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Motivações toponímicas: O ato de nomear bairros populares nas periferias em Angola

Toponymic motivations: The act of naming popular districts in the Angolan periphery

RESUMO

Este trabalho toponímico da subcategoria da onomástica tem como objetivo investigar a natureza e a motivação do ato de atribuir nomes não oficiais a bairros desenvolvidos em zonas periféricas no período pós-independência, isto é, de 1976 a 2016. O trabalho é o primeiro de um projeto contínuo e avalia um corpus de 34 bairros selecionados em 10 províncias de Angola, com particular destaque para a capital, Luanda. O estudo, que prevalece numa área ainda subdocumentada em Angola, demonstra como o ato de nomear topônimos nas várias cidades do país é caraterizado neste período de pós-independência. Os resultados revelam nomes decorrentes de contextos causa-efeito que refletem uma vivência precária, do ponto de vista social e econômico, o que nos leva a acreditar que a guerra civil, que durou 27 anos, tem sido determinante para que, com base nas motivações dos próprios fundadores, se nomeiem os bairros de cariz popular.

Palavras-chave:
toponímia; bairros; nomes espontâneos; Angola

ABSTRACT

This article focuses on toponyms, which is a sub-field of onomastics, and aims to explore the nature and motivations behind giving spontaneous names to settlement districts located in the outskirts of Angola. Such districts developed in the post-independence period, particularly between 1976 and 2016. It is the first work of an on-going project and it explores a corpus of 34 districts, selected from 10 provinces of Angola, with a focus in its capital, Luanda. The study was carried out in a subdocumented area in Angola and shows how naming is characterized in the post-independence period. The results reveal that names materialize from spontaneous contexts and reflect a precarious experience from a social and economic point of view. This leads us to believe that the civil war, which lasted 27 years, has greatly influenced the naming of districts in the outskirts of Angola, as their names seem to have been chosen based on the motivations of their founders.

Keywords:
toponymy; districts; spontaneous names; Angola

1. Introdução

No período pós-guerra civil, tem sido comum a renomeação de nomes populares em vários casos motivados pela requalificação urbana distrital. É o caso, por exemplo, dos topônimos Bairros de Bagdá e Iraque, em Luanda, ambos renomeados em 2009 por Decreto Presidencial. Ou o topônimo designado por Mercado Roque Santeiro, atribuído em homenagem à novela brasileira com o mesmo nome, que teve muito sucesso em Angola. O mercado foi, outrora, considerado o maior informal da África Austral e foi oficialmente batizado com o nome de Mercado Popular da Boavista, nome menos usual e conhecido pela maioria dos cidadãos.

Deste modo, este trabalho estuda os topônimos de caráter popular ou espontâneo, assim também conhecidos, que emergiram num período extensivo, entre 1976 e 2016, o qual aporta também conflitos políticos que culminaram numa guerra civil e suas respetivas consequências. A pesquisa tem como objetivo investigar a natureza e a motivação dos atos de atribuir nomes não oficiais a bairros localizados nas periferias, nos assentamentos informais ou ainda nos musseques3 3 O vocábulo ‘musseque’também ‘museke’ deriva do Quimbundo, uma das línguas nacionais de Angola com maior número de falantes, com predomínio nas províncias de Luanda, Bengo, Malanje e Cuanza Norte, cujo significado, entre outros, é “areia grossa, terra saibrosa” (Cf. Junior, 1967, p. 317). , assim, também, designados oficialmente.

O nosso interesse deve-se ao fato de, segundo Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). ), o nome possibilitar a reconstrução de uma história (linguística, geográfica, dialetológica, física ou cultural, enfim, uma história humana) paralela à oficial, por outros meios, mas nem por isso menos relevantes. E por ser também uma memória afetiva, responsável pelas raízes individuais e coletivas da população (Dick, 2004Dick, M.V.P. A. (2004). A Língua de São Paulo: A Fundação de Piratininga. Revista USP, 63, 36-63.) uma vez que o levantamento e a análise dos antropônimos ou topônimos possibilitam resgatar a memória cultural e sócio-histórica das comunidades, trazendo à tona fatos e ocorrências, muitas vezes, esquecidos (Seabra et al., 2016Seabra, M.C.T.C. (2006). Referência e Onomástica. Múltiplas perspectivas em linguística: Anais do XI Simpósio Nacional e I Simpósio Internacional de Letras e Linguística (pp. 1953-1960). , nosso grifo). Como Faggion e Misturini (2014Faggion, C.M., & Misturini, B. (2014). Toponímia e Memória: Nomes e Lembranças na Cidade. Linha D’Água, 27(2), 141-157. , p. 152) apuram, “temos exemplos [...] de esquecimentos em casos de substituição de topónimosˮ ou melhor, “em permanecendo, o topónimo preserva elementos de uma cultura antiga, de tempo em que ocorreu o ato de nomearˮ (Faggion & Misturini, 2014, p. 145Faggion, C.M., & Misturini, B. (2014). Toponímia e Memória: Nomes e Lembranças na Cidade. Linha D’Água, 27(2), 141-157. ). Daí a razão de preservá-los como arquivo histórico mesmo após a renomeação ou extinção por requalificação urbana como tem sido com os nomes de origem não oficial.

A base teórica da nomenclatura espontânea deste trabalho está sustentada em Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). ), Handcock (2011Handcock, W.G. (2011). An Introduction to geographical Names and the Newfounded and Labrador geographical Names Board. Department of Fisheries and Land Resources Government of Newfoundland and Labrador.), Cumbe (2016Cumbe, C. (2016). Formal and Informal Toponymic Inscriptions in Maputo. In L. Bigon (Ed.), Place names in Africa. Colonial Urban Legacies, Entangled Histories (pp. 195-205). Cham.), Helleland (2002Helleland, B. (2002).The Social and cultural value of place names. Eighth United Nations Conference on the Standardization of Geographical Names. Berlin, 27 August/September 2002. E/ CONF.94/CRP. 106. ) e Oliveira e Isquerdo (2017Oliveira, L. R., & Isquerdo, A.N. (2017). Toponímia rural de acidentes humanos do Mato Grosso do Sul: motivações toponímicas e estruturas sintagmáticas. Revista Uberlândia GTLEX, 3(1), 58-77. https://doi:10.14393/Lex5-v3n1a2017-4.
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). O estudo tenta, especialmente, responder a uma única questão: que aspetos caraterizam os nomes dados a bairros em zonas periféricas em algumas cidades de Angola?

2. Estudos toponímicos

A Toponímia, como ciência, tem despertado o interesse de vários acadêmicos nos ramos da Antropologia, Linguística, Sociologia, História, Historiografia, Etnologia, entre outros. Estudos no ramo da toponímia, como disciplina científica, têm uma longa data de existência. Dick (1992, citado por Martins & Sousa, 2017Martins, R.M., & Sousa, A.M. (2017). A motivação toponímica na escolha dos nomes geográficos de origem indígena na Zona Rural da regional do baixo Acre. Revista Tropos, 6(2), 1-16.) indica que teve início por volta de 1878, em França, onde foi introduzida na Ecole Pratique des Hautes-Etudes e no Colégio de França, por Auguste Longon. Em contraste, Tentand e Blair (2009Tentand, J., & Blair, D. (2009). Motivations for naming: a toponymic typology. ANPS, 2, 1-26. ) apontam para 1913, data em que Namn och bygd foi publicado em Uppsala, e 1938, em que o primeiro Congresso da Ciência da Onomástica (abreviado ICOS, sigla em inglês) ocorreu, enquanto 1949 marca a data do terceiro Congresso.

Resulta daí a explicação de Sousa (2010Sousa, A.M. (2010). Toponímia e ensino: Propostas para aplicação no nível básico. http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigosteses/LinguaPortuguesa/toponimiaeensinopropostas.pdf.(Acessado 01 Julho, 2020).
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), para quem o caráter pluridisciplinar do signo toponímico constitui um meio para conhecer a) a história do(s) grupo(s) humano(s) que viveu ou viveram na região, b) as caraterísticas físico-geográficas da região, c) as particularidades socioculturais do povo (o denominador), d) extratos linguísticos de origem diversa da que é utilizada contemporaneamente, ou mesmo línguas que desapareceram e, por último, e) as relações estabelecidas entre os agrupamentos humanos e o meio ambiente.

3. Nomes espontâneos

Em fenômenos de surgimentos de novos bairros, especialmente de caráter suburbano e até mesmo urbano, é típico a denominação ser feita por populações que se identificam como fundadoras do bairro, os primeiros habitantes, por um lado, e aqueles bairros concebidos de uma maneira formal, isto é, com consentimento das autoridades governamentais, por outro lado.

Neste sentido, Helleland (2002Helleland, B. (2002).The Social and cultural value of place names. Eighth United Nations Conference on the Standardization of Geographical Names. Berlin, 27 August/September 2002. E/ CONF.94/CRP. 106. ) salienta que o processo de atribuição de nome a um topônimo segue dois sentidos, aquele que chamamos de espontâneo ou popular e batismo. Na sequência, este autor argumenta que “na generalidade, os nomes dados hoje a lugares pertencem ao primeiro grupo, isto é, nomes espontâneos, e derivam de um processo de lexicalização que principia com a descrição do objeto que acarreta tal nomeˮ (Helleland, 2002Helleland, B. (2002).The Social and cultural value of place names. Eighth United Nations Conference on the Standardization of Geographical Names. Berlin, 27 August/September 2002. E/ CONF.94/CRP. 106. , p. 3). O fato de o autor ressaltar a denominação popular ou espontânea como a mais popular, não só valida e legitima como também posiciona a sua pertinência na caraterização de topônimos ao lado daqueles de caráter sistemático.

Handcock (2011Handcock, W.G. (2011). An Introduction to geographical Names and the Newfounded and Labrador geographical Names Board. Department of Fisheries and Land Resources Government of Newfoundland and Labrador.) considera os nomes espontâneos como aqueles que as populações comuns tais como homens, mulheres e mesmo crianças denominam durante o período de ocupação, atividade de trabalho ou diversão na área, para o uso coletivo. Igualmente, Oliveira e Isquerdo definem “nomes espontâneos como nomes que provêm de alguma influência do espaço físico ou antropocultural nascida no seio da população” (2017, p. 61).

É de notar que esses “nomes diferem dos nomes oficiais ou da toponímia urbana em que questões políticas e relações de poder estão mais explícitas, quando ruas são nomeadas com nomes de autoridades civis, militares, por exemploˮ (Oliveira & Isquerdo, 2017Oliveira, L. R., & Isquerdo, A.N. (2017). Toponímia rural de acidentes humanos do Mato Grosso do Sul: motivações toponímicas e estruturas sintagmáticas. Revista Uberlândia GTLEX, 3(1), 58-77. https://doi:10.14393/Lex5-v3n1a2017-4.
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, p. 61). Contudo, atente-se que:

os nomes impostos pelas autoridades são chamados de estatutários (nomes ditados pela lei) e os autores são em geral conhecidos, enquanto a origem dos nomes criados por pessoas de comunidades locais é geralmente difícil de determinar porque tais nomes geralmente vivem na oralidade por longos períodos antes de serem escritos e usados nos mapas, comunidades ou sinais de estradas. (Handcock, 2011Handcock, W.G. (2011). An Introduction to geographical Names and the Newfounded and Labrador geographical Names Board. Department of Fisheries and Land Resources Government of Newfoundland and Labrador., p. 2)

Handcock levanta aqui uma questão que merece ser realçada, ao delinear os autores (aqueles que participam da denominação de topônimos), partindo de duas perspetivas: nomeação não planificada e nomeação planificada ou legítima. Sendo que a primeira se trata da voz da população ordinária, a segunda remete para a voz estadual ou soberana. Deste modo, para patentear o papel de cada tipo de designação, Carvalhinhos complementa dizendo que:

são instâncias diferentes: podemos opor espontâneo ao não espontâneo quanto ao processo de nomeação, e aqui falamos do ato discursivo e de como o nome figura no discurso para, posteriormente, se fixar no topônimo. As espontaneidades ou não espontaneidade na denominação dizem respeito ao próprio processo cognitivo pressuposto no percurso gerativo de uma denominação, revelando, em sua essência semântica, traços do ambiente retratado de acordo com a visão de mundo do homem denominador, cujo interesse fica impresso no léxico toponímico. (Carvalinhos, 2012, p. 10)

A apreciação de Carvalhinhos resume-se, em prática, na divergência entre aqueles que tomam a perspetiva da denominação sistemática contra os que inclinam para a vertente popular em termos de destaque de cada uma. A esse respeito a autora esclarece a vivência paralela das duas formas. Nesta linha de raciocínio, Dick (1990Dick, M.V.P. A. (1990). A Motivação Toponímica e a realidade Brasileira. Edições Arquivo do Estado., p. 49) considera haver “um consenso entre os toponimistas em pesquisar as origens da denominação em duas linhas principais, uma, reputada espontânea ou popular [….] outra, conhecida como sistemática ou oficialˮ. No intuito de revelar o papel dos topônimos espontâneos em termos de funcionalidade, Cumbe propõe que:

Spontaneous names in the suburbs allow city dwellers to express themselves by the social act of inscribing toponymy. More than just names, the unofficial names have many functions or meanings, which are not necessarily linked to place names proper. [...] and for instance, these names may warm against the danger of theft or rape-such as ‘Cross Running Street’, Armed People Street’. (Cumbe, 2016Cumbe, C. (2016). Formal and Informal Toponymic Inscriptions in Maputo. In L. Bigon (Ed.), Place names in Africa. Colonial Urban Legacies, Entangled Histories (pp. 195-205). Cham., p. 200)

Com efeito, o autor aponta ainda para um aspeto muito importante que particulariza e distingue os nomes espontâneos de outros, também demonstra como esses nomes estão simbolicamente ligados às vivências das populações. De modo a evidenciar a importância dos topônimos espontâneos e como os mesmos convivem lado a lado com os nomes oficiais, Cumbe salienta:

It should be noted that toponymic informality does not seek to replace, and much less compete, with the official naming system. On the contrary its simultaneous existence seeks to consolidate and highlight contemporary history, together with everyday reality and spatiality of the city dwellers. (Cumbe, 2016Cumbe, C. (2016). Formal and Informal Toponymic Inscriptions in Maputo. In L. Bigon (Ed.), Place names in Africa. Colonial Urban Legacies, Entangled Histories (pp. 195-205). Cham., p. 195)

Na mesma perspetiva, para Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). , p. 10), “a oficialidade ou o paralelismo diz respeito ao tratamento administrativo dado ao nome e ao seu uso social. Não significa, contudo, que um topônimo oficial seja o indicado ou o ideal para compor, no discurso, a função toponímicaˮ. Isto deve-se à “importância que se reveste como fonte de conhecimento, não da língua falada na região em exame, como também de ocorrências geográficas, históricas e sociais, testemunhadas pelo povo que a habitou, em caráter definitivo ou temporárioˮ (Dick, 1980Dick, M.V.P. A. (1980). A Estrutura do signo toponímico. Língua e Literatura,9(9), 287-293., p. 291).

Retomamos a proposta apresentada por Handcock (2011Handcock, W.G. (2011). An Introduction to geographical Names and the Newfounded and Labrador geographical Names Board. Department of Fisheries and Land Resources Government of Newfoundland and Labrador.), segundo a qual uma das importantes caraterísticas de nomes atribuídos pela população é que tais são partilhados, isto é, tornam-se nomes da comunidade independentemente de quem as denominou logo no princípio. É evidente que a maioria das populações residentes em zonas periféricas tem partilhado experiências de emoção e orgulho no fato de os nomes constituírem fatores de identificação, apesar de alguns estarem associados à negatividade, por exemplo, àqueles que incitam violência, como ‘Bairro da Facada’ ou estereótipos, como ‘Mercado das Mulheres’, sendo o primeiro no Namibe e o segundo em Luanda. Com isso, queremos acreditar que a estrutura toponímica dos nomes sob estudo carrega uma mensagem importante em relação à motivação sociocultural e histórica.

4. Nomes de lugares urbanos

Vistos como símbolos carregados de significados, os topônimos urbanos (urbanônimos) fazem parte da identidade coletiva de uma comunidade e, por isso, refletem as marcas do saber cultural e histórico deixado no espaço onde foram inseridos (Seabra et al., 2016Seabra, M.C.T.C. (2006). Referência e Onomástica. Múltiplas perspectivas em linguística: Anais do XI Simpósio Nacional e I Simpósio Internacional de Letras e Linguística (pp. 1953-1960). ). Do mesmo modo, Basik (2020Basik, S. (2020).: Introduction. Urban Sci., 4, 80. https://doi.org/3390/urbansci4040080.
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) aponta que os topônimos urbanos espelham e absorvem todos os aspetos da existência humana, incluindo político, econômico e complexidades culturais. Nesta linha de raciocínio, Abramowicz e Dacewicz (2009)Abranowicz, Z., & Dacewicz, L. (2009). Urban Place names. International Symposium. Research Institute for the Languages of Finland. consideram que os urbanônimos são crónicas da história de um determinado território e seus habitantes. Destacam ainda que são evidências cruciais de mudanças que ocorreram ao longo de muitos anos.

As perspetivas dos acadêmicos, nesta secção sobre urbanônimos, merecem muita atenção, as quais nos fazem perceber a importância de urbanônimos na vida das populações afetas. Neste caso, por exemplo, conforme argumenta Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). , p. 3) “fazem-nos perceber fenômenos e caraterísticas da toponímia urbana” de algumas cidades de Angola, por um lado, e indicam a multidimensionalidade que acarretam em termos da sua posição na paisagem urbana. De um modo geral, o urbanismo explica, com muita propriedade, os motivos de a cidade/metrópole possuir essa caraterística de “colcha de retalhos” e cada bairro assemelhar-se a um pequeno núcleo praticamente autônomo dentro de outro maior, e, assim, tem-se a sensação de perceber inúmeras pequenas cidades reunidas por grandes artérias (Carvalhinhos, 2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). ).

Devemos ressaltar aqui a semelhança do estudo de Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). ), intitulado “Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topônimos” com este, apesar das diferenças relativas ao espaço, tempo e contexto, motivações toponímicas do ponto de vista dos denominadores. Do ponto de vista metodológico, ambos os trabalhos enfrentaram os desafios de (1) evidenciar-se carências de limites claros para os bairros, em termos territoriais (Carvalhinhos, 2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). ), (2) haver reduzido material (arquivo) formal que aborda os topônimos sob estudo e (3) ter-se socorrido aos moradores (antigos), administrações etc., para obter a informação necessária sobre os bairros, de um modo geral. A secção seguinte explica de uma forma mais detalhada a caraterização dos bairros em estudo.

5. Caraterização social dos bairros em estudo

A guerra civil de Angola, que teve início em 1975 e terminou em 2002, para além de criar vários problemas com maior destaque aos de caráter socioeconômico, também, segundo Vicente (2015Vicente, F.C.C. (2015). Topónimos dos municípios e comunas do Cuando Cubango. Proposta de harmonizaçã de grafia [Dissertação de Mestrado]. Universidade Nova de Lisboa.), fez com que a toponímia de Angola sofresse um desvio, sendo que é difícil agora explicar e justificar a verdadeira identidade onomástica neste caso associada à cultura do seu povo.

O fluxo de populações oriundas de zonas de conflito (nos interiores do país) contribui grandemente para o crescimento desordenado de bairros suburbanos periféricos nas cidades de Angola. A situação criou desafios de vária ordem aos administradores públicos, visto que os mesmos se alastram rapidamente, ao ponto de serem chamados de “bairro(s) elástico(s)”, emprestando um termo cunhado por Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). , nosso grifo na pluralização).

Estes bairros são nomeados pelas populações sem consentimento das administrações locais. Para além de não possuírem placas de sinalização que indiquem os nomes, também, no seu interior, as ruas não têm nada que as identifiquem como tal. Em muitos casos, são identificadas por ponto de referências que as marcam, por exemplo, uma casa com cor ou tamanho diferente das demais, um poste de luz, uma árvore ou que seja algo sobressalente memorizado pelos moradores ou os que aí transitam, pelo que, muitas vezes, apenas os membros das próprias comunidades são capazes de as identificar. Essa caraterização parece-nos ser comum em bairros recentes, ademais, no trabalho de Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). ) foram identificados os mesmos problemas.

6. Metodologia

O estudo é composto por um corpus de 34 bairros de zonas periféricas (Quadro 1, no final desta secção). Os dados enquadram-se num período de quarenta anos, isto é, desde 1976 até 2016 e, sendo este um dos critérios para a seleção dos nomes, o outro prende-se com o caráter de não oficialidade. Os nomes foram selecionados em 10 das 18 províncias de Angola, sendo evidente o predomínio de Luanda, capital de Angola, conforme nos dados do quadro. Isto deve-se ao fato de ser a província mais populosa, com uma população estimada em 7 milhões, dos 28 milhões de habitantes do país, de acordo com os resultados do Censo de 2014, embora os dados recentes (não oficiais) apontem para quase 11 milhões. Outra razão está no fato de ser a província que mais cresceu com os bairros devido à guerra civil, tendo sido a região que mais acolheu populações (refugiadas) oriundas de outras províncias durante e depois da guerra.

Para a recolha de dados, foram consultados antigos moradores, coordenadores de bairros, chefes de comissões de bairros, funcionários das administrações públicas, arquivos e referências obtidas a partir de sites disponibilizados na internet. Além da pergunta de partida, outras questões como ‘quando surgiu o bairro, o que motivou o batismo do topônimo e que circunstâncias estiveram na base da origem?’ serviram de diretrizes que conduziram o trabalho à análise dos dados. Cabe sublinhar que, para facilitar a análise, os nomes foram agrupados em 8 temas, competindo, para a apuração das causas denominativas, o uso do método descritivo na vertente sócio-histórica.

O Quadro 1 mostra a descrição dos topônimos conforme: nome do bairro, sua localização, data aproximada de batismo, origem do nome e campo associativo.

Quadro 1
Bairros periféricos

7. Discussão

No quadro 1 é notável uma variedade de motivos que deram origem ao nome dos topônimos analisados. Sem tentar descurar a estrutura apresentada, em termos de caraterização dos topônimos, e para facilitar a análise dos dados, agrupámo-los em 8 temas: (i) topônimos associados a designações de cidades ou lugares estrangeiros, (ii) topônimos associados a efemérides e lemas do partido político no poder desde a Independência Nacional (o MPLA), (iii) topônimos associados à religiosidade e moral, (iv) topônimos associados a condições socioeconômicas e precariedade das populações, (v) topônimos associados ao bem-estar e tranquilidade, (vi) topônimos associados à beleza da paisagem e caraterização do solo, (vii) topônimos associados à violência, estereótipos e sexualidade, (viii) topônimos associados a numeração. Ressaltamos que alguns topônimos que não podem ser categorizados nas classificações criadas foram avaliados e enquadrados na secção “outros topônimos».

Topônimos associados a designações de cidades ou lugares estrangeiros

Um dado significativo revela que as motivações que estiveram na base desta nomenclatura são muito parecidas para todos os bairros relacionados com esta temática: caos e total anarquia tal qual essas cidades eram caraterizadas nos períodos de guerra. No caso do Bairro Bagdá, a associação ao caos decorre da invasão ao Iraque pelas forças aliadas, incluindo os Estados Unidos da América, Reino Unido, etc. A Chechênia remete para o caos associado à invasão da Rússia e o Bairro Somália, pelos conflitos internos que ainda prevalecem naquele país. O bairro Bagdá, na província do Namibe, hoje semiurbanizado e com aspeto menos caótico, surgiu como um espaço baldio ocupado pelas populações desalojadas pelas inundações de 2001 que ocorreram na cidade de Moçâmedes. A falta de paz, sossego, energia elétrica, água, atenção de governantes, moradores a viver em tendas, deixados à sua sorte, a falta de apoio social e o afastamento do centro urbano motivaram que, alegoricamente, a população começasse a designar aquele aglomerado como Bagdá, evocando a história de guerra, pavor, caos, sofrimento, dor, abandono, morte, desesperança em que esteve submerso o Iraque (nome que, pelas mesmas circunstâncias, designou um bairro, renomeado em 2009, em Luanda). Como foi dito, as motivações que deram origem a esses bairros são semelhantes, caraterizadas por total precariedade em todas as esferas sociais que leva as populações a viver sem esperanças de um dia superar tais condições.

Algo que suscita muita atenção é o contraste de o topônimo Casa-branca, em vez de remeter para uma imagética de poder, de condições sociais e econômicas prósperas, estar paradoxalmente associado à precariedade. Obviamente é percetível, visto que, quando as populações começam a habitar esses bairros e o batizam, o fazem na perspetiva de viver em melhores condições do que anteriormente. Isso é também patente noutros topônimos cuja descrição, abaixo, apresenta a mesma linha de análise obtida das respetivas realidades, particularmente os associados à religiosidade.

Topônimos associados a efemérides e lemas do partido político no poder

Regra geral, os topônimos que evocam datas comemorativas remetem sempre para o imaginário e os simbolismos relativos ao partido político (Movimento Popular de Libertação de Angola) que está no poder desde 1975, tendo como exemplo os bairros 28 de Agosto, A Luta Continua, A Vitória, Partido é Certa e dezenas destes não apresentados aqui. O primeiro, 28 de Agosto, é uma alusão à data de aniversário do antigo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. O segundo e o terceiro são referentes ao lema do partido político com o qual, de uma ou de outra forma, eternizando uma divisa, desde a luta pela independência, o MPLA tem vinculado permanentemente a sua ideologia de viés marxista. Já o Bairro Partido, tendo emergido do termo “partido”, com caráter de unicidade, que, em Angola, se tornou um nome próprio, devido ao simbolismo e toda a construção semiótica à volta de um ideário nacional na órbita do MPLA, de tal modo que, mesmo havendo diversos partidos políticos, o uso do termo “partido”, sem um determinante ou especificador, remete, imediata e habitualmente, para apenas um referente. Quanto ao topônimo “Bairro 5 de Abril”, o nome surgiu em homenagem a um bairro homônimo onde este se situa. No entanto, a primeira referência ao nome, originou-se de circunstâncias de calamidade natural, sendo que muitos dos atuais habitantes viviam nos bairros “Nação Tchinducuto” e “Eucaliptos”, ambos localizados na faixa costeira da cidade, os quais sofreram, a 5 de abril de 2001, uma inundação sem precedentes. Disto, terá surgido a necessidade de migração para um terreno quase baldio ao qual designariam “Bairro 5 de Abril”, em memória àquela data.

Há ainda por destacar o ‘Bairro Baixa de Cassanje’, designação atribuída a dois bairros em Angola, um dos quais na província de Luanda. O nome tem a sua origem no geônimo “Baixa de Cassanje”, uma região localizada na província de Malanje, que foi palco de um dos maiores massacres perpetrados pelo regime colonial português, a 4 de janeiro de 1961, contra os camponeses que trabalhavam na lavoura do algodão. As populações deste bairro enfrentam vários problemas sociais, em decorrência disto, alguns moradores mais novos (não-fundadores) chegam a fazer comentários como o seguinte: «vivemos como se fosse um massacre. Acho que o nosso azar é terem apelidado este bairro de Baixa de Cassanje. Aqui vivemos como se fosse um massacre. O governo massacra-nos todos os dias com a falta de quase tudo» (Novo Jornal Online, 15/01/2018).

Para concluir esta subcategoria, consideremos o Bairro 11 de Novembro, em referência a 11 de Novembro de 1975, data da Independência de Angola. Constatamos também que a efeméride referente ao “11 de Novembro” designa inúmeros bairros, escolas, ruas, centros de saúde, estádio de futebol, etc., sendo os mais relevantes os bairros 11 de Novembro, em Luanda (nos municípios de Cacuaco e Cazenga), na província de Benguela, no município do Saurimo (província da Lunda Sul) e em Mbanza Congo (província do Zaire).

Topônimos associados à religiosidade e à moral

Importa destacar que a maioria dos topônimos recolhidos pertence a esta subcategoria, o que não pode constituir um fato surpreendente, visto que as realidades ásperas resultantes da longa guerra civil suscitaram e alimentaram o desejo platônico e indeclinável do culto a uma entidade que ocupasse um lugar de proeminência, de fé inabalável, o que teria permitido o surgimento de muitas igrejas no país. Deus “cristão” representaria aqui a única solução para o fim da guerra, do sofrimento, a esperança concretizável além do alcance humano. Ele seria a única entidade capaz de reestabelecer a justiça, paz e prosperidade, um ente em quem pudessem confiar. Como resultado, muitos bairros com o campo associativo de religiosidade emergiram para assinalar esperança e prosperidade de vida das populações. Este exemplo confirma-se com o Bairro Paraíso, que serviu de acolhimento aos refugiados de guerra saídos das várias províncias como o Huambo, Bié, Benguela, Cuanza Sul, entre outras. O nome emergiu de um contexto em que os habitantes consideravam aquele terreno baldio uma segunda vida, vida nova, repleta de esperança para quem fugia de uma guerra civil e fratricida. Hoje, tornou-se evidente a extrema miséria dos habitantes do bairro, em contrassenso com a referência que o nome suscita, dos mais pobres e precários de Luanda, com elevado índice de assassinatos, delinquência e carências básicas como Transporte, Saúde, Saneamento e Educação.

A situação do anterior bairro é similar ao do Bairro Boa-esperança, havendo este último no Namibe e em vários outros pontos de Angola como no município do Cazenga, em Luanda, distrito do Kikolo (Bairro Boa-esperança 1) e no município de Cacuaco, também na província de Luanda (Bairro da Boa-esperança 3). O nome terá surgido devido ao fato de os seus primeiros habitantes serem originários de zonas de Luanda cujas casas estavam sob risco de desabamento. O paradoxo entre as designações associadas à religiosidade, esperança e fé atribuídas aos bairros e às realidades diárias constantes afigura-se uma espécie de “marca de Caim” nas vivências dos habitantes.

Paralelamente, os sentidos já referidos são enquadrados também nos nomes dos bairros Bênção de Deus e Boa-fé, cuja origem decorre do mesmo prospeto, com a mesma configuração, a de um novo começo, uma esperança sob um olhar ou proteção divina, o que dá às populações absoluta esperança onde o horizonte está sempre dependente de uma divindade (cristã).

Nesta classificação, apresentam-se dois topônimos que sugerem (i)moralidade, o Bairro Saber-andar e o Bairro das Fofocas. No primeiro, sendo de caráter positivo, a expressão ‘saber andar’, presente em discursos folclóricos e aforismos proferidos por anciãos, decorre da sabedoria popular que visa estabelecer o equilíbrio da moral africana e advertir para a boa conduta social como sinônimo de serem evitados problemas e acrescer os anos de vida na terra, ou seja, pretende-se um preceito moral como base da vida em comunidade. No segundo, de caráter negativo, terá surgido do fato de alguns dos moradores, habitualmente, fazerem comentários e intrigas sobre a vida de outrem, tendo ficado assim batizado devido às circunstâncias expressas pela própria designação.

Topônimos associados a condições socioeconômicas e precariedade das populações

Não são raros os topônimos associados a estes contextos e estas condições. O Bairro Passa-fome, por exemplo, cuja denominação emerge de contextos em que muitos dos seus moradores se viam confrontados com muitas dificuldades de ordem alimentícia, enquadra-se no conjunto de topônimos em que as designações dispõem em si a realidade quotidiana e o contexto social. Quanto aos topônimos Bairro da Lixeira (em duas províncias, cf. Quadro 1), as designações surgem devido à falta de saneamento básico, por serem uma subespécie de aterro sanitário a céu aberto, a precariedade a que estão expostos os moradores também constitui uma marca no estilo de vida.

Topônimos associados ao bem-estar e tranquilidade

Ao contrário dos topônimos associados a ‘condições socioeconômicas e de precariedade’, estes sugerem uma vivência de bonança, esperança e paz. Os nomes dos bairros da Paz, Boa-vida e Passa-bem foram batizados devido ao fato de, inicialmente, tais bairros apresentarem aspetos pacíficos e paradisíacos em termos de ambiente por oferecerem esperança de vida melhor para as populações. Existe também outro bairro com a mesma designação, em Luanda, no município do Sambizanga, cuja origem reflete as mesmas circunstâncias e razões. Estes bairros, hoje, tornaram-se precários e servem como centro de realojamento a pessoas que deixaram de poder viver nos bairros mais ao centro da cidade de Luanda, muitos dos quais foram criados como assentamentos para as populações que estão mais à margem das prioridades do poder político.

Topônimos associados à beleza da paisagem e caraterização do solo

Comparado com os topônimos estudados até aqui, nota-se que estes são os que exigem menos exercício em termos de interpretação, tendo os mesmos sido batizados em função das caraterísticas naturais. Evidentemente, os nomes Belo-monte e Bela-vista foram atribuídos em função de ambos estarem em pontos altos das respetivas cidades e, em consequência disto, proporcionarem uma vista de cima privilegiada. Quanto ao Bairro Terra-vermelha, deve-se ao fato específico de a terra ser de coloração bastante avermelhada, diferente de outras zonas de Luanda, onde a terra apresenta uma tonalidade embranquecida, tal é o caso do Bairro Terra-branca.

Como noutros exemplos, as populações destes bairros também enfrentam grandes dificuldades sociais e econômicas assim como sérias situações de saneamento básico. É de ressaltar, no entanto, que o Bairro Belo-monte abrange várias zonas e agrupamentos bastante precários, tendo emergido muito recentemente (desde a década de 2010) como assentamento de populações deslocadas de várias zonas de Luanda ou como recurso de outros populares à procura de terreno para a autoconstrução.

Topônimos associados a violência, estereótipos e sexualidade

Tal como registado nos topônimos associados a ‘religiosidade e moral’, neste caso, as circunstâncias e motivações assemelham-se. No que concerne ao topônimo ‘Tira-pistola’, o nome surge por razões explícitas. Segundo um relato direto ao Novo Jornal (edição de 2016), o bairro ficou consagrado popularmente como “Tira-pistola” porque houve, em 1986, uma contenda envolvendo várias pessoas numa rua, da qual teria saído alvejado mortalmente um senhor, ex-militar, o qual teria fracassado na tentativa de sacar a pistola que portava para se defender. A pistola com que foi morto e a que tentou sacar de forma vã constituem a motivação pela qual o local ficou marcado como “tira-pistola”. A exemplo deste critério causa-efeito, algumas designações como Curva da Morte, no Namibe (Moçâmedes) e no Lubango (Huíla), Curva das Novidades, na Gabela (Cuanza Sul) e outras afins resultam de acontecimentos reiterados mas acidentais que motivam tais nomeações como um código “linguístico” de alerta.

Podendo muitos destes nomes denotar estereótipos marcantes ou ser uma espécie de aviso contra perigos, os topônimos aqui avaliados, na sua maioria, corroboram o pensamento de Cumbe (2016Cumbe, C. (2016). Formal and Informal Toponymic Inscriptions in Maputo. In L. Bigon (Ed.), Place names in Africa. Colonial Urban Legacies, Entangled Histories (pp. 195-205). Cham.), segundo o qual “[these names may warm against the danger of theft or rape]ˮ, o que vai ao encontro do que propõe Sterwart (1954)Stewart, G.R. (1954). A Classification of Place Names. Names, 2(1), 1-13. https://doi:10.1179/nam.1954.2.11.
https://doi:10.1179/nam.1954.2.11...
, segundo o qual “[all naming of places stems from one basic motive, that is, the desire to identify a place and thus distinguish it from others]”.

Topônimos associados à referência numérica

Apesar de incluirmos poucos, sendo que registamos inúmeros, os topônimos desta natureza têm-se revelado de uso frequente, embora se observem amiúde em projetos urbanísticos recentes do Governo, também denominados condomínios. Em relação a esses topônimos, Carvalhinhos (2012Carvalhinhos, P. (2012). Instituto Previdência, São Paulo: Memória(s) e Topónimos. Anais do X Encontro do Celsul-Círculo de Estudos Linguísticos do Sul Unioeste-Universidade Estadual do Oeste do Paraná Cascavel (1-17). ) sublinha que tanto as letras como os números muitas vezes vão além da indicação dêitica, mostrando uma determinada ordenação de espaço.

Na sequência das designações numéricas, a relação dêitica estabelece uma referência do nome ao contexto a que se refere. Assim, os bairros “27” e “16” (comummente designados por “Nas 27” e “Nas 16”) são assim denominados em referência ao número de casas que cada bairro possui, esse último exemplo servindo de explicação ao que Carvalhinhos denomina lógica interna de ordenação. A conceção que se tem dos topônimos de indicação numérica é uma das mais produtivas em Angola, entre os bairros oficialmente criados pelo(s) governo(s). Em Menongue, capital da província do Cuando Cubango, há também um condomínio com o nome “Nas 27”, ao que se acrescem também dois bairros em Moçâmedes, capital da província do Namibe, chamados ‘Nas 25 Casas’ e “Nas 90 Casas”, este último também conhecido como Bairro da Juventude.

Topônimos de natureza diversa

Neste grupo, reunimos alguns nomes que, por estarem isolados, não se refletem nas subcategorias apresentadas acima, no qual constam entre os quais os seguintes bairros: Cemitério, Cinco-fios, Ossos, Retornado, Rastas, Resistência e Banda-velha.

O Bairro do Cemitério é assim designado pelo fato de as casas serem erguidas numa zona que teria sido um cemitério. Na mesma linha de raciocínio, o Bairro dos Ossos e Bairro Cinco-fios compreendem a mesma natureza motivacional, dêitica e contextual. O primeiro emerge do fato de o espaço servir de aterro sanitário a grandes quantidades de ossos de animais abatidos para o consumo, provenientes de um talho aí situado. Já o segundo surge do fato de ter havido um poste de alta tensão que atravessava o vasto terreno pertencente a antigos camponeses que aí habitavam. Quanto ao Bairro do Retornado, foi concebido em contexto de reassentamento aos angolanos que outrora haviam fugido da guerra civil para países vizinhos com grande destaque à antiga República do Zaíre, agora República Democrática do Congo (RDC). O fato de muitos cidadãos nacionais terem regressado à pátria com alguns hábitos e costumes desajustados à realidade local fez com que o nome até certo ponto fosse associado a vários estereótipos pejorativos.

Bairro dos Rastas, também conhecido como “Bairro Rasta”, é um bairro que foi surgindo gradualmente com a congregação da comunidade rastafári luandense. Embora, inicialmente, o surgimento do mesmo estivesse centrado na cultura e comunidade rastafári, hoje, havendo uma diversidade cultural entre os moradores, o bairro apresenta-se como um dos mais precários e inseguros, pelo índice elevado de criminalidade. Quanto aos bairros a Resistência e Banda-velha, o primeiro remete para o simbolismo sobre as guerrilhas e como o nome explicitamente espelha “não-rendiçãoˮ durante as diversas guerras que houve, primeiro contra o poder colonial e depois contra os sul-africanos. Por muito tempo foi empregue como grito de revolta entre os militares e militantes ligados ao MPLA durante a luta anticolonial. No segundo exemplo, o nome “banda”, popularmente, em Angola, observado o conceito de lexicultura, remete para «zona, lugar, bairro, rua» denotando sempre sentido de pertença, de acolhimento, pelo que Banda-velha sugere (meu) bairro antigo, (minha) zona antiga, etc.

8. Conclusão

Tendo sido avaliados 34 topônimos, com base em classificações convencionadas por diversos pesquisadores, sistematizados por campo associativo e/ou campo semântico, data de origem, província, município, e embora estes sirvam apenas como amostra de uma realidade imensurável, os indicadores revelam alguns parâmetros entre as motivações no ato de nomear bairros populares nas periferias de muitas das principais cidades de Angola.

Estes parâmetros, pelo que se observou, decorrem do recurso à espontaneidade, onde os nomes podem ser atribuídos sem a necessidade de uma relação causa-efeito; do recurso à homonímia, sendo o nome do recurso à apropriação de nomenclaturas especiais que referem um marco histórico, como o Bairro Cassanje; e do recurso a circunstâncias determinadas pela causa-efeito, em que os fatos e episódios mais marcantes são de tal maneira simbólicos que servem para confinar a história de um bairro a um par de palavras, como se de um código se tratasse.

Na pesquisa ficou demonstrado que a motivação de atribuir nomes aos topônimos aqui explorados se tem devido sobretudo a vários fatores de ordem social. Por outras palavras, o elevado índice de pobreza propicia o surgimento de inúmeros bairros de cariz popular, com vista a acudir às necessidades emergentes dos cidadãos que, muitas vezes, não têm fácil acesso ao sistema de serviços mais privilegiado. Acreditamos que alguns dos bairros, em função das necessidades dos populares, das circunstâncias que motivam a sua fundação, apresentam nomes que evocam a religiosidade, a precariedade, a desgraça (socioeconômica), incidentes, a violência, efemérides, que replicam um acontecimento fictício, nomes que eternizam nacionalistas, entre outros.

Agradecimentos

Aproveitamos este espaço para agradecer os pareceristas pelas sugestões de correção que permitiram o enriquecimento do trabalho. Agradecemos, de igual modo, a todos os que, anonimamente, relataram fatos que contribuiriam para a conclusão da pesquisa.

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  • Contribuição dos autores

    Nós, Dinis Fernando da Costa, e Hilton Fortuna Daniel, declaramos, para os devidos fins, que não temos qualquer conflito de interesse, em potencial, neste estudo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    04 Fev 2022
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