PALAVRA ABERTA FREE SPEECH
Discurso Eliane Marta Teixeira Lopes
Belo Horizonte, 4 de setembro de 2009
Magnífico Reitor Professor Ronaldo Tadeu Pena
Magnífico Reitor Professor Eduardo Osório Cisalpino
Magnífico Reitor Professor Cid Velloso
Exma. Sra. Diretora da Faculdade de Educação, Professora Antonia Aranha
Exmo Sr. Coordenador da Pós-graduação, Professor Bernardo Jefferson
Sra. Secretária da Pós-graduação, Rosemary da Silva Madeira
Poetas, seresteiros, namorados!
Permitam que os chame assim, senhores e senhoras, professores e professoras, alunos e alunas, que é bom que nunca passemos disso: poetas, seresteiros e enamorados.
Poetas, porque é da palavra que nos fazemos; seresteiros porque as músicas são trilhas sonoras em nossas vidas; e enamorados porque é sempre bom que a paixão nos acompanhe, a paixão é o único vínculo que temos com a verdade.
Agradeço também a muitos:
Agradeço à minha mãe pelas palavras e ao meu pai pela trilha sonora da minha vida. Na linguagem, me educaram. A paixão é por minha conta.
Agradeço a cada um, a cada uma de vocês pela presença: o presente mais caro que se pode dar ao outro.
Agradeço à Congregação da Faculdade de Educação, que aceitou a indicação do meu nome.
Agradeço particularmente aos amigos, colegas, professores e funcionários que tiveram a iniciativa da proposição - mais que um grupo de colegas, revelo que este é um grupo de desejo; aprendemos juntos que é o desejo que move o saber - e o trabalho nosso de cada dia deve ser assumido no desejo. Tentamos nos lembrar, a cada dia, que
Se isso não se dá, o trabalho é moroso, alienado, movido apenas pela necessidade de prestar um exame, de obter um diploma, de garantir uma promoção na carreira.
Agradeço a esta Universidade, na qual aprendi o que sei e aprendi que nada sei nos nossos longos anos de convivência e conivência, com tudo que o erotismo socrático nos proporcionou,
a ela e a mim.
Agradeço à minha pequena família: Rodrigo, Emmannuelle e Luísa, fazendo amor, sabor e arte ao meu redor - e a Kátia, por tê-la trazido ao mundo, que ficou muito mais doce e colorido.
Agradeço à minha família: irmãos, sobrinhos, sobrinhas, primos e primas, sempre carinhosamente por perto...
Agradeço a todos os que me ofereceram livros - nomeando apenas D. Terezinha, Sr. Eguinoa, Wiliam, Tião e Alencar,
lembro-me de cada um.
Agradeço a algumas mulheres que tornaram a minha vida acadêmica possível porque sustentaram minha vida doméstica: Silvina, Odália, Nilza.
Agradeço aos que me escutaram e fizeram a
transmissão de um novo discurso.
Agradeço aos meus amigos e às minhas amigas, aos que vieram de longe e aos que estão sempre perto: cada um deles sabe por quê.
De mim posso dizer algumas coisas...
Dou por fé de que sou historiadora da educação. A educação é uma beleza só apreendida no seu mistério: nem arte, nem técnica, um mistério. É esse mistério que busco desvendar nas lidas da história da educação. A escolha pela história da educação, ainda na graduação, deu-se por afinidades outras entre uma professora e a aluna que eu era e faço aqui minha homenagem agradecida a ela, sem a qual talvez não tivesse havido início: Ana Maria Casasanta.
Era, talvez, uma escolha inevitável, já que, por não ser a primeira, era a única que me permitia não renunciar a outros prazeres: escrever e interpretar - onde há pesquisa há interpretação.
Sou historiadora porque o mistério do tempo me persegue desde a infância e, até onde remontam minhas lembranças, a memória - guardada em caixas verdes, em vestidos antigos, em luvas, em fotografias, em livros - sempre me fascinou: a memória entrega-nos à vertigem do ser "como e porque", e do tempo. É contra o esquecimento que fabrico o trabalho de historiar.
No exercício da profissão e na produção acadêmica, nem sempre percorri caminhos convencionais. Na oscilação entre a repulsa e a aspiração pelo convencional construí um caminho difícil de ser trilhado; algumas vezes consegui fazer de um ou de outro um aliado, outras vezes sucumbi diante da dificuldade. Em ambos os casos assumindo que era assim que era - como na tauromaquia "un oeil noir (preto) te regarde (espia) et l'amour t'attends (te espera)". Nem sempre isso dá certo, como se viu na Carmen.
Meu ingresso e minha progressão nesta universidade se fizeram passo a passo - concurso a concurso. Participei, em 1970, do concurso Venia Legendi para Auxiliar de Ensino de História da Educação. Comecei a lecionar com um entusiasmo que hoje causa inveja a mim mesma. É bem verdade, como diz Sérgio Santana, que quando começamos a lecionar, temos 24 anos e nossos alunos, 19. Dez anos, vinte, trinta anos depois, tal como o escritor, também aprendi que eles continuavam a ter 19 anos e eu, aqueles somados aos 24 do início. Ensinar, ensinar bem, coisas importantes, engajadas politicamente, "fazer cabeças" e formar consciências era a tarefa inadiável daquele momento.
O mestrado, que também foi uma escolha, pois ainda não era uma exigência da carreira, trouxe a alegria da pesquisa e da produção do conhecimento.
Naquele momento, aprendi com meu orientador, Professor Carlos Roberto Jamil Cury, a frase que repeti, venho repetindo e também outros se apropriaram dela: "Para fazer um trabalho acadêmico é preciso manter uma relação erótica com ele". Eu, que já tinha a ideia, mas não sabia que podia ser assim, e muito menos que podia portar esse... epíteto, adorei. A leitura de O Banquete completou a armação. Nessa dissertação, usei uma epígrafe de Merleau-Ponty que eu viria a repetir muitas vezes e que anunciava uma mudança de direção nos meus trabalhos.
Daquilo que vivo, amanhã terei que construir uma imagem, e no momento em que o vivo não posso fingir ignorá-lo. O passado que contemplo foi vivido e, a partir do instante em desejo penetrar em sua gênese, não posso ignorar que foi um presente.
Começava a entender que a vida que todo passado carrega é vívida e não podia ignorar que havia sido um presente. Presente de outros passados prenhes de futuros nos quais estava eu. Era o preço que pagaria para ser historiadora.
Das leituras feitas para essa dissertação e dos ares paulistas da PUC, a tese Colonizador-Colonizado: uma relação educativa no movimento da história começava a ser construída. Jamais me contentei em ler apenas o que era preciso, sempre li o que estava em torno: do tema, dos autores, da época e de um "eu" que fazia aquele trabalho e era trabalhado por ele. Minas Colonial deveria estar acompanhada por Cecília Meireles
...o que não puder ser resolvido deixe-o em ponto de dúvida. É por aqui que passa a construção da ciência. As verdades são muito boas para a religião, mas a dúvida metódica é condição do progresso do espírito.
Mas há certos momentos, momentos de risco, em que não se pode deixar de fazer um trabalho, certo trabalho, e as teses de concurso são trabalhos sem orientador: na banca não há cúmplice; a responsabilidade é pessoal e intransferível. De uma solidão irremediável. Da Sagrada Missão Pedagógica
O pós-doutorado e depois o estágio em Paris, na École, no INRP e na rue de Jarente trouxeram-me amigos, leituras que saíram de trás de uma cortina que sequer imaginava existir e a dimensão da palavra possibilidade.
De alguns autores sou devedora.
Nenhuma didática ensinou-me melhor o que é um seminário ou o que é a pesquisa que Roland Barthes. Dele, recolho e espalho, sempre que posso, saber e sabor. Ele talvez tenha sido o autor que mais me disse, mas também o que mais me autorizou dizer. Posso não estar usando seus textos, mas a presença deles fortalece-me e seus livros, ali ao lado, fazem-me companhia, como o incenso que, apenas perfumando, faz companhia.
Com muita força, mais ontem que hoje, sempre me perguntei como é que se escrevia a história. Hoje sei que era de outros mistérios que já me aproximava. Foi dessa maneira, em inesgotáveis buscas nas livrarias9 9 Aos mais jovens: não havia internet, assim, procurar um livro era efetivamente ir às livrarias, era "fazer" as livrarias. , que encontrei A Escrita da História, de Michel de Certeau. Foi o início de uma incansável e interminável aproximação. Com cada aluno ou aluna, em curso ou em orientação, sinto como uma aplicação necessária lermos seu livro em que encontramos o sopro para entender e continuar: Caminhar e/ou escrever é o trabalho sem trégua, movido pela força do desejo, sob as esporas de uma curiosidade ardente que nada pode(ria) deter.
Também me pergunto como a história é possível, se é que é. Ficou dito por Freud que a educação, prática a cada momento inadiável, é tarefa impossível. E a história, será também? Freud é uma convivência pregnante e para minha prática de historiadora retive que o modo de pensar psicanalítico atua como um novo instrumento de pesquisa na conexão História e psicanálise. Em torno disso, busco as implicações de uma em outra, implicada que estou.
A música veio para fazer um concerto, e de compositores também sou devedora: devo a Ernesto Nazaré e a Eduardo Souto um gosto de madeleine inesquecível, inalcançável. Devo a Glenn Gould o desejo sôfrego de música.
Escrevi outros textos, escrevi outros livros, organizei livros com textos de amigos e meus, participei de livros que amigos e colegas organizaram, conversei com alunos, dei aulas. Tudo o que fiz, e nada fiz sozinha, foi em torno de palavras. Citando Paul Ricoeur10 10 RICOEUR, Paul. La parole est mon royaume. Le Portique. Metz: n. 4: 2º semestre, 1999. :
O que faço quando ensino? Eu falo. Não tenho outro ganha pão e nem outra dignidade; não tenho outra maneira de transformar o mundo e não tenho outra influência sobre os homens. A palavra é meu trabalho; a palavra é meu reino.
Tal como ele, minha esperança está na linguagem, a esperança de que haverá sempre poetas, seresteiros e enamorados, de que haverá sempre pessoas para contar suas histórias e pessoas para querer que a palavra produza um saber.
Nesta universidade, a minha universidade, vamos, com Derrida, (Devemos) reivindicar com todas as nossas forças essa liberdade ou essa imunidade da Universidade, e por excelência de suas Humanidades. Não somente de forma verbal e declarativa, mas com o trabalho em ato e no que fazemos acontecer por meio de acontecimentos
Fadas ou bruxas, dragões ou gnomos, gigantes ou anões, temos uma herança da qual somos nós os guardiões. Uma história... da educação.
De mim, por tudo o que prepararam para mim hoje, em especial Jorge e Cristina, saibam que:
Reconheço-me
Porque
Reconhecem-me
Fico muito reconhecida
Notas
- 1 PIGLIA, Ricardo. Laboratório do escritor. São Paulo:Iluminuras, 1994. p. 27.
- 2 BARTHES, Roland. Jovens pesquisadores. In: O Rumor da Língua São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 97.
- 3 Parafraseio NORA, Pierre. Ensaios de Ego-histórias Lisboa, Edições 70, 1989.
- 5 MERLEAU-PONTY, M. A crise do entendimento São Paulo: Abril, Coleção Os Pensadores.
- 6 MEIRELES, Cecília. O Romanceiro da Inconfidência. 2ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
- 7 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 4ed. Rio de Janeiro: J. Olympio. 1965.
- 8 LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da Sagrada Missão Pedagógica. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003.
- 11 DERRIDA, Jacques. A universidade sem condição. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Jan 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009