Acessibilidade / Reportar erro

Educação de surdos, letramentos e translinguagem na pós-modernidade: palavras e movimentos iniciais

Deaf education, literacies and translanguaging in post-modernity: words and initial movements

Nossas vidas hoje estão profundamente marcadas por múltiplas crises: o quase divórcio, como aponta Krenak (2020Krenak, A. (2020). O amanhã não está à venda. Companhia das Letras.), entre a humanidade e a natureza; a falta de confiança entre os seres humanos, principalmente entre os governantes e os governados, como salienta Harari (2020Harari, Y. N. (2020). Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade. Companhia das Letras.); a violência da positividade como produto da superprodução e do superdesempenho, como indica Han (2015Han, B.-C. (2015). Sociedade do cansaço. Vozes.); além do abismo entre poder e política, que dissolve as condições necessárias para a ação efetiva e nos tira a esperança de um mundo melhor para todas as pessoas no planeta, como sugere Bauman (2017Bauman, Z. (2017). Retrotopia. Zahar.). Esse cenário complexo é marcado por uma abstração civilizatória que, desde sempre, negou a pluralidade de formas de existência, suprimiu a diversidade, hierarquizou os modos de produção de sentidos e consolidou a desigualdade social como característica intrínseca das sociedades. E ainda hoje, observa-se, na dinâmica atual, que o processo de globalização, vinculado ao capitalismo destrutivo e dadocêntrico, apesar de ter enfraquecido fronteiras, imprimindo mudanças radicais nas relações sociais, fez prevalecer a lógica dicotômica, racionalista e colonial, que rotula pessoas de maneira estigmatizante e violenta, bem como naturaliza desigualdades das mais variadas ordens.

Nesse contexto, verifica-se o desenho de uma arquitetura sociolinguística, que, muitas vezes, sob uma ótica perversa e excludente, invisibiliza minorias linguísticas, como os surdos. No entanto, esse estado de permanente crise pode nos impulsionar a buscar, por meio de agenciamentos críticos e criativos, maneiras de se (re)construir uma sociedade mais justa, socialmente responsiva e inclusiva para todas as pessoas que, de alguma forma, têm seus modos de existência apagados e deslegitimados, como acontece com as comunidades surdas.

Nas últimas décadas, houve uma mudança no paradigma da educação linguística de surdos no Brasil, que passou a ser delineada a partir de uma perspectiva bilíngue, com o Decreto n. 5,626, de 22 de dezembro de 2005, que, além de regulamentar a Lei de Libras (Lei n. 10.436, de 24 de abril de 2002), já preconizava a oferta da língua de sinais, como disciplina curricular, e a formação de professores, para atuar com alunos surdos. De lá para cá, entre os marcos normativos instituídos, destacam-se, em 2008, a publicação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE); em 2020, uma nova versão do PNEE; e, em 2021, a Lei n. 14.191, que finalmente alterou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996), para dispor sobre a modalidade bilíngue de surdos. A despeito das legislações vigentes, na maioria das vezes, ainda vigora uma perspectiva monolítica de língua, que desconsidera as complexas e plurais práticas de linguagens de pessoas surdas (Cavalcanti, 2013Cavalcanti, M. C. (2013). Educação linguística na formação dos professores de línguas: intercompreensão e práticas translíngues. In L. P. Moita Lopes (Org.), Linguística aplicada na modernidade recente (pp. 211-226). Parábola.; Nogueira, 2020Nogueira, A. S. (2020). Práticas translíngues na educação linguística de surdos mediada por tecnologias digitais. Diacrítica, 34(1), 291-310. https://doi.org/10.21814/diacritica.337
https://doi.org/10.21814/diacritica.337...
).

De forma subliminar, instaurou-se uma contraposição entre dois sistemas linguísticos diferentes que trazem em seu bojo um conflito diglóssico, entre língua alvo/padrão/de prestígio X língua materna/primeira língua, na ocupação linguística de espaços, impondo às pessoas surdas a aquisição da segunda língua, de modo aditivo ou subtrativo (García, 2009García, O. (2009). Bilingual education in the 21st century: a global perspective. Blackwell.). Dessa forma, uma vez que, até o presente momento, a libras não configura como disciplina regular de ensino, o que se pode observar é o predomínio do ensino da língua portuguesa escrita e, de maneira geral, na modalidade de língua materna. Diante disso, mostra-se importante compreender que contextos definidos como bilíngues são, na verdade, sempre multilíngues, uma vez que uma língua traz, no seu interior, muitas outras (César & Cavalcanti, 2007César, A. L. & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. C. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Orgs), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66). Mercado das Letras.). Essas variantes desconstroem uma visagem de falante monolíngue, já que os sujeitos “transitam entre códigos, registros e discursos” (Canagarajah, 2011Canagarajah, S. (2011). Translanguaging in the classroom: emerging issues for research and pedagogy. Applied Linguistics Review, 2(2011), 1-28. https://doi.org/10.1515/9783110239331.1
https://doi.org/10.1515/9783110239331.1...
, p. 4).

Nesse horizonte, portanto, acatamos a urgência de movimentos transgressivos perante visões sedimentadas e reducionistas de língua/linguagem, a fim de desafiarmos epistemologias monolíngues e colonizadoras e, assim, favorecermos redes epistêmicas socialmente mais justas e equânimes e, portanto, mais abertas à dinamicidade, à mobilidade, à pluralidade e à diversidade no mundo contemporâneo (Pennycook, 2018Pennycook, A. (2018). Applied linguistics as epistemic assemblage. AILA review, 31(1), 113-134. https://doi.org/10.1075/aila.00015.pen
https://doi.org/10.1075/aila.00015.pen...
). Nessa perspectiva e diante dos dilemas de nossa época, reconhecemos que a justiça social e cognitiva (Santos, 2018Santos, B. S. (2018). The end of the cognitive empire: the coming of age of epistemologies of the South. Duke University Press.) pressupõe um alinhamento à justiça existencial (Pennycook & Makoni, 2019Pennycook, A., & Makoni, S. (2019). Innovations and challenges in applied linguistics from the global South. Routledge.) para que possamos enfrentar o pensamento opressor e reinventar realidades linguísticas (García, 2020García, O. (2020). Foreword: co-labor and re-performances. In E. Moore, J. Bradley & J. Simpson (Eds.), Translanguaging as transformation: the collaborative construction of new linguistic realities (pp. xvii-xxii). Multilingual Matters.).

A educação linguística de bases transgressivas e decoloniais, por consequência, ocupa-se de práticas sociais potencialmente mais participativas, críticas e criativas, a fim de promover desestabilização e ruptura perante as mais diversas formas de ideologias, políticas e práticas hegemônicas, buscando oferecer condições para a emergência de um pensamento alternativo, que evidencia sua disposição decolonizadora por também refutar o dogmatismo, a arrogância, a presunção e o perfeccionismo (Stein et al., 2020Stein, S., Andreotti, V., Suša, R., Amsler, S., Hunt, D., Ahenakew, C., Jimmy, E., Čajková, T., Valley, W., Cardoso, C., Siwek, D., Pitaguary, B., Pataxó, U., D’Emilia, D., Calhoun, B., & Okano, H. (2020). Gesturing towards decolonial futures: reflections on our learnings thus far. Nordic Journal of Comparative and International Education, 4(1), 43-65. http://doi.org/10.7577/njcie.3518
http://doi.org/10.7577/njcie.3518...
). Nesse sentido, as escolas devem ensejar espaços, que se desejam críticos e criativos de linguagem, fomentando práticas de letramentos críticos, em que o ensino da língua portuguesa escrita não se desenvolva de modo reducionista, restringindo-se a aspectos gramaticais, mas conjugue elementos lexicais, semânticos e discursivos. Essa educação mostra-se, portanto, alinhada à busca por práticas e políticas potencialmente capazes de promover uma cultura de diálogo (Bauman, 2017Bauman, Z. (2017). Retrotopia. Zahar.) que nos permita perceber o outro - o estrangeiro, o imigrante, o surdo, entre outros grupos minoritarizados, como parceiros na e para a (re)construção e a reinvenção dessa nova sociedade.

Para tal propósito, cabe pensar a formação de professores sob uma perspectiva decolonial, a fim de que emerjam outras formas de pensar a sala de aula, como local de intercruzamento de diversos saberes, distantes de práticas hegemônicas e excludentes. Além disso, cabe ressaltar, no que diz respeito à educação de surdos, que os cursos de licenciaturas, de maneira geral, ainda não fornecem formação para o ensino da língua portuguesa escrita numa perspectiva de segunda língua, que associado à falta de implementação de espaços bilíngues, ausência de intérpretes, entre outras questões, contribuem sobremaneira para construção de uma “linha abissal” (Santos, 2019Santos, B. S. (2019). O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul. Autêntica.) entre o conhecimento e a comunidade surda.

Para tanto, há uma necessidade premente em se consolidar políticas linguísticas e educacionais de modo a atender minorias cujas formas de existência e expressão, como é o caso da comunidade surda, escapem às perspectivas dominantes impostas, as quais têm geralmente se firmado pela imposição de uma visão monolíngue e pelo grafocentrismo. De maneira mais específica, nessa linha, em contextos escolares, o repertório do surdo é reprimido e a língua de instrução não é praticada sob um enfoque plural e translíngue, o que contribui para a manutenção de um processo de subalternização e opressão. A translinguagem, como teoria e prática cotidiana (Mazzaferro, 2018Mazzaferro, G. (Ed.) (2018). Translanguaging as everyday practice. Springer.), como política (Canagarajah & Dovchin, 2019Canagarajah, S., & Dovchin, S. (2019). The everyday politics of translingualism as resistance practice. International Journal of Multilingualism , 16(2), 127-144. https://doi.org/10.1080/14790718.2019.1575833
https://doi.org/10.1080/14790718.2019.15...
) e também como pedagogia (García & Wei, 2014García, O., & Wei, L. (2014). Translanguaging: language, bilingualism, and education. Palgrave Macmillan.), é assim compreendida como um paradigma alternativo que nos permite atravessar, seja no campo educativo, seja em outras esferas sociais, entendimentos reducionistas no que diz respeito à linguagem, ao conhecimento, ao mundo e às pessoas, possibilitando o enfrentamento de processos de minoritarização, racialização e manutenção da colonialidade (García, 2020García, O. (2020). Foreword: co-labor and re-performances. In E. Moore, J. Bradley & J. Simpson (Eds.), Translanguaging as transformation: the collaborative construction of new linguistic realities (pp. xvii-xxii). Multilingual Matters.). Práticas (pedagógicas) translíngues, nesse horizonte, revelam-se (indisciplinarmente) enativa-performativas e, nesse caso, não é possível separar as linguagens de nossos corpos, experiências estéticas e histórias de vida (García, 2020García, O. (2020). Foreword: co-labor and re-performances. In E. Moore, J. Bradley & J. Simpson (Eds.), Translanguaging as transformation: the collaborative construction of new linguistic realities (pp. xvii-xxii). Multilingual Matters.). As práticas sociais, nesses processos translíngues e transformativos de produção de sentidos e conhecimentos, podem também ser entendidas como experiências de linguagens e letramentos (García, 2020García, O. (2020). Foreword: co-labor and re-performances. In E. Moore, J. Bradley & J. Simpson (Eds.), Translanguaging as transformation: the collaborative construction of new linguistic realities (pp. xvii-xxii). Multilingual Matters.) que atravessam nossos corpos (Blackledge & Creese, 2019Blackledge, A., & Creese, A. (2017). Translanguaging and the body. International Journal of Multilingualism, 14(3), 250-268. https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315809
https://doi.org/10.1080/14790718.2017.13...
).

Nesse horizonte, a linguagem, por sua vez, deixa de ser vista como um conjunto fechado e autossuficiente de signos, vinculada a atividades comunicativas estáticas, para assumir-se como prática corporificada e performada por pessoas de modo complexo, relacional, reflexivo e dialógico (Mazzaferro, 2018Mazzaferro, G. (Ed.) (2018). Translanguaging as everyday practice. Springer.). Como enfatizam Pennycook e Otsuji (2015Pennycook, A., & Otsuji, E. (2015). Metrolingualism: language in the city. Routledge.), as interações sociais, nesse viés, não são percebidas como a colisão individual de trajetórias, mas representam a complexa e situada constelação de recursos semióticos móveis, em combinação com as pessoas e a organização do espaço. Repertórios translíngues podem ser relacionados, portanto, com uma assemblagem multimodal e multissensorial, corporificada e situada no tempo-espaço (Pennycook, 2017Pennycook, A. (2017). Translanguaging and semiotic assemblages. International Journal of Multilingualism , 14(3), 269-282. https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315810
https://doi.org/10.1080/14790718.2017.13...
; Canagarajah, 2018Canagarajah, S. (2018). Translingual practice as spatial repertoire: expanding the paradigm beyond structuralist orientations. Applied Linguistics, 39(1), 31-54. https://doi.org/10.1093/applin/amx041
https://doi.org/10.1093/applin/amx041...
; Mazzaferro, 2018Mazzaferro, G. (Ed.) (2018). Translanguaging as everyday practice. Springer.). Para García e Wei (2014García, O., & Wei, L. (2014). Translanguaging: language, bilingualism, and education. Palgrave Macmillan.), tais práticas se realizam sempre de modo dinamicamente criativo e crítico, em espaços dinâmicos de tensão e transformação.

Em sua vertente transformativa, que busca desestabilizar políticas, ideologias e discursos centralizadores, a translinguagem assume mais fortemente seu potencial decolonial (Canagarajah, 2017Canagarajah, S. (2017). Translingual practices and neoliberal policies: attitudes and strategies of African skilled migrants in anglophone workplaces. Springer.; Rocha, 2019Rocha, C. H. (2019). Educação linguística na liquidez da sociedade do cansaço: o potencial decolonial da perspectiva translíngue. DELTA, 35(4), e2019350403. https://doi.org/10.1590/1678-460X2019350403
https://doi.org/10.1590/1678-460X2019350...
) e pode ser vista como um possível caminho para a construção de contornos mais tangíveis de práticas educativas constituídas pelo e para o diálogo em praça pública, ou seja, comprometidos com a reinvenção de formas de existência mais fortemente comunais. A educação em sua vertente translíngue evidencia-se, assim, como um potente meio para a promoção de práticas mais democratizadoras, principalmente para as comunidades surdas, que dificilmente encontram espaços educacionais dispostos a possibilitar que seus repertórios linguísticos, multissemióticos, culturais e identitários sejam explorados em suas amplas e complexas potencialidades (Dorta & Silva, 2018Dorta, J. V., & Silva, I. R. (2019). Língua(s) e mediação tecnológica: apresentação de um projeto de ensino de português para surdos em um programa bilíngue. In D. M. Jesus & L. S. Furlaneto (Orgs.), Educação inclusiva: ensino e formação de professores de línguas (pp. 199-216). Pontes.).

Uma práxis pedagógica sob esse prisma afasta-se da concepção da mescla de línguas em ambientes (bi)multilíngues como um produto de interferência linguística, em que a escrita do surdo é tratada de modo deficiente, por se exigir dele domínio em dois idiomas, em vez de uma multicompetência simbiótica entre seus repertórios linguísticos. Nesse viés, situa-se o aprendizado num continuum que atravessa as línguas e transforma a relação entre docente e discentes, cuja prática integrada e transdisciplinar permite a construção do conhecimento para além da(s) linguagem(s) (Wei, 2018Wei, L. (2018). Translanguaging as a practical theory of language. Applied Linguistics , 39(1), 9-30. https://doi.org/10.1093/applin/amx039
https://doi.org/10.1093/applin/amx039...
).

Compreendendo a Linguística Aplicada como um espaço de fortalecimento dessa cultura de diálogo, a qual permite um fazer fronteiriço e desobediente (Mignolo, 2017Mignolo, W. (2017). Desafios decoloniais hoje. Revista Epistemologias do Sul, 1(1), 12-32. https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/view/772
https://revistas.unila.edu.br/epistemolo...
), este dossiê se propõe a explorar possibilidades de articulação entre os fundamentos da orientação translíngue (Canagarajah, 2013Canagarajah, S. (2013). Translingual practice: global Englishes and cosmopolitan relations. Routledge.; García & Wei, 2014García, O., & Wei, L. (2014). Translanguaging: language, bilingualism, and education. Palgrave Macmillan.; Rocha & Maciel, 2015Rocha, C. H., & Maciel, R. F. (2015). Ensino de língua estrangeira como prática translíngue: articulações com teorias bakhtinianas. DELTA , 31(2), 411-445. https://doi.org/10.1590/0102-4450437081883001191
https://doi.org/10.1590/0102-44504370818...
; Lucena & Cardoso, 2018Lucena, M. I. P., & Cardoso, A. C. (2018). Translinguagem como recurso pedagógico: uma discussão etnográfica sobre práticas de linguagem em uma escola bilíngue. Calidoscópio, 16(1), 143-151. https://doi.org/10.4013/cld.2018.161.13
https://doi.org/10.4013/cld.2018.161.13...
; Rocha, 2019Rocha, C. H. (2019). Educação linguística na liquidez da sociedade do cansaço: o potencial decolonial da perspectiva translíngue. DELTA, 35(4), e2019350403. https://doi.org/10.1590/1678-460X2019350403
https://doi.org/10.1590/1678-460X2019350...
, entre outros), da educação linguística de surdos (Cavalcanti & Silva, 2007Cavalcanti, M. C., & Silva, I. R. (2007). “Já que ele não fala, podia ao menos escrever...”: o grafocentrismo naturalizado que insiste em normalizar o surdo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 219-242). Mercado de Letras.; Pereira & Muniz, 2015Pereira, D. C. M., & Muniz, V. C. (2015). Surdos na universidade: questões de letramentos, cultura e identidade. Pensares em Revista, (6), 51-69. https://doi.org/10.12957/pr.2015.18429
https://doi.org/10.12957/pr.2015.18429...
; Silva & Favorito, 2018Silva, I. R., & Favorito, W. (2018). Reflexões sobre o estatuto das línguas nos contextos bi-multilíngues de educação para surdos no Brasil. Línguas & Letras, 19(44), 149-167. https://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/20571
https://e-revista.unioeste.br/index.php/...
) e de práticas de letramentos orientadas para movimentos de resistência e reexistência (Souza, 2011Souza, A. L. S. (2011). Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança: hip-hop. Parábola.).

Interessou-nos, portanto, abrir o dossiê para trabalhos no campo dos estudos da linguagem que, em sua interface com as políticas e práticas sociais, linguísticas e educativas ligadas às comunidades surdas, considerando-se toda sua pluralidade e complexidade, revelassem enfoques teórico-analítico-metodológicos transgressivos ou translíngues. Espera-se, nesse contexto, contribuir para debates sob um viés decolonial, descentralizador e transformativo, que levem em conta a multiplicidade semiótica, sensorial e sociocultural das práticas de linguagens contemporâneas e possam oferecer resistência e alternativas perante políticas e práticas sociais e educacionais conservadoras, reducionistas e opressoras, abrindo possibilidades para a reinvenção de realidades linguísticas e de mundos.

Nesse horizonte, compondo nosso dossiê, temos inicialmente a contribuição de Russell Aldersson, vinculado ao Instituto de Educação, da Universidade de Londres (UCL), Reino Unido. Em seu texto, intitulado Alunos adultos surdos e o professor: construção de conhecimento e significado através das lentes da translinguagem e repertórios semióticos, o autor se pauta em um estudo sobre as práticas de línguas de três grupos de estudantes surdos da língua inglesa, todos usuários da Língua de Sinais Britânica (BSL). Sob o enfoque translíngue, o artigo visa a explorar como se dá a interação entre o inglês e a BSL, levando-se em conta também outros recursos semióticos no processo de comunicação e aprendizagem. Assim sendo, o texto traz valiosas contribuições para uma compreensão mais ampla sobre o processo de construção de significados de pessoas surdas em contexto de aprendizagem de uma língua adicional.

O segundo artigo, Práticas translinguísticas na educação de imigrantes adultos surdos, é de autoria das pesquisadoras Nora Duggan, Ingela Holmström e Krister Schönström, da Universidade de Estocolmo, Suécia. O foco central do texto é discutir a situação multilíngue vivenciada por imigrantes surdos no referido país. Para tanto, as autoras, inicialmente, discorrem sobre o cenário da educação de adultos surdos. Na sequência, problematizam o desenvolvimento das práticas translinguísticas de imigrantes surdos inseridos em um contexto educativo que envolve duas instituições públicas. O texto contribui, entre outros pontos, para o reconhecimento de que práticas translíngues dependem em grande parte de capacidades individuais e que, por si só, a translinguagem não auxilia a aprendizagem da uma língua adicional. Assim sendo, o artigo sinaliza para a necessidade de uma reflexão mais ampla e informada acerca de ações e estratégias translinguísticas que contribuam para a vivência de um processo de ensino e aprendizagem mais efetivo no que se refere a surdos imigrantes.

Everton Pessôa de Oliveira e Fernanda Coelho Liberali, ambos vinculados à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coautoram o artigo Práticas translíngues como instrumento decolonial para alargar gretas. Os autores advogam em favor de propostas educativas desencapsuladoras e decoloniais para sujeitos surdos, a fim de que seja possível fortalecer a luta da comunidade surda e erguer a sua voz. O contexto que oferece bases para o estudo e as discussões promovidas no artigo são os encontros formativos do Programa Digitmed (PUC-SP), que visa, entre outras ações, a viabilizar propostas que desafiem as desigualdades sociais. Nesse viés, as práticas translíngues são compreendidas como elemento central para que surdos e ouvintes se engajem, de modo protagonista, em movimentos insurgentes que possibilitam o alargamento de fissuras. O artigo nos oferece, assim, a oportunidade de reflexão sobre a importância da translinguagem como um potente recurso para o enfrentamento de adversidades, linguísticas e contextuais, e para a expansão de condições propícias à coexistência decolonial.

Na sequência, Ana Flora Schlindwein (Universidade Federal de Sergipe), em parceria com Daniele Silva Rocha (Universidade Federal de São Carlos), discutem a importância e o efeito da presença das tecnologias digitais no processo de comunicação dos surdos na sociedade atual. Em seu artigo, intitulado Libras e tecnologia: práticas translíngues na produção de youtubers surdos, as autoras problematizam a relação entre as inovações tecnológicas e as práticas de linguagem dos surdos, sob a ótica da translinguagem. Para o desenvolvimento dessas reflexões, são exploradas a diversidade linguística e a pluralidade semiótica constitutivas do processo de produção de sentidos em dois canais protagonizados por youtubers surdos. A análise desenvolvida contribui, entre outros, para desafiar as ideologias opressoras frente à pluralidade linguística e identitária, como também a imagem do Brasil como um país monolíngue.

O quinto artigo deste dossiê tem como autoras Maria Carolina Lúgaro e Maria Helena Araújo e Sá, ambas da Universidade de Aveiros, Portugal, em parceria com Ana Isabel Silva, do Instituto Politécnico de Viseu, Portugal. Sob o título Atitudes e disposições dos surdos na leitura de textos plurilíngues com uma abordagem de intercompreensão, o texto traz uma rica e importante reflexão sobre a natureza plurilíngue desse enfoque. Nesse horizonte, as autoras argumentam em favor da intercompreensão como uma abordagem que pode contribuir grandemente para o desenvolvimento das literacias dos surdos, além de favorecer sua integração na sociedade atual, marcadamente multilíngue e multimodalizada. Os dados analisados são provenientes de um Programa de Intercompreensão em Línguas, cujo foco central recaiu em práticas de leitura. Os resultados do estudo contribuem para o reconhecimento de que esforço, investimento cognitivo e psicológico, bem como autoconfiança e resiliência, por parte dos alunos surdos, são elementos fundamentais para a aprendizagem efetiva. Além disso, as autoras salientam que uma abordagem aberta à multiplicidade de línguas e modalidades linguísticas favorecem à expansão de repertórios (translíngues).

Na sequência, Aryane S. Nogueira, pesquisadora e professora da Universidade Estadual de Campinas, nos apresenta o artigo É para escrever o português ou a libras?: nuances da translinguagem na educação linguística de surdos. Com vistas a promover um entendimento mais acentuadamente multifacetado frente à complexidade das realidades cotidianas da translinguagem vivenciada por sujeitos surdos, a autora problematiza a interação translíngue entre estudantes e professoras em situações de ensino-aprendizagem do português escrito. A análise apontou para a presença de nuances translíngues ao longo do processo educativo, que envolvem elementos de natureza espacial, tensional e momentânea. Essas movimentações são compreendidas pela autora como elementos-chaves para a realização das atividades educativas propostas e, consequentemente, para a aprendizagem mais efetiva. O artigo contribui para o enfrentamento de concepções tradicionalmente cristalizadas de competência linguística, bem como de interferência e interlíngua, ao propor conceitos alternativos, sob o viés translíngue.

Por fim, Ana Cecília Cossi Bizon e Ivani Rodrigues Silva, ambas vinculadas à Universidade Estadual de Campinas, encerram o dossiê, com o artigo “Eu também posso escrever!”: narrando a produção de material didático de Português como Segunda Língua para Surdos em uma perspectiva decolonial e translíngue. Com base em um enfoque translíngue e decolonial, as autoras descrevem e analisam o processo de elaboração de um material didático de Português como Segunda Língua para Surdos (PL2/Surdos). O texto traz, ainda, discussões sobre como um grupo de professoras em formação percebe a operacionalização do referido material didático. As reflexões apresentadas, tanto pelas autoras, como por esse grupo de licenciandas revelam a urgência de que a educação de surdos seja (re)pensada a partir de enfoques mais pautados pela pluralidade cultural, social e linguística, a fim de que as práticas e materiais educativos possam refletir com mais força essa diversidade.

Esperamos que as discussões propostas neste dossiê possam colaborar para a ampliação de debates em torno da compreensão de que a translinguagem, como fenômeno cotidiano, político e pedagógico, fornece meios para se enfrentar situações adversas, principalmente no que diz respeito ao processo de minoritarização vivenciado por pessoas surdas em sua vida social e acadêmica. As práticas translíngues, portanto, revelam-se mais humanas e mais justas, na medida em que propõem uma participação mais crítica e criativa das minorias, perante práticas hegemônicas monolíngues.

Além disso, almejamos fomentar reflexões a respeito de uma educação linguística assentada a partir de bases transgressivas e decoloniais, abrindo novos prismas para se pensar a educação de surdos fundamentada em uma educação linguística ampliada (Cavalcanti, 2013Cavalcanti, M. C. (2013). Educação linguística na formação dos professores de línguas: intercompreensão e práticas translíngues. In L. P. Moita Lopes (Org.), Linguística aplicada na modernidade recente (pp. 211-226). Parábola.), em uma perspectiva fluida e híbrida, buscando romper com o dogmatismo e a arrogância das práxis tradicionais da modernidade. Essa perspectiva mostra que não deve haver descontinuidade entre linguagem e sociedade por serem ambas fundamentalmente centradas no contexto em que as pessoas vivem e agem.

Referências

  • Bauman, Z. (2017). Retrotopia Zahar.
  • Blackledge, A., & Creese, A. (2017). Translanguaging and the body. International Journal of Multilingualism, 14(3), 250-268. https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315809
    » https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315809
  • Canagarajah, S. (2011). Translanguaging in the classroom: emerging issues for research and pedagogy. Applied Linguistics Review, 2(2011), 1-28. https://doi.org/10.1515/9783110239331.1
    » https://doi.org/10.1515/9783110239331.1
  • Canagarajah, S. (2013). Translingual practice: global Englishes and cosmopolitan relations Routledge.
  • Canagarajah, S. (2017). Translingual practices and neoliberal policies: attitudes and strategies of African skilled migrants in anglophone workplaces Springer.
  • Canagarajah, S. (2018). Translingual practice as spatial repertoire: expanding the paradigm beyond structuralist orientations. Applied Linguistics, 39(1), 31-54. https://doi.org/10.1093/applin/amx041
    » https://doi.org/10.1093/applin/amx041
  • Canagarajah, S., & Dovchin, S. (2019). The everyday politics of translingualism as resistance practice. International Journal of Multilingualism , 16(2), 127-144. https://doi.org/10.1080/14790718.2019.1575833
    » https://doi.org/10.1080/14790718.2019.1575833
  • Cavalcanti, M. C. (2013). Educação linguística na formação dos professores de línguas: intercompreensão e práticas translíngues. In L. P. Moita Lopes (Org.), Linguística aplicada na modernidade recente (pp. 211-226). Parábola.
  • Cavalcanti, M. C., & Silva, I. R. (2007). “Já que ele não fala, podia ao menos escrever...”: o grafocentrismo naturalizado que insiste em normalizar o surdo. In A. B. Kleiman & M. C. Cavalcanti (Orgs.), Linguística aplicada: suas faces e interfaces (pp. 219-242). Mercado de Letras.
  • César, A. L. & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado: o conceito de língua como caleidoscópio. In M. C. Cavalcanti & S. M. Bortoni-Ricardo (Orgs), Transculturalidade, linguagem e educação (pp. 45-66). Mercado das Letras.
  • Dorta, J. V., & Silva, I. R. (2019). Língua(s) e mediação tecnológica: apresentação de um projeto de ensino de português para surdos em um programa bilíngue. In D. M. Jesus & L. S. Furlaneto (Orgs.), Educação inclusiva: ensino e formação de professores de línguas (pp. 199-216). Pontes.
  • García, O. (2009). Bilingual education in the 21st century: a global perspective Blackwell.
  • García, O. (2020). Foreword: co-labor and re-performances. In E. Moore, J. Bradley & J. Simpson (Eds.), Translanguaging as transformation: the collaborative construction of new linguistic realities (pp. xvii-xxii). Multilingual Matters.
  • García, O., & Wei, L. (2014). Translanguaging: language, bilingualism, and education Palgrave Macmillan.
  • Han, B.-C. (2015). Sociedade do cansaço Vozes.
  • Harari, Y. N. (2020). Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade Companhia das Letras.
  • Krenak, A. (2020). O amanhã não está à venda Companhia das Letras.
  • Lucena, M. I. P., & Cardoso, A. C. (2018). Translinguagem como recurso pedagógico: uma discussão etnográfica sobre práticas de linguagem em uma escola bilíngue. Calidoscópio, 16(1), 143-151. https://doi.org/10.4013/cld.2018.161.13
    » https://doi.org/10.4013/cld.2018.161.13
  • Mazzaferro, G. (Ed.) (2018). Translanguaging as everyday practice Springer.
  • Mignolo, W. (2017). Desafios decoloniais hoje. Revista Epistemologias do Sul, 1(1), 12-32. https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/view/772
    » https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/view/772
  • Nogueira, A. S. (2020). Práticas translíngues na educação linguística de surdos mediada por tecnologias digitais. Diacrítica, 34(1), 291-310. https://doi.org/10.21814/diacritica.337
    » https://doi.org/10.21814/diacritica.337
  • Pennycook, A. (2017). Translanguaging and semiotic assemblages. International Journal of Multilingualism , 14(3), 269-282. https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315810
    » https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315810
  • Pennycook, A. (2018). Applied linguistics as epistemic assemblage. AILA review, 31(1), 113-134. https://doi.org/10.1075/aila.00015.pen
    » https://doi.org/10.1075/aila.00015.pen
  • Pennycook, A., & Makoni, S. (2019). Innovations and challenges in applied linguistics from the global South Routledge.
  • Pennycook, A., & Otsuji, E. (2015). Metrolingualism: language in the city Routledge.
  • Pereira, D. C. M., & Muniz, V. C. (2015). Surdos na universidade: questões de letramentos, cultura e identidade. Pensares em Revista, (6), 51-69. https://doi.org/10.12957/pr.2015.18429
    » https://doi.org/10.12957/pr.2015.18429
  • Rocha, C. H. (2019). Educação linguística na liquidez da sociedade do cansaço: o potencial decolonial da perspectiva translíngue. DELTA, 35(4), e2019350403. https://doi.org/10.1590/1678-460X2019350403
    » https://doi.org/10.1590/1678-460X2019350403
  • Rocha, C. H., & Maciel, R. F. (2015). Ensino de língua estrangeira como prática translíngue: articulações com teorias bakhtinianas. DELTA , 31(2), 411-445. https://doi.org/10.1590/0102-4450437081883001191
    » https://doi.org/10.1590/0102-4450437081883001191
  • Santos, B. S. (2018). The end of the cognitive empire: the coming of age of epistemologies of the South Duke University Press.
  • Santos, B. S. (2019). O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul Autêntica.
  • Silva, I. R., & Favorito, W. (2018). Reflexões sobre o estatuto das línguas nos contextos bi-multilíngues de educação para surdos no Brasil. Línguas & Letras, 19(44), 149-167. https://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/20571
    » https://e-revista.unioeste.br/index.php/linguaseletras/article/view/20571
  • Souza, A. L. S. (2011). Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança: hip-hop Parábola.
  • Stein, S., Andreotti, V., Suša, R., Amsler, S., Hunt, D., Ahenakew, C., Jimmy, E., Čajková, T., Valley, W., Cardoso, C., Siwek, D., Pitaguary, B., Pataxó, U., D’Emilia, D., Calhoun, B., & Okano, H. (2020). Gesturing towards decolonial futures: reflections on our learnings thus far. Nordic Journal of Comparative and International Education, 4(1), 43-65. http://doi.org/10.7577/njcie.3518
    » http://doi.org/10.7577/njcie.3518
  • Wei, L. (2018). Translanguaging as a practical theory of language. Applied Linguistics , 39(1), 9-30. https://doi.org/10.1093/applin/amx039
    » https://doi.org/10.1093/applin/amx039

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2022
  • Aceito
    14 Dez 2022
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br