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Regulação múltipla e autonomia profissional dos professores: comparação entre o Quebec e o Canadá

Multiple regulation and teacher's professional autonomy: comparisons between Quebec and Canada

Resumos

Este artigo traz uma análise comparativa Canadá/Quebec de interrelações: de um lado, três modelos de regulação da educação (a burocracia estatal, a profissão e o mercado); e, de outro, a autonomia profissional dos professores. A noção de autonomia profissional dos professores, tal como é veiculada pelas associações profissionais e sindicatos canadenses e quebequenses, permite analisar a evolução desses modos de regulação. Adotando um ponto de vista neo-institucionalista, o artigo mostra que a autonomia profissional reivindicada ou defendida pelos professores como por suas associações sindicais repousa mais sobre as atividades percebidas como centrais por esses atores que sobre aquelas ditas periféricas. Isto permite compreender a força da reação no restante do Canadá contra a centralização do currículo e a padronização da avaliação da aprendizagem e a relativa acomodação dos professores quebequenses à participação nos conselhos escolares e na participação dos pais. Nesses dois contextos, entretanto, constatamos uma resistência à reorganização do trabalho dos professores.

Regulação; Autonomia Profissional dos Docentes; Responsabilidade; Participação; Reorganização e Defesa do Trabalho


The paper deals with the relationships between models of regulation (bureaucratic, professionnal and market) of education and teacher autonomy. As espoused by professional and labour associations of Canada and Quebec, teacher autonomy is used to disclose the evolution of models of educational regulation. Adopting a neo-institutionalist point of view, the paper argues that teacher autonomy, as promoted by canadian teacher unions, refers to activities considered central of teachers' work, as opposed to peripheral activities. This distinction helps understand why in Canada a strong reaction against curriculum centralization and standardization of evaluation has been observed, whereas Quebec teachers' unions seem to accommodate themselves with an increase in parental power. In both contexts (Canada and Quebec), a strong resistance to work reorganization is also noticeable.

Regulation; Teacher Autonomy; Responsability; Participation; Reorganization and Defense of Work


DOSSIÊ: AS REFORMAS EDUCATIVAS ATUAIS E SEUS EFEITOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE

Regulação múltipla e autonomia profissional dos professores: comparação entre o Quebec e o Canadá1 1 Neste artigo, o termo "Quebec" designa somente o Quebec de língua francesa, ao passo que o termo "Canadá" designa todo o restante do país, incluindo o Quebec de língua inglesa. A Central de Sindicatos do Quebec ("Centrale des Syndicats du Québec") engloba as associações de professores franco-quebequenses, e a Federação Canadense de Professores ("Fédération Canadienne des Enseignants") engloba as associações de professores de língua inglesa e de língua francesa de todo o restante do país, bem como a associação de professores anglo-quebequenses.

Multiple regulation and teacher's professional autonomy: comparisons between Quebec and Canada

Claude Lessard

Professor titular na Universidade de Montreal e diretor do Laboratório de Pesquisa e de Intervenção portando sobre as políticas de intervenção em educação (Labriprof) do Centro de Pesquisa Interuniversitário sobre a Formação e a Profissão Docente (CRIFPE), Canadá. E-mail: claude.lessard@umontreal.ca

RESUMO

Este artigo traz uma análise comparativa Canadá/Quebec de interrelações: de um lado, três modelos de regulação da educação (a burocracia estatal, a profissão e o mercado); e, de outro, a autonomia profissional dos professores. A noção de autonomia profissional dos professores, tal como é veiculada pelas associações profissionais e sindicatos canadenses e quebequenses, permite analisar a evolução desses modos de regulação. Adotando um ponto de vista neo-institucionalista, o artigo mostra que a autonomia profissional reivindicada ou defendida pelos professores como por suas associações sindicais repousa mais sobre as atividades percebidas como centrais por esses atores que sobre aquelas ditas periféricas. Isto permite compreender a força da reação no restante do Canadá contra a centralização do currículo e a padronização da avaliação da aprendizagem e a relativa acomodação dos professores quebequenses à participação nos conselhos escolares e na participação dos pais. Nesses dois contextos, entretanto, constatamos uma resistência à reorganização do trabalho dos professores.

Palavras-chave: Regulação; Autonomia Profissional dos Docentes; Responsabilidade; Participação; Reorganização e Defesa do Trabalho

ABSTRACT

The paper deals with the relationships between models of regulation (bureaucratic, professionnal and market) of education and teacher autonomy. As espoused by professional and labour associations of Canada and Quebec, teacher autonomy is used to disclose the evolution of models of educational regulation. Adopting a neo-institutionalist point of view, the paper argues that teacher autonomy, as promoted by canadian teacher unions, refers to activities considered central of teachers' work, as opposed to peripheral activities. This distinction helps understand why in Canada a strong reaction against curriculum centralization and standardization of evaluation has been observed, whereas Quebec teachers' unions seem to accommodate themselves with an increase in parental power. In both contexts (Canada and Quebec), a strong resistance to work reorganization is also noticeable.

Keywords: Regulation; Teacher Autonomy; Responsability; Participation; Reorganization and Defense of Work

Este artigo analisa as inter-relações entre três modos de regulação da educação: 1) a burocracia estatal (regras abstratas, hierarquia, serviço público); 2) a profissão (normas de prática, ajuste mútuo e colegialidade) e o mercado (concorrência, foco no cliente, lógica da demanda). Toma-se como ponto de apoio a noção de autonomia profissional veiculada pelas associações profissionais e sindicais canadenses e quebequenses. Essa noção, tradicionalmente considerada como um elemento central da profissionalidade docente, serve como analisador da evolução das relações entre os modos de regulação.

Num primeiro momento, será apresentada a problemática da regulação na educação e sua evolução no Canadá; em seguida, abordaremos a noção de autonomia profissional, ressaltando as semelhanças e diferenças entre o Quebec e o Canadá. Na conclusão, indicaremos duas pistas interpretativas.

A MÚLTIPLA REGULAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Termo que tem estado na moda nos últimos anos no campo da educação, mas há muito tempo já usado em várias disciplinas, a regulação é polissêmica, referindo-se, a um só tempo, à busca de equilíbrio num sistema de ação em movimento, às necessárias adaptações de um sistema em suas relações com um ambiente que é fonte de perturbações (homeostasia), a mecanismos de redução da variabilidade dos movimentos ou de correção das "diferenças" em relação a uma norma estabelecida, ao jogo de forças divergentes que se encontram e cujo choque provoca, em determinadas condições, o estabelecimento de um compromisso viável e apto a ser reproduzido, à pressão exercida sobre indivíduos ou unidades para que os comportamentos permaneçam conformes e se estabilizem. Conforme Dupriez e Maroy (2000), esses múltiplos significados da regulação podem ser reunidos em torno de três acepções: 1) a regulação sistêmica, que compreende as ações ou retroações que contribuem para manter o equilíbrio e garantir o funcionamento correto de um sistema; 2) a regulação institucional, que se refere ao conjunto de regras, convenções e mecanismos de controle implantados por uma autoridade para orientar as ações de atores sobre os quais ela exerce um certo poder; e 3) a regulação como ato de produção de regras do jogo num determinado campo de ação. Este texto apóia-se nas duas últimas acepções.

Elas estão ligadas aos trabalhos de Reynaud (1988), que estabelece uma distinção entre a regulação formal e de controle e a regulação informal e autônoma. A regulação efetiva de uma organização é para ele o fruto do encontro entre essas duas regulações, entre o trabalho prescrito e o trabalho real, entre a autonomia reivindicada e o controle imposto. Reynaud defende a idéia de uma regulação conjunta, na qual a regra comum pode ser um compromisso ou um acordo entre grupos rivais. Essa regulação afetiva é constitutiva das relações sociais e torna-se então um elemento-chave que leva ao contrato ou ao conflito.

Trabalhos recentes na área da sociologia do trabalho e das organizações obrigam a revisitar as agora clássicas distinções de Reynaud. Assim, Chatzis et al. (1999) afirmam que é preciso ultrapassar a oposição tradicional entre a autonomia e o controle, pois os novos contextos de produção se caracterizam ao mesmo tempo por mais autonomia e mais controle. No contexto de uma organização do trabalho pós-tayloriana, os trabalhadores seriam forçados a funcionar dentro de um quadro de ação autônomo, cooperativo e que compromete toda a sua pessoa. Não se trata mais de reivindicar uma autonomia contra a organização, suas regras formais e sua hierarquia burocrática, mas de assumir a autonomia, a cooperação e a prestação de contas que a organização impõe aos seus atores. Estaríamos agora na era da autonomia prescrita e da iniciativa obrigada ou forçada. Esses autores vêem nessa transformação da regulação a passagem da autonomia pela independência à autonomia na interdependência.

Courpasson (1997), menos otimista e mais crítico do que Chatzis et al., propõe a idéia de "neo-regulação" das organizações, cuja legitimidade repousa em grande parte sobre a noção de pressão do mercado. Em nome desse princípio externo, a organização impõe novos modos de convergência e de coerência das práticas. Assim, o que ele chama de paradigma da dominação suave seria caracterizado pela passagem da padronização dos gestos e operações ao aliciamento da subjetividade dos trabalhadores, através de um controle maior da lealdade e do compromisso, por uma tensão maior entre concorrência e cooperação e por um efeito de coação sem violência explícita. Nesse sentido, não estaríamos mais na era do ator estrategista, elemento central do sistema organizacional e capaz de tirar vantagem de todas as situações, mas na do ator coagido, dominado por um sistema organizacional cujos recursos retóricos e instrumentais (ameaças, sanções, recompensas) são tais que os atores, apesar das mensagens descentralizadas fundadas na autonomia e na iniciativa, concentram-se em práticas homogêneas e coerentes com os objetivos e interesses da organização.

Essa evolução da regulação no mundo do trabalho não escolar também está presente na educação. A reorganização gerencial da educação, a descentralização e a desconcentração, a abertura à concorrência, a prestação de contas local, a noção de projeto educativo do estabelecimento de ensino, o apelo ao trabalho em equipe e à interligação das estruturas e práticas; tudo isso, embora parcialmente baseado em correntes pedagógicas surgidas antes dos fenômenos econômicos atuais de globalização dos mercados, participa, entretanto, de uma evolução que ultrapassa a instituição escolar. Esse vínculo entre lentas evoluções internas no sistema educacional e tendências pesadas e relativamente gerais da evolução do trabalho e das organizações poderia garantir a transição dos sistemas educacionais para uma "forma escolar" diferente daquela herdada do século XVI.

Reconhece-se também, em geral, a existência de vários níveis de análise da coordenação da ação e de sua regulação. A análise clássica da articulação entre esses níveis evidencia a existência de um loose coupling (WEICK, 1976), ou seja, de uma fraca imbricação entre os níveis e de uma frágil eficácia da hierarquia das regulações. Ela permite também compreender os esforços do New Public Management para melhorar a eficácia e a eficiência do sistema educacional, apostando nas chamadas estratégias gerenciais "de alinhamento" dos níveis, de suas políticas, de seus dispositivos de ação e de seu mecanismo de avaliação e de prestação de contas. Almeja-se aqui uma forte integração vertical, ou pelo menos uma centralização profunda nos elementos considerados como sendo os mais estrututrantes da ação dos níveis inferiores.

Neste artigo, centramos nossa atenção em três dimensões da regulação: a da burocracia, a da profissão e a do quase-mercado. Essas três dimensões são produtoras de regras e de modos de enquadramento da ação. De fato, enquanto, por um lado, a burocracia enfatiza a regra hierárquica, a necessidade de controlar os processos, a conformidade com as prescrições do trabalho e a sanção ao desvio; a profissão, por outro lado, propõe a regra da competência e, portanto, da formação avançada e contínua, do saber explicitado e partilhado dentro de uma comunidade de especialistas, da autonomia e da responsabilidade como fundamento da confiança do público. Enfim, a referência mercantil ressalta a importância da resposta à demanda dos clientes ou dos consumidores cuja racionalidade é reconhecida, a flexibilidade e a adaptação às realidades locais, os benefícios da iniciativa privada e da concorrência, e a eficiência.

É difícil separar as relações entre esses modos de regulação, as tensões, compromissos e hibridações entre eles. Entretanto, não se deve subestimar a importância das tensões e de sua ativação em múltiplos debates educacionais atuais, notadamente aqueles sobre ordens profissionais existentes ou previstas, sobre a avaliação do pessoal docente e suas finalidades, e sobre a autonomia profissional do pessoal docente (autonomia concebida como ausência de controle externo ou definida como parte integrante e regulada por diversas formas de interdependência e de cooperação entre profissionais e parceiros da educação).

A EVOLUÇÃO DA REGULAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO CANADÁ

Anderson e Ben Jaafar (2004) constatam, no período de 1990 a 2003, fortes tensões no Canadá entre dois modelos de regulação na educação: entre um primeiro modelo que eles chamam de econômico-burocrático e um segundo denominado de ético-profissional.

O primeiro tem relação com o movimento de exigência de resultados, de imputabilidade e de eficiência que domina o campo das políticas educacionais na América do Norte anglo-saxônica; sua operacionalização se dá por meio de indicadores quantitativos e de um acompanhamento rigoroso dos desempenhos dos alunos, dos professores, das escolas, dos distritos, e até mesmo dos sistemas nacionais, graças a estudos internacionais como PISA e TIMMS; ele colabora na racionalização do trabalho docente através da identificação e da generalização de práticas consideradas eficazes, isto é, que produzem efeitos mensuráveis sobre a aprendizagem dos alunos. Ele objetiva associar, de diversas maneiras, a alocação de recursos ao alcance dos resultados, construídos como padrões de desempenho a serem atingidos. Nesse modelo, a relação entre os professores e a sociedade é caracterizada pela suspeita de ineficácia ou de incompetência, ou até pela desconfiança a respeito destes últimos, desconfiança que exige um acompanhamento mais rigoroso do trabalho docente. Essa desconfiança só pode ser dissipada pela demonstração de um valor agregado dos professores considerados não só individualmente mas como um grupo pertencente a um estabelecimento. O clima de conflito que caracterizou a instauração desse tipo de regulação em Alberta, em Ontário e na Colúmbia Britânica mostra essa desconfiança dos poderes públicos em relação aos professores.

O segundo modelo destaca a importância de valores e normas profissionais interiorizados, dos saberes que fundamentam a competência dos professores, bem como de uma ética própria às profissões de relações humanas. Ele destaca a formação e a socialização profissional, o ajuste mútuo e a colegialidade como reguladores da ação. Ele envolve também uma relação de confiança entre os professores e a sociedade.

Segundo Anderson e Ben Jaafar (2004), o primeiro modelo impõe-se atualmente no cume da pirâmide escolar, esteve no cerne das políticas educativas de várias províncias canadenses durante as décadas de 1990 e 2000 e é promovido e propagado por certos organismos internacionais (OCDE, Banco Mundial, FMI); o segundo está enraizado há muito tempo na cultura e na prática profissional dos professores; poder-se-ia dizer que ele é fundamental na visão ideal que os professores têm e projetam de si mesmos.

Haveria, atualmente, nos sistemas educacionais canadenses, um great divide, um corte profundo entre a parte superior e a parte inferior dos sistemas educacionais, uma tensão e uma coabitação difícil entre esses dois modos de regulação. A partir das tomadas de posição das associações profissionais e sindicais, canadenses e quebequenses, eu gostaria de estudar essa hipótese de oposição entre a parte superior e a parte inferior dos sistemas educacionais canadenses e quebequenses.

Pois, segundo a noção de loosely coupled system (WEICK, 1976), os dois modelos de regulação aqui identificados poderiam coabitar, cada um deles funcionando em sua lógica e em seu universo de referência. Isso supõe, entretanto, um trabalho dos atores para garantir essa coabitação, minimizar os custos, diminuir os condicionantes e reduzir as tensões. Grimmett (2005) salienta o sentimento, presente num grande número de professores (da Colúmbia Britânica), de que os avanços do primeiro modelo são tão grandes que já atingiram o ensino, de modo que os professores acham cada vez mais difícil proteger aquilo que para eles está no cerne da profissão (a relação com o aluno, a preocupação com o seu desenvolvimento global, uma visão ampla da educação).

Os trabalhos do reguleducnetwork ampliam a problemática aqui esboçada. De fato, os pesquisadores dessa rede enfatizam a importância de um terceiro modelo de regulação, o do mercado ou dos quase-mercados educacionais. Esse modelo caracteriza-se pela crença nas virtudes da concorrência entre os estabelecimentos de ensino, na importância de satisfazer os pais e os usuários-clientes, no valor da livre escolha dos pais e, portanto, do esforço feito pelos atores escolares para atender às demandas dos pais. Nessa lógica mercantil, somente os produtos escolares que atendem a essas demandas e que são percebidos como sendo de qualidade são sancionados positivamente pelo mercado. Para que os pais possam comportar-se racionalmente nesses quase-mercados, eles devem ser informados. Daí a pertinência das classificações e dos rankings de estabelecimentos e a necessidade de sua grande divulgação. A implantação desse tipo de regulação satisfaz as classes médias (BALL, 2003; BALL e VAN ZANTEN, 1998), mais instruídas do que no passado e mais preocupadas também com o futuro de seus filhos e, por conseguinte, de sua reprodução social no contexto da globalização.

Os pesquisadores dessa rede propõem o conceito de regulação "pós-burocrática", que exprime a importância crescente da lógica da demanda e do atendimento às expectativas dos pais-clientes, da prestação de contas em nível local, de uma autonomia de funcionamento crescente e dependente dos resultados mensurados, da importância da imagem institucional e de um nicho "seguro" no jogo da concorrência. O termo "pós-burocrático" é usado entre aspas, mostrando a dificuldade de denominar o novo modo de regulação, já que a antiga regulação burocrática estatal não desaparece.

Marcadas pela tensão entre si, haveria, portanto, três formas de regulação em ação: uma regulação burocrática estatal, preocupada com resultados e eficiência, uma regulação profissional, interiorizada pelos atores internos, e uma regulação quase-mercantil, que dá mais poder aos pais, ao setor privado e à concorrência entre os estabelecimentos de ensino. Esses três modelos estão presentes no Canadá e no Quebec, e encontram-se em tensão e em concorrência entre si.

No âmbito deste artigo, realizo uma análise comparativa das inter-relações entre os três modos de regulação no Canadá e no Quebec, tomando como ponto de apoio a noção de autonomia profissional dos professores tal como é veiculada pelas associações profissionais e sindicais canadenses e quebequenses. Essa noção está no cerne da profissionalidade docente; ela está relacionada com a noção de responsabilidade e de prestação de contas e é defendida pelas administrações escolares. De fato, em tese, o New Public Management não se opõe à autonomia profissional dos professores: ele a redefine, todavia, de modo a torná-la compatível com uma eficiência maior e com a obrigação de produzir resultados. Da mesma forma, a regulação quase-mercantil deixa às equipes docentes a iniciativa de criar projetos que possam encontrar um nicho no mercado educacional e dêem às equipes escolares a possibilidade de ganhar no jogo da concorrência.

No caso da Federação Canadense de Professores, analisei os comunicados à imprensa, seu jornal interno e seu Boletim de Serviços Econômicos e de Serviços aos Membros desde o ano 2000. No que se refere à Central de Sindicatos do Quebec (CSQ), baseei-me no Manifeste pour l'éducation publique (1996) e num documento mais recente (2006) intitulado L'École, c'est pour la vie! Un nouveau pacte social pour l'éducation. Também analisei a Déclaration de la profession enseignante (2004), publicada por ocasião do debate sobre a criação de uma ordem profissional para os professores, assim como uma entrevista realizada com a presidente da Federação dos Sindicatos do Ensino (2005), filiada à CSQ.

A AUTONOMIA PROFISSIONAL DOS PROFESSORES

No restante do Canadá, uma muralha contra um enfoque tecnicista da educação e contra a ascensão da regulação burocrática

No restante do Canadá, a autonomia profissional apresenta-se como uma muralha contra um enfoque da educação denominado de "tecnicista", enfoque esse demasiado preocupado com uma prestação de contas de tipo burocrático. Ela também é vista como o ponto de referência a partir do qual uma crítica à centralização do currículo e à avalização padronizada das aprendizagens dos alunos pode ser feita, pois essa centralização priva os professores de prerrogativas tradicionais nesses campos e questiona o valor de seu julgamento profissional. A Federação Canadense de Professores considera que os professores são as pessoas que estão na melhor posição para avaliar o progresso dos alunos, e que as formas de avaliação padronizadas apresentam profundas lacunas.

De fato, para a Federação, os testes padronizados:

  • pervertem o ensino e a aprendizagem ao diminuir o alcance do currículo;

  • partem do princípio de que aprender significa assimilar fatos isolados e não procurar compreender e estabelecer relações;

  • desnaturam a motivação ao dar ênfase à recompensa ou à punição e ao sucesso do aluno numa categoria limitada de habilidades;

  • contribuem para aumentar o domínio das pessoas estranhas à sala de aula (ao invés de demonstrar confiança nas competências e na capacidade de julgar dos professores);

  • conduzem ao abandono de numerosos objetivos da educação pública, à desmoralização dos professores, à desmotivação dos alunos e à erosão da confiança da população na escola e em seus artesãos.

A Federação Canadense de Professores teme a importação dos sistemas americanos de avaliação que, segundo ela, servem apenas para recompensar e sancionar os alunos, os membros do pessoal docente e as escolas, e consideram a avalição como um castigo. Tais sistemas seriam idealizados para criar alguns vencedores e muitos perdedores.

Notemos que, na última década, desenvolveu-se no restante do Canadá não somente uma avaliação padronizada das aprendizagens dos alunos, mas também uma avaliação dos estabelecimentos de ensino (um ranking na Colúmbia Britânica, em Alberta e em Ontário, uma avaliação trienal multipartida no Novo Brunswick, a "Agência da Qualidade e da Responsabilidade na Educação" em Ontário) e dos professores (testes de certificação inicial e mecanismo de recertificação a cada cinco anos Ontário).

Os professores canadenses, por intermédio de sua federação nacional, defendem, portanto, uma profissionalidade que acreditavam alcançada, aquela que afirmava a competência deles em matéria de currículo e de avaliação dos alunos. Eles têm a impressão de que os instrumentos de regulação burocrática amputam esses elementos centrais da sua profissionalidade, construída desde a universitarização da formação de professores. É pelo menos o que sobressai da análise dos textos da Federação Canadense de Professores.

A AUTONOMIA PROFISSIONAL ENQUANTO RESPONSABILIDADE ASSUMIDA

Baseada numa sondagem realizada junto aos pais (2002), que revela que, em se tratando de medir o grau de sucesso dos alunos, um número duas vezes maior de pais prefere a avaliação feita pelo professor aos testes padronizados, a Federação Canadense de Professores propõe seu próprio modelo de "responsabilização" (termo usado para traduzir a palavra accountability, do inglês). A promoção desse modelo constitui uma prioridade e ocupa bastante epaço nas publicações da Federação durante o período estudado. Esse modelo incorpora a avaliação das aprendizagens dos alunos, mas vai além, e engloba várias dimensões da prestação de contas dos estabelecimentos de ensino e dos professores.

Com o objetivo de respeitar o contrato moral implícito realizado entre a sociedade e o sistema público de educação, o modelo da Federação dá ênfase à avaliação feita em sala de aula (avaliação autêntica, portfolio, avaliação integrada ao currículo e ao ensino). Trata-se de uma avaliação individualizada, fundamentada numa variedade de dados e de situações, que permite compor o quadro completo com base em semanas e meses de trabalho em sala de aula, pois, segundo a Federação, uma avaliação de qualidade em sala de aula acompanha naturalmente um ensino de qualidade. Esse modelo busca respeitar o julgamento dos professores e sua autonomia profissional.

Ele está assentado em cinco pilares:

1) Uma visão do bem público que abraça os princípios democráticos e a justiça social.

2) A ênfase na aprendizagem dos alunos cujas necessidades são diferentes e escapam à padronização. É preciso prestar contas não somente dos resultados, mas também das condições de ensino, da oferta de oportunidades de aprendizagem, do desenvolvimento de uma motivação intrínseca, do civismo e do desenvolvimento de todas as dimensões da pessoa.

3) A responsabilização, campo partilhado entre o Governo, o Conselho Escolar, a escola, os professores, as famílias e o público em geral.

4) A responsabilização profissional: a Federação Canadense de Professores admite o vínculo entre a qualidade do pessoal docente e o desempenho dos alunos. Os professores são responsáveis por sua própria prática profissional e pelo respeito às normas de prática. Por seu lado, as organizações profissionais e sindicais estabelecem e promovem normas de prática profissional. Os professores também têm a responsabilidade de questionar-se e de atrair a atenção da população para as questões que ultrapassam sua esfera imediata de competência, mas que afetam sua eficiência e poderiam prejudicar a qualidade da educação de seus alunos.

5) Uma prestação de contas clara, transparente, acessível, a fim de resgatar a confiança da sociedade na escola pública.

Como vemos, a noção de autonomia profissional proposta pela Federação Canadense de Professores está ligada à noção de responsabilidade profissional, a qual se assenta em normas de prática, numa visão do bem público na educação, e na aprendizagem dos alunos (definida de maneira ampla). Para a Federação, há normas de prática que deveriam ser respeitadas por todos os professores, normas essas oriundas ao mesmo tempo da pesquisa e da prática comprovada e fonte de eficácia e de qualidade da ação profissional. Elas dizem respeito à relação didática e pedagógica, à colaboração profissional, ao aperfeiçoamento e às relações com os pais.

Ao reagir negativamente àquilo que ela percebe como sendo uma redução tecnicista da profissionalidade dos professores, a Federação o faz em nome de uma autonomia profissional adquirida em matéria de currículo e de avaliação, autonomia à qual os professores dão muita importância. Esse discurso é representativo de uma forma de regulação ética profissional.

No Quebec, num primeiro momento: a autonomia profissional como "oxigênio" e alavanca para relançar o modelo "participacionista"

No Quebec, tradicionalmente mais centralizado que o Canadá de língua inglesa, a problemática da autonomia profissional dos professores já se mostrava semelhante à do restante do Canadá em 1996, no momento da realização dos Estados Gerais da Educação. De fato, em seu Manifesto redigido nessa época, a Central dos Sindicatos do Quebec escreve:

A tecnocracia educativa nos invadiu nos últimos anos. As normas e regras se multiplicaram. Milhares de objetivos nos programas definem o processo de ensino com a precisão de um metrônomo. A avaliação das aprendizagens assumiu a forma de uma vasta operação de controle: tornamo-nos "gerentes de exames", clamava um professor por ocasião de um colóquio regional da CEQ. Temos a impressão de ser apenas peças de uma gigantesca máquina cujo funcionamento não compreendemos (1996, p. 12).

Contra essa invasão tecnoburocrática, a CSQ propunha então "que se devolvesse a pedagogia aos professores":

O sistema educacional precisa de uma boa dose de oxigênio. As professoras e professores precisam poder respirar. Eles devem dispor de uma autonomia profissional que lhes permita, no limite de quadros nacionais, adaptar os conteúdos dos programas de ensino, avaliar os progressos dos alunos e escolher os enfoques, métodos e processos pedagógicos apropriados. Essa autonomia comporta uma componente individual e uma componente coletiva ao mesmo tempo. Ela é exercida no âmbito de uma comunidade educativa, supõe a interdependência e recorre à colegialidade tanto entre o pessoal docente, o pessoal técnico e o pessoal de apoio quanto nos processos de decisão... É preciso revalorizar a profissão docente, devolver a pedagogia às professoras e professores (CSQ, 1996, p. 12).

O Manifesto de 1996 é "participacionista". Aliás, considerando, a exemplo da Internacional da Educação, que "os sindicatos de professores deviam tornar-se atores ativos no desenvolvimento das políticas educativas" (1996, p. 26) até dentro dos estabelecimentos, o Manifesto pretendia fazer da ação profissional um eixo prioritário de ação. Isso é importante e revela uma evolução dentro da Central Sindical. De fato, tradicionalmente, a CSQ sempre concebeu sua ação em função de três prioridades: 1) uma prioridade sindical, centrada na defesa dos interesses dos "trabalhadores do ensino" no âmbito das relações de trabalho e da negociação de convenções coletivas de trabalho; 2) uma prioridade sociopolítica pela qual a CSQ pretendia elaborar e promover um projeto de escola pública e comum para uma sociedade justa, igualitária e francófona; e, enfim, 3) uma prioridade profissional, ligada à profissionalização da formação e do ensino. Historicamente, as duas primeiras prioridades estiveram em primeiro plano em vários períodos, a tal ponto que um movimento mais "profissionalista" surgiu e se impôs dentro do Conselho Pedagógico Interdisciplinar do Quebec (CPIQ) como promotor de uma ordem profissional para os professores.

A CSQ opôs-se vigorosamente à idéia de criação de uma ordem profissional, mas adaptou, no entanto, seu discurso para melhor levar em conta as preocupações "profissionais" de seus membros. Assim, ela elaborou, adotou e tornou pública uma Declaração da Profissão Docente que trata dos compromissos dos professores para com os alunos, os colegas, os pais, a profissão e a sociedade. Esse gesto simbólico, que não constitui um código de ética no sentido tradicional, veicula entretanto um compromisso profissional coletivo. De acordo com a presidente da Federação dos Sindicatos do Ensino (FSE), "expressa-se aí a nossa vontade de trabalhar com os outros de forma colegial" (2005, p. 123). Vê-se aí uma evolução da noção de autonomia profissional, de acordo com a dimensão individual/coletiva e em relação com um reconhecimento de uma interdependência necessária entre os atores envolvidos na educação. Nesse sentido, os seguintes trechos da Declaração são reveladores:

Reconhecemos que, no ensino, a colaboração com os colegas e todo o pessoal do estabelecimento é essencial. Por conseguinte, reconhecemos a importância:

• de trabalhar de forma colegial, respeitando as pessoas e os papéis de cada um;

• de apoiar e acompanhar aquelas e aqueles que estão começando na profissão;

• de representar os colegas com integridade no respeito às missões que nos são confiadas;

• de participar, no âmbito das responsabilidades do Conselho do Estabelecimento, da elaboração, implantação e avaliação regular do projeto educativo ou das orientações do estabelecimento e do plano de sucesso escolar.

• Reconhecemos que os pais têm um papel importante a desempenhar na educação de seus filhos. Por conseguinte, afirmamos a necessidade:

- de estabelecer uma relação de confiança e de respeito mútuo, colocando-nos à escuta dos pais e facilitando o diálogo;

- de trabalhar com eles nos Conselhos do Estabelecimento e nos comitês onde sua participação é solicitada (2004).

A CSQ aceita, a partir de então, a descentralização de certos poderes da Comissão Escolar, transferidos para os estabelecimentos de ensino, e a redefinição dos poderes e prerrogativas dos atores locais dentro das estruturas de governança. Segundo a presidente da Federação dos Sindicatos do Ensino, na prática, e após estudar o funcionamento dos Conselhos do Estabelecimento e das relações ali estabelecidas entre professores e pais (DENIGER; BERTHELOT; ROY, 2005), percebe-se que a autonomia profissional dos professores não é diminuída ou limitada. Ela assume antes uma dimensão mais coletiva:

Nós nos questionamos hoje sobre a fronteira entre aquilo que chamamos de autonomia coletiva e a autonomia individual dos professores. O debate é sobre essa questão, considerando que, no passado, a autonomia individual sempre foi a mais enfatizada [...] Entretanto, é preciso admitir que os mecanismos de participação [...] reconhecem nossa autonomia e nossa competência profissional [...] A lei é muito clara: o Conselho do Estabelecimento identifica orientações, mas não deve de forma alguma discutir estratégias de ação ou métodos pedagógicos — isso cabe ao professor e à professora, e é natural. O Conselho do Estabelecimento também não deve avaliar os professores: não é ele que cuida da gestão do pessoal. Isso está bem claro (2005, p. 116).

A CSQ aceita, portanto, que seus membros participem da governança da escola e se integrem numa forma de gestão participativa juntamente com a direção e com os pais. Ocorre, portanto, uma "virada" profissional e participativa da CSQ, que não parece estar em contradição com a noção de autonomia profissional, mas lhe reconhece novos espaços de atualização, fora da classe, dentro do estabelecimento. Essa virada, conforme a presidente da FSE, não precisa ser uniforme nem prescrita nos mínimos detalhes. As dinâmicas locais das equipes de professores devem ser respeitadas, especialmente no tocante à injunção da colaboração entre professores:

No fundo, devemos reconhecer que talvez não exista só um modelo a ser privilegiado e que é importante deixar as pessoas envolvidas decidirem. Qual a melhor maneira de facilitar o entendimento? [...] É a equipe da escola que deve decidir, e não se trata de escolher entre colaborar ou não, mas entre modelos de colaboração: sim, deve-se dar às equipes uma certa liberdade [...] Acho que estamos caminhando para uma maior colaboração. Isso é inevitável. Mas é possível ter uma certa liberdade no que diz respeito à escolha dos modelos (2005, p. 123).

Em suma, o discurso da CSQ sobre a autonomia profissional evolui: ele não se contenta em querer reduzir os controles, mas reconhece também a dimensão coletiva da autonomia e sua inserção nas estruturas locais de gestão participativa. Isso indica uma evolução importante, provavelmente impulsionada pela preocupação da CSQ em estabelecer uma parceria com os pais a fim de defender e promover a escola pública, num contexto marcado pela grande popularidade do ensino privado.

A autonomia profissional, segundo momento: uma resposta ao debate sobre a educação, contra toda uniformização pedagógica

Num documento recente (2006), a CSQ atualiza a autonomia profissional de forma diferente e trata de um debate que não existe no restante do Canadá. De fato, por intermédio de um de seus pesquisadores, a CSQ defende a liberdade pedagógica dos professores contra três grupos sociais que, nos últimos anos, procuram restringi-la: os "reformadores", os "tradicionalistas" e aqueles que "ostentam as virtudes da ciência". Aqui, o perigo que se deve combater é a uniformização das práticas e, por trás disso, o dogmatismo ideológico. De fato, por meio de um de seus pesquisadores, a CSQ afirma:

A liberdade pedagógica é novamente motivo de polêmica entre tradicionalistas e modernistas. No Quebec, como em vários países, esse assunto suscita discussões acirradas [...] De fato, a pesquisa pedagógica não designa nenhum método dotado de eficácia ou de ineficácia intrínseca. Ela convida, ao contrário, a respeitar a autonomia profissional no que se refere à escolha das modalidades pedagógicas. São os professores e professoras, em sua grande diversidade, que compõem a escola, com suas convicções e muito amor pelas crianças. Nesse tipo de profissão, não há verdade absoluta. A pesquisa não dita, informa. (CSQ, 2006, p.12)

A CSQ não dá razão a nenhum dos defensores de uma "verdade absoluta" e prefere confiar em seus membros, cuja capacidade de julgar em situações concretas é a melhor garantia de uma "boa" pedagogia. Estamos diante de uma forma de regulação profissional que, por causa do debate em torno da reforma curricular, não se apresenta da mesma maneira no restante do Canadá, pois esse debate é específico ao Quebec.

No Canadá e no Quebec, uma grande preocupação relativa à reorganização do trabalho docente.

Tanto na Federação Canadense de Professores quanto na Central dos Sindicatos do Quebec, observamos um discurso sobre o aumento da carga de trabalho dos professores. Aliás, a Federação Canadense de Professores realizou duas sondagens junto aos seus membros, em 2000 e em 2005, a fim de medir com precisão o tempo dedicado pelos professores a diversas atividades. É preciso ressaltar que ainda não há consenso científico com relação à medida do trabalho efetivo e que os dados produzidos pela Federação Canadense de Professores, pela Estatística Canadá ou por pesquisadores do Quebec que trabalham no âmbito da implantação da lei sobre a isonomia salarial não concordam. Há diferenças reais nos resultados por serem usadas metodologias diferentes. O importante aqui, contudo, é o discurso sindical relativo a esses dados.

Os principais resultados da sondagem de 2005 são os seguintes:

• Oito pessoas entre 10 declaram ter uma carga de trabalho maior do que há 4 anos.

• Um terço do pessoal docente indica um aumento no número de incidentes ocorridos com pais irritados ou que apresentavam um comportamento violento.

• A maioria (51%) afirma que o número de alunos em sua sala de aula aumentou nos 2 últimos anos.

• 3/4 das pessoas sondadas declaram que houve um aumento no número de alunos com necessidades particulares integrados nas salas de aula, e um grande aumento, segundo 41% das pessoas.

• Mais de 9 entre 10 pagam com o seu próprio dinheiro algum material usado na sala de aula e em atividades para seus alunos. Uma média de 344 dólares canadenses.

• Em 2001, a semana de trabalho era de 51,8 horas; em 2005, ela atingia 55,6 horas, entre as quais:

- 7,45 horas por dia em sala de aula;

- 12 horas para preparação de aulas e avaliação dos alunos;

- 2,4 horas para ajudar os alunos fora do horário de expediente normal;

- 2 horas para reuniões e encontros com os pais;

- e mais de 2 horas para atividades extra-escolares.

Esse tipo de estudo também foi feito no Quebec, no âmbito da implantação da lei sobre a isonomia salarial no funcionalismo público quebequense. A tendência no que se refere ao aumento da carga de trabalho é a mesma que no Canadá de expressão inglesa, embora os resultados sejam diferentes pelo uso de metodologias também diferentes. Isso é motivo de discórdia entre as instâncias sindicais e patronais.

O discurso sindical sobre o aumento da carga de trabalho diz respeito principalmente a dois grandes eixos do trabalho docente: o trabalho em sala de aula e o trabalho fora da classe, na escola, com os colegas, nas estruturas de governança local e também junto à comunidade. Em relação ao primeiro eixo, no Canadá e no Quebec, os sindicatos salientam a heterogeneidade crescente das turmas e a dificuldade que têm os professores de lidar com isso. O trabalho fora da classe também pesa muito, pelo tempo dedicado pelos professores à negociação com os outros, às reuniões, aos encontros com os pais e à participação em diversos comitês e instâncias.

Não se pode falar de resistência ou de oposição explícita e forte à reorganização do trabalho, mas de uma forte inquietação com relação aos seus efeitos, sobretudo num contexto em que a concorrência entre estabelecimentos (secundários) vem aumentando, bem como a pressão relativa à eficiência e ao desempenho dos estabelecimentos. Esses elementos de regulação burocrática e quase-mercantil levam as associações sindicais docentes a temerem o pior e as tornam desconfiadas em relação a uma reorganização do trabalho que suga demais. As associações sindicais consideram que a autonomia e a competência profissional são relativamente reconhecidas, mas comportam exigências maiores e um acompanhamento mais rígido pelo envolvimento dos professores em relações sociais de maior interdependência do que no passado. É esse contexto que inquieta as associações e as deixa na defensiva.

Conclusão

Duas conclusões são necessárias. A primeira refere-se à grande cesura anunciada por Anderson e Ben Jaafar. Essa divisão talvez não seja tão grande quanto poderíamos imaginar, se nos basearmos nos discursos sindicais. É verdade que a Federação Canadense de Professores se opõe à avaliação padronizada e a uma grande centralização curricular, mas ela partilha com os poderes públicos a idéia de responsabilidade dos professores em relação à aprendizagem dos alunos e de uma forma de imputabilidade dos professores. Do mesmo modo, a CSQ opõe-se à lógica quase-mercantil na educação, mas aceita a descentralização, a autonomia crescente dos estabelecimentos de ensino, os Conselhos do Estabelecimento, e procura estabelecer uma parceria com os pais. Em ambos os casos, há grandes oposições no tocante a determinados aspectos das políticas e a determinadas modalidades de sua implantação, mas há também uma aceitação de princípio (Federação Canadense de Professores) ou pragmática (Central dos Sindicatos do Quebec) das orientações fundamentais dessas políticas (imputabilidade e maior poder dos pais).

É como se as centrais procurassem minimizar as asperezas das políticas de prestação de contas, aceitando aspectos considerados incontornáveis. É como se julgassem que isso constitui um mal menor e que recusar compromissos poderia ser contraproducente. Em suma, é como se fosse impossível escapar à nova regulação, pois ela é, para a sociedade, legítima e pregnante. Então, é melhor limitar os estragos e aproveitar. Para a Federação Canadense de Professores, o cálculo não parece tão pragmático, pois ela sempre foi "participacionista" e "parcerial". Para a CSQ, a evolução ocorrida desde os Estados Gerais é mais significativa, considerando o passado dessa Central. Aliás, essa evolução é frágil e contestada, como mostra o movimento de desvinculação de determinados sindicatos.

A outra conclusão baseia-se no enfoque neo-institucionalista. A regulação múltipla obriga a instituição escolar a desenvolver novas atividades para gerar novas demandas à escola e ao seu pessoal. Embora as atividades centrais da escola sejam fortemente institucionalizadas (ensino ministrado por um professor responsável por um grupo de alunos reunidos numa sala de aula, avaliação das aprendizagens e classificação dos alunos), a nova regulação a obriga a atuar em vários outros campos, todos energívoros e consumidores de tempo e de recursos: é preciso organizar-se enquanto grupo para fazer coletas de fundos, necessárias para contrabalancear a estagnação ou a redução do financiamento estatal, é preciso estabelecer parcerias comunitárias para respeitar a filosofia da escola comunitária e garantir a fidelidade das famílias da vizinhança, é preciso redigir um enunciado de missão, um plano de sucesso escolar, um folheto publicitário, construir com os professores e pais um consenso em torno dos elementos da política local, é preciso organizar um "dia de portas abertas", anunciar nos jornais dos bairros, fazer sondagens junto aos pais para conhecer suas expectativas, diversificar eventualmente o currículo para atender a essas expectativas; os professores devem também integrar em suas classes alunos cada vez mais diferentes e reagir às injunções da burocracia escolar (política de integração dos alunos deficientes ou com dificuldades de adaptação e de aprendizagem, novo currículo, nova política de avaliação dos alunos, injunções pedagógicas). Pois todas essas demandas e as atividades que elas implicam são legitimadas pelo entorno da escola: esta não pode, portanto, subtrair-se sem sofrer conseqüências difíceis de serem estimadas. Esse desenvolvimento de múltiplas atividades periféricas, bem como determinadas incursões nas atividades principais da instituição, explicam o esgotamento dos professores e o discurso das centrais sindicais sobre o aumento da carga de trabalho dos docentes. Deve-se ver nisso também uma defesa das atividades centrais da escola contra a proliferação de atividades periféricas que invadem o trabalho cotidiano dos professores. Em grandes instituições, essa proteção passa por uma divisão do trabalho, com pessoas dedicadas exclusivamente a essas atividades periféricas; mas nas pequenas instituições como as escolas primárias, e até mesmo nas escolas secundárias, todo o pessoal deve contribuir e assumir as atividades periféricas. Daí o sentimento de esgotamento e de sobrecarga.

De acordo com essa leitura, a autonomia profissional reivindicada pelos professores e por suas associações sindicais refere-se muito mais às atividades consideradas centrais pelos atores do que às atividades periféricas. E a resistência será mais forte se houver certeza de que as demandas do meio atingem as atividades centrais. Isso possibilita compreender a força da reação, no restante do Canadá, contra a centralização do currículo e a padronização da avaliação das aprendizagens, e a relativa aceitação dos professores quebequenses no que diz respeito aos Conselhos do Estabelecimento e à presença dos pais. No caso dos pais, tudo irá bem enquanto eles permanecerem voltados para as atividades periféricas. Da mesma forma, o debate atual em torno do currículo da formação no Quebec e a demanda sindical de "devolver a pedagogia aos professores", assim como a desvinculação de determinados sindicatos, estão ligados à defesa do cerne da profissão, à defesa de uma identidade profissional ameaçada (especialmente na escola secundária).

Recebido em: 30/09/2006

Aprovado em: 06/11/2006

(Tradução: Francisco Pereira Lima, pesquisador do CRIFPE, na Universidade Laval, Quebec).

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    Neste artigo, o termo "Quebec" designa somente o Quebec de língua francesa, ao passo que o termo "Canadá" designa todo o restante do país, incluindo o Quebec de língua inglesa. A Central de Sindicatos do Quebec ("Centrale des Syndicats du Québec") engloba as associações de professores franco-quebequenses, e a Federação Canadense de Professores ("Fédération Canadienne des Enseignants") engloba as associações de professores de língua inglesa e de língua francesa de todo o restante do país, bem como a associação de professores anglo-quebequenses.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Recebido
      30 Set 2006
    • Aceito
      06 Nov 2006
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