as faces da imagem, ao chamar atenção para o fato de passar um tempo considerável explorando as partes interiores, que possuem diferentes texturas, simulando a musculatura, bem como as cavidades internas do coração. O que se percebe é que essas informações táteis, além de trazerem informações sobre aspectos essenciais para o entendimento da imagem, despertaram sua curiosidade para a forma como a textura muda de elemento para elemento.

Sobre o entendimento do que a imagem indica ou quer indicar e como as imagens significam, Bruno inicialmente interpreta a imagem como um “punho”, porém ao abrir a adaptação e manipular as duas partes, as dúvidas começam a surgir sobre o que ela poderia representar, assim essas dúvidas indicam construção ou revisão de um conhecimento anterior e, com isso, podemos entender que a leitura de imagem é muito importante para a pessoa cega rever seus conceitos. Após continuar a leitura da peça, afirma: “não consigo entender ainda”, então, a pesquisadora comenta que é um órgão interno e, imediatamente, Bruno especula “um coração é que não é”, sendo exatamente essa a figura que segura nas mãos. Essa dúvida acontece porque para ele o coração é “como uma pirâmide”, ou seja, a aproximação discursiva que ele faz da imagem do coração, dificulta a sua compreensão.

Portanto, a nomeação de um objeto por outro por similaridade impede isso, ou seja, essas aproximações são feitas por outras pessoas e internalizadas pela pessoa cega, como acontece em contexto de aula. Isso está relacionado ao contexto de referência da imagem, pois Bruno faz alusões ao que já conhece para entender o que está lendo, ao relacionar a forma do coração humano com figuras geométricas para compreender a imagem, como em “eu me lembrava que ele era cônico”, “isso aqui tá mais para um redondo-retângulo”, “como uma pirâmide, sabe? Aqui tá diferente” e “pontudão em cima e embaixo mais largo”, ele acaba trazendo suas referências e provavelmente amplas experiências com as figuras geométricas para entender o que seria o formato do coração. O que também pode ser percebido é que Bruno reformula a percepção e o conceito de coração que agora deixa de ser um órgão pontiagudo, pois a manipulação da imagem provocou uma reconceituação e aprendizagem, no diálogo com a pesquisadora.

Sendo assim, percebemos que é comum convenções, histórias e cultura interiorizadas serem ativadas nos momentos de leitura do material por Bruno. É notável, por exemplo, quando ele diz “É um coração? É não! Eu já tive aula de ciências e um coração, ele tem a forma de um chapéu de palhaço, pelo menos foi o que me disseram na aula, né”, o que nos leva a compreender que o uso de certos termos, analógicos e aproximados ao que as imagens de fato representam, talvez não sejam auxiliares e, muito pelo contrário, podem surgir como uma estratégia desfavorável.

A leitura do Material Adaptado 3 por Bruno foi muito mais célere que a leitura dos materiais anteriores. Além disso, contou com nomeação do objeto na totalidade. Na leitura dos aspectos e traços constitutivos da imagem, evidenciamos que ele usa a ponta de apenas dois dedos para realizar a leitura da figura, adotando o processo de leitura que se inicia nos galhos da planta, ou seja, de cima para baixo na leitura do material pontilhado, mais uma vez, as experiências de leitura nas sessões anteriores podem ter contribuído para as novas explorações e formas de manipular o material por Bruno, dessa vez mais completa.

A percepção e detecção da presença de elementos no interior da imagem fica clara quando Bruno afirma: “Tá parecendo como se fossem os galhos, né?” ou ainda: “Olha o tronco aqui” ao entender como as imagens apresentam os elementos compreendendo as partes juntamente com o todo da imagem, pois aqui também é percebido que se trata de uma “árvore”, confirmando o seu entendimento do que a imagem indica ou quer indicar. Para Bruno, essa adaptação “tá muito fácil”, pois parece ter um contexto de referência da imagem. O que pode indicar que a escolha da imagem para o tipo de adaptação pode ter sido algo que resultou nessa “facilidade”. Por outro lado, também há o papel da experiência, do treino da mão, do tato através das convenções, histórias e cultura interiorizadas por Bruno que fazem parte do processo de leitura e do seu entendimento de cores e texturas inclusive quando enfaticamente confirma “é pontilhado” ao ter contato com o material.

Ao finalizarmos os encontros de leituras com Bruno, percebemos que ele apontou a preferência para o Material Adaptado 3, pontilhado, provavelmente por questões relacionadas à sua vivência em outros momentos com esse material e à intimidade em realizar esse tipo de leitura. Também aponta aspectos que não favorecerem sua leitura dos materiais, principalmente, do Material Adaptado 1. Segundo ele, em alguns elementos, as linhas e a textura não ficaram evidentes, dificultando sua compreensão, o que nos leva a refletir sobre o tipo de adaptação que foi realizada, nesse caso, do MA1 e o material utilizado para isso, bem como a escolha da imagem de origem.

5. Considerações finais

O estudo propiciou um olhar sobre as implicações educacionais relacionadas às imagens, seu processo de acesso e leitura por pessoas cegas. Entendemos, pois, que a leitura de imagens não é apenas uma ação de acessibilidade, mas também é oportuna para a aquisição de conceitos e conteúdos, aliada ou separada do texto, nas inúmeras disciplinas curriculares. Uma vez que o uso de imagens e sua contribuição para o processo de ensino-aprendizagem é inegável, o aluno cego poderá ter acesso ao que os demais alunos, sem deficiência, já têm, a partir do momento que se pensa nas possibilidades de adaptação daquele conteúdo imagético. É importante ressaltar que a escola-campo do estudo favorece o contato dos alunos com os materiais e promove atividades culturais para além dos seus muros para que os alunos tenham acesso a diferentes contextos.

Ao passo que o contato e as experiências com as imagens são importantes, é necessário também expandir a discussão sobre os tipos de adaptações fornecidas ao aluno, se são adequadas e, consequentemente, efetivas para os objetivos traçados. Fornecer esse acesso através de diferentes materiais pode tornar-se um ganho para o desenvolvimento das habilidades hápticas da pessoa com deficiência visual além de ampliar seu repertório cultural.

No estudo de caso apresentado, a compreensão de imagens pelo sujeito ao utilizar recursos táteis se dá baseado nas suas experiências vividas e o contato anterior com os materiais e conceitos em sala de aula, por meio de estratégias ao realizar a leitura de imagens táteis que vão desde o tatear da esquerda para direita como a leitura em braille até o se apropriar de partes que mais se destacam na imagem antes de realizar a leitura do todo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
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