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Elaboração do luto e escritas autobiográficas na Clínica de Linguagem com afásicos

Grief elaboration and autobiographical writings in the Language Clinic with aphasic patients

RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão subsidiada pela Clínica de Linguagem (Lier-DeVitto, 2002Lier-DeVitto, M. F. (2002). Questions on the normal-pathological polarity. Revista da ANPOLL, 1 (12), 169-186. https://doi.org/10.18309/anp.v1i12.510
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, 2006Lier-DeVitto, M. F. (2006). Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas sintomáticas” In M.F. Lier-DeVitto, & L. Arantes (Eds.), Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (pp. 183-200). EDUC.), proposta teórico-clínica que articula noções e conceitos do Estruturalismo Europeu, com Saussure e Jakobson, e da Psicanálise, com Freud e Lacan. Desde os trabalhos de Fonseca (1995Fonseca, S.C. (1995). Afasia: a fala em sofrimento [Dissertação de Mestrado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. , 2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP., 2011Fonseca, S.C. (2011). Afasia: fala em sofrimento que faz sofrer um sujeito. In XVI Congresso Internacional de La Alfal. Obras colectivas de Humanidades. Acala de Henares, Universidad de Acala. ) a afasia é entendida como uma alteração linguística que envolve cérebro ferido, fala em sofrimento e drama subjetivo. O objetivo deste artigo é desenvolver o tema de que o drama subjetivo envolve luto - questão incontornável num atendimento a afásicos que priorize o sujeito e sua condição singular. Destaca-se que a afasia deixa o falante frente às ruínas de uma condição linguística abrupta e inesperada, que remete a um forte abalo no enodamento dos registros do real, simbólico e imaginário (Lacan, 1985Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar. (Apresentação oral em em 1972-1973)./1972-3). Freud (1917) abre a discussão sobre o luto na Psicanálise. Seu texto e de outros psicanalistas são abordados neste artigo. A escrita autobiográfica é apresentada como um dos caminhos possíveis no percurso de elaboração do luto numa Clínica de Linguagem.

Palavras-chave:
afasia; luto; escrita; clínica de linguagem; psicanálise

ABSTRACT

This article presents a reflection based on a theoretical framework built within a clinical area named as Language Clinic (Lier-DeVitto, 2002Lier-DeVitto, M. F. (2002). Questions on the normal-pathological polarity. Revista da ANPOLL, 1 (12), 169-186. https://doi.org/10.18309/anp.v1i12.510
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, 2006Lier-DeVitto, M. F. (2006). Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas sintomáticas” In M.F. Lier-DeVitto, & L. Arantes (Eds.), Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (pp. 183-200). EDUC.), an approach which articulates notions and concepts from both the European Structuralism, Saussure, and Jakobson, and from Psychoanalysis, Freud, and Lacan. Since Fonseca’s studies publications (1995Fonseca, S.C. (1995). Afasia: a fala em sofrimento [Dissertação de Mestrado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. , 2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP., 2011Fonseca, S.C. (2011). Afasia: fala em sofrimento que faz sofrer um sujeito. In XVI Congresso Internacional de La Alfal. Obras colectivas de Humanidades. Acala de Henares, Universidad de Acala. ), aphasia can be understood as a complex phenomenon involving injured brain, disturbed speech, and a dramatic subjective situation. Taking into account the aphasic’s singular subjective condition, this article sustains the importance of deepening the discussion concerning the subjective drama, introducing mourning as a theoretical and clinical problem. We stress the fact that the aphasic sees her/himself imprisoned in a speech disorder which leads us to consider that he/she is under the effect of a strong shock in the entenglament of the real world, the symbolic and the imaginary registers (Lacan, 1985Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar. (Apresentação oral em em 1972-1973)./1972-3). Freud (1917) opens the discussion about mourning in psychoanalysis. His text and those of other psychoanalysts are addressed in this article. We argue that autobiographical texts are efficient linguistic tools for the therapist to deal with the aphasic patients’ clinical elaboration of mourning.

Keywords:
aphasia; mourning; writing; language clinic; psychoanalysis

1. Introdução

Este artigo filia-se a Clínica de Linguagem, proposta teórico-clínica inaugurada por Maria Francisca Lier-DeVitto, na última década do século XX. O diálogo teórico com o Interacionismo em Aquisição da Linguagem, proposto por De Lemos (1992)De lemos, C.T.G. (1992). Los processos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, 1(1). https://www.scienceopen.com/document?vid=94e41ecc-4d69-4374-bd3d-aabeee8bc469
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, é assumido como fonte de questões na montagem teórico-clínica de um campo interrogado pela especificidade do sintoma na fala. O Interacionismo, mantido em posição de alteridade, pode produzir desdobramentos singulares na construção da Clínica de Linguagem que, afinal, tem que se haver com uma clínica em que as ditas falas patológicas são protagonistas. Fez pressão, portanto, a necessidade de cernir diferenças e estabelecer limites entre um campo não clínico e outro clínico. A distinção entre erro na fala de crianças e erros sintomáticos instituiu-se como proposição problemática central. Diferença sensível é que o sintoma na fala produz sofrimento no falante e desarranjo no laço social (Lier-DeVitto, 2003Lier-DeVitto, M. F. (2003). Patologias da linguagem: subversão posta em ato. In N.V. Leite, (Ed.). Corpolinguagem: gestos e afetos (pp. 233-246). Mercado de Letras., 2006Lier-DeVitto, M. F. (2006). Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas sintomáticas” In M.F. Lier-DeVitto, & L. Arantes (Eds.), Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (pp. 183-200). EDUC. e outros).

A filiação da Clínica de Linguagem ao Interacionismo em Aquisição de Linguagem não é cega: “parentesco não é identidade” (Lier-DeVitto, 2001Lier-DeVitto, M. F., & Fonseca, S.C. (2001). Linguística, aquisição da linguagem e patologia: relações possíveis, restrições obrigatórias. Letras de Hoje, 36 (3), 433-440.); precisamente, “parentesco” coloca em relação de diferença erros sintomáticos e não sintomáticos. Esta colocação justifica postular que o sintoma na fala foi e tem sido problemática articuladora da teorização que se desenvolve sobre a linguagem e sobre a relação sofrida do falante com sua fala. Não menos decisivo é o enfrentamento do sintoma para a teorização sobre a clínica que a recolhe. Com Arantes (2001Arantes, L. (2001). Diagnóstico e clínica de linguagem. [Tese de doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.), o diagnóstico ganha lugar e, com ele, a afirmação de que uma clínica, que se proponha recolher o sintoma na fala, deve tomá-lo como enigma , afastando, assim, a certeza equivocada de que o sintoma na fala possa ser apreendido pela via de aplicações de aparatos gramaticais e, mesmo, de tendências ingênuas de estabelecimento de equivalências entre sintoma na fala e erro em falas de crianças ou, ainda, entre sintomas e erros esporádicos na fala de qualquer falante (Lier-DeVitto, 2003Lier-DeVitto, M. F. (2003). Patologias da linguagem: subversão posta em ato. In N.V. Leite, (Ed.). Corpolinguagem: gestos e afetos (pp. 233-246). Mercado de Letras., 2006Lier-DeVitto, M. F. (2006). Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas sintomáticas” In M.F. Lier-DeVitto, & L. Arantes (Eds.), Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (pp. 183-200). EDUC., 2011Lier-DeVitto, M. F.(2011). Abordagem de falas sintomáticas: sobre a condição intervalar da clínica de linguagem entre a linguística e a psicanálise In E.M. Silveira (Ed.). As bordas da linguagem (pp. 57-67). EDUFU. e outros).

Considerando que “parentesco não é identidade”, como dito acima, pode-se admitir que o reconhecimento da diferença entre erro e sintoma ilumina a relação de alteridade que a Clínica de Linguagem entretém com o Interacionismo ainda que, com ele, compartilhe um mesmo ambiente teórico dada a natureza errática dos fenômenos que instigam as teorizações dos dois campos, que se tangenciam, mas que não se confundem. Questões não coincidentes são feitas a um mesmo corpo teórico, que aproxima o reconhecimento da ordem própria da língua (Saussure, 1916)Saussure, F. (2012). Curso de Linguística Geral. Bally, C., & Sechehaye, A. (Eds.). Cultrix. (Original publicado em 1916). e o reconhecimento da hipótese do inconsciente, introduzida por Freud, na Psicanálise. Trata-se de uma aproximação motivada pelo fato de que erros e sintomas na fala são comandados por leis de funcionamento interno da linguagem, mas cujos efeitos apontam para um sujeito surpreendido por seus dizeres estranhos e nada podendo fazer para modificá-los. Observa-se um sujeito dividido entre fala e escuta3 3 Recomendamos a leitura de Lier-DeVitto e Fonseca (2012) e de Lier-DeVitto (2011) sobre o modo singular de relação sujeito falante-linguagem e sobre a aproximação da Clínica de linguagem ao Estruturalismo Europeu e à Psicanálise. .

Quanto ao diálogo com o Interacionismo, diferenças são cernidas. Noções e conceitos que ali são nodais como falante, outro, escuta4 4 Andrade (2003). , interpretação5 5 Spina-De-Carvalho (2003); Pollonio (2011); Santos (2021). e mudança são ressignificados na Clínica de Linguagem. No que diz respeito ao falante, deu-se importância à exigência de distinção entre clínica com crianças e clínica com adultos, apontando para a condição específica da relação sujeito-linguagem na cena clínica. Quanto ao outro-intérprete, na clínica, ele é outro-terapeuta de quem se espera uma escuta e um ato clínico teoricamente instituídos, que possam promover mudanças na fala sintomática e na relação do falante com a linguagem (Lier-DeVitto, 2006Lier-DeVitto, M. F. (2006). Patologias da linguagem: sobre as “vicissitudes de falas sintomáticas” In M.F. Lier-DeVitto, & L. Arantes (Eds.), Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (pp. 183-200). EDUC.). Aponta-se, para a qualidade do diálogo que se estabelece entre Clínica de Linguagem e Interacionismo, diálogo teórico imposto pela especificidade e pelo compromisso com falantes em sofrimento em sua língua materna e com suas falas estilhaçadas, insólitas.

De especial interesse, neste trabalho, é a discussão de Fonseca (1995Fonseca, S.C. (1995). Afasia: a fala em sofrimento [Dissertação de Mestrado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. , 2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. entre outros) sobre as afasias. A autora introduz uma reflexão original ao questionar a centralidade da causalidade lesão-sintoma que desliza do raciocínio médico para o campo da Fonoaudiologia. Fonseca afirma que a lesão não esgota o problema da afasia e sustenta que a afasia é acontecimento linguístico para um clínico de linguagem. A autora abre a porta para uma discussão linguística sobre o enigma que o sintoma afásico apresenta. Jakobson (1967)Jakobson, R. (2010). Linguística e Comunicação. Cultrix. (Original publicado em 1967). é consultado e eleito como referência de fundo. Deste ponto e do interior da cena clínica, ela desloca o olhar para o afásico - um falante em sofrimento porque, sob efeito da afasia, ele fica submetido a uma condição prejudicada de falante, dificilmente superável. Sim, se antes do acidente vascular ele não estranhava sua fala, vivia o sentimento de ser um “falante pleno”, um falante sustentado pela ilusão de estar no controle de seu dizer, agora afásico ele vive a nostalgia do passado (Fonseca, 2011Fonseca, S.C. (2011). Afasia: fala em sofrimento que faz sofrer um sujeito. In XVI Congresso Internacional de La Alfal. Obras colectivas de Humanidades. Acala de Henares, Universidad de Acala. , entre outros). Em outras palavras, após o acidente cerebral, esse ideal é suspenso abruptamente e o falante não se reconhece mais no que diz: sua fala se afasta, toma distância da língua constituída e o deixa impotente frente a ela.

A afasia instaura, prossegue Fonseca (2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP., 2011Fonseca, S.C. (2011). Afasia: fala em sofrimento que faz sofrer um sujeito. In XVI Congresso Internacional de La Alfal. Obras colectivas de Humanidades. Acala de Henares, Universidad de Acala. ), uma tripla condição: cérebro ferido, fala/escrita em sofrimento e drama subjetivo. Nosso objetivo, neste artigo, é aprofundar a discussão sobre a condição dramática que vive o afásico, introduzindo a questão do luto, tema caro e de importância inegável no campo da Psicanálise6 6 A problemática do luto não ficou restrita ao campo da Psicanálise. Um exemplo recente disso é o volume 63 da Cadernos de Estudos Linguísticos que reúne artigos em que a temática se tornou “uma questão de interesse para diferentes domínios e perspectivas, abarcando e convocando uma reflexão sobre a linguagem, o sujeito e a história” como afirmaram Baldini et al. (2021, p. 01) na apresentação do dossiê temático. . O texto de Freud (1917) “Luto e Melancolia” é crucial e reverberou em teorizações importantes de psicanalistas como Ferenczi (1993Ferenczi, S. (1993). A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (Teoria). In S. Ferenczi (Ed.). Obras completas Psicanálise III (pp. 150-166). Martins Fontes.), Pontalis (1991Pontalis, J.B. (1991) Perder de vista: Da fantasia de recuperação do objeto perdido. Zahar.), Lacan (2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 3: As Psicoses. Zahar. (Apresentação oral em 1955-1956, original publicado em 1981)./1955-6; 2005Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: A angústia. Zahar. (Apresentação oral em 1962-1963, original publicado em 2004)./1962-3); Allouch (2004Allouch, J. (2004). Erótica do luto: no tempo da morte seca. Companhia de Freud.). Partimos de Freud e tomamos, também, os outros autores mencionados como referências relevantes. As leituras realizadas foram solo fértil para elaborações das questões levantadas neste trabalho, que se volta para o atendimento de afásicos na Clínica de Linguagem. De grande interesse foi o texto de Ferenczi (1993)Ferenczi, S. (1993). A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (Teoria). In S. Ferenczi (Ed.). Obras completas Psicanálise III (pp. 150-166). Martins Fontes. em que ele trata do que denomina “morte em si”, referindo-se a perdas expressivas impostas pelo corpo, como é o caso das afasias. Os relatos autobiográficos de afásicos testemunham o sofrimento decorrente desta “morte em si”7 7 Ver Cordeiro (2019) e Santos (2022). . Essas autobiografias, mostram ser ao mesmo tempo um caminho eficaz na abordagem do luto na clínica, na medida em que circundam, num banho de simbólico e de imaginário, o trauma real da afasia no afásico. Destacamos que na Clínica de Linguagem a discussão relativa à elaboração do luto erige-se como questão teórico-clínica fundamental tendo em vista o encontro difícil com o drama que um sujeito afásico vivência.

2. Freud em “Luto e Melancolia”

A discussão sobre o luto vem articulada à da melancolia no texto de Freud (1917), “dado o quadro geral dos dois estados”, diz ele. O ensaio “Luto e melancolia” visa a, contudo, opor os dois termos e distinguir duas condições psíquicas diversas, cuja diferença deve ser considerada na clínica, tendo em vista o resultado do movimento que Freud designa como “trabalho do luto”. Luto é definido como “reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela como a pátria, a liberdade, um ideal etc. (Freud, 1917, p. 131)”. A melancolia, diferentemente, caracteriza um estado patológico, em que se observa, diz Freud, desânimo profundo, desinteresse pelo mundo, desinteresse por novo objeto de amor, rebaixamento da autoestima, inibição e limitação do Eu. Ainda que luto e melancolia tenham uma mesma fonte e compartilhem manifestações semelhantes, o que os distingue é que, no luto não há perturbação irrecuperável da autoestima. Na melancolia a situação é diversa, a pessoa sucumbe, a rebaixamento persistente do Eu. Sem dúvida, esta distinção é relevante a clínica psicanalítica. Nela se inspira a Clínica de Linguagem frente ao sofrimento de um afásico decorrente do desarranjo de sua fala.

Sobre o “trabalho do luto” pouco é discutido na obra supracitada. Todavia, ele é decisivo na apreciação dos efeitos de perdas importantes vividas por um sujeito. É possível recolher alguns aspectos relacionados a “tempos” do trabalho do luto (Dunker, 2020Dunker, C.I.L. (2020). Lutos Finitos e Lutos Infinitos: o trabalho de dizer adeus. Revista Expressão, 9(1), 62-67. https://portaldeperiodicos.unibrasil.com.br/index.php/revistaexpressao/article/view/5246.
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). Inicialmente é fundamental que o Eu considere a perda, há realização da perda, e não a recuse - Freud liga este tempo à “prova de realidade”. O sujeito se depara com a perda do objeto e experimenta algo relacionável à perda de um valor que jamais poderá ser encontrado em outro objeto. O trabalho do luto envolve a retirada da libido8 8 De maneira sucinta, libido em Freud corresponde a energia psíquica. de suas ligações com o objeto perdido, o que nos leva ao segundo tempo do trabalho do luto, em que ocorreria uma identificação alternante, caracterizada pela ambivalência de afetos, como culpa e ódio, que podem levar algumas pessoas ao afastamento da realidade. Segundo Freud (1917, p. 132) o normal do trabalho do luto “é que vença o respeito à realidade”. Em um terceiro tempo do trabalho do luto observa-se que a pessoa relaciona o luto vivido com perdas anteriormente vivenciadas. O destino destas relações pode conduzir à paralização no trabalho do luto, levando a um quadro de melancolia. A boa resolução do trabalho do luto corresponderia ao tempo de um afastamento, de uma dispensa do objeto perdido. Em outras palavras: há renúncia e a solução é tornar aquele objeto perdido uma parte de si, encerrando assim o “trabalho” de luto. Freud insiste que ao final do trabalho de luto o Eu fica livre e aberto à substituição do objeto perdido por outro. Resumidamente, para Freud, o luto seria “reação normal” frente “a perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela”.

A melancolia, diferentemente, seria “uma reação patológica”, relacionada menos à perda de um objeto de amor e mais “[de algo] que se perdeu como objeto de amor” (Freud, 1917, p. 131). Freud destaca como diferença marcante a observação de que, na melancolia, o rebaixamento da autoestima ganha contornos excessivos, o que torna essencial levar em conta a natureza, qualidade da relação do sujeito com o objeto perdido. Lemos em Freud que o sujeito localiza o objeto perdido, mas desconhece “o que perdeu”. Esta situação configura a condição em que algo do objeto é subtraído à consciência (Freud, 1917). Nota-se que a energia libidinal volta-se para o Eu, eliminando a chance de religação com o objeto perdido, e tal impossibilidade favorece articulações entre novos elementos para lidar com a perda, que é envolvida por afetos como medo, angústia ou raiva. As energias libidinais não se deslocam para outro objeto, permanecem guiadas pelo desconhecimento daquilo que se perdeu e voltadas para o Eu. Como vimos com Freud, no luto a perda de um objeto perdido não impede sua substituição por outro objeto de amor. Interessou a Freud mostrar que a elaboração psíquica de uma perda promove estados de sofrimento diversos e com nuances singulares seja no luto, seja na melancolia.

Um clínico de linguagem depara-se, principalmente no atendimento à afásicos, com um sujeito enlutado. A prática clínica mostra que um afásico, chega à clínica mergulhado numa condição psíquica dolorosa promovida por uma “perda em si” - expressão de Ferenczi (1993Ferenczi, S. (1993). A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (Teoria). In S. Ferenczi (Ed.). Obras completas Psicanálise III (pp. 150-166). Martins Fontes.), como veremos abaixo. Fato é que ele vive a perda de uma condição de falante, um desconhecimento de si na sua fala. Invariavelmente, o afásico chega derrotado, tendo em vista o impacto de um acidente cerebral, que o aprisiona num sofrimento subjetivo, que implica um abalo na imagem de si. A Clínica de Linguagem não pode virar as costas para este “drama subjetivo”, que muitas vezes impede a condução do tratamento. Testemunha-se, de fato, a ampla heterogeneidade de respostas de afásicos ao acidente cerebral. O que se atesta na Clínica de Linguagem é que a anatomia não sela o destino do sujeito - são singulares as respostas à limitação promovida pela afasia, como assinalaram Lier-DeVitto e Catrini (2019Lier-DeVitto, M.F., & Catrini, M. (2019). Reflexões sobre o corpo falante e seus destinos na clínica de linguagem. In M. Lasch, & N.V. Leite (Eds.) Anatomia, destino, liberdade (pp. 425-434). Mercado de Letras.). Dissemos que nosso artigo visa o aprofundamento da expressão “drama subjetivo”, postulado por Fonseca (2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.), ao introduzir a problemática da elaboração do luto frente a uma “perda em si”. Tal questão demanda que considerações relativas seja à posição do clínico, seja ao manejo da direção de tratamento sejam colocadas em perspectiva no atendimento à afásicos.

3. Desdobramentos sobre luto e melancolia: Ferenczi e a “morte em si”

Conforme dito acima, Ferenczi (1993Ferenczi, S. (1993). A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (Teoria). In S. Ferenczi (Ed.). Obras completas Psicanálise III (pp. 150-166). Martins Fontes.) aponta para a melancolia como resolução psíquica em casos relacionados a acometimentos cerebrais que afetam o sujeito ou, como ele diz, o sujeito experimenta a “morte em si”, que instaura, acrescenta o psicanalista, uma “melancolia paralítica”, que situa o sujeito na dinâmica do trabalho de luto que migra, portanto, para a melancolia. O apontamento de Ferenczi amplia a noção de “perda” em Freud o que é, neste artigo, do maior interesse porque coloca o sujeito afásico diretamente em questão. Os efeitos fenomenológicos anotados foram: “insônias, autoacusações, tendências suicidas, perda de apetite e emagrecimento” (Ferenczi, 1993, p. 155-6)Ferenczi, S. (1993). A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (Teoria). In S. Ferenczi (Ed.). Obras completas Psicanálise III (pp. 150-166). Martins Fontes.. Todos eles apontam para um dramático rebaixamento da autoestima, uma “paralisia” no trabalho de luto, segundo lição retirada de Freud. Para Ferenczi “a presença de sinais físicos incuráveis da doença cerebral permite diferenciar essa melancolia da melancolia psicogênica” (1993, p. 156) e nisso residiria sua complexidade. O sujeito dá-se conta da realidade da perda que o acidente cerebral desencadeia, mas não há chance para o sujeito de se afastar de seus efeitos, ele é “lembrado” de que não controla sua fala e do esgarçamento de laço social, a cada vez que quer dizer alguma coisa. Como diz Lacan (2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 3: As Psicoses. Zahar. (Apresentação oral em 1955-1956, original publicado em 1981)./1955-6), o afásico fica ao lado do que quer dizer e não diz. Parece-nos ter razão Ferenczi ao procurar distinguir a melancolia psicogênica da “paralítica”, como ele pretendeu. Na segunda, o trabalho do luto deve incluir os efeitos da “perda em si” , intransponíveis, em grande medida, nos casos de afasia, e a dolorosa nostalgia de um passado em que vivia a ilusão de ser falante pleno da língua materna. Sem dúvida, na melancolia psicogênica, diz Ferenczi com Freud, o Eu se abate e desliza para um luto inconsciente, ou seja, para a melancolia. Na “melancolia paralítica”, o problema central é que o Eu não pode escapar do fato de que perdeu uma parte de si, perdeu “capacidades e aptidões em decorrência da doença cerebral” (Ferenczi, 1993, p. 156)Ferenczi, S. (1993). A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (Teoria). In S. Ferenczi (Ed.). Obras completas Psicanálise III (pp. 150-166). Martins Fontes..

Como vemos, para Ferenczi, o sujeito não escapa da melancolia, fica nela aprisionado, paralisado, o que acrescenta dificuldades clínicas ao manejo do tratamento que se desenvolve, no caso de afásicos, num atendimento que não acontece na clínica psicanalítica. O sintoma na fala direciona afásicos para terapeutas de fala e a Clínica de Linguagem os recebe. Nela a relação falante-linguagem-outro é colocada em perspectiva, assim como o drama subjetivo que vivem e é, neste ponto, que esta clínica se dirige à Psicanálise para refletir sobre luto e melancolia. Trata-se de construir caminhos próprios para responder ao pedido que lhe é dirigido. Digamos que, para o autor, a ferida permanece aberta, uma “ferida narcísica”, em termos freudianos. Sem dúvida, institui-se um corte irrecuperável no tempo, que separa de forma abrupta um “antes” e um “depois” do acidente cerebral (Fonseca, 2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.). O efeito deste corte é uma cisão subjetiva que institui um outro de si mesmo, como disse Cardoso Pires (1998Pires, J.C. (1998). De Profundis, Valsa Lenta. Bertrand Brasil.), um escritor português, que sofreu de uma afasia transitória e, mais tarde, sucumbiu a outro acidente vascular cerebral. O sujeito-falante se torna um estranho para si mesmo. Ele fica sem saída, de fato, “paralisado” frente a uma perda irrecuperável - o sujeito-falante perde a unidade imaginária que o sustentava até então.

Toda dificuldade clínica, sugere Ferenczi, residiria na necessidade de o sujeito liberar-se do narcisismo para que venha a encontrar uma saída da condição melancólica. O melancólico paralítico, segundo ele “é acossado insistentemente pela libido narcísica, que retorna como uma sombra” (Ferenczi, 1993, p. 156)Ferenczi, S. (1993). A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisia geral (Teoria). In S. Ferenczi (Ed.). Obras completas Psicanálise III (pp. 150-166). Martins Fontes.. A Clínica de Linguagem com afásicos reconhece a importância das considerações teóricas tecidas por Ferenczi sobre a “morte em si” e importância de levar em conta que a ferida aberta pelo acidente cerebral perturba profundamente a imagem de si, coloca em destaque a problemática do narcisismo. O Eu atacado atira o sujeito num sofrimento intenso dada a impotência de promover mudança em sua condição desastrosa de falante. Narciso vê-se refletido “num espelho quebrado” (Messy, 1993Messy, J. (1993). A pessoa idosa não existe: uma abordagem psicanalítica da velhice. Editora Aleph. ; Emendabili, 2010Emendabili, M.E.T. (2010). Um estudo de perspectivas teórico-clínicas nas demências: sobre a relação linguagem, memória e sujeito [Dissertação de Mestrado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.).

Afásicos são encaminhados para a Clínica de Linguagem , que não se afasta do compromisso de refletir sobre a importância clínica do manejo do trabalho do luto e sobre a distinção delicada e sensível entre luto e melancolia. A Psicanálise é ensinante, na medida em que ilumina caminhos próprios de condução do tratamento na Clínica de Linguagem, mesmo porque um afásico não frequenta a clínica psicanalítica, porque sua fala destroçada impõe limites ao trabalho psicanalítico (Fonseca & Vorcaro, 2006Fonseca, S.C., & Vorcaro, A. (2006). O atendimento fonoaudiológico e psicanalítico de um sujeito afásico. In M.F. Lier-DeVitto, & L. Arantes (Eds.), Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (pp. 413-441). EDUC. ). Recolhe-se de Freud e de Ferenczi ao menos três direções heterogêneas do trabalho de luto: no luto ‘normal” a perda é real, sabe-se o que se perdeu. Na melancolia o que se perde, com a perda do objeto, é desconhecido, encobre-se no inconsciente. Com Ferenczi, acrescenta-se, a “perda de si” , que paralisa o sujeito frente à ferida aberta de uma fala desarranjada e à impotência de (re)ajustá-la: “ferida narcísica,’ resistente, ensina ele. Freud e Ferenczi dão destaque, ainda, à heterogeneidade imprevisível das vicissitudes do trabalho do luto, que conduz a caminhos sempre singulares. Vale levar em conta, a declaração de Lacan (1995Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: A relação de objeto. Zahar. (Apresentação oral em 1956-1957, original publicado em 1994)./1956-7) de que não devemos nos contentar com explicações semelhantes para acometimentos distintos. Desse modo, parece preciso indicar que a classificação “melancolia paralítica” é insuficiente, encobre a singularidade dos modos de sua manifestação. O reconhecimento da singularidade que transita na Clínica de Linguagem faz barreira, inclusive, à suposição de que todo afásico entraria, invariavelmente, num estado melancólico.

Sem dúvida o “drama subjetivo”, que a afasia instaura, implica o estranhamento de si, uma “ferida narcísica” persistente e resistente: o que se perde não tem reparação, nem substituto possível - o que se perde é um pedaço de si, uma peça no sistema orgânico morre, torna-se inoperante, “um nada” (Jackson, 1864) como referido por Fonseca (2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.). Recorrendo ao nó borromeano, introduzido por Lacan para teorizar sobre o sujeito, podemos dizer que a peça perdida, esse “nada”, seria algo da ordem do Real, algo intratável, intangível pela trama do Simbólico- Imaginário, mas que a afeta duramente impondo ao sujeito um duro trabalho de elaboração do luto. A perda real afeta fortemente a fala - esta é a natureza do sintoma afásico - e faz desabar o falante em sua língua materna. A fala em ruinas abala a imagem do Eu, como lemos na Psicanálise, e torna compulsório, na clínica, não o tratamento da fala, mas, diferentemente, da relação sofrida do falante com a língua materna - a isso se dedica a Clínica de Linguagem, que reflete sobre uma direção de tratamento que possa promover transformações na relação sujeito-linguagem, o que pode (ou não) implicar mudanças expressivas na fala: é de posição frente à própria fala e a do outro que se trata, acima de tudo, e menos de treino ou de tentativas de reabilitação, de readaptação da fala (muitas vezes inviável).

O afásico está na linguagem, os movimentos do Simbólico nela se mostram, ainda que o sentido se perca no traçado fragmentado e truncado da fala, que se apresenta dissemelhante da que um dia falou e ininteligível para os outros. Parece-nos plausível afirmar que o que se perde no espelho da fala estilhaçada é, para o sujeito, a perda de um ideal de si. Em texto de 1914, Freud teorizou sobre o Eu e falou de um Eu ideal e de um Ideal do Eu , como instâncias articuladas ao narcisismo. Temos que o Eu ideal tem a ver com a onipotência da infância e o Ideal do Eu é imagem que o sujeito sustenta, uma representação de fundo social e cultural, que lhe é transmitida. Vejamos : o que se retira de Freud, é que o Ideal de Eu é “o que [o sujeito] projeta diante de si como seu ideal [...] é o substituto do narcisismo perdido de sua infância; naquele tempo, ele mesmo era seu próprio ideal” (Kaufmann, 1996Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de Psicanálise: O legado de Freud e Lacan. Zahar., p. 354). Assim, com o afastamento do narcisismo primário, a libido se desloca para um Ideal do Eu, a partir do exterior.

Freud (1914) não deixa de tocar no mal-estar que as doenças orgânicas instauram: “o doente recolhe seus investimentos libidinais para o Eu e torna a reenviá-los depois da cura” (Freud, 1914, p. 103). Ou seja, na doença, ocorrem, segundo Freud, alterações na “distribuição da libido” e provocam “modificações no Eu”, que perde o interesse pelo externo, um tema que será retomado, por outro ângulo, na discussão de Luto e Melancolia. Pois bem, um sujeito afásico vê destruídas as representações que o sustentavam e que sustentavam sua imagem frente ao outro - fonte de um mal-estar profundo. No trabalho de luto a energia libidinal cria obstáculos à flexibilidade entre o Eu e o externo. Tendo como base a problemática do narcisismo, assentada por Freud e Ferenczi, pode-se explorar um pouco mais o que desafia um clínico de linguagem no atendimento a sujeitos afásicos. Convém não ignorar que Fonseca (2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.), sem o concurso da teorização psicanalítica, introduziu a noção de “drama subjetivo” porque, na cena clínica, foi mesmo com a questão de um sofrimento profundo que, de forma incontornável, ela se deparou. Com a Psicanálise chegamos à “ferida narcísica”, ao luto e à melancolia como elaborações que consideramos indispensáveis à melhor caracterização deste sofrimento. Os efeitos que observamos na clínica indicam um falante abalado com sua fala e com sua imagem de falante: a sua presença na língua materna está perturbada. O Imaginário, não lhe oferece, portanto, a possibilidade de reconhecer-se como semelhante aos outros da língua que habita. Interessa-nos, como indicação teórico-clínica, considerar de perto as vicissitudes do trabalho de luto que se traduzem na delicada distinção entre luto e melancolia.

Vem da Psicanálise a chance do refinamento do olhar e da escuta do clínico de linguagem para o sofrimento de cada afásico. Vem, também, a chance de melhor qualificar um trabalho que se distancia dos moldes adaptativos usualmente empregados no tratamento de afásicos. É neste ambiente reflexivo que a construção de narrativas autobiográficas entra como dispositivo de tratamento de afásicos (Fonseca, 2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.; Cordeiro, 2019Cordeiro, M.D.S.G. (2019). O luto na Clínica de Linguagem com afásicos. [Tese de doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.; Santos, 2022Santos, S. P. D. (2022). Fala-leitura-escrita: uma proposta de tratamento na Clínica de Linguagem com afásicos [Dissertação de Mestrado] Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. ). O ponto que nos interessa relaciona-se à introdução de considerações clínicas sobre os problemas de manejo que a afasia coloca e, mais particularmente, o enfrentamento incontornável do luto que a “perda em si” traz e que afeta fortemente a imagem que o sujeito afásico tem de si. Observa-se na Clínica de Linguagem efeitos surpreendentes de atravessamento do luto ou de recolocação do falante frente a própria fala quando se introduz a leitura-escrita no tratamento. Não menos notável são os efeitos de “narrativas de escritas autobiográficas”.

4. Narrativas autobiográficas: elaboração do luto

Vem da clínica com afásicos e de discussões psicanalíticas o reconhecimento da relevância terapêutica de narrativas autobiográficas na elaboração do luto. Recordemos que, após o acontecimento neurológico, um afásico carrega a marca de algo que se perdeu, mudança substanciais no corpo físico, mas sobretudo no corpolinguagem (Leite, 2003Leite, N.V. (Ed.). (2003). Corpolinguagem: gestos e afetos. Mercado de Letras.), como dizemos. Um afásico tropeça nas palavras, a cadeia falada perde cadência, fica a-fásica e o afásico se retrai, silenciado em seu próprio dizer. Na maioria dos casos, o sujeito mergulha num silêncio forçado e deixa o outro falar por ele. Os relatos autobiográficos, quando implementados como recurso clínico, mostraram sua eficácia por restituírem, ao afásico, o lugar de falante, ao criarem a chance de ele comparecer como sujeito falante , como aquele, que fala por si e de si.

Na literatura psicanalítica, Pontalis (1991Pontalis, J.B. (1991) Perder de vista: Da fantasia de recuperação do objeto perdido. Zahar.) aborda os efeitos de relatos autobiográficos em casos relacionados ao luto por perda de objeto, não ignorando a “morte em si”. Suas considerações encontram eco nos efeitos recolhidos na Clínica de Linguagem. O autor entende que uma autobiografia pode conduzir à recuperação de um Eu abalado, apagado, incompreendido. Isso porque, diz ele, autobiografias demarcam o gesto derradeiro de apropriação de si mesmo. Pontalis não deixa, apesar disso, de perguntar se uma autobiografia, não se aproximaria, no cenário de perdas e luto, de um obituário. Esta interrogação importa, é questão para a reflexão sobre a direção do luto na afasia, já que há situações em que a dificuldade de contar sua história pode resultar no abandono do tratamento e numa desistência permanente do atendimento, que o atira numa paralisia. Esta é uma observação importante por lembrar que um dispositivo é flexível, não é um método, mas um recurso que pode (ou não) ser implementado, na medida que fica à mercê da singularidade impressa em cada caso.

Fato é que Pontalis (1991Pontalis, J.B. (1991) Perder de vista: Da fantasia de recuperação do objeto perdido. Zahar.) afirma que as narrativas autobiográficas têm a função de (re)criar uma realidade que serve como solo para quem a escreve9 9 Lembremos dos “tempos” do luto mencionados no início deste artigo. , o que pode favorecer ou subsidiar a elaboração do luto. Escritas autobiográficas criam um novo tempo, tempo de uma (re)invenção de si, cria um sítio de “exílio”, que ao serem endereçados à leitura do outro, transita, entre dois, (re)faz laço. A condição linguística do afásico aprofunda ou impede que ele dirija sua palavra ao outro. Pode-se entrever, deste modo, a eficácia terapêutica de relatos autobiográficos, conforme atesta a Clínica de Linguagem.

Vamos, agora, ao encontro de Lacan (2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Zahar. (Apresentação oral em 1958-1959, original publicado em 2013)./1958-9) para quem o luto deve ser enfrentado pela via do Simbólico, que coloca em jogo todo tesouro do significante na elaboração do luto. Para ele, o desinvestimento libidinal do objeto perdido só encontrará equilíbrio na relação com o Logos10 10 O autor enfatiza o importante suporte que o grupo e a comunidade têm no trabalho do luto, utilizando o termo logos, já que será “todo o sistema significante que é posto em jogo em torno do menor luto que seja” (Lacan, 2016/ 1958-9, p. 361). . Não é outra coisa que se espera de escritas autobiográficas em que a história do sujeito-falante é relançada na jogada significante.

Allouch (2004)Allouch, J. (2004). Erótica do luto: no tempo da morte seca. Companhia de Freud.11 11 Vale mencionar que o autor escreve em algumas páginas de seu livro o relato sobre a perda da própria filha, nesta escrita é possível escutar os efeitos do trabalho de luto. , um lacaniano respeitado, levanta questões e reelabora conceitos sobre o luto considerados inéditos. Ele aproxima as operações do luto da Verwerfung, característica da foraclusão, que desencadeia a psicose12 12 Ver sobre isso Lacan (2010/1955-6). . Veremos que Allouch lança mão dos registros do Real, Simbólico, Imaginário para ressignificar as discussões anteriores sobre o luto. Ele questiona a relação entre luto e narcisismo, fortemente presente e estabelecida na teoria psicanalítica e implica o nó borromeano em que os registro do Real, Simbólico, Imaginário estão enodados. Do texto de Allouch, interessa a este artigo sublinhar que, independentemente da novidade teórica que o autor apresenta sobre o luto, é realizado no plano do simbólico. Allouch enfatiza com Lacan que: “esse trabalho do luto [deve ser referido] como trabalho do logos” (Allouch, 2004Allouch, J. (2004). Erótica do luto: no tempo da morte seca. Companhia de Freud., p. 278). A ênfase no simbólico e na trama significante parecem validar a realização das escritas autobiográficas.

O luto para ele é: “ato sacrificial gracioso, consagrando a perda ao suplementá-la com um pequeno pedaço de si” (Allouch, 2004Allouch, J. (2004). Erótica do luto: no tempo da morte seca. Companhia de Freud., p. 24). Em outras palavras estar de luto por alguém corresponde a perder um pedaço de si, que nos remete a algo como um ato sacrificial. Neste caso há sempre algo de irrecuperável no luto. Allouch entende que não se determina a quem pertence esse pedaço perdido/oferecido, já que ele está “localizado entre o morto e o enlutado” (Maesso, 2017Maesso, M.C. (2017). O tempo do luto e o discurso do outro. Ágora, XX (2), 337-355. https://doi.org/10.1590/1809-44142017002004
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, p. 345). Este “pedaço”, que habita um entre, quando dedicado ao morto num ato sacrificial, põe “fim ao luto, ao regrar [seu] pertencimento” (Allouch, 2004, p. 38)Allouch, J. (2004). Erótica do luto: no tempo da morte seca. Companhia de Freud.. Ou seja, deslocado do entre, ao Eu é restituído espaço para ocupação por outro objeto. Allouch esclarece que seu trabalho, alinhado ao de Lacan não desconsidera o de Freud, pelo contrário, o inclui e o ressignifica. Lacan lê que, em Freud, o trabalho do luto engloba o simbólico. A questão para ele, é envolver o narcisismo, o imaginário, na trama R-S-I.

Milner (2006Milner, J.C. (2006). Os nomes indistintos. Companhia de Freud. (Original publicado em 1983). /1983) ensina que Real, Simbólico, Imaginário são registros da experiência subjetiva. Eles são enodados, num enlaçamento bem definido de anéis. Os registros Real (R), Simbólico (S) e Imaginário (I) têm consistência própria nessa estrutura articulada: R é suposição de existência, nada dela pode ser deduzido; S remete à pura diferença nas relações significantes e I instaura o que é da ordem de (co)relações: semelhança/diferença, classes e representações, por este motivo I é da ordem da consistência. Desse enodamento decorre que “nada poderia ser imaginado, isto é, ser representado, a não ser por I”; “nada poderia existir a não ser por R”; “nada poderia se escrever a não ser por S” (Milner, 2006Milner, J.C. (2006). Os nomes indistintos. Companhia de Freud. (Original publicado em 1983). /1983, p. 8). R “não cessa de não se escrever”, ensina Lacan (1985Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar. (Apresentação oral em em 1972-1973)./1972-3), quer dizer R irrompe na cadeia, e perturba as articulações entre Real e Imaginário: há suspensão de representações e, para o falante, surpresa ou horror. Marcolino-Galli (2013Marcolino-Galli, J. (2013). A relação memória-linguagem nas demências: abrindo a caixa de Pandora [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.), assinala que é de horror que se tratam os efeitos no sujeito afásico. Ela sugere que o afásico vivencia o impacto do real em seu corpo e em sua fala, “drama”, sem dúvida. Seguindo com a autora, concordamos que o afásico fica à mercê dos efeitos do Real. Nesta situação, o falante, que escuta os desarranjos em sua fala, se desnorteia e desnorteia o outro.

5. O enfrentamento do luto e da melancolia na clínica com afásicos

Allouch nos diz que “a medida do horror, no enlutado, é função da não realização da vida do morto” (2004, p. 350)Allouch, J. (2004). Erótica do luto: no tempo da morte seca. Companhia de Freud.. Nas afasias, a morte está no corpo físico, é somática, e deixa rastro na fala e, esta, no sujeito, como teoriza a Psicanálise e discute a Clínica de Linguagem. A afasia levanta obstáculos importantes à condução da vida imaginada - o quotidiano é, por força de limitações linguísticas (e por vezes, motoras) dura e dolorosamente alterado, projetos pessoais são ceifados. Abruptamente, ele perde emprego ou não pode cuidar de negócios, o afásico é deslocado da posição que ocupava na família - torna-se dependente, uma dependência indesejada e até, não raramente, mal-recebida pelos familiares. Entende-se que o afásico dirija um pedido ao outro-terapeuta, a quem supõe um saber sobre como recuperar a fala desarranjada e de restaurar sua condição anterior de falante. Neste ponto vale relembrar a expressão de Fonseca (1995Fonseca, S.C. (1995). Afasia: a fala em sofrimento [Dissertação de Mestrado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. , 2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. e outros), ao assinalar que o afásico perde “vez e voz’, falam dele e por ele. Enfim, a lista das não-realizações que a afasia impõe é enorme e o afásico deve se haver com esta realidade, que produz efeitos dolorosos e avassaladores.

Atravessamento do luto é exigência difícil e a clínica que os acolhe não ignora a importância de seu drama subjetivo na condução do tratamento. Retomando Fonseca, mencionada acima, podemos dizer que a questão de um clínico de linguagem é trabalhar na direção de restituir vez e voz ao afásico. A primeira recomendação proposta pela autora é convocar o afásico nas entrevistas iniciais, quer dizer, pedir que ele entre desacompanhado e que se apresente como conseguir, com a qualidade de fala e condição de falante que tem. Afinal, diz ela, prontuários esclarecem sobre a natureza da lesão: localização, quando ocorreu e se houve atendimentos anteriores. Não só o afásico ocupara seu lugar na clínica (ganha vez), como também comparece com sua voz (a fala que tem).

Note-se que é, por certo, com o sujeito afásico e com sua fala que um clínico de linguagem se ocupa. Há manejos necessários porque alguns resistem a entrar na sala de atendimento desacompanhados e só após os primeiros encontros aceita entrar e falar por si. Há acompanhantes que insistem em entrar, o que demanda toque delicado até que o afásico conquiste seu lugar. O que se tem recolhido, na Clínica de Linguagem, porém, é a pronta aceitação do procedimento adotado. Entendemos ser esta uma direção de tratamento que abre o trabalho de luto na Clínica de Linguagem. Frente à realidade dos efeitos do acidente cerebral, o afásico ganha a oportunidade de, valorizado no espaço clínico, dispor-se a iniciar com o outro-terapeuta, o duro e sofrido trabalho de luto, que passa, pela aceitação, pelo clínico, de sua fala prejudicada, mas, acima de tudo , pelo reconhecimento, na cena clínica, de sua posição de falante e de sua presença na linguagem. Esse passo inicial favorece a disposição do afásico de engajar-se no tratamento; este começo abre a porta, também para a escuta das dificuldades impostas pelo tratamento e para o “drama subjetivo” e para a elaboração do luto.

O tratamento implica as três modalidades de linguagem: fala-leitura-escrita13 13 Fonseca (2002), Cordeiro (2019) e Santos (2022). , na medida em que são desiguais os efeitos da afasia nessas modalidades e singulares as respostas subjetivas a tais afetações. O afásico se apresenta por aquela modalidade mais preservada e menos sofrida para ele. A sensibilidade do terapeuta reside em reconhecer tempos, como diz Lier-DeVitto (a sair), tempo de recolher o trabalho possível e árduo do afásico - falas truncadas ou pouco inteligíveis, dificuldades de interpretação e outras manifestações estranhas, tomando-as como endereçamentos. Há o tempo de realizar “suaves forçagens “ (Laurent, 2014Laurent, E. (2014). A batalha do autismo: da clínica à política. Zahar.), convites que pressionam habilidades mais prejudicadas, já contando com ganhos adquiridos.

Caminha de par com o tratamento inicial de restituição de “vez e voz” na língua materna, a escuta para o drama vivido pelo afásico, que quer falar repetidamente sobre o trauma, o espanto de seus efeitos. O afásico não abre mão dessa pressão e faz dele um assunto pulsante e constante. Frente a tais ocorrências, assumidas como necessidade, escritas autobiográficas passaram a fazer parte do dispositivo de tratamento (Cordeiro, 2019Cordeiro, M.D.S.G. (2019). O luto na Clínica de Linguagem com afásicos. [Tese de doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.; Santos, 2022Santos, S. P. D. (2022). Fala-leitura-escrita: uma proposta de tratamento na Clínica de Linguagem com afásicos [Dissertação de Mestrado] Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. ) e elevada à condição de questão teórica na Clínica de Linguagem. O trabalho de Cordeiro (2019)Cordeiro, M.D.S.G. (2019). O luto na Clínica de Linguagem com afásicos. [Tese de doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. pode ser tomado como expressão deste movimento. É esta autora quem amplia e dá extensão teórica ao “drama subjetivo”, que a afasia instaura, ao fazer do luto um problema para a Clínica de Linguagem. Em seu trabalho os “relatos autobiográficos” adquirem contorno mais preciso no atendimento a afásicos. Depois dela, e com ela, este artigo realiza mais um gesto nesta direção.

Afásicos acrescentam, sem dúvida, complexidade especial ao manejo clínico, dado que o trabalho de luto invade o tratamento e exige seu reconhecimento e enfrentamento na Clínica de Linguagem. A perda que experimenta é crônica, definitiva mesmo. Como dissemos, o afásico é lembrado ininterruptamente de suas limitações linguísticas e de sua marginalidade no laço social - marcas, específicas que singularizam o drama subjetivo e o trabalho de luto que se imprimem ao afásico. Diários e narrativas autobiográficas de afásicos tem se mostrado uma saída de um estado de luto paralisante. Cardoso Pires (1998Pires, J.C. (1998). De Profundis, Valsa Lenta. Bertrand Brasil.), um escritor português e Luciana Scotti (2003Scotti, L. (2003). Sem asas ao amanhecer. O Nome da Rosa. ), uma jovem farmacêutica, podem ser aqui, apontados, entre aqueles afásicos que encontraram novos caminhos após a “morte em si”. Os autores mencionados fizeram de escritos autobiográficos uma possibilidade de atravessamento de luto, de contorno da “ferida narcísica” e de recriação de uma vida. A Clínica de Linguagem atesta resultados como estes e se dispõe a oferecer uma escuta para o sofrimento do afásico. O livro de Luciana Scotti (2003)Scotti, L. (2003). Sem asas ao amanhecer. O Nome da Rosa. , acolhida na Clínica de Linguagem, é testemunho vivo da implementação deste recurso (escritas autobiográficas) como dispositivo no tratamento de afásicos.

Pontalis (1991Pontalis, J.B. (1991) Perder de vista: Da fantasia de recuperação do objeto perdido. Zahar.) é ensinante e fonte de inspiração para Clínica de Linguagem quando escreve que relatos autobiográficos são recursos importantes na elaboração de lutos motivados por razões diversas. Entendemos que eles favorecem, de fato, um tratamento para o trauma promovido por um acidente real pela via do movimento do Simbólico e do Imaginário, que relatos/escritos autobiográficos realizam: dizer, redizer, é elaborar. Podemos lembrar, igualmente, Allouch (2004Allouch, J. (2004). Erótica do luto: no tempo da morte seca. Companhia de Freud.) que reserva, em seu livro, páginas cinzas para anotações/rememorações pessoais e para segmentos de seus próprios sonhos. Páginas reservadas, digamos, a um trabalho de luto. Consideremos que: “foi essa partilha que permitiu ao autor lidar pela via do simbólico, [com] o luto pela morte de seu pai e de sua filha” (Maesso, 2017Maesso, M.C. (2017). O tempo do luto e o discurso do outro. Ágora, XX (2), 337-355. https://doi.org/10.1590/1809-44142017002004
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, p. 246). O que dizem Maesso sobre Allouch e Pontalis sobre os relatos autobiográficos, dão suporte aos resultados a que se pode chegar na Clínica de Linguagem com afásicos, assim como para a inclusão de relatos/escritos autobiográficos como dispositivo clínico. A clínica testemunha que afásicos se beneficiam desse recurso quando falar é o lugar do drama maior.

Do ponto de vista teórico pode-se afirmar que o banho do Simbólico/Imaginário, que o dizer/redizer ou escrever/reescrever realizam, contornam o furo Real da “morte em si”, abrindo espaço para a superação da ferida narcísica que a escuta da própria fala impõe ao afásico. Considerando, então, que este trabalho é endereçado, acontece na clínica, a escuta do outro-terapeuta pode dar sustentação à reorganização do Eu14 14 Articulação Eu-ideal e Ideal do eu, formulada por Freud, deve ser lembrada neste momento. .

A Psicanálise, implicada neste artigo, através de discussões sobre o “trabalho de luto” referenda resultados da introdução de relatos/escritas autobiográficas na Clínica de Linguagem e impulsionam reflexões teórico-clínicas, como procuramos mostrar.

6. Considerações Finais

Este artigo faz um giro atento por textos psicanalíticos sobre o trabalho de luto, cuja resolução pode ter contornos diferentes. Freud fala que ele pode levar a um “estado normal” ou, então a melancolia, considerando, ainda, a singularidade de soluções. Este giro foi motivado pelo reconhecimento do valor clínico e teórico da teorização ali realizada na Psicanálise. De fato, não só de Freud, mas de autores como Pontalis, Allouch e Ferenczi recolhemos questões importantes para a Clínica de Linguagem, como a ideia de “morte em si” tão expressiva do sofrimento que a afasia causa; o destaque dado por Pontalis e Allouch aos efeitos de relatos/escritos autobiográficos no tratamento do luto, que vem ao encontro de acontecimentos clínicos recolhidos no atendimento a pacientes afásicos na Clínica de Linguagem.

Não menos importante é levar em conta que Lacan (2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Zahar. (Apresentação oral em 1958-1959, original publicado em 2013)./1958-9) sustenta, lembrando Freud, que não podemos ter a experiência da própria morte, já que sempre a morte é a de um outro. Ocorre, contudo, que a especificidade da afasia é que ela circunscreve a morte de algo de si em vida - entra em questão um Real no corpo, que abala o Ideal-de-Eu, uma derrocada que deverá ser atravessada, no trabalho de luto, pelo sujeito afásico. Parece ser isso que a Clínica de Linguagem apreende: a “ferida narcísica” implicada fortemente no “drama subjetivo”, em que está aprisionado o afásico, pede escuta.

Há muito, ainda, sobre o que refletir quanto ao atravessamento do luto na Clínica de Linguagem. Referimo-nos à implementação de escritas autobiográficas como parte integrante do dispositivo que ela adota, frente à insistência do afásico de falar sobre o acidente vascular e seus efeitos arrasadores. É inegável, porém, que as narrativas autobiográficas favorecem a reconstrução do Eu, e a invenção de caminhos possíveis de vida para o afásico. A devastação na fala/escrita arrasta o sujeito para esta difícil e dolorosa recomposição de uma Imagem de Eu. Este trabalho ganha expressão no que disse Luciana Scotti. Para ela, voltar a “fazer parte da comunidade dos vivos” vem deste trabalho. Luciana Scotti, entre outros afásicos, deixam ver que nem todo afásico é melancólico. Pensamos ter indicado que manifestações são plurais, assim como os manejos clínicos, que não caminham desligados de uma escuta pronta a recolher a singularidade do sofrimento de cada sujeito afásico.

Encerramos dizendo que a problemática da articulação R-S-I, está no horizonte de interesse para o desenvolvimento das questões discutidas neste artigo, mas esta é uma direção que aponta para um porvir.

Referências

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  • 3
    Recomendamos a leitura de Lier-DeVitto e Fonseca (2012Lier-DeVitto, M.F., & Fonseca, S. C. (2012) Hesitações e pausas como ocorrências articuladas. Cadernos de Estudos Linguísticos, 54(1), 67-80. https://doi.org/10.20396/cel.v54i1.8636972
    https://doi.org/10.20396/cel.v54i1.86369...
    ) e de Lier-DeVitto (2011)Lier-DeVitto, M. F.(2011). Abordagem de falas sintomáticas: sobre a condição intervalar da clínica de linguagem entre a linguística e a psicanálise In E.M. Silveira (Ed.). As bordas da linguagem (pp. 57-67). EDUFU. sobre o modo singular de relação sujeito falante-linguagem e sobre a aproximação da Clínica de linguagem ao Estruturalismo Europeu e à Psicanálise.
  • 4
    Andrade (2003Andrade, L. (2003). Ouvir e escutar na constituição da clínica de linguagem. [Tese de doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.).
  • 5
    Spina-De-Carvalho (2003)Spina-de-Carvalho, D. C. (2003). Clínica de Linguagem: algumas considerações sobre interpretação [Dissertação de Mestrado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.; Pollonio (2011Pollonio, C.F. (2011). Interpretação e escuta na Clínica de Linguagem. [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.); Santos (2021Santos, B. D. S. (2021). Interpretação: questão na clínica de linguagem com crianças [Dissertação de Mestrado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. ).
  • 6
    A problemática do luto não ficou restrita ao campo da Psicanálise. Um exemplo recente disso é o volume 63 da Cadernos de Estudos Linguísticos que reúne artigos em que a temática se tornou “uma questão de interesse para diferentes domínios e perspectivas, abarcando e convocando uma reflexão sobre a linguagem, o sujeito e a história” como afirmaram Baldini et al. (2021Baldini, L.J.S., Ribeiro, T.M., & Nascimento, E.M. (2021). Apresentação do dossiê “versões do luto: análise do discurso e psicanálise”. Caderno de Estudos Linguísticos, 63, 1-10. https://doi.org/10.20396/cel.v63i00.8668287
    https://doi.org/10.20396/cel.v63i00.8668...
    , p. 01) na apresentação do dossiê temático.
  • 7
    Ver Cordeiro (2019Cordeiro, M.D.S.G. (2019). O luto na Clínica de Linguagem com afásicos. [Tese de doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.) e Santos (2022Santos, S. P. D. (2022). Fala-leitura-escrita: uma proposta de tratamento na Clínica de Linguagem com afásicos [Dissertação de Mestrado] Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. ).
  • 8
    De maneira sucinta, libido em Freud corresponde a energia psíquica.
  • 9
    Lembremos dos “tempos” do luto mencionados no início deste artigo.
  • 10
    O autor enfatiza o importante suporte que o grupo e a comunidade têm no trabalho do luto, utilizando o termo logos, já que será “todo o sistema significante que é posto em jogo em torno do menor luto que seja” (Lacan, 2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Zahar. (Apresentação oral em 1958-1959, original publicado em 2013)./ 1958-9, p. 361).
  • 11
    Vale mencionar que o autor escreve em algumas páginas de seu livro o relato sobre a perda da própria filha, nesta escrita é possível escutar os efeitos do trabalho de luto.
  • 12
    Ver sobre isso Lacan (2010Lacan, J. (2010). O seminário, livro 3: As Psicoses. Zahar. (Apresentação oral em 1955-1956, original publicado em 1981)./1955-6).
  • 13
    Fonseca (2002Fonseca, S.C. (2002). O afásico na Clínica de Linguagem [Tese de Doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.), Cordeiro (2019Cordeiro, M.D.S.G. (2019). O luto na Clínica de Linguagem com afásicos. [Tese de doutorado]. Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP.) e Santos (2022Santos, S. P. D. (2022). Fala-leitura-escrita: uma proposta de tratamento na Clínica de Linguagem com afásicos [Dissertação de Mestrado] Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, PUC/SP. ).
  • 14
    Articulação Eu-ideal e Ideal do eu, formulada por Freud, deve ser lembrada neste momento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
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