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Etnografia da linguagem no contexto sociolinguisticamente complexo de uma comunidade no Oeste do Paraná: de volta para o futuro de uma Linguística Aplicada interseccional

Linguistic ethnography in the sociolinguistically complex context of a Western Paraná community: backward into the future of some intersectional applied linguistics

RESUMO

Apresentamos nossa trajetória de reflexão paulatinamente mais interseccional sobre um contexto sociolinguisticamente complexo que estudamos há algum tempo, tendo Marilda Cavalcanti como interlocutora. Retomando Jung (1997Jung, N. M. (1997). Eventos de letramento em uma escola multisseriada de uma comunidade rural bilíngue (alemão/português) [Dissertação de mestrado inédita]. Universidade Estadual de Campinas. , 2003Jung, N. M. (2003). Identidades sociais na escola: gênero, etnicidade, língua e as práticas de letramento em uma comunidade rural multilíngue [Tese de doutorado inédita]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) e Jung e Garcez (2007Jung, N. M. & Garcez, P. M. (2007). Além do repertório linguístico: aspectos simbólicos diversos na construção da identidade étnico-linguística alemã na escola de comunidade rural multilíngue. In M. C. Cavalcanti e S. Bortoni-Ricardo (Orgs.), Transculturalidade, Linguagem e Educação (pp. 97-122). Mercado de Letras.) sobre as práticas de letramento em uma comunidade escolar do Oeste do Paraná, relatamos como as inteligibilidades que desenvolvemos se expandiram para uma mirada mais interseccional. No enquadre de nossa reflexão recente sobre linguagem e economia política (Garcez & Jung, 2021Garcez, P. M., & Jung, N. M. (2021). Mercantilização da linguagem no capitalismo recente: diversidades e mobilidades. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 338-346.) e em particular à luz do trabalho de Jung e Machado e Silva (2021Jung, N. M. & Machado e Silva, R. C. (2021). Deutsches fest: vergonha e orgulho em um evento de mobilizações simbólicas e econômicas. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 364-378.) sobre a festa comunitária promovida no município paranaense em que se encontrava a comunidade escolar que estudáramos, revisitamos aqui as nossas percepções em rearticulação, mais expressa e contemporânea, atenta a eixos de diferenciação em torno de classe social e raça, explicitando os privilégios da branquitude na configuração daqueles cenários e apontando reflexos disso para a percepção das nossas próprias posicionalidades.

Palavras-chave:
branquitude; etnografia da linguagem; interseccionalidade; linguística aplicada; multilinguismo.

ABSTRACT

In a chronicle of our increasingly intersectional reflection about a sociolinguistically complex context that we have studied (Jung, 1997Jung, N. M. (1997). Eventos de letramento em uma escola multisseriada de uma comunidade rural bilíngue (alemão/português) [Dissertação de mestrado inédita]. Universidade Estadual de Campinas. , 2003Jung, N. M. (2003). Identidades sociais na escola: gênero, etnicidade, língua e as práticas de letramento em uma comunidade rural multilíngue [Tese de doutorado inédita]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.; Jung & Garcez, 2007Jung, N. M. & Garcez, P. M. (2007). Além do repertório linguístico: aspectos simbólicos diversos na construção da identidade étnico-linguística alemã na escola de comunidade rural multilíngue. In M. C. Cavalcanti e S. Bortoni-Ricardo (Orgs.), Transculturalidade, Linguagem e Educação (pp. 97-122). Mercado de Letras.) having Marilda Cavalcanti as key interlocutor, we look back to earlier work to highlight how the intelligibility we developed about literacy practices in a school community in the West of Paraná has expanded beyond language and gender. In the framework of our reflection on language and political economy (Garcez & Jung, 2021Garcez, P. M., & Jung, N. M. (2021). Mercantilização da linguagem no capitalismo recente: diversidades e mobilidades. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 338-346.) and particularly in light of the work of Jung and Machado e Silva (2021Jung, N. M. & Machado e Silva, R. C. (2021). Deutsches fest: vergonha e orgulho em um evento de mobilizações simbólicas e econômicas. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 364-378.) on the local festival held annually by the municipality where the school community we studied was located, we revisit our perceptions in a more express and contemporary re-articulation now attentive to axes of differentiation around social class and race. We underscore the privilege of whiteness in our current understandings of local dynamics and in our own positionalities.

Keywords:
applied linguistics; interseccionality; language ethnography; multilingualism; whiteness.

1. Introdução: nosso encontro com Marilda Cavalcanti

Marilda do Couto Cavalcanti marcou indelevelmente as nossas trajetórias acadêmicas e pessoais. De certo não estaríamos juntos nesta coautoria se não fosse por ela, que recebeu e orientou Neiva em mestrado no IEL-Unicamp, que por sua vez depois se encontraria com Pedro no doutorado na UFRGS, ele que trocava ideias com Marilda e de quem recebia apoio desde um encontro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB) na programação da SBPC em 1992, na gestão fundadora de Marilda como primeira presidente.

Narramos aqui o percurso da nossa interlocução fecunda com Marilda, sempre generosa, e influente nas nossas reflexões. Na seção de abertura a seguir, Neiva narra, em primeira pessoa do singular, o seu encontro com Marilda, e disso deslizamos de volta para nossa voz em coautoria no plural e retomamos o trabalho conjunto que resultou na etnografia escolar que Neiva produziu no seu doutoramento, tendo Pedro como orientador (e Marilda como leitora, é claro). Destacamos nosso capítulo em coautoria (Jung & Garcez, 2007Jung, N. M. & Garcez, P. M. (2007). Além do repertório linguístico: aspectos simbólicos diversos na construção da identidade étnico-linguística alemã na escola de comunidade rural multilíngue. In M. C. Cavalcanti e S. Bortoni-Ricardo (Orgs.), Transculturalidade, Linguagem e Educação (pp. 97-122). Mercado de Letras.) em livro organizado por Marilda e Stella Maris Bortoni Ricardo (2007), em que chamávamos atenção, sem usar estes termos, para o que hoje talvez formulássemos como interseccionalidade, ao apontarmos que, embora fosse crucial que entre aqueles agentes se falasse alemão, gênero era também crucial. Com base em trabalho recente de Jung e Machado e Silva (2021Jung, N. M. & Machado e Silva, R. C. (2021). Deutsches fest: vergonha e orgulho em um evento de mobilizações simbólicas e econômicas. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 364-378.) realizado naquela mesma comunidade sociolinguisticamente complexa do Oeste do Paraná, mas aqui no enquadramento muito particular da nossa colaboração e interlocução mais recentes, discutimos o que vimos e o que de relevante deixamos de ver, como a branquitude agora evidente, e vislumbramos o que nos parece potencialmente visível no porvir. Nisso, queremos crer que homenageamos Marilda, nossa sempre estimada e instigante interlocutora.

2. Uma trajetória de intercompreensões sobre um contexto sociolinguisticamente complexo

Buscar compreender práticas de letramento multilíngues em situações escolares sempre fez parte do meu percurso escolar e acadêmico. Como falante de alemão3 3 Trata-se da variedade amplamente reconhecida na literatura acadêmica como hunsrückisch ou hunsriqueano, localmente nomeada tão somente como alemão (por exemplo: “fulano fala alemão?”). Sem desconsiderar as controvérsias quanto à nomeação, seja “dialeto hunsrückisch” ou “língua brasileira de imigração” (como em Altenhofen & Morello, 2018), utilizaremos aqui o termo “alemão” porque é assim que os participantes se referem a esse item do repertório linguístico da comunidade local. em uma comunidade “colonizada4 4 “Colonização” é o termo utilizado na historiografia oficial do município para descrever a vinda de descendentes de imigrantes alemães para realizar o povoamento do local. Contudo, como problematizam Jung e Machado e Silva (2021), essa narrativa oficial e hegemônica vem sendo questionada por não levar em consideração grupos que já habitavam a região. Por essas razões, usamos aqui também aspas tanto para identificar o uso local quanto para suspender seu significado hegemônico. ” por descendentes de alemães que migraram do Noroeste do Rio Grande dos Sul para o Oeste do Paraná na década de 1960, me deparei com o português na escola. Isso significou dificuldades de interação, em especial com a única professora, que não era falante dessa língua, e de compreensão das tarefas que eu precisava executar. Na sala de aula multisseriada da escola rural que eu frequentava, os colegas da série mais adiantada traduziam e auxiliavam na intercompreensão, ficando evidente para nós que o português era a língua da escola e que, portanto, precisaríamos aprender essa “língua”. A recomendação da professora aos nossos pais era de que falassem brasileiro5 5 Tal como procedemos em relação ao “alemão”, nomeamos como “brasileiro” a variedade local do português, porque é assim que as pessoas da comunidade se referem ao português que falam. com os filhos, porque o alemão estaria interferindo na aprendizagem escolar.

Anos mais tarde, já como docente do Ensino Fundamental I no mesmo município, me deparei com dificuldades de aprendizagem de leitura e escrita dos meus alunos, falantes de alemão ou não. De modo nebuloso, percebia que talvez o problema não fosse dos meus alunos, nem que as causas fossem “interferência” de uma língua na outra, mas que aquele quadro de dificuldades poderia estar relacionado às dinâmicas do multilinguismo vividas ali.

Os estranhamentos dos meus interlocutores diante da minha fala nas primeiras aulas do curso de Letras que frequentei em uma cidade próxima somaram-se às minhas inquietações sobre a linguagem: o que aquilo podia significar para mim e para os meus alunos? Nos quatro anos desse curso de graduação em Letras, o objeto de estudo em disciplinas que possibilitavam pesquisa sempre foi “a dificuldade de ler e escrever” dos meus alunos, com alguma atenção para as práticas de letramento e a complexidade dos cenários multilíngues locais.

E foi com um projeto com o objetivo de investigar questões de aprendizagem nesse contexto que ingressei no mestrado, sob orientação de Marilda Cavalcanti. Oportunidades como as de conhecer e discutir teorias linguísticas sobre bilinguismo e letramento, de entrar em uma linha de pesquisa que concebia o português como língua adicional e especialmente de ter ouvidos interessados na experiência bilíngue possibilitaram ampliar minha percepção da comunidade. Com o propósito central de “observar como se constroem os eventos de letramento em uma escola inserida em uma comunidade rural bilíngue (alemão/português)”, uma das conquistas da dissertação foi o reconhecimento daquele meu contexto como multilíngue - o alemão e o português da escola como duas “línguas”, e o português oral falado como “variedade”, caracterizando uma realidade de bidialetalismo (Jung, 1997Jung, N. M. (1997). Eventos de letramento em uma escola multisseriada de uma comunidade rural bilíngue (alemão/português) [Dissertação de mestrado inédita]. Universidade Estadual de Campinas. ). Não pensávamos ainda tão expressamente em uma abordagem de repertórios, mas nomear a variedade local do português como o “brasileiro”, que era o modo como as pessoas da comunidade se referiam ao português que falavam, em contraponto ao português ensinado na escola, também foi uma conquista. Demorei para ouvir aquilo, talvez devido aos conceitos de língua e bilinguismo que orientavam meu olhar, mas a Marilda estava ali, me escutando e me ajudando a escutar o que diziam os participantes, meus conterrâneos, eu mesma. Outro achado crucial daquele trabalho foi perceber que o uso que a professora fazia de todo o repertório local, incluindo o alemão, auxiliava seus alunos na elaboração de compreensões para dar conta das tarefas, o que se mostrou determinante para a aprendizagem das crianças na classe multisseriada investigada, localizada em uma linha rural do município, ambiente muito semelhante ao que eu havia conhecido como criança. Não chamávamos aquilo de translinguagem (García & Lin, 2017García, O., & Lin, A. (2017). Translanguaging in bilingual education. In O. García, A. Lin, & S. May (Orgs.), The encyclopedia of language and education (Vol. 5), Bilingual and multilingual education (pp. 117-130). Springer.), mas Marilda me ajudou a ouvir, ver, entender o que se passava.

Em seguida à conclusão do mestrado, devido ao número reduzido de alunos das escolas multisseriadas, a Secretaria de Educação do município descontinuou a multisseriação e optou pela aglutinação de escolas rurais em escolas-núcleo. Essa nova realidade levou-me ao projeto de doutorado na UFRGS. A minha pergunta inicial era como ficaria o multilinguismo e a aprendizagem dos alunos que estudariam em turmas seriadas, maiores e mais distantes de seus locais de residência. Por algum tempo, busquei aquele multilinguismo em novas observações nas salas de aula de uma escola-núcleo, e permanecia discutindo teorias sobre bilinguismo. Por sugestão de minha então orientadora Ana Maria Stahl Zilles, passei a contar também com o olhar atento de Pedro Garcez, e aos poucos nossa interlocução foi apontando que um entendimento adequado do que se passava exigiria atenção a mais do que simplesmente quem falava o quê, e mesmo que a questão estava além do repertório linguístico, pois múltiplos aspectos simbólicos estavam sendo mobilizados pelos diversos agentes sociais nessa escola-núcleo em articulação com identidades sociais locais e orientações para espaços mais além. Não tratávamos disso em termos de interseccionalidade (Banda, 2020Banda, F. (2020). Sociolinguistics and modes of social class signalling: African perspectives. Journal of Sociolinguistics, 24(1), 3-15.) ou escalas (Blommaert, 2010Blommaert, J. (2010). The sociolinguistics of globalization. Cambridge University Press.), mas Marilda nos ajudava a situar aquele cenário no universo das situações sociolinguisticamente complexas.

Nessa trajetória, destaco a elaboração de intercompreensões acerca daqueles contextos - de onde parti como participante e sobre os quais passei a refletir como investigadora - que passaram a se configurar claramente como sociolinguisticamente complexos. Nisso foram tensionados conceitos, como os de língua como sistema delimitado e estanque, e de bilinguismo como idealização de domínio de sistemas linguísticos isolados. O acolhimento de Cavalcanti, que levou o meu “olhar de dentro” de uma comunidade minoritária para o centro acadêmico brasileiro, conduziu ao trabalho de doutorado com Garcez que, por sua vez, possibilitou a nossa interlocução no doutoramento e até aqui.

A partir da compreensão da complexidade sociolinguística daquela minha comunidade, compreendemos que o alemão não estava de fato nas salas de aula da escola-núcleo, mas a situação sociolinguística estava articulada com valores e identidades da comunidade que eram negociados e coconstruídos na escola. Neste artigo, e agora passando plenamente à voz e à autoria na primeira pessoa do plural, queremos retomar resultados da nossa reflexão, conforme relatados em Jung e Garcez (2007Jung, N. M. & Garcez, P. M. (2007). Além do repertório linguístico: aspectos simbólicos diversos na construção da identidade étnico-linguística alemã na escola de comunidade rural multilíngue. In M. C. Cavalcanti e S. Bortoni-Ricardo (Orgs.), Transculturalidade, Linguagem e Educação (pp. 97-122). Mercado de Letras.), desta vez para argumentar que a interseccionalidade de identidades sociais que apontamos poder ser rearticulada hoje mais expressa e contemporaneamente em termos de classe social e de branquitude, uma vez que “movemos a mão” (Cesar & Cavalcanti, 2007Cesar, A. L., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. C. Cavalcanti e S. Bortoni-Ricardo (Orgs.), Transculturalidade, Linguagem e Educação (pp.45-66). Mercado de Letras.) e estamos olhando para os modos como dinâmicas de inclusão e exclusão do capitalismo tardio funcionam em contextos e momentos específicos, “seguindo os dados” (Heller, Pietikäinen, & Pujolar, 2018Heller, M., Pietikäinen, S., & Pujolar, J. (2018). Critical sociolinguistics research methods. Routledge.), identificando recursos sociolinguísticos em circulação, em disputa, e sua valoração, revelando as consequências desses processos, em termos de quem controla o acesso a recursos, quem lhes atribui valores, quem se beneficia ou sofre com essas dinâmicas (Heller, 2011Heller, M. (2011). Paths to post-nationalism: A critical ethnography of language and identity. Oxford University Press. ).

Assim louvamos as contribuições de Marilda Cavalcanti para a Linguística Aplicada (doravante LA), como pesquisadora interessada em linguagem e nas pessoas e grupos sociais que fazem suas vidas em linguagem, mais que discutindo conceitos, reelaborando-os coletivamente em seu fazer pesquisa em contextos sociolinguisticamente e sócio-historicamente complexos de minorias étnicas e maiorias minoritarizadas. Como a nossa própria homenageada afirmou, “escrever sobre LA é muito diferente do que experienciá-la. E só me sinto (me senti) à vontade para escrever sobre a área depois de fazê-la como praticante, de dentro” (Cavalcanti, 1998Cavalcanti, M. C. (1998). AILA 1996 e um estado de arte em microcosmo da Lingüística Aplicada. In I. Signorini e M. Cavalcanti (Orgs.), Lingüística Aplicada e transdisciplinaridade (pp. 173-186). Mercado de Letras., p. 184). Como pesquisadora que tomou “o sistema completo de estratégias, isto é, o campo das posições a partir do qual elas se engendram” (Bourdieu, 1976[1983]Bourdieu, P. (1976[1983]). O campo científico. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu - Sociologia (pp. 122-155). Ática.: 34, grifo no original), Marilda construiu o nosso diálogo sobre linguagem e o fazer etnografia em LA que em larga medida conforma as reflexões atualizadas que oferecemos a seguir.

3. Linguagem e identidades sociais: interseccionalidades

Em “Além do repertório linguístico: aspectos simbólicos diversos na construção da identidade étnico-linguística alemã na escola de comunidade rural multilíngue” (Jung & Garcez, 2007Jung, N. M. & Garcez, P. M. (2007). Além do repertório linguístico: aspectos simbólicos diversos na construção da identidade étnico-linguística alemã na escola de comunidade rural multilíngue. In M. C. Cavalcanti e S. Bortoni-Ricardo (Orgs.), Transculturalidade, Linguagem e Educação (pp. 97-122). Mercado de Letras.), examinamos como os integrantes daquela comunidade do Oeste do Paraná produziam (e muitas vezes reproduziam) traços de identidades sociais diversas em interações situadas no uso da linguagem e mostramos como o multilinguismo que esperávamos encontrar na escola estava articulado com outros aspectos simbólicos e identidades sociais locais. O alemão não aparecia em sala de aula, mas o repertório estava entrelaçado à identidade de gênero e étnico-linguística alemã. A escola, promovendo um modelo de letramento feminino, ratificava positivamente a identidade feminina prestigiosa na comunidade local, que evitava o alemão. Na participação em eventos de letramento escolares, isso se apresentava publicamente nas ações de cossustentar os pisos conversacionais propostos pela professora Ana, produzir a segunda parte do par adjacente inicial da sequência Iniciação-Resposta-Avaliação (Garcez, 2006Garcez, P. M. (2006). A organização da fala-em-interação na sala de aula: controle social, reprodução de conhecimento, construção conjunta de conhecimento. Calidoscópio, 4(1), 66-80.) e apresentar a resposta esperada, conforme o fazem Fernanda (linha 10), Mariane (linha 12) e Alice (linha 15) no excerto de transcrição a seguir. Essas alunas apresentam a resposta esperada em volume de voz mais baixo, porque não estavam sendo selecionadas por Ana, que direcionara a pergunta para Jaqueline (linha 07), Antônio (linha 13), Jair (linha 31) e Fabiano (linha 33), que não deram essa resposta esperada.

Excerto 1
6 6 As convenções de transcrição (ver Apêndice) utilizadas seguem Jung (2003) e Kanitz e Garcez (2020).

Ana nomeia quatro alunos que não apresentam a resposta, sendo três deles meninos, identificados como alunos que precisavam ser chamados à participação. Além disso, a observação etnográfica indicara que eles também não apresentavam espontaneamente o caderno para ser corrigido pela professora com a mesma frequência que as meninas. Assim, suas atividades tinham um acompanhamento mais constante da professora, visto como necessário também por conta da desorganização do material escolar e às unhas sujas de terra, tratadas como falta de asseio corporal, algo marcadamente associado localmente ao colono alemão, no caso desses meninos, seus pais (homens) com quem eles trabalhavam na roça em ao menos um período da semana, interagindo então em alemão. Desse modo, os meninos que tornavam relevantes traços dessa identidade - masculina articulada localmente à étnico-linguística alemã - tinham uma maior tutela da professora. No excerto a seguir, por exemplo, Ana se posiciona atrás da carteira de Kevin e orienta o traçado das letras (linhas 09, 11, 15 e 17).

Excerto 2

Ao passo que quase todas as meninas são ratificadas positivamente, os meninos parecem precisar negociar traços de sua identidade masculina por não produzirem o comportamento exigido como requisito para a aquisição do letramento escolar. O traçado o(redondi:nho é)o da letra (linhas 09 e 17) não encontra eco nos traços da identidade masculina dos meninos que se ocupam com lides rurais e exploram espaços amplos. Embora alguns meninos da 4.ª série, que compartilhavam outros valores simbólicos, tivessem aprendido a negociar os traços dessa identidade feminina hegemônica da escola e conquistassem status de ótimos alunos, essa trajetória era mais complexa para os meninos do que para as meninas.

Esses construtos simbólicos tinham relação com construtos identitários que caracterizavam o “colono alemão” como uma categoria social marcadamente masculina, proprietária de terra, em oposição aos habitantes do município vizinho ao qual se orientavam e ao qual o local pertencera inicialmente, e às pessoas da área do município ocupada por um sistema de posses. Se por um lado se viam como proprietários legítimos porque “compraram suas terras”, por outro eram ameaçados na relação com os habitantes da cidade vizinha. A língua alemã era, assim, um traço da identidade masculina local em certa medida estigmatizada e associada à vida rural, e as mulheres desse grupo procuravam apagá-la, uma vez que a vida rural era-lhes pouco atraente. Elas buscavam o letramento em português, o uso do brasileiro e o conforto da vida da cidade, almejados para a conquista de prestígio local.

Além disso, registramos, ainda que timidamente, outras identidades sociais salientadas, por exemplo, no que hoje chamaríamos de racialização de Kevin e Jaqueline, ou na singularização religiosa do neopentecostalismo de Caroline, também tornadas relevantes em sala de aula mediante convites reiterados para a participação e o acompanhamento mais sistemático e insistente das atividades no caderno. Retornaremos a esse ponto para reflexão mais adiante.

Essas observações, que aprendemos a perceber à medida que íamos apurando nosso olhar etnográfico, que Marilda nos assegurava que devia ser valorizado, trouxeram para o centro da discussão, portanto, outros aspectos simbólicos e identitários para além do repertório sociolinguístico. Se naquele momento pudemos avançar na compreensão “do que estava acontecendo ali” (Erickson, 1989Erickson, F. (1989). Metodos cualitativos de investigacion sobre La enseñanza. In M. Wittrock (Org.), La investigación de la enseñanza, II: Métodos cualitativos y de observación (pp. 195-301). Paidos Ibérica.), isso foi devido ao que já fora produzido sobre pesquisa etnográfica em LA, em boa medida conduzidos pelos metaquestionamentos integrados, tanto metodológicos quanto teóricos, que levaram Cavalcanti a buscar a etnografia, porque essa perspectiva possibilitava, segundo ela, olhar com cuidado registros de campo não explicáveis por meio de arcabouços convencionais, reconhecer o desenho de pesquisa como flexível em todos os níveis, inclusive na própria pergunta de pesquisa, e tomar os registros como ponto de partida para a escolha e construção de arcabouço teórico (Cavalcanti, 2015Cavalcanti, M. C. (2015). Línguas ilegítimas em uma visão ampliada de educação linguística. In A. S. Zilles & C. A. Faraco (Orgs.), Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino (pp. 287-302). Parábola., p. 290). Também se mostrou central analisar a linguagem como prática social mediante microanálise etnográfica, o verbo em sua situação de uso, como afirmou Erickson (2021Erickson, F. (2021, 23 de abril). Pedro Garcez entrevista Frederick Erickson (P. Garcez, entrevistador) [arquivo audiovisual]. Associação de Linguística Aplicada do Brasil. https://youtu.be/NCAnu81eObQ.
https://youtu.be/NCAnu81eObQ...
).

Cabe destacar que, na já distante década de 1990, foi Cavalcanti uma das responsáveis pela promoção de seminários com Erickson no Brasil, formando um colégio invisível de linguistas aplicados que teve implicações centrais para nossas pesquisas pela crescente atenção à cena da fala, em tempo real, reconhecendo como as pessoas são contexto umas para as outras, por suas expressões faciais, do posicionamento do corpo, do cheiro, e a sua articulação com categorias sociais amplas, como raça, classe, gênero, etnicidade.

Nesses termos, o enquadramento etnográfico das pesquisas de Cavalcanti foi além da adoção de procedimentos metodológicos e epistemológicos. Ela trouxe princípios da Etnografia para o centro da discussão em LA, como a reflexividade, e reivindicou uma ética em pesquisa construída inter ou multiculturalmente em pesquisas feitas “de dentro”. Saberes das comunidades foram ouvidos e trazidos para as pesquisas e ao centro do fazer pesquisa em LA, por meio da elaboração de intercompreensões entre pesquisadores e participantes como atores engajados em suas práticas sociais.

Reconhecemos, assim, em Cavalcanti alguém que tomou “o campo das posições a partir do qual elas se engendram” (Bourdieu, 1976[1983]Bourdieu, P. (1976[1983]). O campo científico. In R. Ortiz (Org.), Pierre Bourdieu - Sociologia (pp. 122-155). Ática., p. 34, grifo no original), por tensionar o campo da LA como um “lugar de uma luta, mais ou menos desigual, entre agentes desigualmente dotados de capital específico e, portanto, desigualmente capazes de se apropriarem do produto do trabalho científico [...]” (p. 16). Desse modo, se temos atualmente uma discussão em certa medida sedimentada de que fazemos etnografia da linguagem em LA brasileira, avançamos porque Cavalcanti liderou outros linguistas aplicados a realizarem pesquisas com objetivos de escuta, assim empoderadores e profundamente marcados por reflexividade, constituindo, sim, etnografias críticas. Superamos assim discussões sobre o tempo necessário para o trabalho de campo na direção de formular o que constitui o nosso fazer etnografia na LA (Garcez & Schulz, 2015Garcez, P. M., & Schulz, L. (2015). Olhares circunstanciados: etnografia da linguagem e pesquisa em Linguística Aplicada no Brasil. D.E.L.T.A, 31(1), 1-34.).

4. Mercantilização da linguagem: do reconhecimento para também a distribuição7 7 Invocamos aqui mais uma vez o contraste que Fraser (1996) propôs entre o paradigma de justiça social que se configurou em torno de reconhecimento (“de perspectivas de minorias étnicas, ‘raciais’ e sexuais, além da diferença de gênero”, p. 3) e o paradigma antes mais estabelecido e depois talvez apagado, de (re)distribuição igualitária (“de recursos e bens … do Norte para o Sul, dos ricos para os pobres, dos proprietários para os trabalhadores”, p. 4).

Nossa interlocução mais recente (Garcez & Jung, 2021Garcez, P. M., & Jung, N. M. (2021). Mercantilização da linguagem no capitalismo recente: diversidades e mobilidades. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 338-346.) tem se ocupado principalmente com a Sociolinguística Etnográfica Crítica liderada por Heller e seus colaboradores, que vêm apontando (Heller, 2002Heller, M. (2002). Globalization, the new economy and the commodification of language and identity. Journal of Sociolinguistics, 7(4), 473-492., 2005Heller, M. (2005). Language, skill and authenticity in the globalized new economy. Revista de Sociolingüística, 2, 1-7., 2010Heller, M. (2010). The commodification of language. Annual Review of Anthropology, 39(1), 101-114.; Heller & Duchêne, 2012Heller, M., & Duchêne, A. (2012). Pride and profit: Changing discourses of language, capital and nation-state. In A. Duchêne e M. Heller (Orgs.), Language in late capitalism: Pride and profit (pp. 1-21). Routledge. , 2016Heller, M., & Duchêne, A. (2016). Treating language as an economic resource: Discourse, data and debate. In N. Coupland (Org.), Sociolinguistics: Theoretical debates (pp. 139-156). Cambridge University Press.) o amplo surgimento de elementos discursivos que tratam de linguagem e cultura em termos econômicos. Isso desloca o eixo das relações identitárias entre sujeito e “língua”, típicas do nacionalismo que marcou o capitalismo industrial, para incorporar relações econômicas entre sujeito e linguagem. No momento histórico atual do capitalismo tardio, o regime de regulação global dos mercados e as tensões daí emergentes dão origem, segundo Heller e Duchêne (2012Heller, M., & Duchêne, A. (2012). Pride and profit: Changing discourses of language, capital and nation-state. In A. Duchêne e M. Heller (Orgs.), Language in late capitalism: Pride and profit (pp. 1-21). Routledge. , p. 3), “[..] a novos tropos discursivos nos quais a linguagem desempenha um papel particularmente central, não apenas por seu papel na regulação e na legitimação de espaços político-econômicos, mas também pelo surgimento do setor terciário como um elemento definidor da nova economia globalizada”. Um fenômeno marcante disso é a mercantilização da linguagem como habilidade técnica ou como sinal de autenticidade a agregar valor a produtos ou nichos específicos (Heller, 2010Heller, M. (2010). The commodification of language. Annual Review of Anthropology, 39(1), 101-114.).

Tendo em vista esse segundo processo de mercantilização, Jung e Machado e Silva (2021Jung, N. M. & Machado e Silva, R. C. (2021). Deutsches fest: vergonha e orgulho em um evento de mobilizações simbólicas e econômicas. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 364-378.) recentemente voltaram seus olhares para a Deutsches Fest, evento que ocorre desde 2002 no mesmo município em que foram realizados os trabalhos em discussão até aqui (Jung, 2009; Jung & Garcez, 2007Jung, N. M. & Garcez, P. M. (2007). Além do repertório linguístico: aspectos simbólicos diversos na construção da identidade étnico-linguística alemã na escola de comunidade rural multilíngue. In M. C. Cavalcanti e S. Bortoni-Ricardo (Orgs.), Transculturalidade, Linguagem e Educação (pp. 97-122). Mercado de Letras.). As práticas de linguagem ali se transformaram em recursos para a busca de autenticidade identitária como atração para promover a festa anual que celebra uma “cultura germânica” difusa e a história do deslocamento migratório dos descendentes de alemães do Rio Grande do Sul para o Oeste do Paraná. A linguagem, nesse caso, agrega valor a produtos culturais resgatados e colocados à venda na festa. Na cidade, “cultura germânica” se associa à ideia de uma “cultura alemã” buscada para a festa, cujos elementos característicos, como vestimenta, comidas e bebidas típicas, músicas etc., foram introduzidos por meio de “cópias” de eventos em outros lugares. A língua alemã (seja a cotidiana local ou a formal/erudita, “padrão”) é singularidade associada a um coletivo cuja identidade alemã de origem é comemorada na Deutsches Fest, e o brasileiro identifica o pertencimento à nação brasileira.

À luz dos debates recentes sobre mercantilização da linguagem, Jung e Machado e Silva (2021Jung, N. M. & Machado e Silva, R. C. (2021). Deutsches fest: vergonha e orgulho em um evento de mobilizações simbólicas e econômicas. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 364-378.) puderam observar que as práticas de mercantilização da linguagem nesse caso apontam localmente não somente para lucro, mas para uma reversão da relação dessas práticas com uma identidade pouco valorizada para outra mais valorizada simbolicamente: o que remetia antes ao “colono envergonhado” passou a “orgulho de ser do local”. Antes, o modo de falar brasileiro e o modo de ser de moradores locais eram estigmatizados pelos moradores da cidade vizinha, de tal modo que eles, e elas principalmente, se sentiam envergonhados nessas interações e na identificação de si como “colono”.

Nesse conjunto de elementos manifestos na festa, mobilizados simbólica e economicamente também pela linguagem, o contexto local de experiência do capitalismo tardio parece ter resultado na busca pela autenticação de uma marca teuto-brasileira para o município. Em nossa reflexão sobre o caso aqui, no quadro da nossa longa interlocução sobre o cenário local e da nossa intensa discussão recente acerca de temas contemporâneos e à luz de Irvine e Gal (2000Irvine, J. T., & Gal, S. (2000). Language ideology and linguistic differentiation. In P. Kroskrity (Org.), Regimes of language: Ideologies, polities, and identities (pp. 35-84). School of American Research Press.) e Gal e Irvine (2019Gal, S., & Irvine, J. T. (2019). Signs of difference: Language and ideology is social life. Cambridge University Press.), vemos nesse movimento - de vergonha para orgulho via lucro - indicializações de celebração da branquitude hegemônica na “festa do município”8 8 Agradecemos a Daniel do Nascimento e Silva por ter nos chamado a atenção para isso. . Considerando apenas a história oficial segundo a qual a “colonização do município” foi realizada por descendentes de alemães que migraram do Rio Grande do Sul para o Paraná, assim desconsiderando os “outros locais,” a Deutsches Fest promove a iconização/rematização do repertório linguístico dos “colonos/colonizadores” alemães e o apagamento dos descendentes da população indígena e mestiça que já estava no local e também daqueles que chegaram mas não eram descendentes de alemães e que ocuparam parte do município como posseiros. Pela projeção de uma oposição entre nós e eles no eixo de diferenciação “alemães” autênticos - legítimos colonizadores responsáveis pela prosperidade local - vs. aqueles “outros”, posseiros, não brancos, criou-se uma lógica dicotômica que celebra o branco e invisibiliza os demais cidadãos, apagados da história oficial e do que é celebrado na festa.

Voltando nosso olhar agora com destaque para Kevin e Jaqueline, duas das crianças mais tuteladas ou acompanhadas pela professora Ana no estudo de Jung (2003Jung, N. M. (2003). Identidades sociais na escola: gênero, etnicidade, língua e as práticas de letramento em uma comunidade rural multilíngue [Tese de doutorado inédita]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), conforme mencionamos acima, hoje vemos, como nunca antes, a racialização desses agentes sociais marcadamente da periferia local. Vimos à época o centro marcado pelos valores buscados pelas mulheres locais (porque em certa medida muitos homens locais não precisavam desses valores por serem os “legítimos proprietários de terras”) - de urbanidade, de escolaridade, do português, como sinais de prestígio que, no entanto, deixamos de formular expressamente em termos de raça e classe social. Também então tínhamos em conta que os pais de Kevin e Jaqueline não eram proprietários de terras, mas trabalhavam como diaristas para proprietários. Hoje somos capazes de perceber que o que estava em disputa nas interações em sala de aula estava, por isso tudo, para além dos eixos de diferenciação em torno de identidades étnico-linguística alemã ou de gênero, eram também, e intricadamente, disputas relacionadas à economia política. Parece-nos hoje, portanto, que o modelo de letramento feminino da escola também tinha entre os seus feixes classe social e raça. A branquitude, concebida como “um lugar estrutural de vantagem e de privilégios ‘raciais’ baseados em práticas e identidades culturais, não necessariamente marcadas ou fixas, mas nas quais a brancura é estabelecida como valor simbólico e material” (Conceição, 2020Conceição, W. L. (2020). Branquitude: dilema racial brasileiro. Papéis Selvagens.), não nos era evidente nas relações de poder a produzir injustiça social.

5. O porvir

Apresentamos até aqui nossa trajetória de reflexão sobre um contexto sociolinguisticamente complexo no Oeste do Paraná. Se produzimos alguma inteligibilidade, isso tem sido elaborado em boa medida com Marilda Cavalcanti, inicialmente ao possibilitar avanços de compreensões de Neiva sobre as “dificuldades na leitura e escrita”, reenquadradas no bojo das práticas de letramento, sobre suas sensações de ter uma “língua fraca” na direção de se perceber em contexto sociolinguisticamente complexo, e de reconhecer a configuração identitária étnico-linguística articulada com gênero, raça e classe social num paradigma de justiça social (Fraser, 1996Fraser, N. (1996). Social justice in the age of identity politics: Redistribution, recognition, and participation. Conferência na Universidade Stanford. The Tanner Lectures on Human Values. https://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/f/Fraser98.pdf.
https://tannerlectures.utah.edu/_documen...
) atento a dinâmicas econômicas no eixo da distribuição de recursos e bens. Formular a Deutsches Fest como celebração da branquitude, como fazemos aqui, contudo, não é cômodo. Pelo contrário, essas aprendizagens ou movimentos da mão que movem o calidoscópio nos deslocam dos nossos lugares de privilégio, da branquitude e das frações dominadas da classe social dominante. De minoria linguística e membro de grupos minoritarizados, Neiva se reconhece agora também como membro de família que empregava e que podia pagar pelo seu tempo para a Educação Básica. Pedro se vê, claro, na sua posicionalidade ainda mais hegemônica. A assunção desse desassossego foi construída em boa medida em interlocução com Marilda, que nunca se limitou a um lugar de conforto ao buscar compreender a linguagem na vida de pessoas e grupos sociais além do centro, convidando pessoas desses grupos a participar da conversa, mostrando que paradigmas de língua e de ciência precisavam ser tensionados.

Para o porvir, não prevemos uma conversa fácil. Olhar para a linguagem como terreno de disputas, de interesses, nos leva a reconhecer o seu papel central na economia política, e nos força a aprender mais sobre classe social, colonialismo, branquitude. Para além do repertório linguístico, precisaremos olhar para a distribuição, para o modo como tensões e disputas ocorrem no terreno da linguagem de pessoas socialmente posicionadas, buscando compreender os múltiplos modos como as ideologias de linguagem se imbricam com desigualdade e injustiça social, e vislumbrar como enfrentá-los com responsabilidade.

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  • 3
    Trata-se da variedade amplamente reconhecida na literatura acadêmica como hunsrückisch ou hunsriqueano, localmente nomeada tão somente como alemão (por exemplo: “fulano fala alemão?”). Sem desconsiderar as controvérsias quanto à nomeação, seja “dialeto hunsrückisch” ou “língua brasileira de imigração” (como em Altenhofen & Morello, 2018Altenhofen, C. V., & Morello, R. (Orgs.). (2018). Hunsrückisch: inventário de uma língua do Brasil. Garapuvu.), utilizaremos aqui o termo “alemão” porque é assim que os participantes se referem a esse item do repertório linguístico da comunidade local.
  • 4
    “Colonização” é o termo utilizado na historiografia oficial do município para descrever a vinda de descendentes de imigrantes alemães para realizar o povoamento do local. Contudo, como problematizam Jung e Machado e Silva (2021Jung, N. M. & Machado e Silva, R. C. (2021). Deutsches fest: vergonha e orgulho em um evento de mobilizações simbólicas e econômicas. Trabalhos em Linguística Aplicada, 60(2), 364-378.), essa narrativa oficial e hegemônica vem sendo questionada por não levar em consideração grupos que já habitavam a região. Por essas razões, usamos aqui também aspas tanto para identificar o uso local quanto para suspender seu significado hegemônico.
  • 5
    Tal como procedemos em relação ao “alemão”, nomeamos como “brasileiro” a variedade local do português, porque é assim que as pessoas da comunidade se referem ao português que falam.
  • 6
    As convenções de transcrição (ver Apêndice) utilizadas seguem Jung (2003Jung, N. M. (2003). Identidades sociais na escola: gênero, etnicidade, língua e as práticas de letramento em uma comunidade rural multilíngue [Tese de doutorado inédita]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) e Kanitz e Garcez (2020Kanitz, A. & Garcez, P. M. (2020) Resolução de problemas e construção conjunta de conhecimento na fala-em-interação em cenário de desenvolvimento tecnológico. Trabalhos em Linguística Aplicada, 59(2), 1259-1287.).
  • 7
    Invocamos aqui mais uma vez o contraste que Fraser (1996Fraser, N. (1996). Social justice in the age of identity politics: Redistribution, recognition, and participation. Conferência na Universidade Stanford. The Tanner Lectures on Human Values. https://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/f/Fraser98.pdf.
    https://tannerlectures.utah.edu/_documen...
    ) propôs entre o paradigma de justiça social que se configurou em torno de reconhecimento (“de perspectivas de minorias étnicas, ‘raciais’ e sexuais, além da diferença de gênero”, p. 3) e o paradigma antes mais estabelecido e depois talvez apagado, de (re)distribuição igualitária (“de recursos e bens … do Norte para o Sul, dos ricos para os pobres, dos proprietários para os trabalhadores”, p. 4).
  • 8
    Agradecemos a Daniel do Nascimento e Silva por ter nos chamado a atenção para isso.

Apêndice


Convenções de transcrição

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2021
  • Aceito
    16 Out 2021
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