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Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo

RESENHAS ESSAYS

Eliane Marta Teixeira Lopes

Professora do Mestrado em Educação da Unincor; Psicanalista, membro do Aleph Escola de Psicanálise. E-mail: emtlopes@uai.com.br

Contato

RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade: Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2001

Margareth Rago publicou vários livros, entre os quais Do Cabaré ao Lar. A utopia da cidade disciplinar, de 1985, e Os Prazeres da Noite. Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo, de 1989, que trouxeram contribuição muito importante ao campo de estudos da história das mulheres e das relações de gênero em uma perspectiva foucaultiana e anarquista. Sua decisão de escrever sobre Luce Fabbri veio depois de um encontro em evento na PUC-SP, em agosto de 1992, quando já trabalhava com o tema das "Mulheres anarquistas". A pesquisa se deu entre viagens ao Uruguai, onde hospedava-se na Comunidad del Sur e entrou em contato "com uma rede libertária planetária", e a convivência fraterna com a biografada, seus familiares, seus amigos e seu lugar de produção, em uma sintonia de idéias e de afeto raros em situações de entrevista. Em Entre a História e a liberdade, não há um capítulo sobre a Metodologia usada no trabalho, mas o livro vai revelando o processo de construção do texto e da pesquisa: gravou e filmou entrevistas e situações, leu e aprendeu tudo o que Luce Fabbri escreveu e o que escreveram sobre ela.

Sendo originalmente a tese com a qual Margareth Rago prestou seu concurso para livre docente no Departamento de História da Unicamp, o livro tem 368 páginas e é dividido em cinco partes, que mais ou menos dizem tanto da vida quanto das posições acadêmicas, intelectuais e políticas de Luce Fabbri: "Bologna mia"; "Em trânsito"; "El Uruguay feliz"; "Do exílio à imigração"; "Anarquismo, democracia e ditadura". O belo texto "História e liberdade em Luce Fabbri" fecha o livro.

Segundo a autora, a biografia não tem por objetivo apenas contar as muitas histórias que fazem parte de uma vida, mas é "uma forma de salvar, 'no instante do perigo' - como alerta Walter Benjamin - as imagens e experiências do passado ricas e significativas, ameaçadas pelo esquecimento". Em momento algum - e essa é, a meu ver, uma das melhores contribuições do livro a quem faz ou quer fazer pesquisa histórica -, abandona sua posição de historiadora feminista, reafirmando que é o lugar social marcado pelas diferenças de gênero que determina a estrutura da memória sobre o social.

Luce Fabbri nasceu em Bolonha, em 25 de julho de 1908, e morreu em Montevidéu, em 19 de agosto de 2000, antes que o livro de Margareth Rago ficasse pronto. No entanto, leu os manuscritos e sobre o texto escreveu à autora uma carta (p. 343) em que fica clara sua posição de acadêmica lúcida e crítica, e não de alguém que tivesse se deixado levar pelo gosto de se saber citada (o que verdadeiramente, àquela altura de sua vida, já havia deixado de ser uma novidade). Sua produção foi vasta. Além dos sete livros publicados no Uruguai, na Argentina, na Espanha e na Itália, publicou artigos, resenhas, prefácios e apresentações, concedeu entrevistas e foi objeto/sujeito de reportagens. Houve também considerável número de artigos, resenhas, entrevistas sobre sua obra - todos muito bem-arrolados no livro de Margareth Rago, para quem se interessar em se aprofundar sobre o assunto.

A experiência dessa mulher que viveu tudo que um século inteiro pôde oferecer, entre exílio e acolhimento, é de atuação no mundo público sem nunca ter perdido sua vida privada: casou-se, foi mãe, avó e bisavó. Sua experiência de solidariedade, de construção de práticas libertárias e de defesa dos ideais e valores libertários em um mundo que passou e passa por momentos de violência totalitária, de cuidados com a preservação da memória e da história do anarquismo diante das investidas para seu silenciamento e exclusão, sempre foram feitas buscando outros caminhos e outras perguntas para aquilo que é fazer história. Luce sempre questionou os limites na forma de pensar, de agir e de sentir. Fundou novos espaços do pensamento e da vida. Foi poetisa, política e cientista, integrando tudo isso na construção de sua subjetividade.

A epígrafe do livro ("Para que serve a história?, perguntei-lhe. '-A história ensina a nadar'... ela me respondeu") vai sendo esclarecida ao longo da leitura: a história é liberdade, pois nos apresenta o rio em que temos de nos mover. Nesse último capítulo, diz a autora:

A concepção libertária da história, que delineia e desenvolve, é condição de possibilidade de emergência de uma pluralidade de novos temas e da percepção de práticas e fenômenos até recentemente não historicizados, porque irrepresentáveis.(...) Esse pensamento questiona constantemente seus próprios limites e os conceitos com que opera, recusa as sínteses e as generalizações rápidas, desconstrói as codificações hierarquizadoras e simplistas, tendo em vista captar e fazer emergir aquilo que, como ela mesma diz num texto de 1952, "desliza por entre as malhas das construções teóricas, e escapa às classificações". (p. 335).

Luce Fabbri trabalhou com temas como o Iluminismo - sendo ela mesma iluminista, no sentido de que apostava na capacidade transformadora da razão -. tendo repetido, ao longo de toda sua vida, "cultura es libertad". Sobre a Modernização, afirma:

Hoje quase ninguém está convencido de que o futuro será necessariamente melhor que o passado. Estamos no fio da navalha, ou melhor, na linha das vertentes... O progresso, pois, existe, se o sentimos como obra nossa: está feito de consciência e vontade e se baseia em conquistas anteriores. Nenhuma conquista é definitiva e pode-se perder qualquer uma delas.(p. 338).

A linguagem, e "a linguagem como raiz da liberdade", é um tema importante na reflexão de Luce Fabbri e está presente tanto pelo reconhecimento do poder da palavra (político, inclusive), quanto por sua fruição estética da convivência com autores que lhe eram caros, como Dante Alighieri, Eugenio Montale, Leopardi e outros. Com as palavras fazia política, poesia, história e conhecia o valor do estilo ("corrigir a gramática, mas não o estilo").

Por essa reflexão sobre a linguagem, deixa clara a tensão entre liberdade e determinação:

Na linguagem o homem realiza a sua liberdade, porque, embora condicionado, é o momento da criação espontânea, é o terreno em que o condicionamento e a liberdade se encontram em perfeita harmonia. A linguagem é uma criação coletiva, nós estamos, de certo modo, através das palavras, influídos por toda a história passada e por todo o ambiente e, ao mesmo tempo, somos livres; cada palavra que dizemos não foi dita antes do mesmo modo, no mesmo contexto... e através disso influímos no entorno... É também o instrumento através do qual podemos romper... ninguém pode obrigar a pensar com palavras determinadas, nós escolhemos nossas palavras e nós lhes damos nossos significados... (p. 303).

Talvez a primeira pergunta que um/a possível leitor/a se possa fazer é por que um livro com esse título torna-se resenha em uma revista de educação. Poderia responder que já tivemos, em cursos de pós-graduação em educação, aulas magníficas dadas por um professor que nos desafiava a que invertêssemos nosso pensamento pedagógico burocrático propondo uma pedagogia libertária fundada na autogestão, na autonomia dos indivíduos e na solidariedade. Propunha-nos que pensássemos a pedagogia como a medida possível pela qual o saber acumulado pelo professor tem a chance - ou não - de tornar-se o saber do aluno. Assim, esse não é um tema estranho ao pensamento educacional brasileiro. Como para ele, para Luce Fabbri "...além de existir uma organização política anárquica, há também uma moral, uma crítica, uma pedagogia anárquicas" que a conduziu mesmo nas suas posições teóricas sobre a história.1 1 Conferir as resenhas de Miriam Lifchitz Moreira Leite na Revista Brasileira de História in: http://www.scielo.br/scielo, e a de Joana Maria Pedro na Revista de Estudos Feministas da UFRJ, também disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc

Além disso, se é verdade, e é, que a História da Educação no Brasil vem "incorporando novos objetos, novas fontes e novas perspectivas teórico-metodológicas, o que, no seu conjunto, tem contribuído, também, para uma acentuada mudança nos modos de fazer história da educação", como afirma Luciano Mendes de Faria Filho nesta mesma revista (n. 34, 2001), podemos aprender na leitura desse livro... tanto com Luce Fabbri quanto com Margareth Rago.

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Recebido: 10/12/07

Aprovado: 22/12/07

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    1 Conferir as resenhas de Miriam Lifchitz Moreira Leite na Revista Brasileira de História in: http://www.scielo.br/scielo,
  • e a de Joana Maria Pedro na Revista de Estudos Feministas da UFRJ, também disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc
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    Conferir as resenhas de Miriam Lifchitz Moreira Leite na
    Revista Brasileira de História in:
    http://www.scielo.br/scielo, e a de Joana Maria Pedro na
    Revista de Estudos Feministas da UFRJ, também disponível em
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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