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As fronteiras do enunciado concreto: Limite Desaparecendo/Limite Desaparecido?

The boundaries of the concrete utterance: Disappearing Limit/Disappeared Limit?

RESUMO

A partir de uma perspectiva dialógica, este artigo se volta a um enunciado ligado à atividade estética visando investigar a relevância do projeto discursivo do autor no estabelecimento de fronteiras enunciativas. Analisamos Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) (2002), obra elaborada por Cildo Meireles para a mostra de arte Documenta 11, como enunciado concreto responsivo ao contexto seu contemporâneo. Para o público geral, a intervenção consistia na venda de picolés de água por Kassel, local da mostra; mas, considerando outros enunciados dessa cadeia discursiva, pode-se constatar que as fronteiras enunciativas absolutas da obra vão além da ação de compra-venda dos picolés. Através de reflexões engendradas por Bakhtin e o Círculo, implicando alternância de sujeitos e conclusibilidade específica do enunciado, pode-se considerar que o projeto discursivo do autor é fundamental para o estabelecimento de fronteiras enunciativas, sendo necessário compreender esse “querer dizer” para identificá-las apropriadamente. Assim, delimita-se as fronteiras inicial e final absolutas do enunciado concreto da obra e conclui-se que, neste caso, tais fronteiras se revelam mais dilatadas do que suporia um público geral da mostra.

Palavras-chave:
enunciado concreto; limites enunciativos; projeto discursivo; Cildo Meireles

ABSTRACT

From a dialogic perspective, this paper addresses an utterance related to aesthetic activity to investigate the relevance of the author’s speech plan in establishing the utterance’s boundaries. We analyse an artwork by Cildo Meireles for the exhibition Documenta 11, Disappearing Element/Disappeared Element (imminent past) (2002), as a concrete utterance which answers (responsibly) to its present context. For a general audience, the intervention consists of selling ice lollies made of pure water around Kassel, the city of the exhibition. However, taking into consideration other utterances of this discursive chain, the absolute enunciative boundaries of the artwork turned out to be more than buying-and-selling ice lollies. Through Bakhtin and the Circle’s ideas, such as subjects’ alternance and the specific conclusibility of an utterance, it is possible to consider that the author’s speech plan is fundamental to establish its enunciative boundaries. It demonstrates that it is necessary to understand the “speaker will” in order to identify those boundaries properly. Based on that, we delimited the initial and final boundaries of the concrete utterance. In conclusion, such boundaries are more dilated than what can be supposed to its general audience.

Keywords:
concrete utterance; enunciative boundaries; speech plan; Cildo Meireles

1. Introdução

A noção de enunciado pode ser flagrada tanto no correr das obras de Bakhtin e o Círculo,3 3 Brait e Melo (2012) tratam enunciado e enunciação em abordagens teóricas linguísticas, enunciativas e discursivas distintas, destacando que, por partirem de diferentes perspectivas epistemológicas, os termos assumem, no interior de cada teoria, dimensões que não coincidem. Ademais, as autoras perseguem e reconstroem a noção de enunciado no conjunto das obras de Bakhtin e o Círculo. como na amplitude de investigações por elas inspiradas - sobretudo nos estudos discursivos brasileiros, por onde as reflexões suscitadas pelo pensamento dialógico do Círculo são intensamente circuladas e mobilizadas. Uma das peculiaridades dessa noção são seus limites demarcados pela alternância dos sujeitos envolvidos na atividade de comunicação discursiva; outra é a conclusibilidade, que ocorre quando o autor esgota tudo que desejava dizer sob determinadas condições (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.). No entanto, ter em vista enunciados em sua relação concreta e ativa com a vida e com o mundo muitas vezes nos leva a situações mais complexas: isso porque, embora saibamos que todo enunciado tem princípio e fim absolutos (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.), em alguns casos, seus contornos potenciais parecem não ser passíveis de demarcações definidas apenas por turnos alternados e acabam distantes de revelar fronteiras ideais, bem como não possuem o tema central notadamente exaurido (Souza e Silva, 2005Souza e Silva, M. C. P. (2005). Enunciados interrompidos: são eles inacabados? In B. Brait (Ed.), Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido, 2. ed., (pp. 169-176). Editora da UNICAMP.).

Desse modo, este artigo discute, a partir de uma perspectiva dialógica, o estabelecimento de fronteiras enunciativas tendo em vista um enunciado ligado à atividade estética.4 4 Diversas instâncias do corpus escolhido para este trabalho remetem à conexão inextrincável entre ato ético e estético. No que se refere à própria natureza da performance, como já nos anuncia Fabião (2008, p. 237), “Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo”. Também aos pensadores do Círculo, esta é uma discussão muito cara, uma vez que vai colocar em questão as fronteiras entre arte e vida. Entretanto, como temos outros objetivos com o presente artigo, por ora manteremos esta discussão em aberto para trabalhos futuros. Considerando que, na perspectiva adotada, não se pode analisar virtualmente um enunciado, tomamos como corpus a obra Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) [Disappearing element/Disappeared element (imminent past)] (2002), produzida pelo artista plástico brasileiro Cildo Meireles para a mostra de arte contemporânea Documenta 11.

Metodologicamente, cabe destacar que tanto a delimitação do corpus como a conformação do objeto (Queijo, 2022Queijo, M. E. da S. (2022). Corpus e objeto em perspectiva dialógica: uma análise em obras de M. Bakhtin. Bakhtiniana, 17(2), 89-117. https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/56746 (Acessado 13 de março, 2023).
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
) estão diretamente relacionadas ao problema de pesquisa deste artigo. Sendo as fronteiras enunciativas o que figura como objeto, o corpus constitui-se no que está contido em tais fronteiras. No entanto, a delimitação fronteiriça depende justamente do fazer investigativo aqui proposto.

Ao trazermos a questão dos limites enunciativos para a situação real da obra de Meireles, surgem inquietações quanto à delimitação deste enunciado no mundo: (1) quais seriam as fronteiras que o separam de outros enunciados, junto aos quais arquitetonicamente compõe sua cadeia discursiva; (2) qual o papel do projeto discursivo do autor no estabelecimento dessas fronteiras; (3) como abordar dialogicamente um enunciado fruto de uma atividade estética que é composto por ações, como o proposto por Meireles.5 5 Os próprios autores do Círculo propõem o entendimento de discursos para além de características estritamente verbais (Brait, 2013).

Neste artigo, portanto, buscamos compreender os conceitos aventados em um recorte complexo, que aprofunda os sentidos já apresentados nos textos do Círculo. Por outro lado, analisar um corpus contemporâneo, dentro de formas artísticas (a performance) que sequer existiam quando os autores do Círculo escreveram a maior parte de seus textos, é, de certa forma, atualizar a teoria, percebê-la como funcional enquanto teoria geral, para além do que foi produzido por seus “fundadores”. Assim, ambivalentemente, se discutir as fronteiras de um enunciado concreto é dar um passo atrás na teoria; ao retomar seus fundamentos, este artigo enfrente uma questão fundamental aos estudos hodiernos que mobilizam a obra de Bakhtin e dos demais pensadores do Círculo e, em especial, contribui com a Análise Dialógica do Discurso (ADD). Ademais, este trabalho justifica-se por demonstrar um funcionamento bastante sofisticado e coerente dentro dos conceitos do Círculo e propor uma reflexão a respeito da relação entre ética e estética.

Dentre outras peculiaridades do enunciado, consideramos que alternância de sujeitos do discurso, conclusibilidade e projeto discursivo são fenômenos indissolúveis, o que comporta a ideia de que todas essas peculiaridades participam do estabelecimento das fronteiras enunciativas. Nesse sentido, propomos compreender o “querer dizer” para identificar as fronteiras do enunciado apropriadamente.

Na próxima seção, descrevemos a obra de arte Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), bem como exploramos possibilidades de leitura da obra e alguns dos conteúdos presentes na sua recepção crítica; em seguida, aproximamos de maneira mais contundente a obra ao conceito de enunciado concreto, tendo em vista o projeto discursivo do artista; à guisa de conclusão, propomos uma delimitação das fronteiras desse enunciado concreto, o que acreditamos ser possível apenas a partir de um olhar sobre o projeto discursivo do autor para esse enunciado.

2. A obra e sua recepção

A obra Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) foi elaborada por Meireles especialmente para a participação na mostra de arte contemporânea Documenta 11,6 6 Registros fotográficos do trabalho na Documenta 11 estão disponíveis em: universes-in-universe.de/car/documenta/11/frid/e-meireles.htm. Acesso: mar. 2021. realizada em Kassel, Alemanha, entre junho e setembro de 2002.7 7 Com adaptações, a obra foi apresentada no Musée d’Art Moderne et Contemporain de Strasbourg, França (2003) e na exposição Futuro do Presente, no espaço Itaú Cultural, Brasil (2007). Na ocasião, o artista brasileiro decidiu promover a venda de sorvetes em palito (picolés) feitos apenas de água congelada, apresentados em três formatos distintos e embalagens nas cores azul, verde ou cinza.

Os picolés foram comercializados por um euro; uma parcela do montante arrecadado subvencionou parte dos custos de produção, sendo outra parcela dividida entre os funcionários. Meireles coordenou desde a instalação temporária de uma pequena fábrica para a produção dos picolés até a compra de suprimentos e equipamentos, além da contratação de fornecedores, funcionários e vendedores. Foi também responsável, junto a uma amiga, pela criação da logomarca estampada nas embalagens, nos uniformes e nos dez carrinhos de sorvete estrategicamente espalhados por espaços públicos ou entre os cinco diferentes pontos de exposição na cidade alemã.

Cada picolé era atravessado por um palito plástico da mesma cor da embalagem. De um lado, era possível ler a inscrição em baixo-relevo “DISAPPEARING ELEMENT” e, no lado oposto, conforme o gelado era consumido ou derretia, revelava-se a inscrição “DISAPPEAREAD ELEMENT”. “DISAPPEARING ELEMENT” e “DISAPPEAREAD ELEMENT” também constavam nos uniformes, carrinhos e embalagens dos picolés.

Destacamos alguns pontos: (i) a tensão entre o trabalho proposto por Meireles e o pensamento sobre uma obra de arte visual em contexto museal, (ii) a venda de picolés e os mercados de arte e (iii) a questão da escassez de água e/ou da obra como fonte econômica provisória.

Antes, resgatamos Volóchinov (2017Volóchinov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. Editora 34.), para quem é fundamental reconhecer o território interindividual no qual dois (ou mais) indivíduos estão socialmente organizados. A respeito dessa propriedade sociológica direcionada à atividade artística, Volóchinov (2019a, p.113)Volóchinov, V. (2019a). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34. ainda defende que “a arte é imanentemente social: o meio social extra-artístico, ao influenciá-la de fora, encontra nela uma imediata resposta interior”. Ou seja, não é possível ler um enunciado sem estabelecer a relação dele com o mundo à sua volta, pois ele é produzido visando “um contemporâneo da nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, das nossas leis” (Volóchinov, 2017Volóchinov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. Editora 34., p.205), um outro que compartilha do mesmo horizonte.

Iniciando por elementos que não serão polemizados neste artigo, certamente a proposta de Meireles dialoga de maneira conflituosa com o senso comum acerca das artes plásticas e de seu local de exposição. Ao colocar parte do trabalho em circulação pela cidade,8 8 Rivitti (2007) trata da questão da circulação na obra de Meireles, tendo em vista o público e o lugar da arte. em um espaço e movimento não balizados pela cultura erudita, o artista quebra com expectativas de que sua obra seria apreciada no espaço delimitado da mostra, de maneira razoavelmente estática, ou pelo menos cerceada por uma limitação física do espaço predial do museu. Perceba-se que, aqui e em outros pontos, não dialogaremos com especialistas, mas com o interlocutor médio ou ainda com o senso comum, cujos pré-conceitos de ser/estar no mundo determinam espaços, ações, falas, gestos, situações específicas em que se devam produzir certos tipos de enunciados. Acreditamos nesse aspecto estar seguindo os passos de Amorim (2020Amorim, M. (2020). O discurso da dança e o conceito de gênero - alguns elementos de leitura. Bakhtiniana, 15(2), 64-96. https://doi.org/10.1590/2176-457342617
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, p.65) que, ao analisar o discurso da dança, visa o público leigo, “mero amador e frequentador desse tipo de espetáculo, como é aliás nosso caso”.

O espectador médio poderia até esperar, no caminho próximo ou ao redor do espaço da mostra, já se deparar com alguma obra que extrapolasse o espaço físico, mas ainda ligado a ela - no que seria feliz, pois os carrinhos, assim como a parte de trás do uniforme dos vendedores, ostentavam bandeirolas com a marca da mostra. O que Meireles faz, porém, é esgarçar esta possibilidade, explorando a circulação da obra ao ponto de afrouxar limites que vão além do espacial - ao vender picolés pela cidade, pode-se surpreender/encontrar consumidores/apreciadores que não estejam esperando participar/fruir uma obra de arte, mas apenas se refrescarem do calor do dia, já que a mostra ocorreu durante o verão europeu. Este interlocutor não estaria excluído do projeto discursivo do artista, pois concretamente participa de seu horizonte social enquanto transeunte da cidade em que ocorre o evento. Em contrapartida, esse interlocutor médio, fugaz, não especializado, teria dificuldades em interagir com a totalidade de um enunciado complexo.

Além disso, os picolés, na condição de obra de arte apresentada por um artista numa importante mostra de arte contemporânea, estavam sendo vendidos a um valor irrisório para os mercados de arte. A própria atividade de vender picolés é uma atividade cotidiana sem “apelo artístico” (estamos, novamente, conversando com o interlocutor médio). Quando Meireles elege vender picolés naquilo que o jornal Folha de São Paulo (18 de junho de 2002)Folha de São Paulo. (2002). Escassez de água é tema de obra de Cildo Meireles exposta em Kassel. 18 de junho de 2002. https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u24922.shtml (Acessado 13 de março, 2023).
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chamou de “a maior mostra de arte contemporânea do mundo”, há também um contexto que perpassa as discussões sobre arte contemporânea, uma polêmica entre o fazer artístico e o valor da obra de arte, ou entre o valor da obra de arte no mundo e o valor da obra de arte no mercado de arte.

O jornal ainda ressalta “o estabelecimento de um sistema de produção autônomo em pequena escala”,9 9 “‘Os vendedores recebem uma participação percentual nas vendas e o resto é destinado ao pagamento das máquinas e veículos necessários para a fabricação, distribuição e comercialização’, acrescentou [Meireles]”. (Traduzido por Folha de São Paulo de France Presse, 18 de junho de 2002). proletarizando e relativizando a questão do valor da obra de arte. Anjos (2010Anjos, M. (2010). A indústria e a poesia: Cildo Meireles. In M. Anjos, Crítica, Moacir dos Anjos, (pp. 63-75). Automatica. https://desarquivo.org/sites/default/files/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf (Acessado 1 de abril, 2023).
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, p.68) aponta que

na constituição da empresa que produzia e distribuía os picolés, ficou desde o início acordado que os rendimentos líquidos da venda do produto (descontados os custos variáveis de produção e comercialização) seriam integralmente distribuídos entre os funcionários envolvidos, subvertendo, assim, a lógica de apropriação e acumulação de valor em que se ancora a produção capitalista.

Tal postura do artista, que rejeita ou corrompe uma lógica capitalista vigente no mundo, é uma constante na arte contemporânea. A esse respeito, na obra de Meireles, Rivitti (2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
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, p.57) afirma que a relação mantida pela obra com o público promove certa ironia quanto ao desejo de consumo, “criando uma possibilidade (falsa, como se vê) de adquirir uma obra de arte por apenas um euro. Mas o que o público leva, efetivamente? O residual desse trabalho chega próximo ao zero, se não fosse o palito que pode ser conservado”.10 10 Dos poucos registros pela internet, destacamos imagem publicada na rede social Twitter, sob a hashtag “#documenta11”. A fotografia traz um palito acompanhado da embalagem de um dos picolés de Meireles. Disponível em: twitter.com/mowaii/status/822451217762811904/photo/1. Acesso: fev. 2021. Constatamos ainda que embalagem e palito da Documenta 11 foram ofertados em leilão de arte conceitual, em 2020. Informações disponíveis em: www.rmgouvealeiloes.com.br/peca.asp? ID=6852162&ctd=46#simple3. Acesso: fev. 2021. Por fim, há imagens das embalagens e formatos dos picolés, além dos carrinhos e vendedores e de um detalhe do palito em Pinheiro (2014, p.125).

De Volóchinov (2017Volóchinov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. Editora 34., p.207-208) retomamos aqui a ideia de “formação do horizonte valorativo do grupo social [...], compreendida como um conjunto de tudo que possui significação ou importância para o grupo. [...] horizonte de existência acessível, compreensível e essencial para o homem”. Desse modo, no escopo do horizonte valorativo no qual participa o interlocutor da obra de Meireles está a escassez de água. Sendo a obra de arte - e, neste sentido, especialmente a obra de arte contemporânea - espaço para levantar discussões e questões acerca do mundo contemporâneo, é esse um dos tópicos que acabam mobilizados pela obra Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), possibilitando que seus “fruidores” reflitam, discutam e se atentem ou mesmo modifiquem uma dada postura.11 11 Segundo Volóchinov (2019a, p.120 - grifo no original), “a situação extraverbal não é em absoluto uma simples causa externa do enunciado, ou seja, ela não age sobre ele a partir do exterior, como uma força mecânica. Não, a situação integra o enunciado como uma parte necessária da sua composição semântica”.

Também em 2002, ocorreu a “Conferência sobre o Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável”, conhecida como “Rio+10”. Dias antes, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou o relatório intitulado Global challenge, global opportunity (13 de agosto de 2002ONU. (2002). Global Challenge, Global Opportunity. https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/critical_trends_report_2002.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
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), em que trazia dados alarmantes acerca da condição humana no mundo. No que se liga à manifestação artística de Meireles, destacamos a informação de que 40% da população mundial sofria com a escassez de água naquele momento e havia a previsão de que, em 2025, cerca de metade da população mundial (3,5 bilhões de pessoas) sofreria com a falta de água - seria, inclusive, motivo de insuficiência de alimento eventualmente.

Desse contexto, podemos depreender que a discussão sobre a questão da água estava em evidência quando veio à luz Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente). O referido “elemento”, constante não apenas no título da obra, mas materialmente presente e verbalmente inscrito no objeto artístico, amplia os sentidos de percepção e atenção do interlocutor.

Sendo a água um dos elementos da Terra, pode-se inclusive interpretar o título da obra como referência direta ao principal produto de que são feitos os picolés, reiterando uma interpretação de que o mote da obra é a água. A possibilidade de tal interpretação é reforçada, a título de exemplo, se recuperarmos enunciados noticiosos a respeito da mostra, dos quais destacamos: legenda de imagem veiculada pelo portal britânico de notícias BBC (“O brasileiro Cildo Meireles faz uma crítica à escassez mundial de água”10 14 A própria ideia de um picolé “só de água” surgiu de um produto cotidiano de consumo com o qual o artista se deparou na cidade de sua avó, em Campinas, Goiás (Rivitti, 2007; Pinheiro, 2014; Cypriano, 2002). ), manchete da Folha de São Paulo (“Escassez de água é tema de obra de Cildo Meireles exposta em Kassel”), ou mesmo em explicação no site especializado O Bigorna (“E desta maneira lúdica e elegante, ele falava sobre a escassez de água!”). O próprio artista, em entrevista a Cypriano (2002Cypriano, F. (2002) Cildo Meireles distribui picolés em Kassel. Folha de São Paulo, 25 de maio de 2002. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2505200221.htm (Acessado 13 de março, 2023).
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, s/p.) convoca a água como um de seus tópicos, embora não lhe confira uma projeção tão destacada: “A proposta é trabalhar com a ideia de dissolução e apontar para uma questão, a da água, que apesar dos conflitos étnicos e religiosos atuais, é um tema vital para o planeta”.

Em todos esses enunciados aludidos, a questão da escassez da água figura como tema, pois, conforme Volóchinov (2017Volóchinov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. Editora 34., p.230-231), o tema está vinculado à “totalidade do enunciado” concreto. No entanto, ainda baseados em Volóchinov (2017, p.231)Volóchinov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. Editora 34., podemos dizer que a questão da escassez da água de modo abstrato, isto é, desassociada de enunciados reais, figura apenas como significação, isto é, como “potência, uma possibilidade de significação dentro de um tema concreto”. Isto se dá também em função de outras possibilidades de significar a obra, caso de abordagens como a de Anjos (2010Anjos, M. (2010). A indústria e a poesia: Cildo Meireles. In M. Anjos, Crítica, Moacir dos Anjos, (pp. 63-75). Automatica. https://desarquivo.org/sites/default/files/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf (Acessado 1 de abril, 2023).
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, p.68 - grifos no original), curador e especialista em artes, que propõe considerar

o desgaste natural e progressivo das máquinas utilizadas, a consequente necessidade de reposição gradual de equipamentos, e a decisão de não constituir ou prover fundos para investimentos, é possível afirmar que o trabalho já embutia um mecanismo entrópico de dissipação do valor gerado que causaria, no longo prazo (muito além, contudo, do tempo que durou a mostra), a cessação de rendimentos e a inevitável paralisação de sua operação comercial.

Retomando a ideia da desmaterialização da obra de arte e do desgaste dos meios de produção na fábrica de picolés de Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), também a fábrica virtualmente acabaria desaparecendo, pois não respondia aos critérios financeiros ou mecânicos de manutenção da linha de produção. “Apesar de usar as convenções visuais e conceituais da indústria, ela foi constituída sem visão de lucro ou mesmo de crescimento mercadológico, e rompe com essa lógica ao se estabelecer em caráter temporário, o que permite pensar na sua própria ‘evaporação’” (Pinheiro, 2014Pinheiro, J. A. C. (2014). [pro]posições da narrativa na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Espírito Santo. http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_7747_Janayna_Araujo_Costa_Pinheiro_CildoMeireles.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
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, p.59). Meireles marca, com essas ações (ou ausências de ações, dada a não manutenção), sua mundividência e seu comentário acerca do funcionamento do mundo contemporâneo, das relações de trabalho e do capital, para apenas citar algumas das implicações que pode ter seu discurso. A “paralisação de sua operação comercial” corresponderia, portanto, a uma morte, “dissipação”, “desvanecimento”, no mundo contemporâneo.

Entendimento parecido tem Rivitti (2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
, p.57 - grifos nossos):

As frases ali presentes recordam que o trabalho é o processo: a circulação dos carrinhos espalhados pela cidade, a instalação de uma fábrica, o ato da venda e do consumo. O trabalho é uma seqüência de ações que acontecem num determinado período. Entra em cena, novamente, um desaparecimento, presente em inúmeras obras de Cildo Meireles. Neste caso, também cercado por uma forte transparência: a água (símbolo de transparência e pureza, por excelência), as explícitas relações de consumo, a clareza na distribuição do dinheiro obtido com a venda (todo revertido para custear o trabalho). Mas, mais uma vez, tal transparência não possibilita a apreensão dos objetos que escapam, derretem ou simplesmente somem.

Mas Anjos (2010Anjos, M. (2010). A indústria e a poesia: Cildo Meireles. In M. Anjos, Crítica, Moacir dos Anjos, (pp. 63-75). Automatica. https://desarquivo.org/sites/default/files/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf (Acessado 1 de abril, 2023).
https://desarquivo.org/sites/default/fil...
, p.68 - grifos no original) ainda propõe um entendimento mais incisivo e holístico acerca da metáfora buscada por Meireles, amalgamando duas possíveis cadeias discursivas na mesma metáfora:

Por sua materialidade transiente, também a fábrica, portanto (e não apenas os picolés que produzia), pode ser entendida como uma metáfora da crescente indisponibilidade de água potável no mundo, elemento ameaçado de extinção (desaparecendo) e sob risco de tornar-se, salvo se forem tomadas medidas de provisionamento e de uso racional das reservas naturais ainda existentes, o cerne de um grave problema político (quando houver, finalmente, desaparecido).

Percebe-se, portanto, na interpretação do crítico de arte acerca de Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), um encaminhamento que relaciona tanto a questão da escassez de água como a obra como fonte econômica provisória.

Propondo uma aproximação com a arte performativa, podemos pensar a obra produzida por Meireles dentro dos preceitos preconizados por Fabião (2009Fabião, E. (2008). Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Sala Preta, 8, 235-246. https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57373 (Acessado 13 de março, 2023).
https://www.revistas.usp.br/salapreta/ar...
, p.237 - grifo no original) enquanto “Programa”:

Chamo as ações performativas programas [...] para descrever um tipo de ação metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para ser levada a cabo, e que se aproxima do improvisacional exclusivamente na medida em que não seja previamente ensaiada.13 13 Não estamos buscando, com isso, a vinculação da obra ou do artista a determinadas correntes artísticas, mas a mobilização de conceitos produtivos para a análise ora empreendida, cujos objetivos se concentram na compreensão dos contornos do enunciado Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente).

Há, na obra de Meireles aqui analisada, uma ação metódica, com um pensamento conceitual elaborado e sofisticado (o qual aprofundamos mais adiante), mas que não é “controlada” ou “monologizada”, no sentido de que as percepções do seu interlocutor podem abarcar um leque maior de possibilidades. Apresentamos anteriormente ao menos duas delas, sem qualquer intenção de esgotá-las, às quais acrescentamos que, imiscuído no contexto citadino e industrial cotidianos, a obra poderia ser apreciada enquanto arte e/ou enquanto produto de consumo14 14 A própria ideia de um picolé “só de água” surgiu de um produto cotidiano de consumo com o qual o artista se deparou na cidade de sua avó, em Campinas, Goiás (Rivitti, 2007; Pinheiro, 2014; Cypriano, 2002). - com implicações diversas em cada uma das condições.

Também as condições elocutórias do ponto de vista autoral da obra devem ser consideradas, quando de sua análise enquanto enunciado. Volóchinov (2019aVolóchinov, V. (2019a). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34.), ao desaprovar o que define como fetichização da obra de arte como coisa, critica a redução de uma análise à obra de arte examinada, resultado da postura de um pesquisador que nada vê para além da obra. Segundo o pensador russo, “o criador e os contempladores permanecem fora do campo de análise” (Volóchinov, 2019aVolóchinov, V. (2019a). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34., p.114).

Igualmente a respeito da esfera artística e partindo de uma perspectiva dialógica, Magalhães e Kogawa (2019Magalhães, A. S., & Kogawa, J. (2019). Pensadores da análise do discurso: uma introdução. Paco Editorial., p.32) analisam uma obra de Chagall, em que notam que “a valoração não significa adesão a um conteúdo específico”. Os autores afirmam, entre outros fatores, a necessidade de se reconhecer o lugar a partir do qual a obra é contemplada, bem como no qual é criada.

Se até o momento levamos em conta as possibilidades de interpretação dadas em determinado horizonte, do qual participam e no qual estão situados determinados interlocutores, na próxima seção, propomos reunir à nossa discussão o artista - nos termos de Volóchinov (2019aVolóchinov, V. (2019a). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34.) ‘criador’ -, tendo em vista seu projeto discursivo e uma possível ampliação desses horizontes e interlocutores.

Retomamos a primeira inquietação que apresentamos no início deste artigo a respeito do início e do fim de um enunciado. No conhecido texto “Os gêneros do discurso”, ao discutir a questão da extensão do enunciado, Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.29) afirma a alternância dos sujeitos discursivos como criadora “dos limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida”. Para evidenciar essa alternância, Bakhtin (2016)Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34. sugere o diálogo real, pelo qual se observaria o intercalar devidamente delimitado de enunciados relativos a cada sujeito participante desse diálogo. Segundo o autor russo, um enunciado “termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso que seja o ‘dixi’ percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante concluiu sua fala” (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.29). Porém, como estabelece o próprio Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.29), “essa alternância dos sujeitos do discurso [...] [depende] das diversas funções da linguagem e das diferentes condições e situações de comunicação, tem uma natureza diferente e assume formas várias”.

Quando falamos de uma obra como Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), quais seriam essas fronteiras? Seriam elas apenas as fronteiras demarcadas por um “dixi” que se anuncia logo após a água derretida revelar a inscrição “DISAPPEAREAD ELEMENT”, levando à compreensão ativa dos interlocutores que a concebem a partir de uma leitura ecológica? Ou esse “dixi” se apresenta mais adiante, a partir do desaparecimento da fábrica, da distribuição dos lucros e da dissolução de toda essa cadeia, como compreendem os que apostam na ampliação da ideia de provisoriedade? Assim, baseados no que afirma Volóchinov (2019a)Volóchinov, V. (2019a). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34., propomos pensar essas fronteiras tendo em vista não só a quem o enunciado se dirige, mas também o seu autor.

3. O enunciado e o projeto discursivo do artista

Em perspectiva dialógica, a noção de enunciado é definida como unidade real da comunicação entre sujeitos do discurso (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.), implicada em uma situação específica (Volóchinov, 2019aVolóchinov, V. (2019a). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34.). Para compreender a obra de Meireles como enunciado, é importante ter em mente que “não há enunciado nem vivência fora da expressão material” (Volóchinov, 2019bVolóchinov, V. (2019b). Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930) (S. Grillo & E. V. Américo, Trans.). In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34., p.286 - grifos no original). Portanto, ao lidar com Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), visamos pensá-lo concretamente.

Além disso, e da alternância dos sujeitos que introduzimos na seção anterior, há em Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.) a ideia de conclusibilidade, que suscita que a possibilidade de responder a um enunciado é determinada por três elementos “ligados na totalidade orgânica do enunciado: 1) a exauribilidade semântico-objetal; 2) o projeto discursivo ou vontade de discurso do falante; 3) as formas típicas da composição e do acabamento do gênero” (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.36). Detalhando o segundo fator, Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.37 - grifos no original) afirma que em todo enunciado “abrangemos, interpretamos, sentimos a intenção discursiva ou a vontade de produzir sentido por parte do falante, que determina a totalidade do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras”.

Não estamos, com isso, afirmando que cabe ao autor explicar as interpretações válidas de sua própria obra, como se houvesse um sentido único e estável que é determinado pelo artista e deve ser compreendido pelo público ou pela crítica. Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.37) mesmo esclarece que a vontade do falante é a vontade que entendemos - em suas próprias palavras: apenas “imaginamos o que o falante quer dizer”. Ainda de acordo com o autor (Bakhtin, 2011Bakhtin, M. (2011). O autor e a personagem na atividade estética. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Estética da criação verbal, 6 ed., (pp. 1-192). Wmf Martins Fontes., p.5), todos os vivenciamentos criadores ativos têm em comum o vivenciamento do objeto e dos autores-criadores a si próprios “no objeto e não no processo de seu vivenciamento; vivencia-se o trabalho criador, mas o vivenciamento não escuta e nem vê a si mesmo, escuta e vê tão somente o produto que está sendo criado ou o objeto a que ele visa”. Assim é que, na concepção bakhtiniana, devemos ir à obra, produto criado, e não ao artista, seu criador.

Nesse aspecto, para identificar o que compõe Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) enquanto enunciado, dependemos também da vontade discursiva de Meireles, do que entendemos que ele “quis dizer” com aquela obra. E, embora não estejamos em busca das explicações do autor sobre sua própria obra, é relevante que possamos estabelecer relações com o que ele possa dizer sobre ela. É o que ressalta Lima (2008Lima, A. P. (2008). Visitas técnicas: um processo de “conciliação” escola-empresa. [Tese de doutorado]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/14031/1/Anselmo%20Pereira%20de%20Lima.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://sapientia.pucsp.br/bitstream/han...
, p.77) ao pensar sua própria condição de pesquisador inserido no processo de análise do enunciado:

o pesquisador [...] terá condições de apreender a intenção, a vontade discursiva, o querer-dizer, a idéia ou vontade verbalizada, em suma, o projeto discursivo desses sujeitos falantes. Isso lhe permitirá ‘medir’ sua conclusibilidade, perceber o todo desse enunciado em construção, do discurso em desdobramento.

Para esta perspectiva analítica, recuperamos entrevista concedida pelo artista a Rivitti (2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
, p.82):

[Meireles:] [...] É claro que ele [Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido (passado iminente)] se refere à questão da água. Agora mesmo, a ONU quer usar esse trabalho para algo como “Ano mundial da água”. Eu tinha que autorizar, mas perdi a carta…

[Rivitti:] Você acha que essa leitura ecológica do trabalho é perigosa?

[Meireles:] Eu não me importo. A questão da água é realmente grave, é uma coisa que estamos lidando de uma maneira completamente displicente para a grandiosidade do fato. Certas coisas se superpõem a outras. Estamos num período em que os conflitos são de natureza econômica, biológica e religiosa. Mas eu acho que sempre existem coisas mais gerais, mais graves, que acabam se superpondo. Seguramente, a água é uma delas.

No excerto da entrevista, podemos perceber, principalmente pela pergunta da entrevistadora, que o objetivo central da obra não seria o debate acerca da escassez de água. Isso se deve às questões inerentes à produção discursiva da própria esfera em que o enunciado se inscreve. Há uma relativa hierarquização de temas e questões a serem discutidas na arte contemporânea, que tenta se manter longe de certa funcionalidade ou aplicabilidade prática da arte - como eco da discussão levantada acima, acerca da relação entre capitalismo e arte contemporânea. A resposta de Meireles, entretanto, corrobora a questão da água no espectro de intencionalidade do autor do discurso, constituindo Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) como elo também desta cadeia discursiva.

Outra cadeia discursiva contemplada pelo enunciado aqui analisado é a produção industrial. Tendo sido inscrito por Meireles entre as obras que reuniu sob o nome de “Poemas industriais”,15 15 Juntamente com a obra Camelôs (Anjos, 2010, p.71). na mesma entrevista citada anteriormente, o artista afirma:

[Rivitti:] Esse trabalho para a Documenta foi feito pensando numa cidade como Kassel, com suas proporções, seus circuitos estabelecidos?

[Meireles:] Eu pensei justamente numa cidade brasileira do interior, numa economia daqui, não da Alemanha. Queria que o trabalho funcionasse mesmo como uma fonte econômica temporária, que tivesse uma efetividade por esse ângulo também. Em Kassel a gente vendeu uns 70 mil picolés. No final, deu para cobrir os custos. Uma parte do dinheiro foi para o pessoal que estava trabalhando e outra parte foi para ressarcir a compra do equipamento. (Rivitti, 2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
, p.81)

Por visualizar a obra em escala quase artesanal de produção, como são as produções de picolés no interior brasileiro, o próprio Meireles, na mesma entrevista, afirma a dificuldade em conservar o negócio em pequena escala. Isso porque o maquinário inicialmente disponível na Alemanha era capaz de produzir em torno de dois milhões de picolés por dia, quantidade muito acima da desejada pelo artista, tendo em vista suas referências em uma economia ligada às cidades brasileiras do interior.

Meireles ainda relembra que “a gente podia fazer esse trabalho contratando uma fábrica (se não na Alemanha, em Portugal, na Ucrânia) e de lá receberíamos isso pronto, era só distribuir. Mas tivemos que fazer todo o processo. O trabalho é, sobretudo, isso” (Rivitti, 2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
, p.82 - grifo nosso). A terceirização (o “comprar pronto”) quebraria a noção de circuito, muito valorizada na obra de Meireles e vista pelo artista como um espaço privilegiado da ação artística. Ao tentar explorar os sentidos de seu próprio trabalho, é este o caminho trilhado por Meireles: “Tem uma parte do trabalho que é nitidamente o circuito” (Rivitti, 2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
, p.81).

A noção de circuito pode servir produtivamente à cadeia discursiva composta pelo enunciado analisado, cujos temas se sobrepõem e se atravessam de acordo com as interações estabelecidas com seus interlocutores. É dessa cadeia de sentidos que Anjos (2010Anjos, M. (2010). A indústria e a poesia: Cildo Meireles. In M. Anjos, Crítica, Moacir dos Anjos, (pp. 63-75). Automatica. https://desarquivo.org/sites/default/files/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf (Acessado 1 de abril, 2023).
https://desarquivo.org/sites/default/fil...
, pp.67-68) depreende, a partir da obra, que

negando permanência física a tais objetos - veículos de uma obra baseada em ideias de fluxo -, Cildo Meireles põe ênfase na possibilidade de usar os circuitos e redes que fundam e regulam as relações econômicas e políticas do mundo contemporâneo como plataformas de construção de um enunciado artístico.

Tudo aquilo até agora exposto dá-nos a dimensão da abrangência das ações que compõem Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) e que ultrapassam a comercialização e o consumo do picolé. Cabe ainda destacar que, como enunciado situado no mundo, ele responde a alguns discursos passados e possíveis. O próprio elemento parentético do título, nem sempre referenciado pelos estudiosos da obra, ressalta esta característica dialogicamente discursiva da obra de Meireles: ao incorporar um oxímoro16 16 Também paradoxal é a interpretação da obra proposta por Pinheiro (2014, p.68): “O picolé de gelo, de Elemento Desaparecendo/Desaparecido, pode assumir um processo de anestesiamento do sujeito, mas quando consideramos o procedimento da obra, incluindo a pequena fábrica e todo o seu aparato, não conseguimos encaixá-la no modelo da indústria capitalista, agindo, porém, em um movimento contrário ao sistema anestesiante”. temporal no título de seu trabalho, o artista ressalta a “resposta a enunciados futuros” intencionalmente inserida no panorama de interpretação de seu enunciado.

A expressão “passado iminente”, já comentada, parece se referir ao tempo que demora para a frase aparecer totalmente, o momento em que o gerúndio se torna passado, o tempo para que o picolé de água acabe. Mas, a rigor, o que designaria o termo “passado iminente” senão o presente? Há uma ironia que faz com que voltemos ao uso do termo iminente, geralmente associado a um tipo de projeção trágica para o futuro (Rivitti, 2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
, p.55).

Embora não seja objetivo deste trabalho discutir detidamente a verbo-visualidade (Brait, 1997Brait, B. (1997). O texto irônico: fundamentos teóricos para leitura e interpretação. Letras. Revista do Mestrado em Letras da UFSM, 15, 11-28. http://www.scielo.br/pdf/ref/v15n1/a12v15n1.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
http://www.scielo.br/pdf/ref/v15n1/a12v1...
, 2009Brait, B. (2009). A palavra mandioca do verbal ao verbo-visual. Bakhtiniana, 1(1), 142-160. http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/3004/1935 (Acessado 13 de março, 2023).
http://revistas.pucsp.br/index.php/bakht...
, 2013Brait, B. (2013) Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana, 8(2), 43-66. https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/16568 (Acessado 13 de março, 2023).
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
; Magalhães, 2009Magalhães, A. S. (2009). A questão verbo-visual em reportagens de um jornal carioca: uma perspectiva dialógica dos processos de subjetivação. Intercâmbio, 20, 44-63. https://revistas.pucsp.br/index.php/intercambio/article/view/3535 (Acessado 13 de março, 2023).
https://revistas.pucsp.br/index.php/inte...
; Grillo, 2012Grillo, S. V. C. (2012). Fundamentos bakhtinianos para a análise de enunciados verbo-visuais. Filologia e Linguística Portuguesa, 14, 233-244. https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/16568 (Acessado 13 de março, 2023).
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
), ou ainda, de maneira tridimensional, a verbivocovisualidade (Paula e Luciano, 2020aPaula, L de, & Luciano, J. A. R. (2020a). A tridimensionalidade verbivocovisual da linguagem bakhtiniana. Revista Linha D´Água, 33, 105-134. https://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/171296/165153 (Acessado 13 de março, 2023).
https://www.revistas.usp.br/linhadagua/a...
; 2020bPaula, L de, & Luciano, J. A. R. (2020b). Filosofia da Linguagem Bakhtiniana: concepção verbivocovisual. Revista Diálogos, 8(3), 132-151. https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/revdia/article/view/10039 (Acessado 13 de março, 2023).
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
), aqui vale uma palavra acerca da forma/materialidade do enunciado analisado. O próprio Meireles se refere às partes que constituem o todo de Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) como ações,17 17 “A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (Arendt, 2007, p.15). Já em Bakhtin, as ações são um proceder individual, baseado na vontade e na necessidade de seu autor e podem ser atos primordialmente éticos, estéticos ou pragmático-cognitivos, como o autor descrever no texto seminal Para uma filosofia do ato [Hacia una filosofía del acto ético] (Bajtín, 1997). cujo uso para definir as “etapas” de um processo artístico-performativo remonta aos primeiros artistas que, no século XX, enveredaram por este caminho em suas obras:

Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como o indica a palavra grega archein, “começar”, “ser o primeiro” e, em alguns casos, “governar”), imprimir movimento a alguma coisa (que é o siginifcado original do termo latino agere) (Arendt, 2007Arendt, H. (2007). A condição humana. Tradução Roberto Raposo. Forense Universitária., p.190).

Portanto, as ações constituintes da obra de Meireles corresponderiam a capítulos de um romance ou de uma tese. Se há a verbalidade no enunciado com as sentenças “DISAPPEARING ELEMENT” e “DISAPPEAREAD ELEMENT” impressas em palitos de plástico, embalagens, carrinhos e uniformes dos vendedores, há também o caminhar dos vendedores pela cidade, a linha de produção da fábrica e o próprio processo de montagem dessa linha de produção enquanto participantes do enunciado, bem como a divisão dos lucros e dissolução da fábrica. Todos compreendidos como ações, porque imprimem movimento ao enunciado, que, por conseguinte, não é estático, mas vivo, presente no mundo e em interação com o todo que constitui sua arquitetônica. Como novamente afirma o próprio artista em entrevista (Rivitti, 2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
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, p.83):

interessa [...] justamente verificar a velocidade, uma coisa que você está testemunhando enquanto acontece. É claro que você pode transpor para uma coisa mais geral, fazer uma leitura ecológica, não me importa. Para mim, em última análise, aquilo vai se referir ao fato de ver uma coisa se convertendo em outra na sua frente, desaparecendo.

Olmos (2006Olmos, C. (2006). Enunciado. In P. O. Arán (Ed.), Nuevo diccionario de la teoría de Mijaíl Bajtín (pp. 91-97). Ferreyra Editor., p.93) destaca a relação do enunciado com a realidade extraverbal, que, no caso de Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), poderíamos, no sentido de paralelismo apresentado acima, chamar de extra-accional - que seria sua relação com a realidade para além dos processos artísticos do enunciado:

Cuando una oración (que, de hecho, puede estar formada por una sola palabra) se delimita por el cambio de los sujetos discursivos, entonces, ella misma se convierte en un enunciado completo, susceptible de relacionarse con otros enunciados y con la situación extraverbal.

Novamente, se lermos a comparação bakhtiniana entre oração/língua e discurso dentro da esfera artística a que pertence Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), percebemos que a abrangência do enunciado de Meireles extrapola o momento de interação com seu interlocutor direto, no ato de chupar ou deixar derreter o picolé de gelo, e abrange também os processos de produção industrial dos objetos anterior e posterior à ação de venda dos picolés. Isso porque essa parte do enunciado, a linha de produção, também se relaciona com outros enunciados, com outros sujeitos e com a situação extra-accional da obra. A fábrica não serve apenas para a produção de uma obra ou um produto, mas ela própria acrescenta e modifica os significados das demais ações que constituem o enunciado concreto, conforme as discussões de Anjos (2010Anjos, M. (2010). A indústria e a poesia: Cildo Meireles. In M. Anjos, Crítica, Moacir dos Anjos, (pp. 63-75). Automatica. https://desarquivo.org/sites/default/files/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf (Acessado 1 de abril, 2023).
https://desarquivo.org/sites/default/fil...
) e Rivitti (2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
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).

Todo o cenário até aqui exposto, que busca descrever e analisar, ou seja, estabelecer os sentidos da obra Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) tanto em sua configuração interna quanto em sua relação com a situação, o contexto em que se insere, remete a uma afirmação de Volóchinov (2019bVolóchinov, V. (2019b). Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930) (S. Grillo & E. V. Américo, Trans.). In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34., p.286): “de modo geral, nenhum enunciado - científico, filosófico, literário - pode existir sem um certo grau de subentendido”.

Embora para a esfera artística a questão do subentendido do enunciado não seja algo que cause comoção, em um enunciado complexo (e composto) como Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), vale ressaltar que há diferentes tipos de interação (ou ênfase) esperadas por quem estabelece contato com determinadas ações do enunciado concreto: a discussão sobre a fetichização do mercado de arte pode ser muito mais patente ao consumidor que compra um dos picolés, ou uma certa “afronta” ao mundo capitalista seria mais premente a quem toma conhecimento ou contato com a instalação da fábrica em Kassel, enquanto a escassez de água pode chamar mais a atenção a interlocutores mais conscientes sobre questões ambientais. Da mesma forma, a interpretação de Anjos (2010Anjos, M. (2010). A indústria e a poesia: Cildo Meireles. In M. Anjos, Crítica, Moacir dos Anjos, (pp. 63-75). Automatica. https://desarquivo.org/sites/default/files/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf (Acessado 1 de abril, 2023).
https://desarquivo.org/sites/default/fil...
) acerca da própria fábrica como “elemento desaparecendo/elemento desaparecido” só é possível com um conhecimento do todo do enunciado e dos processos criativos da arte contemporânea. Na esfera artística, o leque de interações possíveis com o enunciado antevistas pelo autor (e, por consequência, por ele respondidas no próprio enunciado) tende a ser mais amplo.

Particularmente à obra analisada, portanto, ressaltamos a sua relação com o público-interlocutor seguindo o pensamento do Círculo. Volóchinov (2017Volóchinov, V. (2017). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. Editora 34., p.205 - grifos no original), a respeito da relevância da orientação da palavra para o público-interlocutor,18 18 Também designado como “destinatário”, “auditório” ou ainda “ouvinte”, como nos trechos referenciados/citados. diz: “Em sua essência, a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte”. De modo a acrescentar, destacamos as críticas de Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.) às abordagens que desconsideram a participação do ouvinte na comunicação discursiva, tomando-o como mero receptor e, com isso, simplificando o que em realidade é fundamentalmente complexo nessa comunicação.

Assim, é importante dizer que, ainda que a realização de parte da obra não dependesse diretamente de uma intervenção do público, como é o caso, haveria ali uma compreensão necessariamente ativa, pois, em perspectiva bakhtiniana, mesmo uma compreensão silenciosa é uma resposta (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.). Contudo, em se tratando de Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), chama a atenção a dependência do público-interlocutor, aqui como fruidor e consumidor, para a devida execução de parte fundamental da obra.

Para além dessa questão, cabe também ressaltar a influência do ouvinte sobre o enunciado (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.). Novamente, essa influência não é exclusiva da obra de Meireles por nós analisada, posto que em todo enunciado a participação do destinatário é antevista pelo autor no ato de produção. Dito de outro modo, o projeto discursivo do autor é sempre afetado por esse destinatário presumido. Contudo, na obra posta sob exame, o que percebemos é o envolvimento necessário desse destinatário naquilo que podemos chamar de objeto, definido por Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.23) como “conteúdo do pensamento enunciado”. Assim é que o autor, ao recorrer ao destinatário como agente necessário para a realização da obra em si, acaba por convocá-lo como parte da obra.

De todos os aspectos aqui expostos (e de outros que possam ter escapado à nossa leitura) decorrem as escolhas de Meireles enquanto autor para a produção daquele enunciado, bem como para sua preparação. Na entrevista concedida a Rivitti (2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
, p.81-82), Meireles relembra um pouco do processo de preparação para a participação na Documenta 11:

[...] eles queriam fazer o trabalho lá em Kassel. Eu achei ótimo, só que com as novas normas da Comunidade [Europeia], sobretudo na Alemanha, ficou difícil comercializar qualquer produto ligado à alimentação porque a legislação é rigorosa. Mas finalmente conseguimos a autorização.

Em março eu estava por aqui, tranquilo, achando que as coisas já estavam acontecendo por lá e me ligaram. Eu tive um mês para fazer tudo daqui do Brasil começando do zero porque justamente lá eles só conseguiram máquinas que faziam dois milhões de picolés por dia, tudo era numa escala assim.

Percebe-se, nas falas de Meireles, que existe uma seleção, disposição e entonação nas ações que compõem o enunciado artístico Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente). O autor escolhe a produção local porque ela faz sentido no todo da obra, ele distribui os carrinhos pela cidade, compõe o design desde a logomarca até os palitos de plástico, com cores determinadas, inclusive. Na obra, muito pouco é deixado ao acaso - salvo, claro está, os subentendidos decorrentes da interação com seu interlocutor, a qual também é direcionada em sentidos específicos, mas não únicos (monológicos). Para a construção do enunciado, Volóchinov (2019bVolóchinov, V. (2019b). Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado (1930) (S. Grillo & E. V. Américo, Trans.). In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34., p.286 - grifos no original) chama a atenção para que “consideraremos como elementos fundamentais que constroem a forma do enunciado, primeiramente, o som expressivo da palavra, isto é, a entonação; em seguida, a escolha da palavra; e, finalmente, a disposição da palavra no todo do enunciado”.

Na citação de Volóchinov, podemos tomar “palavra” como sinédoque de “discurso”, o que se adequa melhor à análise de uma obra artística cuja maioria dos elementos que a compõem não são estritamente verbais, pois, “dependendo das diversas funções da linguagem e das diferentes condições e situações de comunicação, [o discurso] tem uma natureza diferente e assume formas várias” (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.29).

Estamos vendo que nosso enunciado é um todo composto e complexo, par a par com grandes enunciados como romances, filmes etc. Mas, e aqui reside nossa questão central para a discussão que vimos empreendendo: qual é o tamanho deste enunciado? Como podemos, como preconiza Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.), definir suas fronteiras, seu início e seu fim, para assim delimitá-lo em sua concretude, mas também como elo dessa cadeia discursiva, identificando, portanto, a que enunciados responde e quais respondem a ele?

4. As fronteiras (conclusões iminentes)

A respeito das peculiaridades de um enunciado, como afirmado na Introdução deste artigo, diz Bakhtin (2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34.) que esse é delimitado pelos aspectos da alternância dos sujeitos do discurso e implica o que o autor nomeia como conclusibilidade. Dessa forma, em perspectiva bakhtiniana, todo enunciado possui limites precisos que são definidos “pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes”, assim, são marcados por “um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros” (Bakhtin, 2016Bakhtin, M. (2016). Os gêneros do discurso. Tradução Paulo Bezerra. In M. Bakhtin, Os gêneros do discurso (pp. 11-69). Editora 34., p.29 - grifo no original). Desse modo, “buscar as fronteiras enunciativas, rastreando, por exemplo, a alternância dos sujeitos do discurso [...] não é o mesmo que rastrear as trocas de turnos de uma conversa” (Magalhães & Kogawa, 2019Magalhães, A. S., & Kogawa, J. (2019). Pensadores da análise do discurso: uma introdução. Paco Editorial., p.128). A diferença de abordagens está no que se pode compreender como discursivo e dialogal, embora possam coincidir. Aqui nos interessa o discursivo. Assim, este trabalho partiu da hipótese de que, além da alternância de sujeitos e da conclusibilidade específica do enunciado, o projeto discursivo do autor seria fundamental para o estabelecimento de fronteiras enunciativas, sendo necessário compreender esse “querer dizer” para identificá-las apropriadamente.

Em Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), tais fronteiras figuram relativamente aparentes quando nos concentramos na ação de venda e compra para consumo dos picolés/fruição da obra. Contudo, nos defrontamos com o abarcamento na obra, deliberado por parte do artista, de atividades para a fabricação dos sorvetes em palito, envolvendo aquisição de maquinário e admissão de funcionários; bem como de comunicação, como é o caso do desenvolvimento da logomarca, embalagens, uniformes e carrinhos de picolé; além das incumbências envolvidas na distribuição e comercialização dos gelados, como a contratação de pessoas que desempenhem o papel de vendedor ambulante; englobando ainda atividades posteriores a toda essa cadeia até o consumo do picolé, caso do custeamento de parte da produção e divisão dos valores recebidos entre os funcionários.

Diante desse amplo encadeamento de ações propositado na obra por Meireles, as fronteiras do enunciado parecem ser disputadas. Assim, procuramos compreender qual a extensão e os limites desse enunciado e em que proporção podemos considerar Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente) um enunciado: seria o enunciado apenas a parcela atinente aos picolés ou a totalidade de ações? Ou ainda, seria o enunciado a parcela atinente aos picolés e também a totalidade de ações?

Posto que, em Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente), toda a cadeia de produção, distribuição e comercialização é projetada pelo artista para também produzir sentido, toda ela é então parte do enunciado, confirmando a relevância do projeto de dizer na delimitação das fronteiras do enunciado. Assim, se um enunciado concreto depende da materialidade da enunciação, enxergamos o início absoluto da obra de Meireles na primeira ação realizada pelo artista em direção à produção dos picolés - o que, pelo que se depreende do seu relato, pode ser o pedido de autorização à Comunidade Europeia para a comercialização de produto alimentício. Já a fronteira que demarcaria o fim absoluto do enunciado encontra-se após todo o processo contábil, de desmonte da fábrica e distribuição dos lucros entre os trabalhadores - ou seja, quando aquele enunciado “desaparece” enquanto materialidade e apenas resta enquanto discurso/memória.

Como demonstramos, é fundamental que os destinatários compartilhem desse horizonte e estejam envolvidos nessa cadeia discursiva específica, isto é, nessa cadeia relativa não ao tema tangencial da água (ou não só), mas ao todo que leva ao mote processo. Em suma, para que seja possível compreender a totalidade do enunciado maior, é basilar que os participantes da comunicação discursiva acessem o debate relativo ao processo conforme proposto pelo autor-artista no seu projeto discursivo, isto é, no seu “querer dizer”. Assim, tendo em vista a questão dos limites enunciativos, pretendeu-se aprofundar uma noção basilar e essencial ao entendimento da arquitetura bakhtiniana.

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  • 3
    Brait e Melo (2012) tratam enunciado e enunciação em abordagens teóricas linguísticas, enunciativas e discursivas distintas, destacando que, por partirem de diferentes perspectivas epistemológicas, os termos assumem, no interior de cada teoria, dimensões que não coincidem. Ademais, as autoras perseguem e reconstroem a noção de enunciado no conjunto das obras de Bakhtin e o Círculo.
  • 4
    Diversas instâncias do corpus escolhido para este trabalho remetem à conexão inextrincável entre ato ético e estético. No que se refere à própria natureza da performance, como já nos anuncia Fabião (2008Fabião, E. (2008). Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Sala Preta, 8, 235-246. https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57373 (Acessado 13 de março, 2023).
    https://www.revistas.usp.br/salapreta/ar...
    , p. 237), “Esta é, a meu ver, a força da performance: turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar à contra-pêlo”. Também aos pensadores do Círculo, esta é uma discussão muito cara, uma vez que vai colocar em questão as fronteiras entre arte e vida. Entretanto, como temos outros objetivos com o presente artigo, por ora manteremos esta discussão em aberto para trabalhos futuros.
  • 5
    Os próprios autores do Círculo propõem o entendimento de discursos para além de características estritamente verbais (Brait, 2013Brait, B. (2013) Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana, 8(2), 43-66. https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/16568 (Acessado 13 de março, 2023).
    https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
    ).
  • 6
    Registros fotográficos do trabalho na Documenta 11 estão disponíveis em: universes-in-universe.de/car/documenta/11/frid/e-meireles.htm. Acesso: mar. 2021.
  • 7
    Com adaptações, a obra foi apresentada no Musée d’Art Moderne et Contemporain de Strasbourg, França (2003) e na exposição Futuro do Presente, no espaço Itaú Cultural, Brasil (2007).
  • 8
    Rivitti (2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
    https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
    ) trata da questão da circulação na obra de Meireles, tendo em vista o público e o lugar da arte.
  • 9
    “‘Os vendedores recebem uma participação percentual nas vendas e o resto é destinado ao pagamento das máquinas e veículos necessários para a fabricação, distribuição e comercialização’, acrescentou [Meireles]”. (Traduzido por Folha de São Paulo de France Presse, 18 de junho de 2002).
  • 10
    Dos poucos registros pela internet, destacamos imagem publicada na rede social Twitter, sob a hashtag “#documenta11”. A fotografia traz um palito acompanhado da embalagem de um dos picolés de Meireles. Disponível em: twitter.com/mowaii/status/822451217762811904/photo/1. Acesso: fev. 2021. Constatamos ainda que embalagem e palito da Documenta 11 foram ofertados em leilão de arte conceitual, em 2020. Informações disponíveis em: www.rmgouvealeiloes.com.br/peca.asp? ID=6852162&ctd=46#simple3. Acesso: fev. 2021. Por fim, há imagens das embalagens e formatos dos picolés, além dos carrinhos e vendedores e de um detalhe do palito em Pinheiro (2014Pinheiro, J. A. C. (2014). [pro]posições da narrativa na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Espírito Santo. http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_7747_Janayna_Araujo_Costa_Pinheiro_CildoMeireles.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
    http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/te...
    , p.125).
  • 11
    Segundo Volóchinov (2019aVolóchinov, V. (2019a). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica (1926). Tradução Sheila Grillo & Ekaterina Vólkova Américo. In V. Volóchinov, A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas (pp. 109-146). Editora 34., p.120 - grifo no original), “a situação extraverbal não é em absoluto uma simples causa externa do enunciado, ou seja, ela não age sobre ele a partir do exterior, como uma força mecânica. Não, a situação integra o enunciado como uma parte necessária da sua composição semântica”.
  • 12
    Tradução nossa. No original: “Brazilian Cildo Meireles makes a comment on the worldwide scarcity of water”.
  • 13
    Não estamos buscando, com isso, a vinculação da obra ou do artista a determinadas correntes artísticas, mas a mobilização de conceitos produtivos para a análise ora empreendida, cujos objetivos se concentram na compreensão dos contornos do enunciado Elemento Desaparecendo/Elemento Desaparecido (passado iminente).
  • 14
    A própria ideia de um picolé “só de água” surgiu de um produto cotidiano de consumo com o qual o artista se deparou na cidade de sua avó, em Campinas, Goiás (Rivitti, 2007Rivitti, T. S. (2007). A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27131/tde-05072009-212931/publico/2353018.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
    https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2...
    ; Pinheiro, 2014Pinheiro, J. A. C. (2014). [pro]posições da narrativa na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Espírito Santo. http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_7747_Janayna_Araujo_Costa_Pinheiro_CildoMeireles.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
    http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/te...
    ; Cypriano, 2002Cypriano, F. (2002) Cildo Meireles distribui picolés em Kassel. Folha de São Paulo, 25 de maio de 2002. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2505200221.htm (Acessado 13 de março, 2023).
    https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustr...
    ).
  • 15
    Juntamente com a obra Camelôs (Anjos, 2010Anjos, M. (2010). A indústria e a poesia: Cildo Meireles. In M. Anjos, Crítica, Moacir dos Anjos, (pp. 63-75). Automatica. https://desarquivo.org/sites/default/files/arte_bra_moacir_dos_anjos_mail.pdf (Acessado 1 de abril, 2023).
    https://desarquivo.org/sites/default/fil...
    , p.71).
  • 16
    Também paradoxal é a interpretação da obra proposta por Pinheiro (2014Pinheiro, J. A. C. (2014). [pro]posições da narrativa na obra de Cildo Meireles. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal do Espírito Santo. http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/tese_7747_Janayna_Araujo_Costa_Pinheiro_CildoMeireles.pdf (Acessado 13 de março, 2023).
    http://portais4.ufes.br/posgrad/teses/te...
    , p.68): “O picolé de gelo, de Elemento Desaparecendo/Desaparecido, pode assumir um processo de anestesiamento do sujeito, mas quando consideramos o procedimento da obra, incluindo a pequena fábrica e todo o seu aparato, não conseguimos encaixá-la no modelo da indústria capitalista, agindo, porém, em um movimento contrário ao sistema anestesiante”.
  • 17
    “A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo” (Arendt, 2007Arendt, H. (2007). A condição humana. Tradução Roberto Raposo. Forense Universitária., p.15). Já em Bakhtin, as ações são um proceder individual, baseado na vontade e na necessidade de seu autor e podem ser atos primordialmente éticos, estéticos ou pragmático-cognitivos, como o autor descrever no texto seminal Para uma filosofia do ato [Hacia una filosofía del acto ético] (Bajtín, 1997Bajtin, M. (1997). Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos Tradução Tatiana Bubnova. Anthropos.).
  • 18
    Também designado como “destinatário”, “auditório” ou ainda “ouvinte”, como nos trechos referenciados/citados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    06 Fev 2023
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